Mal terminou o processo eleitoral mais acirrado da história do país, com uma vitória apertada, e por meio de uma frente ampla, de Luiz Inácio Lula da Silva, por apenas 1,8% sobre Jair Bolsonaro, e protestos de apoiadores da extrema-direita, certamente organizados e financiados por forças empresariais e do agronegócio, tomaram as ruas de várias cidades do país. Primeiramente, com bloqueios de estradas e, sucessivamente, com acampamentos em frente aos quartéis, pedindo intervenção militar ao som do hino nacional, tais bolsonaristas, fomentados por uma enxurrada de notícias fakes e muitas vezes insuflados pelo fanatismo religioso, questionam o resultado das urnas.
Não é de agora no Brasil que a nossa variante pentecostal e miliciana da alt-right norte-americana se traveste de antissistêmica para surfar na onda da falência representacional. Desde a ascensão do bolsonarismo, vimos o sistema tomando vida própria se apresentar sob a máscara de uma alternativa que seria diferente e fora da democracia representativa. Vimos, por exemplo, um político com vários mandatos como deputado se eleger como sendo “o novo na política”. Vimos caminhoneiros trancar estradas com barricadas pedindo golpe militar (sim, não é a primeira vez1), e assistimos protestos contra o direito à livre manifestação, como se a contradição evidente não fosse um absurdo precisamente pela compreensão de que vivemos uma ordem sustentada por sucessivos e continuados estados de suspensão da ordem dita normal, e pela manutenção de um estado permanente de emergência.
Mas é claro que nem mesmo diante disso talvez imaginássemos a quantidade de mobilização que temos diante de nossos olhos por mais de 15 dias continuados, com milhares fazendo saudações nazistas, catársis coletivas nas ruas, guerra social em cada esquina, construções de realidades paralelas. Já faz tempo que os anarquistas apontam para o perigo de se confiar numa política feita apenas pelas instituições e com foco no processo eleitoral. Mas a falência da representação não se cura com uma vitória nas urnas, o jogo de forças não acaba com o final de uma apuração apertada, na qual um dos lados reúne multiplicidades discordantes (cuja única unidade parece ser a exclusão do bolsonarismo) contra um projeto político delimitado e crescente por dentro e por fora das instituições.
Quando Bolsonaro venceu as eleições em 2018, alguns setores da esquerda apontaram para a necessidade de se retomar as ruas, ocupar os espaços de construção de base, fazer a política que de fato pode transformar a sociedade, mas os setores majoritários da esquerda institucional preferiram apostar as fichas apenas no processo eleitoral, na negociação com os de cima, que não poderia ser atrapalhada por uma cidade insurgente. O discurso era: não é a hora, vamos ganhar em 2022, deixem ele sangrar. E todos nós sangramos. E o risco sempre foi, como ainda é: ganhar e não se levar. Ou ainda: até ganhar, mas em péssimas circunstâncias. Pois eles perderam a presidência, mas se consolidam como maior projeto político unificado no país. E se ganhou sim, não queremos dizer aqui que a derrota de Bolsonaro não significa nada (momento faz o L e agradece ao nordeste2). Mas o ponto é: isso não é suficiente, desde que não apenas se ganhou perdendo-se muito do caráter à esquerda, mas este caráter continuará tendo que ser negociado cada vez mais para se manter a governabilidade durante os próximos anos.
Diante de uma direita que não recua, nem mesmo com a derrota eleitoral, nossa resposta não pode ser recuar cada vez mais, inclusive de nossos valores mais importantes. O capital político que agora ocupa as ruas é capaz de barganhar recuos e vantagens muito mais até do que os próprios cargos que eles ocupam no congresso. Sobretudo se não houverem outras forças políticas dispostas a disputar. Para além da possibilidade real de um golpe institucional, o que se vê é uma amostra do que serão os próximos anos, pois se alguém entendeu a política para além do voto e as consequências da crise de representação, certamente não foi a esquerda institucional. Pouquíssimas têm sido até agora as respostas nas ruas por parte da esquerda. E o que houve como, por exemplo, alguns casos de desbloqueios de vias, partiram de coletivos autônomos antifascistas e torcidas organizadas, e não da esquerda institucional.
O que se esperava com a vitória de Lula seria um novo pacto social, equivalente a uma recomposição do passado idílico (nunca existente realmente) da representação perdida. Alguns diziam, mesmo sem acreditarem totalmente, na comemoração do dia da vitória, que as ruas estavam sendo retomadas finalmente, desde que “aqueles vândalos terríveis de 2013” haviam colocado pra jogo o sistema vigente. Tantos divergentes teriam sido finalmente unidos, reunificados, na figura paternalista e salvadora de Lula, o único capaz de unificar nossa sociedade e suas contradições. O símbolo da reconciliação social. Porém, nem 24 horas depois, já era possível ver as ruas queimando, e o quanto isso era patentemente falso: não haverá novo pacto social, pois o fascismo uma vez saído do armário (e não precisamos aqui lembrar que os liberais e social-democratas ajudaram a abrir a porta em grande medida pra conter a insurreição popular), não pretende voltar para lá tão facilmente. E, diante disso, nunca se viu tanto uma esquerda defensora da suposta ordem e da constitucionalidade.
Tornar-se um fake daquilo que poderia combatê-lo – puxando greves, fechando estradas com barricadas, ocupando os espaços públicos – permite ao mesmo tempo tomar para si um lugar vazio, deixado pela ausência de um projeto de ruptura revolucionária à esquerda, bem como mobilizar as forças da ordem e os discursos (inclusive da própria esquerda) contrariamente a priori ao que poderia vir ser em qualquer momento uma insurreição popular. A quem interessa uma direita que é um fake da esquerda? A todo aquele que pretende enterrar para sempre qualquer possibilidade de modificação profunda da sociedade.
Deveria haver uma boa razão para os métodos da direita não serem os da esquerda3, se em algum sentido acreditamos que os meios não se separam dos fins. Parar a produção, atrapalhar a circulação de mercadorias, do ponto de vista do capital, seria barrar a economia, se colocar diametralmente contra o deus-mercado, aquele que estaria verdadeiramente acima de todos. Mas a questão é que, se por um lado, o poder é logístico, a crise também pode ser um muito bom negócio, além de um modo de governo. E, mais que isso: é tudo fake – a política na falência da representação se faz por símbolos invertidos e significantes sem significados. “No mundo realmente invertido, o verdadeiro é um momento do falso.4”
Dito de maneira mais precisa: uma direita que se traveste de um fake da esquerda, rouba-lhe a potência no mesmo movimento que a força a combater qualquer discurso revolucionário de antemão. É assim que se é capaz de fazer até com que os setores mais afeitos a uma transformação social profunda defendam o Estado e a ordem constitucional. Como se este modo de organização não fomentasse a própria crise que por agora o sustenta. É assim que o poste pode mijar no cachorro: que todos peçam mais polícia, repressão, que se volte à normalidade! “Manifestações legítimas, ok, mas todos concordamos que o direito de ir e vir é sagrado”, disse o vice de Lula , com seu grande histórico de repressão aos movimentos sociais nas costas e um sorriso amarelo no rosto. Nunca é demais lembrar: a normalidade mesma gerou as condições para que a extrema direita tomasse as proporções que toma hoje.
E é assim que vemos uma manifestação com a participação direta da polícia e pedindo intervenção militar ser chamada de desordeira, baderneira, ou mesmo de insurrecional. E é assim que vemos um líder autoritário partidário do golpe militar e do fim dos direitos democráticos dizer que ‘todo poder emana do povo’5. Melhor do que fabricar inimigos para gerar as medidas que visavam combatê-los, estratégia já largamente utilizadas pelos estados neoliberais desde o final da guerra fria, é tornar-se um pouco o próprio inimigo que se visava combater, o que significa ocupar o seu lugar ainda que de maneira totalmente inócua e vazia.
E, diante disso tudo, não é ainda surpreendente dizermos novamente: não é momento! “Tomar as ruas agora pode ser a desculpa para o golpe”, e quantos golpes não tomamos desde que esta frase vem sendo repetida? Tomar as ruas é força política e é formador também. Por que quando o fascismo ocupa as instituições, nós nos voltamos para a política institucional, mas quando eles ocupam também (e talvez sobretudo) as ruas, nós ainda vamos nos voltar apenas às instituições?! Estas se mostram insuficientes e voltadas à manutenção de uma forma de governo que favorece o esfacelamento de qualquer valor à esquerda. Sair dos espaços de construção coletiva deixou à esquerda não apenas uma direita que é um fake de nós mesmos, mas também nos transformou em fakes da direita. Desde a pandemia, todos os espaços com plenárias, espaços de construção política coletiva públicos, até mesmo as universidades, foram sistematicamente esvaziados de nossas presenças. Enquanto as igrejas pentecostais seguiram se multiplicando. Para o bem ou para o mal, nós não somos bons em ser fakes. Nossa força é a multiplicidade, é o incontrolável e o não negociável.
As ruas são nossas, vamos retomá-las!
Notas:
1 A greve dos caminhoneiros em 2018 foi um movimento autônomo e múltiplo bastante diverso do que vemos nos protestos atuais pós-processo eleitoral, que nos parece certamente em sua maioria empresarial, entretanto, já naquele momento haviam setores da extrema direita envolvidos e pedindo intervenção militar.
2 Frase utilizada nas comemorações da vitória eleitoral de Lula como forma de irritar bolsonaristas insatisfeitos com o resultado.
3 Frase dita por Bolsonaro em seu primeiro discurso público após a derrota nas urnas.
4 DEBORD, Guy. A Sociedade do Espetáculo. Tradução Estela dos Santos Abreu. Rio de janeiro: Contraponto, 2017, p. 40.
As eleições de 2022 no Brasil colocaram em confronto o nacionalismo autoritário de Jair Bolsonaro ao esquerdismo institucional, Luiz Inácio Lula da Silva do PT. Cada uma dessas estratégias rivais de governança se apresentava como a única salvação possível para a democracia. Toda a campanha foi marcada por atos de violência fascista, e não apenas de eleitores: nas semanas finais, parlamentares aliados a Bolsonaro trocaram tiros com policiais e perseguiram adversários nas ruas com armas na mão.
Para dar um panorama sobre o fosso em que estamos e os possíveis desdobramentos futuros, apresentamos essa breve análise escrita em conjunto com camaradas do coletivo CrimethInc. sobre os protestos ao fim das eleições de 2022.
As eleições de 2022 colocaram em confronto o nacionalismo autoritário de Jair Bolsonaro ao esquerdismo institucional, Luiz Inácio Lula da Silva do PT. Cada uma dessas estratégias rivais de governança se apresentava como a única salvação possível para a democracia. Toda a campanha foi marcada por atos de violência fascista, e não apenas de eleitores: nas semanas finais, parlamentares aliados a Bolsonaro trocaram tiros com policiais e perseguiram adversários nas ruas com armas na mão.
Dia 30 de outubro, aconteceu o segundo turno da eleição para determinar o presidente e os governadores, e Bolsonaro perdeu para o ex-presidente Lula. Mas Lula venceu por apenas 1,8%, preparando o terreno para o conflito que continuará dividindo o Brasil, assim como as eleições de 2020 nos Estados Unidos não marcaram o fim da polarização política.
Após o resultado ser divulgado na noite de domingo, protestos de apoiadores do atual presidente de extrema-direita começaram pelas ruas nas cidades e bloqueando estradas do país. A esquerda institucional e seus movimentos de base se mantiveram recuados e, mais uma vez, coube a antifascistas, torcidas organizadas e moradores das periferias partir para a ação e começar ações de desbloqueio das vias. Essa pode ser uma amostra dos impasses e conflitos que veremos nos próximos anos de governo petista e de reorganização da extrema-direita.
Não se Derrotada o Fascismo nas Urnas
As primeiras horas após a eleição deixaram claro que, longe de ser uma “derrota do fascismo”, o resultado nas urnas mostra que o projeto bolsonarista, abertamente autoritário, misógino, racista e que trabalhou para agravar a pandemia que matou mais de 700 mil pessoas, ainda tem apoio de metade do eleitorado – quase 60 milhões de pessoas. Parte considerável desse grupo está disposta a lutar por ele, nunca parando de se mobilizar e ocupar as ruas. Além disso, os aliados de Bolsonaro que conquistaram o governo de 13 estados e uma grande bancada nos parlamento darão continuidade à sua agenda criada pelos militares que o colocaram no poder junto de setores conservadores da burguesia, do cristianismo fundamentalista e dentro das forças de segurança.
Naquela noite, momentos após o resultado da eleição ser divulgado, um bolsonarista armado matou duas pessoas e baleou várias de uma mesma família que celebrava a vitória de Lula em Belo Horizonte. Na madrugada de segunda-feira, já haviam bloqueios em 221 pontos em estradas na metade dos estados do país, e em dois dias, 26 dos 27 estados contavam com estradas bloqueadas por bolsonaristas, chegando a um ápice de quase 900 pontos com bloqueios ou manifestações pelo país.
Os bloqueios no Brasil não surgiram do nada. Eles atendem à uma mobilização e radicalização reproduzida pelo presidente e seus apoiadores desde a vitória em 2018. Nos últimos anos, houveram outras paralizações os bloqueios de caminhões desempenharam um papel significativo na agitação da extrema-direita nas Américas. No Chile, caminhoneiros de direita organizaram bloqueios nas rodovias, colocando-os como uma resposta ao ativismo indígena mapuche. No México, os trabalhadores dos transportes são frequentemente usados como tropas de choque para exercer pressão em nome do PRI (Partido Revolucionário Institucional). No inverno passado, no Canadá, caminhoneiros de extrema-direita montaram bloqueios em protesto contra as leis obrigando a vacinação. Provavelmente veremos mais bloqueios de caminhões no futuro.
Bolsonaro repetiu diversas vezes que temia ter o mesmo “destino que Jeanine Añez”, que assumiu o governo da Bolívia após um golpe de estado promovido pelas forças policiais enquanto os militares apenas observavam, e acabou condenada à prisão. O fato de que a direção da PRF decidiu atrasar eleitores no domingo e apoiar ativamente os bloqueios dos bolsonarista mostra que o caso boliviano serviu de inspiração para seus planos.
Derrotado, Bolsonaro levou quase 48 horas para se pronunciar. Em seu discurso de 2 minutos, não reconheceu abertamente o resultado, criticou o movimento que bloqueia estradas e recomendou que fizessem outras forma de “protesto pacífico”, mas fez o típico discurso ambíguo da extrema-direita que mantém inflamadas as suas bases militantes ao mesmo tempo em que tenta evitar implicações legais .
Longe de ser uma “derrota do fascismo”, o resultado nas urnas mostra que o projeto bolsonarista, abertamente autoritário, misógino, racista e que trabalhou para agravar a pandemia que matou mais de 700 mil pessoas, ainda tem apoio de metade do eleitorado – quase 60 milhões de pessoas. Parte considerável desse grupo está disposta a lutar por ele, nunca parando de se mobilizar e ocupar as ruas. Além disso, os aliados de Bolsonaro conquistaram a maioria dos cargos nos estados e nos parlamentos e darão continuidade à sua agenda criada pelos militares que o colocaram no poder junto de setores conservadores da burguesia, do cristianismo fundamentalista e dentro das forças de segurança.
Para além dos aliados de Bolsonaro que se perpetuarão no poder, é importante lembrar que seus milhões de eleitores e, especialmente, sua base radicalizada não vão mudar de ideia de um dia para o outro. Como os recentes atos e bloqueios mostram, eles estarão dispostos a levar suas ideias adiante mesmo sem Bolsonaro. O silêncio do presidente após a derrota trouxe à superfície uma articulação radical que se articulou sem um chamado central do líder, de seus filhos ou apoiadores diretos e figuras públicas conhecidas. Os chamados se deram nos grupos de Whatsapp e Telegram responsáveis por criar e difundir notícias falsas, discursos de ódio e conspiracionistas.
Diferente das greves de caminhoneiros durante o governo Temer e as de 2018, essa não é uma paralisação da categoria como um todo, mas de alguns setores patronais e relativamente poucos militantes radicalizados. E não é preciso muito para fechar as estradas. Apenas um veículo e algumas pessoas.
Durante o domingo de eleição a PRF (Polícia Rodoviária Federal) fez uma megaoperação ilegal de blitz e apreensões de veículos que impediram milhares de eleitores de chegar nos postos de votação, especialmente nas regiões onde Lula era mais popular. No entanto, quando começaram as ações de apoiadores de bolsonaro revoltados com sua derrota, a PRF nada fez para impedir ou acabar com os bloqueios bolsonaristas.
No dia 1 de novembro, o acesso ao aeroporto internacional de Guarulhos, o principal da cidade de São Paulo, contou com ajuda direta de agentes da PRF que foram filmados rompendo as grades de acesso ao aeroporto.
Em algumas cidades, como no estado de Santa Catarina, manifestantes adotaram um tom abertamente nazi-fascista, com saudações nazistas e frases racistas.
Ao longo de quatro anos de resistência popular, incluindo a revolta por George Floyd, Donald Trump manteve o apoio inabalável da polícia e do Departamento de Segurança Interna (Department of Homeland Security), mas perdeuo apoio de grande parte da hierarquia militar dos EUA. Em contrapartida, Bolsonaro ainda pode contar com a fidelidade de parte considerável dos militares brasileiros. Após o pronunciamento de Bolsonaro em 2 de novembro, muitos dos manifestantes pró-Bolsonaro dirigiram suas demandas aos militares, exigindo “intervenção federal” – em outras palavras, um golpe militar. Nos Estados Unidos de Trump e no Brasil de Bolsonaro, as eleições não terminam com o anúncio dos resultados nas urnas; eles são, em última análise, determinados pelo equilíbrio de poder dentro do Estado.
Essa “base bolsonarista sem Bolsonaro” pode estar agora à deriva e esperando um novo líder. E sua primeira aposta está sendo nos militares que, ao longo de 4 anos, infiltraram mais de 6 mil oficiais no governo, sendo 2.600 indicados diretamente para cargos de confiança.
Essa foi a recompensa paga por Bolsonaro por ter sido colocado como representante desse “partido militar” informal que é anterior e pode sobreviver ao fim do bolsonarismo. Outro representante dessa classe é o recém-eleito governador do estado de São Paulo, Tarcísio de Freitas. O mais populoso estado do país, com maior orçamento público, estará agora sob a gestão de um ex-militar presente nas operações de ocupação do Haiti, comandadas pelos governos Lula-Dilma nas oeprações da MINUSTAH, da ONU. Agentes das forças de segurança ganharam eleições para muitos cargos no congresso, avançando uma “politização das polícias”, usando, inclusive, candidaturas coletivas aos moldes daquelas criadas por ativistas que vieram de movimentos de rua dispostos a “renovar a democracia”.
Ações autônomas e antifascistas
Durante pandemia torcidas organizadas, antifascistas e anarquistas e moradores de favelas organizaram redes de apoio mútuo e, ao mesmo tempo, promoveram atos para demandar direito à moradia, saúde, suprimentos e vacinas. Além disso, as torcidas de esquerda foram as primeiras a convocar contramanifestações para barrar carreatas e ações de apoiadores do presidente em São Paulo, Porto Alegre e Belo Horizonte.
Por outro lado, a esquerda tornou o “fique em casa” como um mandamento para sua prática política e preferiu recuar e desmobilizar as ações de rua com receio de que isso desse “pretextos para mais repressão”, alegando que era “isso o que Bolsonaro queria” e precisava para um golpe. Antes das eleições, a estratégia era esperar o governo se queimar para eleger Lula mais uma vez – o único capaz de fazer oposição ao projeto bolsonarista. No entanto, ficou claro que essa política recuada e passiva é uma estratégia permanente, pois mesmo com Lula eleito e o presidente acuado, a esquerda institucional e os movimento sob a influência petista se negaram a convocar atos e contramanifestações. Por exemplo, quando o MSTS (Movimento dos Trabalhadores Sem Teto) convocou seus militantes a abrir as estradas, o MST (Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra) contestou, argumentando que a desobstrução das rodovias era papel do Estado.
Vale ressaltar aqui que até o New York Times, um dos mais veementes defensores da passividade nos Estados Unidos antes das eleições de 2020, apontou que o levante de George Floyd de fato contribuiu para mobilizar uma parcela significativa dos eleitores que permitiram a Joe Biden vencer as eleições de 2020. A verdadeira razão pela qual o editorial do New York Times, a liderança do Partido dos Trabalhadores e outras autoridades liberais e de esquerda desencorajam as mobilizações de rua não é porque acreditam que isso lhes custará eleições, mas porque desejam manter o controle total da situação em todos os níveis da sociedade e estão preparados para correr o risco de perder o poder por causa disso.
Se para eleger Lula a esquerda preferiu ficar em casa, agora com o petista eleito é que parece que vão ficar lá para sempre, aguardando a gestão estatal e policial resolver problemas como o fascismo na ruas. O problema é que os mesmos fascistas estão se mobilizando dentro da polícia e do próprio Estado.
Felizmente, nem todos estavam comprometidos com a passividade.
Logo no dia 1 de novembro, torcedores da Galoucura, do Atlético Mineiro, passaram pela BR-318 que liga Belo Horizonte a São Paulo para ver uma partida e romperam sozinhos os bloqueios bolsonaristas, desmobilizando manifestantes. No dia 2, torcedores da Gaviões, do Corinthians, fizeram o mesmo na Marginal Tietê, importante via de São Paulo, ainda jogaram fogos e perseguiram carros dos golpistas. Ainda em São Paulo, antifascistas perseguiram militantes bolsonaristas saindo dos atos de rua.
No feriado do dia 2 de novembro, militantes antifascistas do Rio de Janeiro fizeram um chamado para uma contramanifestação com 50 pessoas para enfrentar mais de 50 mil manifestantes pedindo golpe militar no centro da cidade, sem qualquer apoio dos maiores movimentos ou partidos. Ao chegarem, foram revistados pela Polícia Militar mais preocupada com a segurança da extrema-direita.
A ação direta e radical nunca deveria ter sido o plano B, uma vez que a rua ainda é fundamental ponto de encontro e articulação e as autoridades não tem o menor interesse em barrar o ressurgimento de hordas pro-fascistas. Quando anarquistas e antifascistas perdem batalha pela a narrativa e aceitam a estratégia da esquerda hegemônica, aceitamos que as ruas se tornem palco para ação e recrutar membros. Qualquer resistência à extrema-direita e a um novo governo petista deve levar em conta o papel central das ruas e da organização popular.
Brilha a luz de uma estrela morta
Ao invés de uma derrota do fascismo pela esquerda, a eleição de 2022 significou a reconstituição do centro – um retorno a um 2013 sem esperança de mudança positiva, em que toda oposição radical será tratada como se estivesse ajudando a extrema direita. Resta saber se alguém ficará satisfeito com essa nova gestão, cujo aspecto mais radical é a nostalgia dos avanços moderados ocorridos há mais de uma década.
A campanha eleitoral de 2022 ressaltou algo que já estava evidente na eleição de 2018 que deu a vitória para Bolsonaro: a esquerda petista e sua base militante e eleitoral só conseguem prometer uma imagem do passado, de 2003 a 2012, quando Lula e Dilma governaram uma nova fase extrativista do capitalismo latino, compensando os impactos da extração violenta de recursos como minério, celulose, carne, grãos e petróleo com benefícios sociais. Essa política foi necessária para incluir as novas classes despossuídas, removidas de seus territórios para dar lugar ao agronegócio, barragens e usinas, e empobrecidas pela urbanização forçada e pela marginalização do trabalho. A escolha para os gestores era bem fácil: era isso ou esperar que mais gente fosse recrutada para o crime organizado ou aderisse à revolta popular.
Agora que o ciclo se fechou, uma extrema direita mais encorajada observa uma nova coalizão de centro-esquerda pacificando sua base eleitoral para ela saia das ruas e desista de lutar por uma sociedade igualitária, alegando que movimentos sociais como o levante de 2013 só ajudarão os “extremistas” distantes do centro.
Enquanto isso, Bolsonaro e sua seita ousam prometer um futuro pretensamente revolucionário, de “ruptura com o sistema”, “contra tudo” e contra a “velha política” – de ele mesmo que foi parte por 3 décadas como deputado. A imagem de futuro do bolsonarismo e do partido militar é uma reedição de diversos projetos da extrema-direita que vemos pelo mundo, que busca num passado distante uma revisão para seus sonhos autoritários, racistas e misóginos. A bandeira do império brasileiro, carregada por alguns setores da direita brasileira, tem o mesmo efeito que a bandeira dos confederados nos Estados Unidos, resgatando uma narrativa bandeirante de conquista do oeste, quando não existiam leis nem poderes que, em tese, regulam o mandatário, como seria no estado democrático de direito. Para ambos, o cenário perfeito é o da lei do seu monopólio da força armada usada contra o negro, o indígena, a mulher, as florestas e todo o território.
Em 2008, a América Latina via uma chamada “Onda Rosa” de governos progressistas que canalizaram décadas de levantes populares – iniciados com o Caracazo de 1989 e a redemocratização brasileira – para vencer nas urnas com o discurso de “mudar o mundo de cima para baixo”. Mas se tornaram apenas gestores humanizados do neoliberalismo. A opção pela conciliação de classe do PT não conseguiu incluir os pobres e satisfazer os ricos por muito tempo. E muito menos lidar com as classes médias, brancas, especialmente masculinas, que se sentiram pela primeira vez sendo alcançados por pobres, negros e mulheres no acesso a estudo e mercado de trabalho. O resultado foi a revolta popular estourar ao mesmo tempo em que o ressentimento reacionário, que conseguiu capturar melhor a energia das ruas, derrubar um governo petista e colocar um ex-militar no poder.
Ao contrário dos liberais e da direita tradicional, Bolsonaro e seus aliados não buscam realmente governar ou administrar o Brasil, apenas tomar o poder e gerir para poucos aliados e para suas bases radicalizadas. Em vez de comprar vacinas, exigir passaportes de sanitários e controlar o movimento das pessoas em nome da saúde pública, por exemplo, ele simplesmente deixou as pessoas morrerem para manter a economia funcionando.
Tanto Trump quanto Bolsonaro não conseguiram se reeleger como a maioria de seus predecessores. E agora o pêndulo da democracia volta para o lado progressista. É uma questão de tempo até que os novos governos da social-democracia decepcionem mais uma vez as bases exploradas e excluídas e a revolta exploda, como já vemos se desenhar no Chile e nos Estados Unidos. E o fascismo estará a espreita mais uma vez para reunir seu exército.
Uma oposição à esquerda que quer esperar pelas instituições, pelos direitos humanos e internacionais, por um julgamento no Tribunal de Haia, que se compromete com a paz e os ritos democráticos, está naturalmente desarmada e despreparada para enfrentar um inimigo disposto a matar ou morrer enquanto delira pelo seu líder, por deus e sua imagem de futuro glorioso. Assim como esperar que o Estado acabe com os protestos e puna militantes golpistas, ou demandar que faça isso com discursos que criminalizam o protesto, os bloqueios e a ação nas ruas apenas vão dar mais armas e legitimidade às polícias e aos justiceiros que vão nos enfrentar quando formos nós nas ruas protestando por motivos reais, como moradia, comida e dos territórios que sustentam nossa vida.
Também e notório que o uso das fake news e do sensacionalismo podem ter ajudado a desestabilizar a propaganda bolsonarista na reta final, mas alimentar a máquina de desinformação, confusão e a mediação da realidade por corporações como Meta e Google é preparar um terreno para uma luta que estamos condenados a perder. A extrema direita tem uma vantagem fundamental no sensacionalismo da mídia, pois não tem nenhum escrúpulo em mentir e a confusão geralmente serve à sua agenda.
Como fizeram nos anos que antecederam a revolta de 2013, a esquerda institucional voltou a optar por um governo aliado ao centro e à direita. Desta vez, podemos esperar resultados ainda piores em um contexto muito menos favorável. Ou retomamos as ruas e nos organizamos com base em bairros, ocupações, cooperativas, quilombos, aldeias, assentamentos e centros sociais, ou acabaremos descobrindo que somos obrigados a lutar em terreno inimigo, seja virtual ou institucional, quando for tarde demais.
Nenhuma mudança virá de cima. Ninguém está vindo para nos salvar. Tudo depende de nós.
Hoje, dia 16 de agosto, estão oficialmente lançadas as candidaturas para eleger presidente, governadores, deputados e senadores. Essa promete ser a eleição mais acirrada e dura desde a redemocratização do Brasil, quando o governo com maior participação militar da história ameaça diariamente usar a força para resistir a uma derrota eleitoral, colocando em risco a existência em da democracia representativa como a conhecemos.
Quando protestos e contramanifestações que poderiam minar o apoio popular de Jair Bolsonaro nas ruas foram desencorajados e sabotados pela esquerda institucional e os movimentos sob seu guarda-chuva, as únicas formas de protesto restantes foram cartas gestadas pela elite intelectual e econômica para gentil e tardiamente pedir para que a democracia não seja destruída. A Carta aos Brasileiros e Brasileiras de 2022 emula a Carta aos Brasileiros de 1977, que pedia aos militares que devolvessem o Estado de Direito. Na época, foi lida na Faculdade de Direito de São Paulo por um orador no mínimo suspeito, escolhido pelos escritores da carta: o antigo apoiador do golpe de 1964 e membro da Ação Integralista Brasileira, Gofredo Teles Júnior.
Nesse ano, tanto a carta escrita pelos juristas de São Paulo quanto a escrita pela FIESP, dão o clima de uma suposta “união entre capital e trabalho“, comprovando a tese de que o fascismo atrasa qualquer agenda de esquerda revolucionária, juntando frentes cada vez mais amplas em uma luta para manter tudo como está. Daí segue o risco de um antifascismo que não toma as ruas, que não se propõe combativo e radicalizado, se tornar apenas uma força defendendo abstrações vagas como “liberdade e democracia”, ou uma aliança estagnada que apenas tenta evitar que o capitalismo deixe seus cães de guarda fascistas tomarem a frente do sistema que nunca os eliminou.
Enquanto ainda nos preparamos para possíveis eventos golpistas em setembro e a promessa de tensão e violência nos dias de eleição, lançamos uma edição atualizada do texto base da Outra Campanha e relembramos o vídeo “A Era da Democracia”, com texto e vídeo produzidos pelos coletivos s Antimídia e Facção Fictícia e reunidos no portal A OUTRA CAMPANHA.
Convidamos movimentos, coletivos e qualquer grupo ou indivíduo a reproduzir livremente esses materiais e promover o debate de seus pontos. Apesar das eleições e do voto, e de seus possíveis resultados, a organização de base e radical será necessária para derrotar tanto o fascismo quando o capitalismo como um todo, e não apenas encontrar gestores que pacifiquem as relações de exploração e opressão dentro deles.
Votando ou não, copie e difunda, mas, acima de tudo, se organize para construir um mundo realmente igualitário e livre — um mundo onde caibam muitos mundos!
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Vídeo:
Desde o início dos anos 2000, vários movimentos sociais e grupos anticapitalistas atendem ao chamado do Exército Zapatistas de Libertação Nacional e todo o Movimento Zapatista para uma campanha “abaixo e à esquerda” por mudanças radicais. Desde a primeira marcha que percorreu 32 estados mexicanos em 2006, Zapatistas propõem escutar as comunidades e promover valores como o anticapitalismo, o horizontalismo e a igualdade.
Devido ao esforço de diferentes internacionalistas, trazemos mais uma entrevista com camaradas nas linhas de frente dos levantes populares no Equador. Em outubro de 2019 houve uma extraordinária revolta indígena e popular no Equador que, após 12 dias e com saldo de 11 mortos, conseguiu cancelar um pacote de medidas neoliberais impostas pelo FMI, entre as quais o cancelamento de subsídio aos preços dos combustíveis. Leia ela em português aqui ou em várias outras línguas no portal de nossos camaradas do Crimethinc.
Novamente, em junho de 2022, estoura a greve geral e os protestos de rua no Equador, que entra em sua terceira semana, com mais de 20 dias do chamado Paro Nacional, novamente liderado pelos movimentos indígenas, novamente contra as políticas do FMI e o aumento dos preços dos combustíveis. Voltamos a entrevistar o mesmo camarada que está ativamente participando das mobilizações populares encabeçadas por movimentos indígenas que enfrentam a políticas do FMI e o aumento dos preços dos combustíveis, para nos contar sobre a dinâmica da revolta na capital equatoriana num dos maiores levantes em curso na América Latina.
O que significa que as pessoas no Equador tenham que lutar toda essa batalha novamente tão logo após uma vitória histórica? Essa força se espalhará pela América Latina novamente? Leia mais a seguir.
O que aconteceu nos últimos 2 anos e meio no Equador para que, após uma pandemia e eleições parlamentares e presidenciais, voltasse ao ponto de partida?
Após a insurreição popular de 2019, [o então presidente] Lenin Moreno começou a aumentar o preço do combustível gradativamente, ou seja, a vitória parcial de 2019 foi anulada e voltamos ao ponto de partida. Enquanto isso, o atual presidente, Guillermo Lasso, intensificou esse mecanismo, levando o preço dos combustíveis as alturas, provocando de fato um aumento nos preços dos produtos de primeira necessidade.
Moreno conseguiu terminar seu governo, assim como seus ministros. Estes, juntamente com o alto comando da Polícia e do Exército, permaneceram impunes pelos crimes cometidos durante as jornadas de outubro.
Em 2021 houve eleições. O candidato do movimento indígena foi Yaku Pérez, que conseguiu capitalizar o descontentamento de outubro, mas não foi suficiente para chegar ao segundo turno das eleições e ameaçar a vitória de Andrés Arauz, candidato do Correismo [Levado ao poder pela “maré rosa” que estabeleceu governos em toda a América Latina, Rafael Correa foi presidente do Equador de 2007 a 2017; hoje, acusado de corrupção, vive na Bélgica]. Guillermo Lasso, banqueiro responsável pelo Feriado Bancário de 1999 [episódio de congelamento da contas de banco de cidadão equatorianos], chegou ao segundo turno e venceu as eleições. [Em março de 1999, temendo a hiperinflação, o governo equatoriano declarou um feriado nacional, que acabou durando uma semana inteira; na época, Guillermo Lasso era CEO do Banco Guayaquil.]
Na CONAIE [Confederação de Nacionalidades Indígenas do Equador] também houve eleições e o vencedor foi Leónidas Iza, líder do MIC (Movimento Indígena de Cotopaxi) e um dos líderes da revolta de outubro.
Em 2019, a revolta no Equador ajudou a desencadear revoltas subsequentes no Chile e em outros lugares. Os movimentos na Colômbia, Chile e em outros lugares da América Latina influenciaram os movimentos no Equador desde então?
Após outubro de 2019, em vários países da América Latina, a população se levantou contra seus governos. No entanto, os acontecimentos atuais no país, embora reflitam uma crise geral em todo o continente e tenham sido decisivos no imaginário coletivo, têm uma conotação clara que responde ao contexto conjuntural equatoriano. É como se algo tivesse ficado pendente da revolta de três anos atrás.
Como você definiria ou avaliaria esse primeiro ano de governo de Lasso? Como foi possível que um banqueiro neoliberal se tornasse presidente depois de uma revolta tão forte e bem sucedida como a de 2019, e como ele conseguiu perder esse apoio em tão pouco tempo, de modo que em apenas um ano ele teve de enfrentar outra revolta popular?
Péssimo. Lasso venceu graças ao voto anticorreista. O cenário teria sido diferente se Yaku Pérez tivesse chegado ao segundo turno. Muitas pessoas votaram em Lasso como uma rejeição ao possível retorno do projeto da ex-revolução cidadã. As divisões dentro do movimento indígena favoreceram, em parte, a ascensão de Lasso ao poder.
Assim que seu governo começou, Lasso perdeu seu principal aliado, o Partido Social Cristão. Imediatamente, começou um antagonismo com a Corte Constitucional. Isso, somado ao fato de ter uma minoria na Assembleia, fez com que o banqueiro tivesse que se virar para poder governar.
Sua principal estratégia inicial foi a vacinação em massa da população, fato que o manteve com excelente capital político durante os primeiros meses de governo. Após a fase de vacinação e a pandemia, a realidade do país ficou evidente para todas e todos.
O movimento indígena e diversos setores sociais tiveram duas mesas de diálogo no ano passado e o governo não os ouviu, o que estamos vivenciando agora é consequência da falta de respostas às demandas da sociedade equatoriana que vive na pele as consequências da pobreza , a falta de emprego, a destruição de seus territórios e o aumento da violência nas ruas e nas prisões devido a guerras entre grupos criminosos. Houveram quatro massacres em prisões equatorianas (nos últimos dois anos 360 detentos foram assassinados) e os casos de assassinos contratados, nas principais cidades do país, são o pão de cada dia.
Os bancos não perdoaram as dívidas dos camponeses, nem dos trabalhadores, apesar da pandemia. Não pode haver renascimento econômico para os mais pobres porque os banqueiros os sufocam.
A atual Greve Nacional, vista de fora, é muito parecida com a greve de outubro de 2019. Mas será mesmo? Quais são as principais semelhanças e diferenças?
A revolta de 2019 foi a revolta das filhas e filhos da primeira revolta indígena da década de 1990. É uma nova geração cheia de raiva e com sede de justiça.
Ao contrário da greve anterior, coube à CONAIE, juntamente com outras organizações camponesas, declarar uma greve nacional a partir de segunda-feira, 13 de junho. Há três anos, foram os estudantes e caminhoneiros que acenderam o pavio.
Desta vez, as comunidades indígenas resistiram por uma semana em seus territórios antes de chegar a Quito. A capital teve que sustentar a greve nacional sozinha por uma semana. Os estudantes e bairros. Os bairros de Quito, especialmente os do Sul, desde o primeiro dia resistiram em seus territórios. Isso não aconteceu três anos atrás ou pelo menos não com a intensidade de agora.
A repressão tem sido forte, mas além do ocorrido na sexta-feira, 24 de junho, a polícia e os militares têm sido mais estratégicos no uso da força. Isso, por exemplo, evitou que Quito tivesse um surto na primeira semana. Houve marchas, confrontos com a polícia, mas a situação não saiu do controle até a chegada da CONAIE .
Por divergências políticas com as lideranças da Conaie, a Frente Unitario de Trabajadores (FUT), principal sindicato dos trabalhadores, este ano ficou de fora das mobilizações. Os caminhoneiros também não aderiram.
No entanto, a solidariedade do povo não mudou, mas se fortaleceu em relação ao último levante, os companheiros e companheiras estão melhor organizados apesar das dificuldades causadas pelo governo.
No domingo, 19 de junho, primeira semana da greve e com o anúncio da chegada das diferentes comunidades de todo o território a Quito, os militares e a Polícia Nacional ordenaram a requisição da Casa da Cultura Equatoriana (CCE), evitando que este local, ao contrário de 2019, seja o ponto de concentração dos manifestantes, por isso o local das assembleias e o centro logístico da revolta tem sido a Universidade Central. Isso fez com que os confrontos não fossem apenas na área de Arbolito, da Assembleia, do Centro Histórico, mas também no entorno da Universidade.
22 de junho: A polícia do Equador reclama que uma unidade policial “foi totalmente destruída e queimada, assim como viaturas e motocicletas que foram designados para servir aos cidadãos”, juntamente com um pedido de “não mais violência”. Muito interessante, vindo daqueles cuja profissão é exercer violência contra a população.
Você pode fazer uma breve descrição dos principais eventos que ocorreram durante esta Greve Nacional? E quais são suas principais demandas? As demandas do início da mobilização são as mesmas de agora ou algo mudou? Que estratégias, táticas e métodos de luta foram implementados?
Cronologicamente, a greve nacional começou na segunda-feira, 13 de junho. As organizações indígenas e camponesas iniciaram bloqueios de estradas em seus territórios. Em Quito, os estudantes convocaram uma marcha da Universidade Central ao Centro Histórico. Os bloqueios não foram tão fortes e a mobilização foi reprimida no Centro Histórico.
O panorama sugeria uma greve não tão contundente quanto a de 2019. Na madrugada de terça-feira, 14 de junho, o governo cometeu o erro de prender ilegalmente Leónidas Iza, líder da Conaie; causando uma reação imediata em todo o país pela manhã. Este foi o episódio que acendeu o pavio e fez a greve nacional ganhar força. Leónidas Iza foi sequestrado pela polícia por 24 horas e o protesto transbordou. Na cidade de Quito, a Unidade Flagrancia foi atacada e uma viatura da polícia incendiada. Em Latacunga, o movimento indígena ocupou a sede do Ministério Público. No dia seguinte Iza foi liberada, mas teve que comparecer diariamente para assinar na cidade de Latacunga.
Os bairros de Quito a partir do segundo dia se levantaram especialmente na zona sul da cidade e na periferia norte. Eles foram reprimidos por vários dias, mas continuaram a resistir. Os estudantes e movimentos sociais de Quito realizaram marchas de 5 dias em apoio à greve nacional. Quinta-feira, 16 de junho, foi o dia em que mais pessoas foram às ruas, cerca de 10 mil pessoas. Na mesma modalidade, marcha em direção ao Centro Histórico que depois foi violentamente reprimido pela polícia.
A cidade de Cuenca também se levantou, a polícia atacou a universidade onde os manifestantes se refugiaram. Autoridades acadêmicas denunciaram o incidente e pediram uma marcha muito maior no dia seguinte. Na capital, começaram a se organizar grupos que identificaram e afastaram das marchas os policiais infiltrados, dezenas de indivíduos que, ao final das marchas, detiveram colegas após tê-los seguido. Isso colocou em dificuldade o aparato repressivo da polícia. As manifestações tiveram o cuidado da polícia e as fotos desses infiltrados circularam pelas redes sociais. Da mesma forma, antes de expulsar o policial, mostrou-o às pessoas para que pudessem gravar o rosto do intruso.
É importante entender quais são as demandas dessa greve nacional antes de continuar com a cronologia.
Há 10 pontos exigidos do governo: baixar o preço do combustível, criar uma moratória bancária para que a população possa reactivar as suas economias sem sentir a pressão dos abutres dos bancos. Parar de explorar e destruir territórios onde há fontes de água e onde vivem comunidades. Da mesma forma, ativar um mecanismo como consulta prévia nos territórios onde deseja fazer mineração ou extrair petróleo. Outra das exigências é declarar a saúde pública e a educação em situação de emergência. Ambos os setores foram atacados pelas políticas neoliberais do governo e viram seus orçamentos reduzidos.
Preços justos para os produtos agrícolas para que os agricultores possam receber o que realmente vale o seu trabalho.
Um controle mais rígido por parte do governo das necessidades básicas, dada a especulação desenfreada.Suspensão da privatização de setores estratégicos como Previdência Social, Banco del Pacífico, CNT (Corporação Nacional de Telecomunicações), rodovias. Respeito aos 21 direitos coletivos das organizações indígenas e educação bilíngue.
E o último ponto é garantir a segurança dos cidadãos diante da onda de violência nas ruas e nas prisões do país. Todas essas demandas são compartilhadas pela população que está apoiando a greve nacional.
Depois de cinco dias enfrentando a indiferença do governo, o Movimento Indígena e Camponês decidiu vir para a cidade de Quito. Na sexta-feira, o governo declarou estado de emergência nas províncias mais conflituosas e decretou toque de recolher na cidade de Quito das 22h às 5h. No domingo, 19, ordenaram a reintegração da Casa da Cultura e a ocuparam violentamente para impedir que as pessoas se organizassem. Os bloqueios e confrontos entre moradores dos bairros do sul de Quito e a polícia continuaram durante todo o fim de semana.
Na segunda-feira, 20 de junho, as primeiras caravanas do Movimento Indígena começaram a chegar do norte e do sul da capital e foram violentamente reprimidas. Enquanto isso, os estudantes da Universidade Central e os movimentos sociais de Quito ocuparam a Universidade para que os companheiros e companheiras que chegavam pudessem ter um lugar seguro para dormir e se organizar. À noite os caminhões cheios de manifestantes começaram a chegar aos poucos, foram reprimidos por todos os lados e tentaram impedir que chegassem a Quito.
Apenas duas universidades abriram as portas para o movimento indígena. Dado que a Casa da Cultura estava nas mãos da polícia, o centro operacional da greve nacional deslocou-se pela primeira vez para a Universidade Central. Aqui começaram a organizar os primeiros potes solidários, creches para crianças, brigadas médicas, centros de armazenamento e as primeiras linhas de resistência.
Desde a manhã de terça-feira, 21 de junho, os confrontos com a polícia começaram em todo o centro norte de Quito. Enquanto isso, as primeiras mortes já foram contabilizadas, que com o passar dos dias chegaram a 5. Um manifestante foi jogado em um barranco pela polícia, outro na província de Puyo, morreu com gás lacrimogêneo atirado em seu crânio, outros em Quito produto de pellets.
Na quinta-feira 23, a Casa da Cultura e o parque El Arbolito foram retomados por uma gigantesca marcha, as principais assembléias deslocaram-se novamente para o lugar histórico da esquerda equatoriana.
O conflito imediatamente se espalhou pelo parque e chegou às receitas da Assembleia Nacional. As linhas de frente com muito mais experiência em relação ao último ataque desta vez foram mais organizadas e protegidas.
No bairro de San Antonio, ao norte de Quito, o exército foi atacado por moradores quando tentava se estabelecer na área para reprimir os manifestantes. Um colega foi morto por um tiro dos militares.
Na sexta-feira, 24 de junho, Guillermo Lasso em rede nacional autorizou a polícia a aumentar sua força repressiva. Uma hora depois, a polícia e o exército atacaram indiscriminadamente a Casa da Cultura e a Pequena Árvore, provocando uma fuga em massa do setor. Muitas crianças e idosos foram sufocados pela violência policial.
Fomos todos perseguidos por toda a área até nos afastarmos do setor. Havia dezenas de detidos e feridos. No entanto, a polícia à noite se retirou da área.
Este fim de semana muitos companheiros e companheiras voltaram para suas comunidades e outros estão chegando. Os mutirões de limpeza foram organizados e foi dada prioridade às assembleias para organizar a terceira semana da greve nacional. No sábado, 25 de junho, houve uma grande marcha de mulheres e dissidentes.
Hoje domingo 26 na Universidade Central há shows e atividades esportivas. Na Casa da Cultura um festival artístico e cultural.
As exigências continuam as mesmas. No entanto, foi estabelecido como condição mínima para um diálogo a redução imediata do preço do combustível.
Quais são os principais sujeitos sociais hoje mobilizados no Equador? Que peso e que distribuição territorial têm? Que alianças sociais e políticas foram criadas
O movimento indígena e camponês, os estudantes e os bairros de Quito. A primeira é a mais organizada historicamente, a segunda foi novamente ativada nesta conjuntura. Os bairros de Quito são a surpresa desta greve, eles mostraram um alto nível de organização e controle do território.
Muitos companheiros e companheiras em todo o território estão apoiando a greve nacional, as principais alianças foram tecidas lá. Muitos não se organizaram entre si por divergências ideológicas, estes foram deixados de lado em vista da importância do momento. Por ainda não ter força suficiente, o movimento social, especialmente em Quito, amadureceu enormemente.
Como você avalia o papel da CONAIE nesta Greve Nacional? Está conseguindo se afirmar como o principal sujeito da oposição social à ordem neoliberal? Você está conseguindo articular alianças sociais para além do mundo indígena?
A CONAIE continua sendo o principal tema político do país e um dos mais importantes da América Latina. Sua capacidade organizacional e força coletiva continuam a surpreender. No entanto, o resultado das fraturas internas é sentido, a força que eles conseguiram colocar em campo ainda é menor do que a de 2019. Os companheiros e companheiras continuam colocando seus corpos na linha de frente por todos e todas.
Não é fácil vir dormir em estádios, no chão, em papelão por dias. Sua determinação é incrível.
Além das alianças que podem ou não ter sido geradas, eles são reconhecidos por todos como os principais defensores dos direitos coletivos da sociedade equatoriana. O que falta é que os movimentos sociais urbanos consigam se articular mais com o movimento indígena e que este também aprenda com o movimento urbano. Ainda não existe uma assembleia onde os grupos sociais possam ter capacidade de decisão sobre o que está acontecendo. Eles estão na organização diária, participam de pequenas assembleias, mas não foi possível, por exemplo, ter uma assembleia que reúna todos os movimentos sociais de Quito e as linhas de frente que estão apoiando essa greve nacional.
Como você avalia o papel de seu líder Leónidas Iza, que surgiu em outubro de 2019 como uma figura de esquerda na organização até se tornar seu presidente? Como você avalia a detenção de Iza no segundo dia de Paro? Ele está desempenhando mais um papel de agitador ou moderador no contexto de protesto social? Ele tem objetivos político-eleitorais?
Leónidas Iza é o líder absoluto da greve nacional. A CONAIE agora tem como líder uma pessoa com ideias políticas claras e excelente preparação. Uma pessoa mais radical em suas ideias do que seu antecessores. Isso lhe causou problemas dentro do movimento, mas ao mesmo tempo causou muita simpatia.
Como mencionei no início, a prisão de Iza foi o estopim que deu força à greve nacional.
O problema de Iza é que sua liderança, voluntária ou não, está ofuscando as demais lideranças sociais e indígenas. A mídia também ajudou a centralizar tudo sobre ele. Seu papel tem sido o de moderar e também de agitar dependendo do momento.
O movimento indígena quer ter o primeiro presidente indígena da história, então de uma forma ou de outra tudo o que está acontecendo em algum momento será capitalizado em nível eleitoral. Não sei se Iza ou outro personagem fará isso, mas isso é inegável.
Qual é o papel do Correismo nesta Greve Nacional e nesta situação política?
Assim como há três anos, eles participam, mas não têm o menor controle sobre o que está acontecendo. Apoiam a greve nacional e querem derrubar Lasso, por isso foram eles que convocaram o plenário da Assembleia para discutir a possibilidade de impeachment por comoção nacional.
Parece que está tramitando na Assembleia Nacional um pedido de impeachment (morte do cruzada). Quantas chances existem para isso acontecer? Você acha que é realista pensar em uma queda iminente para Lasso, seja pelo parlamento ou pelo impulso do protesto social? O que podemos esperar a seguir, um novo governo eleito pelo parlamento ou novas eleições? É algo que os movimentos patrocinam ou temem uma rearticulação da ordem política? Que perspectivas se abrem e que oportunidades se fecham?
14 dias se passaram e o governo com várias artimanhas ainda está conseguindo se manter firme. O que aconteceu na sexta-feira no nível repressivo foi um duro golpe para todos.
O movimento indígena pediu a seu braço político Pachakutic que vote a favor do impeachment como alternativa e saída para a crise atual, caso o governo não responda aos 10 pontos. Eles não podem voltar para casa com os bolsos vazios, cinco camaradas já perderam a vida.
A queda de Lasso não mudaria as coisas porque seu vice-presidente assumiria o poder com o mesmo projeto político. O que geraria é um novo precedente quanto à capacidade de obter resultados do movimento social, ainda que parciais.
Ainda não há força suficiente para dobrar Guillermo Lasso, então impeachment foi considerada uma opção.
No entanto, enquanto escrevo este texto, ainda não há votos suficientes para derrubar o presidente com a morte cruzada. Ontem, Lasso retirou estrategicamente o estado de exceção para que não haja justificativa para a comoção nacional.
Conclusões
Nos levantamos novamente, desta vez temos mais experiência, mas não força suficiente para atingir os objetivos traçados. Estamos resistindo e nos defendendo da violência policial e estatal, um dia de cada vez.
Amanhã, segunda-feira, 27 de junho, começa uma nova semana de desemprego, que será decisiva. Veremos se mais sujeitos e forças sociais se unem, se a força nos bairros aumenta, se novas estratégias coletivas de luta são encontradas, se é possível colocar o governo em dificuldade novamente. Tudo ainda é desconhecido, o que é certo é que a resistência continua e que não desistimos.
Também sabemos que esse levante não vai mudar a raiz dos problemas do país, mas sabemos que o próximo levante vai ser melhor porque aqui já estamos construindo essa possibilidade. Os processos organizativos que nasceram e que sustentam a greve (cozinhas coletivas, brigadas médicas, linhas de frente, creches para crianças) estão sendo organizados e esse tecido é o que restará depois que tudo isso passar.
A raiva é grande e a vontade de vencer também. Seguimos na luta, não desistimos.