Contra a Criminalização da Revolta! Fim do processo contra Caio e Fábio!

2013: 10 anos depois, a revolta pode ir a julgamento novamente

A justiça do estado do Rio de Janeiro definiu a data do júri popular dos ativistas Fábio Raposo Barbosa e Caio Silva de Souza, acusados pela morte do cinegrafista Santiago Andrade em fevereiro de 2014. A sessão plenária do 3º Tribunal do Júri está prevista para as 12h, do dia 12 de dezembro de 2023. Fábio e Caio respondem por homicídio doloso qualificado e explosão. Há quase dez anos, Santiago foi atingido por um rojão na cabeça enquanto registrava confrontos entre manifestantes e policiais sem qualquer tipo de equipamento de proteção, para a TV Bandeirantes, no Centro do Rio, perto da Central do Brasil. Apesar do que o Estado, através do punitivismo populista penal e a mídia, através do linchamento discursivo, tentam emplacar, Caio e Fábio não poderiam ser responsabilizados pela morte de Santiago Andrade. A explosão de um artefato como aquele não tem previsibilidade e, portanto, qualquer noção de intenção teria que ser descartada. Se fizéssemos dez reconstituições do incidente, obteríamos dez resultados diferentes. Além disso, não existe nenhuma prova conclusiva de que o morteiro que acertou o jornalista tenha sido disparado pelos manifestantes, já que existem relatos de testemunhas, de que naquele dia, a própria polícia estava com morteiros.

A criminalização de Caio e Fábio se confunde com a própria criminalização da revolta popular, e foi a maneira que o Estado encontrou para tirar as pessoas das ruas no Rio de Janeiro. Lembrando que até aquele momento na cidade as manifestações atraíam grandes massas e contavam com grande apoio popular. Somente através da fabricação de uma acusação de assassinato, diante de um terrível e evitável acidente sofrido pelo jornalista Santiago foi possível emplacar um discurso para fazer as pessoas temerem sua própria capacidade de insurreição. Importante ressaltar que a rede Bandeirantes enviou Santiago para uma zona de conflito sem nenhum material de proteção.

Diante disso, o julgamento segue confirmado sem que a rede bandeirantes tenha liberado as imagens completas que estavam na câmera do jornalista quando foi atingido. A emissora foi intimada a entregar essas imagens, mas entregou apenas uma parte claramente editada. Não podemos então deixar de perguntar: o que há para se esconder nesses arquivos? Por que querem que os manifestantes sejam julgados sem que essas imagens apareçam? Nossa luta neste momento é para que o julgamento seja adiado e não ocorra dia 12 de dezembro sem que a defesa tenha acesso às imagens completas, garantindo assim o amplo direito de defesa de Caio e Fábio. Mas é também pela sua absolvição e pela extinção de todos os processos fabricados, envolvendo manifestantes e lutadores das jornadas de 2013.

Sabemos que os verdadeiros assassinos seguem matando diariamente e de muitos modos na nossa sociedade. Sabemos que o caso em questão é apenas mais um para barrar a autodefesa popular e criar uma situação de pânico diante da exploração da morte e do sofrimento pela mídia, que sabemos ser sempre convenientemente seletiva, para que a revolta seja tirada de cena. Fazer isso é instrumentalizar a morte e a dor das pessoas para um fim político e de controle social. Não há qualquer respeito genuíno com o sofrimento das pessoas quando se usa vidas dessa forma. O que é, aliás, o modo geral de proceder do capitalismo: a instrumentalização dos afetos.

O caso lembra o que ocorreu na Grécia, em 2010, quando um incêndio em um banco durante um protesto levou três pessoas a óbito, e isso foi amplamente usado para jogar a opinião pública contra os protestos, esvaziar as ruas, e gerar um pânico na população, como se se rebelar pudesse gerar mais mortes do que as próprias políticas de austeridade que se pretendia barrar. Sabemos, entretanto, que isso não é verdade, que os bancos ceifam direta e indiretamente muito mais vidas do que qualquer incêndio. Que se as mortes convenientes, quando não são diretamente fabricadas, são pelo menos facilitadas e exploradas para abafar as revoltas. As inúmeras mortes diárias contra as quais nos revoltamos seguem numerosas e constantes, sendo naturalizadas e tomadas como inevitáveis.

A morte de Santiago não foi a única morte em contexto de manifestações, tivemos manifestantes jogados de uma ponte pela polícia; tivemos professoras asfixiadas com gás; e não é como se não morressem tantas pessoas diariamente pela violência policial; pela precarização da vida; pelos motivos que justamente levaram a população às ruas para protestar. Mas as mortes invisíveis, de tantas pessoas matáveis, foram contrapostas pela morte de um “cidadão de bem”, o acidente conveniente foi então usado como instrumento e moeda de troca para que a revolta se tornasse condenável. Mas quem usa pessoas como moeda, que nos usa como um meio para aumentar suas riquezas e poderes, não se importa de fato com a vida. Por isso defender Caio e Fábio é defender a possibilidade da revolta, é defender o direito a uma outra forma de vida diante do capitalismo que cada vez mais nos tira as mínimas condições de sobrevivência. Somos todys nós que não nos conformamos com essa vida sem o mínimo, que não nos calamos diante das opressões, e que lutamos por uma outra sociedade livre e igualitária, que também estamos indo a júri sem direito de defesa.

FIM DO PROCESSO PARA CAIO E FÁBIO!

NÃO PODE HAVER JÚRI SEM ACESSO ÀS IMAGENS!

VIVA A ANARQUIA!

Anarquia e Luta Conjunta na Palestina e em Israel – por Uri Gordon

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O presente texto foi lançado em 2007 como um capítulo do livro “Anarquia Viva!”, escrito pelo anarquista israelense Uri Gordon. O capítulo mobiliza análises sobre as lutas e perspectivas anarquistas na faixa palestina ocupada militarmente pelo Estado de Israel. Achamos oportuno fazer circula-lo em formato zine/brochura agora que o genocídio palestino perpetrado por Israel atinge uma nova etapa, já considerada a mais letal da história desse conflito. Também porque, como se observa há mais de 75 anos, as tecnologias coloniais de ocupação militar e controles ambientais usadas pelo Estado de Israel dá o tom de como diversos grupos armados estatais atuam na contenção e extermínio de grupos resistentes.

No dia 7 de outubro de 2023, o braço aramado do grupo palestino Hamas lançou um ataque surpresa no território reivindicado por Israel. Ao menos 1.400 pessoas foram mortas, a maioria civis e outras centenas foram feitas de reféns. Ação que expôs o óbvio da atual utopia securitárias das democracias: não existe sistema de segurança, por mais hightech que seja, imune à ataques, pois as pessoas que vivem sob a violência estatal ostensiva e permanente vão reagir por diversos meios, legítimos ou não.

O Estado israelense respondeu com um cerco total à Faixa de Gaza, cortando os suprimentos de alimentos, água, energia e combustíveis, e bombardeando indiscriminadamente a região com ataques aéreos, enquanto prepara uma grande ofensiva terrestre que foi colocada em marcha no dia 28 de outubro, produzindo um montante de mortes e destruição sem precedentes.
Nos primeiros seis dias de conflito mais de 6 mil ataques aéreos a Gaza — uma das regiões com a maior densidade populacional do planeta — atingiram principalmente alvos civis, incluindo hospitais, escolas, prédios residenciais e rotas de saída através das quais parte do povo palestino e cidadãos de diversos países tentavam fugir da área de conflito e dos campos para pessoas refugiadas. Até a conclusão desta edição, um mês após o primeiro ataque, esses bombardeios mataram mais de 10 mil pessoas, incluindo mais de 5.000 crianças, e feriram outras centenas de milhares. Mais de um milhão de pessoas foram forçadas a deixar suas casas e muitas estão desaparecidas sob os escombros de prédios residenciais, escolas, hospitais e universidades bombardeadas por Israel.

Este é apenas o capítulo mais recente de mais de um século de violência colonial genocida contra o povo palestino. O Estado de Israel comprova que não surge como uma resposta, mas uma continuação das práticas de extermínio do Holocausto, já que mobiliza as mesmas tecnologia políticas de contensão, controle e execução perpetradas pela Alemanha nazista, mas contras os povos que habitam a faixa de Gaza e com acréscimo de um militarismo hightech. Mesmo antes os ataques do Hamas em outubro, a política de Apartheid e terrorismo do etno-estado israelense reproduz a mesma lógica dos guetos nazistas tanto na Faixa de Gaza quanto na Cisjordânia, onde o Hamas sequer tem atuação, e colonos e as forças de segurança israelenses praticam torturas, fuzilamentos, sequestros e bombardeios.

Menos de dois anos antes dos ataques do Hamas e da agressão genocida israelense, houve o início da invasão russa e a guerra na Ucrânia. Ambos ressaltam os interesses geopolíticos e militares que atravessam os territórios e trazem ao debate o fantasma de uma nova guerra mundial nuclear. E em ambos, anarquistas e demais movimentos radicais de base ressaltam a importância da solidariedade internacionalista, a autodefesa e a autodeterminação dos povos.

O texto de Uri Gordon aborda as origens socialistas e internacionalistas dos kibutz nos anos 1920, antes da política sionista se materializar em um Estado étnico-nacionalista; as contradições e desafios dentro da luta anarquista e anticapitalista radical em geral ao se envolver no conflito Palestina/Israel junto aos povos; e também aponta para algumas saídas possíveis. Ademais, demonstra que não há saída para o conflito mais significativo de nossa era pela via estatal, confirmando a hipótese histórica dos anarquistas no século XXI. Também contribui para que o debate, que os novos ataques militares de Israel suscitam, saiam do binarismo e possam ser abordados de um perspectivas da diversidade dos povos contra a violência dos Estados.

Baixe, leia, copie, distribua e organize a solidariedade!

Facção Fictícia,
primavera de 2023.


Para saber mais, recomendamos o recente vídeo do coletivo Antimídia:

Do Rio Ao Mar – Uma mensagem pela libertação da Palestina

BLACK BLOCS E LIBERTAÇÃO ANIMAL – 10 anos de uma das ações radicais mais emblemáticas de 2013

Exatamente 10 anos atrás, em outubro de 2013, um protesto contra o uso de animais em testes realizados em um laboratório no interior do estado de São Paulo se transformou em uma das mais emblemáticas ações diretas daquele ano que mudou o cenário político e os movimentos sociais no Brasil. O evento por si só já chama a atenção pelo tamanho, pela eficiência das diferentes ações e pelo sucesso alcançado, ainda mais no contexto brasileiro, pouco familiarizado com ações radicais pela libertação animal aliada a uma perspectiva anticapitalista.

Acreditamos ser importante revisitar tais acontecimentos para aprender com suas limitações e desenvolver seus acertos no que diz respeito a diversidade de táticas, coordenação de diferentes movimentos, radicalidade e contundência da ação que pode inspirar outros grupos e novas campanhas. Para isso, revisitamos essa breve análise e entrevistas feitas logo nas semanas seguintes com duas participantes das linhas de frente dessas ações.

A ação em São Roque: bons exemplos mas não um modelo pronto

Após dias acorrentadas nos portões do Instituto Royal, na cidade de São Roque, denunciando o uso e o assassinato de animais com técnicas como a vivissecção (cortar animais ainda vivos e sem anestesia para experimentações), ativistas atraíram a atenção da mídia e de outras organizações para a causa. E na madrugada do dia 18 daquele mês a manifestação se tornou uma ação de resgate dos animais que libertou quase 200 cães da raça beagle e dezenas de ratos. Toda a ação foi fotografa e filmadas pelas participantes.

Do lado de fora do laboratório, a estrada foi tomada por barricadas logo pela manhã. Uma viatura da polícia militar e um carro da imprensa foram queimados por manifestantes. Algumas pessoas menos acostumadas com a dinâmica de resistência em protestos de rua ainda tentaram formar uma barreira para proteger os carros de emissoras de TV da destruição, mas não adiantou. Do lado de dentro, jaulas foram esvaziadas, computadores, documentos e materiais de pesquisa foram destruídos. Paredes pixadas por símbolos da Frente de Libertação Animal (ALF) e ruas tomadas por Black Blocs que montaram barricadas para impedir que a tropa de choque chegasse ao laboratório e prendesse manifestantes.

Carro de emissora de TV depredada e viatura da Polícia Militar incendiada na estrada em frente ao laboratório.

Para muitas pessoas ali, era como se enfim chegasse o dia que toda uma geração de movimentos pela libertação animal, anticapitalistas e anarquistas sonharam e trabalharam para ver. Era o momento em que táticas radicais se encontram, convergem permitindo que movimentos distintos, com táticas distintas, operassem em conjunto para uma ação efetiva. Foi possível atingir tanto seu objetivo imediato (resgatar os animais e impor consequências ao laboratório pelo uso e tortura dos mesmos), quanto objetivos de médio e longo prazo (o fechar o laboratório e a educar a opinão pública sobre o tema). A ação chamou a atenção do público geral e tomou as notícias em todo o país, provocando uma mudança inédita no imaginário das pessoas sobre o que é possível fazer em uma ação direta pelos animais e educando as pessoas sobre o quão perverso e inútil são os testes em animais e o uso dos animais para qualquer fim. Tudo isso devido a uma janela de possibilidades aberta nas ruas em junho de 2013 nos grandes levantes contra o aumento das passagens no transporte público.

A invasão do Instituto Royal é um exemplo emblemático mas que também desperta curiosidade e demanda reflexão. Como nas ruas tomadas na luta contra o aumento em todo o país em junho daquele ano, a batalha em São Roque contou com a presença de uma grande diversidade de pessoas. Diferentes idades, posições políticas, classes sociais e também diferentes táticas e modos de luta e organização: ativistas que defendem o “bem estar animal” (ou que focam sua ação apenas em cães e gatos) estavam lado a lado com grupos veganos anticapitalistas. Personalidades da TV ou manifestantes de classe média que defendem a causa animal protegidas atrás de barricadas feitas por Black Blocs anarquistas. Um mosaico de inúmeras formas e contextos de luta se aliaram com um objetivo comum. A articulação prévia de longos dias foi organizada por um número reduzido de pessoas e catalisou a luta que surgiu de forma espontânea para centenas de pessoas que aderiram ao movimento imediatamente após um chamado aberto para a ação direta. Uma estratégia improvisada e repentina se tornou a principal arma contra uma polícia despreparada e incapaz de prever os movimentos de pessoas determinadas a agir.

Animais foram resgatados, o laboratório declarou falência e o impacto nas leis e na opinião pública foi maior do que todo o ativismo estritamente legalista ou outros protestos simbólicos contra a empresa durante os cinco anos anteriores: até o início de 2014, novas leis que regulam e restringem o uso de animais em testes foram aprovadas, incluindo a proibição desse tipo de teste para cosméticos em todo o país. O que nos prova que mesmo quando as pessoas querem apenas reformas, novas leis ou o fim de uma instituição opressiva, é melhor demonstrar força popular para realizar essas mudanças por nossas própria ações do que pedir pacificamente e esperar a boa vontade de poderosos. Se nos mostrarmos irredutíveis e com disposição para ação, as autoridades vão correr para nos atender antes que consigamos algo por nossa conta. Nesse momento é que os movimentos devem buscar ainda mais força para dobrar as autoridades.

Manifestantes rompendo as barreiras policiais e ativistas resgatando cães dentro das dependências do Instituto Royal.

A invasão ao Instituto Royal serve com um exemplo de sucesso obtido quando a organização de longo prazo encontra a imprevisibilidade de ações imediatas, inovadoras e capazes de mudar de táticas para encontrar uma brecha no sistema, antes que a repressão policial seja capaz de reagir à altura. Questionando o discurso tradicional das lutas sociais legalistas, vimos que a diversidade de táticas e de formas de organização, quando aliadas, podem ser a chave para vitórias que tornam possível o que era até mesmo impensável.

Ainda assim, o episódio é um bom exemplo e não um modelo ou receita a serem seguidos metodicamente. Mais do que buscar repetir suas táticas e etapas de ação, é preciso entender e assimilar as posturas que permitiram o sucesso da ação. Mesmo conflituosa e divergente para muitas pessoas que participaram, a ação mostra que uma diversidade de táticas e frentes de luta diferentes pode ser muito mais eficientes, tanto a curto quanto a longo prazo. Diferentes níveis de luta, como ação direta e confronto com forças de repressão, mídia independente e autônoma, comissões legais e porta-vozes, ajudam a distribuir a legitimidade dos movimentos e torna difícil a tentativa do Estado de isolar e silenciar “minorias infiltradas” ou “grupos radicais” do resto da luta. Essa harmonia e cumplicidade entre formas diferentes de ação se mostrou muito efetiva para libertar os animais, impor danos ao laboratório e não dividir o movimento entre “legítimos” e “ilegítimos”, “legais” ou “ilegais”, impedindo que as autoridade encontrassem divisões fáceis entre participantes que permitisse isolar e prender quem realizou ações ilegais de invasão, dado a propriedade.

O sucesso imediato e a continuidade do debate sobre o uso de animais como objetos e sua condição de propriedade em um sistema capitalista conseguem ir para além do reformismo bem-estarista (que visa apenas regular o uso de animais) e desafia o moralismo burguês dos movimentos abolicionistas (que lutam para que nenhum animal seja considerado propriedade) que se baseiam, muitas vezes, em princípios pacifistas como valores absolutos.

Black Blocs formando um cordão de proteção para bloquear o avanço da polícia em direção ao laboratório.

É necessário sempre repensar táticas, ser capaz de inovar e sempre fazer uma autocrítica. Não há problema na radicalização das ações antiautoritárias e de libertação. O problema não é atacar ferozmente o sistema, mas sim não continuar atacando. Somente a radicalização aliada ao debate sobre uma diversidade de táticas e discursos pode impedir que a legitimidade das lutas seja determinada pela mídia, pelo Estado ou por ativistas privilegiados – empresários, apresentadoras de TV e políticos – que buscam sequestrar lutas sociais organizadas por pessoas anônimas ou invisibilizadas como forma de acumular ainda mais poder e privilégios.

Para compreender um pouco mais de como foi a luta por trás das barricadas e por baixo das máscaras, publicamos aqui dois relatos escritos por pessoas que estiveram na invasão do laboratório. Elas contam como foram esses momentos de luta e descrevem sua importância para ações futuras. É preciso mais debates e, principalmente, mais ações que desafiam as leis e as “receitas de bolo” revolucionárias.

Por uma luta de libertação animal e humana total, radical e anticapitalista!

Primeiro Relato:

Em meio ao instável cenário político que veio após os protestos de junho de 2013, ativistas pelos direitos animais começaram uma campanha para fechar o Instituto Royal, um laboratório localizado no interior do estado de São Paulo conhecido pelos testes em animais e pelas práticas de vivissecção.

Após alguns dias atraindo atenção para o assunto e para esse estabelecimento em particular, a noite que mudaria como a mídia, a população e até legisladores encaram a vivissecção estava por vir. E sua história seria escrita através da ação direta. Naquela noite, em especial, as pessoas se reuniam em frente ao portão do laboratório atraídas pelas notícias que circulavam nas mídias sociais. No momento que cheguei àquela área rural cortada por estradas de terra e algumas poucas casas, a polícia estava guardando os portões e podíamos ver funcionários e seguranças privados andando dentro do prédio. Caminhões entravam e saíam, aparentemente, levando documentos e animais por medo de uma invasão. Mas essa não era uma ação da Frente de Libertação Animal (ALF). Pessoas de todos os tipos estavam presentes. Algumas só se importavam com os beagles, outras com apenas cães e gatos em geral, outras eram ativistas dos direitos animais. Black Blocs também estavam lá e até apresentadoras de TV que apoiam causas animais chegaram pois a mídia começou a divulgar que uma invasão estaria para acontecer. O que fez com que a mídia burguesa aparecesse e também mais pessoas em geral.

A polícia logo ficou em menor número e claramente incapaz de lidar com o fenômeno que tomava forma ali. É importante lembrar que São Roque fica a uma hora de qualquer cidade maior. Em poucas horas éramos muitas à postos naquela estrada sem saída cercada de mato. A estrada termina em um portão com uma largura que cabe 15 pessoas enfileiradas. De repente não parecia mais ser uma barreira e a polícia já demonstrava não estar preparada para a situação. O que pode dizer que eles poderiam reagir de forma desproporcional, mas como não se tratava do batalhão de choque, era mais provável que iriam apenas recuar. Especialmente devido à diversidade da multidão composta por senhoras de cinquenta ou sessenta anos junto a estudantes e pessoas vestidas como um Black Bloc.

Por volta da meia noite os carros do laboratório não conseguiam mais sair pelo portão e os latidos dos cães nos lembrava que as pessoas do lado de fora não eram as únicas apreensivas. Redes sociais funcionavam fortalecendo centenas de nós que estavam ali. Às duas da manhã, no dia 18 de outubro, ficou óbvio que haveria uma invasão. Bastou alguém tomar a iniciativa de começar a bater no cadeado do portão com uma pedra para que todo mundo ver que estava na hora. O portão já estava sendo derrubado enquanto gente cortava as cercas e a multidão pressionava em todas as possíveis entradas.

Entramos! Uma pequena estrada leva ao prédio principal, com mais portas a serem quebradas e arrombadas. A polícia só conseguia olhar e a mídia estava lá dentro também com as câmeras ligadas. A maioria das pessoas usava máscaras como em um resgate aberto. Algumas de nós, que temiam o que podia acontecer depois, tínhamos o cuidado de cobrir nossos rostos.

Um por um, quase 200 beagles foram transportados no colo subindo o morro até onde, há poucos minutos, havia um portão onde outras ativistas esperavam com seus carros – praticamente todo mundo chegou lá de carro porque não havia outro meio de transporte para o local a essa hora da noite. Quem libertava os cães de suas jaulas não sabia para onde eles estavam sendo levados. O que importava era que estavam sendo libertos da exploração. Isso foi útil quando ativistas que estavam lá dentro sob o foco das câmeras começaram a ser identificados e sofrer acusações por roubar “propriedade privada”. Como argumentamos, as chamadas “propriedades” nunca foram tomadas como posse daquelas pessoas que os tiraram de lá.

Um grupo de advogados voluntários se formou para defender quem era identificado e uma rede clandestina de veterinárias se dispuseram a remover chips que poderiam identificar animais adotados. Curiosamente, um deputado que atua na área de bem estar animal também estava presente durante o resgate, atraído pela presença da mídia e pela multidão de ativistas. Ele adotou dois beagles que passaram a morar em sua casa e poucos dias depois a mídia estava lá para filmar os cães e contar sua história. Em seu benefício, a lei brasileira diz que um membro do congresso não pode ser acusado desse tpo de crime enquanto exerce seu mandato. Para pessoas menos privilegiadas, podíamos apenas ter a companhia de alguns beagles que sofreram abusos, com sinais de mutilação e traumas psicológicos que às vezes são difíceis de notar.

A invasão foi realmente uma cena caótica, sem planejamento prévio, nenhuma direção e, provavelmente, não é um modelo a ser repetido. Sua espontaneidade foi a mágica que fez com que tudo fosse possível. Sua diversidade foi um fator que fez os números de participantes possíveis e a repressão impossível. A compaixão de todo mundo presente foi a força que ampliou seu significado para além dos indivíduos salvos.

Poucas semanas depois, após extensiva e persistente cobertura da mídia sobre o assunto, leis começaram a ser propostas na cidade, no estado e no país. A prefeitura mandou trancar o laboratório e manifestantes mantiveram a pressão até que o Instituto Royal anunciou seu fechamento no dia seis de novembro. Ainda assim, eles recusavam a liberar os animais que ainda estavam lá durante o primeiro resgate. Então uma nova e legítima ação da ALF realizada no dia 13 de novembro por uma pequena célula resgatou os 300 ratos que ainda estavam lá e nenhum animal esteve presente para testemunhar os últimos momentos do Instituto Royal.

Interior do laboratório atacado durante a madrugada.

Tendo em vista as elevadas e irreparáveis perdas e os danos sofridos em decorrência da invasão realizada no último dia 18 – com a perda de quase todo o plantel de animais e de aproximadamente uma década de pesquisas -, bem como a persistente instabilidade e a crise de segurança que colocam em risco permanente a integridade física e moral de seus colaboradores, os associados concluíram que está irremediavelmente comprometida a atuação do Instituto Royal para dar continuidade à realização pesquisa científica e testes mediante utilização de animais. Por este motivo, o Instituto decidiu encerrar suas atividades na unidade de São Roque”

Declaração do Instituto Royal em 06/11/2013 sobre seu fechamento.

Vídeo da segunda invasão ao Instituto Royal para resgatar ratos que ainda estavam presos.

Segundo Relato:

Nós fomos de carro de São Paulo a São Roque em três pessoas no segundo dia de manifestação. Ativistas que retiraram os cães ficaram a noite toda lá e, no dia seguinte, iriam retirar os roedores que restaram. Eu cheguei em São Paulo pela manhã e nós chegamos no instituto no começo da tarde, a Rodovia Raposo Tavares já estava interditada pela Polícia Militar muito antes. Chegando lá havia muito tumulto e uma divisão bem clara: de um lado, ativistas pacifistas pelos cães com faixas e dizeres cristãos, se recusando a cobrir o rosto e mantendo distância do conflito com a Tropa de Choque. Do outro, pessoas de máscaras e bandanas iam de encontro a linha policial. A polícia parecia estar evitando o conflito e focando na porta do instituto, que já estava fortemente protegida pela PM para evitar a segunda entrada dos militantes. Uma viatura foi incendiada e logo após outro carro de uma emissora de TV também estava em chamas. A polícia interviu muito após isso para tentar dispersar a manifestação e me juntei a um grupo que se formou para tentar entrar no instituto através da mata em volta. Pulamos uma cerca e tentamos dar a volta para entrar pela parte de trás onde não havia policia, mas havia helicópteros sobrevoando o local e nos escondemos em uma casa abandonada. De lá chegamos perto dos limites do instituto para encontrar com uma segurança privada, sem identificação e portando de armas de fogo.

A PM percebeu a tentativa de entrar por trás e começou a perseguir alguns manifestantes dentro da mata. O grupo inicial havia se dividido em vários por não concordar em como entrar no instituto. Havia ainda ativistas que se recusam a cobrir o rosto por insistir em que resgatar animais não consistia em crime. E foi esse o sentimento que persistiu do começo ao fim.

Considerando que as pessoas que organizaram a manifestação inicial são pacifistas e cristãs, houve muita desorganização por conta desse racha ideológico. As pessoas pacifistas colocaram muito em risco a identidade e segurança de quem se dispôs a entrar no instituto e enfrentar a polícia.

Por fim, encurralados, saímos da mata muito longe do instituto e fomos cercadas por bombas de gás. A manifestação foi se dispersando no fim da tarde e só nos restou o plano de voltar em outra ocasião.

Havia pessoas de várias partes do país. Todas as placas, cercas, carros e estruturas no perímetro do instituto foram destruídas. Em comparação a junho de 2013, houve muito mais organização, disposição em se arriscar e união. Todos presentes nas ações radicais sabiam claramente qual era o objeto e que tal objeto era extremamente legítimo. Motivadas de maneira quase emotiva, as pessoas viram claramente que aquilo era apenas o começo e que a PM não era capaz de frustrar nossas tentativas, tamanha a presença e vontade de muitas pessoas dispostas a libertar aqueles animais por quaisquer meios necessários. Esse evento inspirou o resgate das chinchilas em Itapecirica e outras ações. E independente de rachas ideológicos, foi possível conciliar a disposição dos Black Blocs em se arriscar com a força legalista para fechar o instituto Royal permanentemente e proteger as pessoas que tiveram suas identidades expostas.

Um acontecimento sem precedentes no Brasil e uma semente que, acredito eu, ainda vá germinar em forma de um Frente pela Libertação Animal concreta.


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GEZI PARK: 10 anos dos levantes de junho na Turquia

Quando as revoltas contra aumento das tarifas do transporte pelo Brasil tomaram escala nacional em  junho de 2013, em Istambul, um levante balançaria toda a Turquia, numa região ainda abalada pelos levantes da Primavera Árabe. As duas revoltas contra o custo e qualidade de vida em economias emergentes demonstravam solidariedade mútua: bandeiras e faixas em São Paulo em apoio ao levante turco, mensagens em Istambul solidarizavam com a revolta popular brasileira.

Uma década depois, Recep Tayyip Erdogan ainda está no poder na Turquia e acaba de vencer mais uma eleição cheia de polêmicas e suspeitas de fraude. Seu projeto de poder busca restaurar uma soberania turca na região, passando por cima da natureza, dos povos, especialmente os curdos. E para isso, se apoia em movimentos nacionalistas de bases fascistas e financia de forma oculta os jihadistas do Estado Islâmico, dispostos a eliminar o povo e a cultura curda e ameaçar a revolução social em Rojava.

No Brasil, o ciclo da década se fecha com o retorno do PT ao poder com a eleição de Lula em 2022, como única aposta eleitoral para barrar uma reeleição da extrema direita com Jair Bolsonaro.

No mês em que muito se fala e analisa sobre os levantes de junho de 2013 pelo Brasil, retomamos também esse movimento rebelde que tomou a Turquia na esteira de levantes internacionais como a Primavera Árabe e o Movimento Occupy.

Como vimos em 2020 e 2021 durante a pandemia da Covid-19, torcidas organizadas brasileiras romperam com o discurso pacificado do “fique em casa” adotado pela maior parte da esquerda enquanto a extrema-direita fazia carreatas e atos públicos para divulgar suas políticas de ódio e morte. Novamente, as torcidas ganharam atenção ao enfrentar nas estradas os bloqueios de bolsonaristas insatisfeitos com a derrota nas urnas. O potencial de mobilização e combatividade das torcidas organizadas de futebol é visível em muitos momentos de agitação social como nos últimos anos no Brasil, mas também no Chile em 2019 durante o “Estallido Social” contra preço das passagens e custo de vida. Nas revoltas da praça Taksin e Gezi Parque na Turquia de 2013 também temos exemplos emblemáticos dessa convergência.

Para relembrar essas lutas e nos inspirar para as próximas, revisitamos esse artigo lançado em 2014 na publicação Balaklava que analisa o levante turco e seus paralelos com a revolta no Brasil de 2013.

11 de junho de 2013, Praça Taksim.

“Por aqui para chegar à Comuna de Taksim”

Ao fim de maio de 2013, uma semana antes das Jornadas de Junho no Brasil, iniciou-se uma série de conflitos na Turquia que resultaram no maior levante popular da história do país. Só a época e a relevância histórica e política já são suficientes para induzir alguns paralelos entre os dois episódios, mesmo com tantas diferenças de contexto e proporções. Os confrontos na Turquia foram muito mais radicais e marcados por uma violência ainda maior em números. A população se ergueu contra um projeto de renovação urbana que contava com a demolição de um parque no centro de Istambul e o movimento se transformou rapidamente num levante contrário ao autoritarismo do presidente Erdogan. Tudo começou no Parque Gezi, vizinho à Praça Taksim, e logo se espalhou pela cidade e por todo o país.

Diferentemente dos poderosos protestos que vimos recentemente na Grécia em 2008, Espanha em 2011 ou nos Estados Unidos em 2012, o levante turco não foi gerado por uma crise de austeridade, com cortes de recursos sociais para salvar bancos e corporações como medida para estabilizar uma economia em constante crise. O levante turco foi, assim como no Brasil, um levante resultante do desenvolvimento e do crescimento econômico de um país emergente, porém muito particular. O primeiro-ministro Erdogan é conhecido por convergir um islamismo reacionário com um neoliberalismo desenvolvimentista bastante agressivo. Ao mesmo tempo que resgata tradições conservadoras, impõe um desenvolvimentismo econômico e infraestrutural. Privatizando e vendendo o que resta de recursos públicos enquanto o desemprego continua em alta, se empenhando em grandes empreendimentos, como uma ponte ligando dois continentes, a demolição e o replanejamento de várias partes das cidades para empreiteiras lucrarem com a construção civil e para que novos negócios se estabelecerem no local. Na capital Istambul um audacioso projeto de renovação e gentrificação previa desmatar parte do Parque Gezi e remodelar a Praça Taksin para abrigar shopping centers e ser uma “zona de pedestres”, dentre outros projetos para os ricos. No entanto, Erdogan parecia ignorar a relevância histórica e política do local para a população.

A Praça Taksin é um tradicional ponto de encontro de mobilizações sociais, protestos de Primeiro de Maio, e carrega um peso histórico de ter sido palco de diversas lutas sociais e massacres. Lá estudantes foram enforcados em 1977 como inimigos do Estado durante o regime militar por protestarem em um Primeiro de Maio. Em outras manifestações ao longo do mesmo ano, 34 pessoas foram baleadas e mortas por paramilitares. Exatos 30 anos depois, em 2007, a esquerda organizou um grande protesto em memória dos mortos de 1977, mas o governo tentou impedir o protesto e radicais resistiram com pedras e molotovs. Nos dois anos seguintes, mais protestos, confrontos e resistência do povo contra a polícia marcaram os dias dos trabalhadores e trabalhadoras.

Então, no dia 28 de maio de 2013, ativistas já se amarravam em árvores para impedir que fossem derrubadas e no dia 31 o levante explodiu, ecoando por todo o planeta. A primeira coisa a chamar atenção da imprensa por aqui foi que a polícia turca utilizava bombas e munições fabricadas no Brasil para reprimir a população numa série de operações que, ao fim do levante, resultaram em pelo menos 6 mil pessoas feridas – sendo 10 cegas – e mais de 10 mortes. Mesmo assim, muito foi noticiado sobre as experiências de vida comunal, resistência e autogestão que tomaram lugar na ocupação dessa área central de Istambul por 10 dias de intensa resistência.

Um dos projeteis de gás lacrimogêneo brasileiros utilizados pela polícia turca.

Entre o primeiro e o dia 10 de junho, todas as ruas e avenidas que levavam à Praça Taksim foram tomadas por barricadas para se defender da polícia. Em grandes avenidas era possível ver até 12 barricadas, muitas com mais de três metros de altura, usando materiais de construção, lixo, ônibus e veículos da mídia corporativa. Como em muitas outros levantes populares, as barricadas baniram a presença do Estado da área e abriram espaço para que novas e inimagináveis relações sociais pudessem surgir e tomar forma. Placas no caminho indicavam “Por aqui para chegar à Comuna de Taksim”.

A região era tradicionalmente muito frequentada por pessoas de todas as idades, mas conhecida por ser uma zona boêmia. Chamou atenção o fato da violência urbana ter caído significativamente com a tomada da praça pelas pessoas e a expulsão da polícia de toda a região. Sem o Estado, a população experimentava a solidariedade, cooperação e luta contra a repressão, deixando relações nocivas e competitivas de lado. Mulheres, que compunham ao menos metade (se não a maioria) das pessoas presentes, ressaltaram a queda de violência sexista, abusos e assédios. Muito disso devido a sua participação, juntamente pessoas LGBTQIA+ e tantas outras, inclusive intervindo sobre gritos de guerra e pichações sexistas e homofóbicas.

Um curioso caso envolveu as torcidas organizadas de futebol, grupos feministas e o movimento LGBTQIA+, que se destacaram pela presença política e combatividade nas ruas. As torcidas dos maiores times de Istambul, historicamente arqui rivais, se uniram na luta pela resistência pela Praça Taksim, sendo responsáveis por muito da energia nos confrontos contra a polícia. No entanto, foram também responsáveis por muitos gritos e grafites com mensagens sexistas e homofóbicas que conhecemos bem no Brasil. Feministas e queers combateram isso de uma forma transformadora para as pessoas ali, gritando de volta respostas antipatriarcais e pichando sobre os grafites com xingamentos machistas.

Como resultado das intervenções e debates antissexistas, algumas torcidas marcharam até a frente de um escritório de uma das maiores organizações LGBTQIA+ que, assim como muitos movimentos e organizações de esquerda, ficava em um prédio próximo ao Parque Gezi. Ao chegarem, disseram que reavaliaram suas posturas e as mensagens sexistas e homofóbicas que vinham passando, tendo absorvido isso da sociedade e reproduzindo-as sem questionar seu conteúdo. Disseram que iriam tomar posturas diferentes contra isso e, para selar seu pedido de desculpas, deram de presente à organização um escudo da tropa de choque da polícia.

Esse episódio resume muito bem o contexto de convergência entre tantas pessoas, grupos, organizações e comunidades de diferentes trajetórias que nunca se imaginaram lado a lado numa barricada e que se uniam ali, fazendo de suas causas uma luta comum. Para defender esse espaço, era preciso estarem em contato e em constante questionamento e revisão de suas próprias atitudes. Até mesmo conflitos étnicos foram deixados de lado quando as pessoas se uniram contra o partido e Erdogan e sua polícia. Nos prédios ao redor da praça tomada era possível ver bandeiras da Turquia juntas de bandeiras do PKK, o Partido dos Trabalhadores Curdos, envolvida na luta revolucionária em Rojava, fronteira entre a Síria e Turquia. Alguns disseram ser esse o verdadeiro processo de paz entre povos turcos e o povo Curdo, que por século resiste ao racismo, à  xenofobia e têm sua cultura criminalizada e perseguida em todos os países da região.

O clima marcante dentro da comuna de Taksim era o bom humor, o otimismo e a positividade. Até mesmo as barricadas eram pichadas com frases engraçadas e piadas com figuras políticas ou até teóricos anarquistas. Manifestantes estavam sempre criando sátiras e memes a serem compartilhados na internet. O bom humor ajudava a manter a união e aliviar a tensão e afastar o medo da violência policial.

O espírito anticapitalista e antiautoritário era visível na cooperação envolvida em cada construção. Materiais corriam de mão em mão, por jovens, mulheres, homens, idosas. Muitas barricadas foram construídas assim. Ao seu lado, havia sempre uma tenda com água, pedras e até abrigo para vigilantes descansarem.

Um dos cordões em que pessoas passavam pedras para construção de barricadas.

Cooperações inusitadas apareciam, unindo pessoas de classes e papéis muito diferentes. Camelôs e ambulantes que trabalhavam na região passaram a adaptar seus negócios e muitos passaram a vender máscaras de gás. Em um momento, comerciantes e estabelecimentos não simpáticos à ocupação tinham de cooperar ou sofrer as consequências. O dono de uma loja de kebab, postou no Facebook sua indignação com os “cães que tomaram conta da região”. Minutos após seu post a loja foi reduzida a destroços. Até mesmo a Starbucks acabou dizendo à imprensa que apoiava a resistência e alegou que sempre iria dar suporte ao movimento. Logo depois foi atacada por não cumprir o que foi dito.

Curiosamente, muito apoio foi de fato dado por membros da burguesia, principalmente em infraestrutura. Empresários forneceram materiais para enfermarias improvisadas, uma empresa de telefonia levou veículos que funcionavam como antenas para receber e transmitir o sinal necessário para comunicação via e-mail, tweets e mensagens de celular. Em suas vans era possível ver escrito “estamos aqui para contribuir para sua comunicação” – talvez uma forma de evitar que fossem incendiadas. O motivo por trás desse apoio, no entanto, é compreensível se considerarmos que muitos liberais e progressistas nas elites viam no tradicionalismo islâmico de Erdogan uma ameaça a suas liberdades modernas. E viram no levante de Gezi uma oportunidade. Esse fato revelou uma certa falha das mobilizações em Gezi quanto a firmar uma força anticapitalista, mesmo com muitos grupos anticapitalistas envolvidos.

Sem líderes

O movimento na Turquia também foi um movimento sem lideranças personalizadas, sem movimentos sociais e organizações partidárias tradicionais à frente. Os poderosos se viam frustrados em não conseguir encontrar líderes ou representantes com quem negociar e sabotar o movimento. Essa ausência de lideranças desenvolveu uma estrutura de decisão coletiva que foi talvez sua principal força. Os objetivos extrapolaram a preservação do parque e denunciaram uma crise de representação. A organização da comuna era totalmente autônoma. Pequenos grupos de afinidade armaram as primeiras tendas para se fixar e logo depois a região foi tomada por tendas e barracas de quase todos os grupos de esquerda, sociais e ativistas da cidade. Tudo funcionava com base no apoio mútuo e pessoas que nunca imaginaram um mundo sem polícia se surpreendiam com o clima harmonioso nesse território livre das garras do Estado. Assim como em muitos acampamentos do movimento Occupy, lojas grátis, bibliotecas, espaços para oficinas, enfermarias, várias cozinhas, espaços multimídia para produzir e transmitir conteúdo e muito eventos culturas preenchiam e enriqueciam o espaço.

As assembleias gerais eram descentralizadas e funcionavam como uma continuação das reuniões e demandas dos grupos de afinidades menores. No palco central havia um microfone aberto onde as pessoas podiam subir para falar do que quisessem. O caráter de ocupar uma parte da cidade e torná-la aberta a quem quer que seja para se juntar e construir em conjunto novas relações com as pessoas e o espaço foi fundamental para dissociar a ação política e o “protagonismo” de uma identidade engessada, como “trabalhadores” ou “estudantes” – categorias e identidades simplesmente inacessíveis para crescente parcela da população no capitalismo – e abrir espaço para ação e a livre associação rebelde independentes do seu papel na máquina.

Como sempre, o partido do governo tentava fragmentar a união da comuna espalhando mensagens distorcidas para criar uma divisão entre os chamados “provocadores” (isto é, aqueles que revidam quando a polícia ataca) ou os grupos “marginais” (esquerdistas e radicais). O já conhecido esforço para criar uma minoria deslegitimada a ser reprimida, para então, suprimir todo o movimento. No entanto foi difícil para Erdogan manter seu esforço de polarizar a sociedade e voltar a opinião pública contra a resistência do Parque Gezi. Toda vizinhança dos bairros centrais viam pessoalmente a truculenta e desproporcional ação da polícia ao mesmo tempo que a internet era inundada de imagens e relatos da repressão que manchava a imagem do governo de Erdogan.

A falta de aceitação do movimento em apontar representantes e porta-vozes para a armadilha disfarçada de negociação com o governo foi seguida por uma ofensiva ainda mais violenta do Estado para retomar o Parque. Depois de quase tomar a praça num violento ataque no dia 11 de junho, o Estado atacou a praça novamente quando ninguém esperava. Durante um festival que contava com a presença de muitas crianças e idosos a polícia entrou destruindo tudo e atacando a todos. A cidade explodiu em raiva mais uma vez, vizinhos se juntaram à resistência e abrigavam pessoas em suas casa, xingando os policias das janelas dos prédios.

Um movimento tão novo e com pouca experiência em atuação nas ruas, repleto de jovens que se mobilizavam pela primeira vez teve dificuldades de lidar com suas multidões sob os ataques da polícia. Cada noite era uma grande tensão, pessoas usavam capacetes, máscaras, e escreviam o tipo sanguíneo na roupa. Sua determinação era incrível. Mas o mais importante é que toda uma geração pode se encontrar e começar a sonhar juntas o que podem alcançar juntas.

Veículos da mídia encontraram novos usos durante a ocupação da Praça Taksin.

Novas relações

Em cada horta ou tenda médica; cada debate sobre sexismo e homofobia; ou na construção de cada palco ou barricada as pessoas estavam vivendo relações totalmente diferente das do cotidiano comum em qualquer cidade moderna. E essas relações emergiam em cada ação como uma forma de resistência a um poder hegemônico econômico e político. Esse é o espírito fundamental da comuna como máquina de guerra. Fazer de cada gesto uma forma de cuidar de si e das outras pessoas frente a um poder que tenta eliminar qualquer sombra de desobediência. Não buscar na estrutura uma forma de se incluir, mas sim uma forma de destruir toda a estrutura. Isso é uma batalha que tem como palco cada indivíduo e seus semelhantes. Escalando até o conflito político ou físico entre as comunas e os agentes do Império pelos territórios que queremos proteger.

Tão inesperado quanto, o levante no Brasil também foi marcado por violência policial e o uso indiscriminado dessas armas ditas “não-letais” que matam e mutilam. Demonstrações de solidariedade e apoio entre os povos de ambos os países circulavam pela internet. É difícil pontuar exatamente como e em que medida um levante influenciou o outro, mas podemos traçar alguns paralelos mais óbvios, inclusive com movimentos anteriores.

A resistência no Parque Gezi e na Praça Taksim empregaram amplamente formas de organização e estruturas semelhantes ao do movimento Occupy nos EUA e de ocupações de praças na Europa, ou Ocupa Sampa de 2012. As formas de divulgação e organização política são frequentemente comparadas às da primavera árabe de 2011. A inegável influência imediata do levante turco sobre as lutas de junho no Brasil foram visíveis tanto com manifestantes compartilhando maneiras de neutralizar bombas de gás made in Brazil quanto nas frases e gritos de guerra adaptados que lá diziam não se tratar de “apenas por algumas árvores” mas sim uma revolta contra um governo autoritário e o próprio sistema democrático, aqui transformado na balela do “não são só 20 centavos”. O problema está na forma como isso foi importado para o Brasil, atendendo à pautas direitistas e da embriagada classe média branca. Isso levou às mobilizações o risco de perder totalmente o foco da luta contra o aumento da passagem para pautas genéricas anticorrupção, contra o PT e outras tradicionais causas inofensivas e úteis para a elite.

Na Turquia a ampliação do discurso que motivava os confrontos ampliava a luta contra um governo autoritário, contra a democracia representativa, contra as forças policiais em si, contra o projeto urbanístico e juntava as pessoas para ações em favor de ocupar a cidade e torná-la um espaço gerido pelo e para o povo; enquanto isso, no Brasil, radicais, anarquistas e autonomistas não conseguiram ampliar a crítica ou difundir de forma mais ampla uma radicalidade além do discurso do “acesso à cidade” e correram o risco de ver a luta se tornar um caldeirão de causas inviáveis a curto prazo para a classe média brincar de ativismo no Instagram e a direita espreitasse o momento para inserir suas pautas. A radicalidade ficou por conta da ação meio desorientada de Black Blocs, durante e depois de junho. Enquanto o MPL lutou para manter a pauta da luta contra o aumento diante das explosão de temas genéricos e sem avanços possíveis no curto prazo. O que estrategicamente foi interessante para barrar imediatamente o aumento, beneficiando os bolsos de todos nós e abrir espaços para as multidões mostrarem que podem atingir seus objetivos se aceitarem assumir alguns riscos.

Da Turquia ao Brasil, da Grécia ao Chile, de Chiapas a Rojava, o trabalho, a moradia, o espetáculo e a miséria de nossas vidas serão as mesmas sob o Capitalismo. Cabe a todas as pessoas que querem organizar a revolta que destrua essa forma de vida intercambiar as lições de luta e os riscos que envolvem tomar as ruas quando novos atores chegam todos ao mesmo tempo disputando pautas e a dianteira dos chamados. Do contrário, corremos riscos semelhantes aos de camaradas anarquistas na Ucrânia que viram as ruas sendo tomadas por grupos conservadores e fascistas, enfrentando o Estado e seu aparato com as mesmas ferramentas que grupos libertários e radicais empregam em suas lutas, visando objetivos que desde o início já eram muito duvidosos. Ou, como vimos após os atos da extrema-direita de 2015 no Brasil, ferramentas desenvolvidas para lutas radicais podem facilmente ser apropriadas por reacionários.

Chamados serão feitos. Cabe principalmente a quem responder fazê-lo com o poder e as intenções necessárias para ampliar a revolta para caber nela tudo o realmente importa.


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