“Chama a Polícia!” – Sobre a criminalização da ação direta e a legitimação das instituições.

A ocorrência de atos golpistas desde as eleições, com barricadas, bloqueios, muitas vezes descambando para a violência, levou muita gente e organizações de esquerda a pedir pela ação da polícia e da Justiça. Para muitas pessoas, Alexandre de Moraes virou um símbolo da resistência ao fascismo bolsonarista. Mas será que não ficou claro ainda que a polícia que prontamente dispersa e reprime manifestações de esquerda, vai relutar e procrastinar na hora de combater fascistas? Que um judiciário que agiu rapidamente para prender Lula, mesmo sem provas concretas, de forma a impedir que concorresse nas eleições de 2018 é o mesmo que permite que Jair Bolsonaro continue impune até hoje, apesar de todos crimes que claramente cometeu? Ainda não percebemos que legitimar e fortalecer essas instituições é um erro, pois elas sempre baterão mais forte em nós?

Para abordar essas questões, ajudamos (modestamente) o coletivo Antimidia a produzir um vídeo sobre polícia e a criminalização dos recentes protestos golpistas e passividade da esquerda hegemônica.

Historicamente, movimentos sociais de esquerda radical sempre criticaram as instituições que sustentam o regime que explora e oprime os povos deste território. Surgiram movimentos pedindo desmilitarização e mesmo o fim de polícias, denunciando que tribunais e prisões foram criados e sempre serviram aos interesses da elite política e financeira.

Mas durante o governo Jair Bolsonaro esse debate foi deixado um pouco de lago. Com as sucessivas ameaças fascistas às chamadas “instituições democráticas”, golpismo e autoritarismo, boa parte da esquerda parou de criticar as instituições repressivas do Estado e passou a defendê-las com unhas e dentes.

Se por um lado, a aliança de Lula com seus antigos opositores, levou a esquerda institucional e toda a política partidária ainda mais ao centro e à direita, do outro,  ativistas, movimentos sociais e mídias de esquerda reproduzem e fortalecem um discurso reacionário que reforça a legitimidade do Estado.

Quem até então pedia por repressão e respeito às leis eram as forças reacionárias e elites, que se beneficiam da ordem atual das coisas.
É preciso deixar claro que o aquilo que combatemos é o projeto fascista, que busca a manutenção e avanço de um projeto conservador e autoritário, que extermina e explora os povos deste território para o benefício de uma elite branca, rica e patriarcal.

Alguém nos chamou?

Barricadas, bloqueios, destruição de propriedade privada e confronto com a  polícia não são um problema em si. São táticas valiosas, historicamente usadas por movimentos sociais para resistir aos avanços do capital e do Estado e para lutar por uma vida digna. Não podemos negar que a forma como os fascistas utilizam essas táticas é diferente. Afinal, são fascistas. Não se importam com a vida humana e não hesitam em bloquear ambulâncias e pessoas que buscam atendimento médico ou outros serviços essenciais. E, ao contrário dos movimentos sociais, que buscam atacar estruturas de opressão, os apoiadores de Bolsonaro atacam violentamente qualquer pessoa que não demonstre apoio explícito a seu projeto autoritário e conservador. Chegando ao ponto de torturar, linchar e, em casos extremos, matar pessoas que discordam de sua visão política.

Dar carta branca para a polícia reprimir bloqueios, barricadas e outras formas de ação direta, mesmo que barre os movimentos fascistas é reforçar e legitimar instrumentos que baterão ainda mais forte sobre nós. Por mais duras que sejam as leis, a polícia e os tribunais sempre hesitarão e serão mais comedidas na hora de reprimir e punir fascistas do que ao reprimir as pessoas pobres, pretas, indígenas, periféricas, dissidentes de gênero. Basta olhar para exemplos de como a polícia reluta e têm dificuldade para remover os bloqueios, levando semanas para cumprir ordens judiciais. Em como o judiciário, mesmo quando tenta impor limites a Bolsonaro, ainda não agiu em relação aos diversos crimes cometidos por ele.

É bom lembrar que Alexandre de Moraes, hoje ministro do STF, símbolo das instituições democráticas frente ao fascismo de Bolsonaro, foi secretário de segurança pública durante o governo de Geraldo Alckmin no estado de São Paulo, e sua gestão foi marcada por brutal repressão a movimentos sociais e protestos em 2013 e 2014. Ele nunca esteve do nosso lado.

Quem são esses seus amigos?

Pior que uma ilusão, é uma armadilha entregarmos nossa segurança e nosso futuro a instituições que foram criadas para nos controlar e reprimir, enquanto protegem aqueles que nos massacram. A polícia pode até desfazer momentaneamente os bloqueios, punir alguns dos empresários que financiam a tentativa de golpe de Estado. Mas ela nunca vai acabar com o movimento fascista, pois já deixou bem claro que é parte dele. É óbvio que não devemos ficar imóveis, assistindo o fascismo ocupar as ruas e ameaçar nossa existência. Precisamos criar e fortalecer nossas próprias organizações para garantir nossa segurança. Pois ninguém fará isso por nós.

O bolsonarismo deu vida nova à violência de extrema-direita contra pessoas e serviços essenciais, algo que não víamos de forma organizada desde o período da Ditadura Militar. Nos últimos cinco anos a esquerda tem deixado para as instituições resolverem o problema, mas ele só se tornou mais violento e radical. Entregar nosso poder de ação nas mãos de políticos profissionais e tribunais é recuar. É permitir que a direita avance nas ruas e nas instituições. É urgente reocupar as ruas. Defender nossos territórios. E colocar as forças reacionárias na defensiva.

Nossa única opção.

Violência, democracia e segurança nas eleições de 2022 no Brasil

Dando continuidade às análises sobre os recentes movimentos de rua da extrema-direita brasileira após as eleições presidenciais, sua relação direta com o recuo da esquerda nas ruas e seus possíveis desdobramentos, trazemos um artigo inédito do professor e militante anarquista, Acácio Augusto sobre o uso da violência por movimentos proto-fascistas e pela democracia securitária.

Veja os artigos anteriores aqui e aqui no nosso blog e também traduzido para outros idiomas no portal internacional CrimethInc.

Violência, democracia e segurança nas eleições de 2022 no Brasil

por Acácio Augusto1

No dia 13 de agosto de 2022, no bairro do Munhoz, na divisa de Osasco com Barueri, num ato em memória dos 7 anos da Chacina de Osasco e Barueri, ocorrida em 2015, primeiro ano do quarto mandato Geraldo Alckmin, então à frente do governo do estado, Zilda Maria de Paula, mãe de Fernando, executado pela polícia, relata as dificuldades enfrentadas no parto, sanadas pelos cuidados do Hospital das Clínicas, na região central da cidade. Em seguida, relata emocionada como foi a noite em que recebeu a notícia de que seu filho foi executado, e conclui: “o mesmo Estado que garantiu o nascimento do meu filho, me tirou ele por meio de uma execução, pouco mais de 30 anos depois”. Nunca havia ouvido uma definição tão precisa e sintética de biopolítica: um relato ordinário e brutal de como funciona o faz viver e deixar morrer elaborado por Michel Foucault.

Essa violência ordinária e fatal, que atingiu Fernando há 7 anos, é apenas um episódio, dentre inúmeros que qualquer pessoa pode enumerar, do que quero apresentar neste texto: a violência, na era moderna, é uma categoria eminentemente estatal e está intimamente atrelada à política e à democracia.

Vejamos uma das definições mais conhecidas e aceitas de Estado moderno nas Ciências Sociais, dada por Max Weber: “o Estado moderno é um agrupamento de dominação que apresenta caráter institucional e que procurou (com êxito) monopolizar, nos limites de um território, a violência física legítima como instrumento de domínio e que, tendo esse objetivo, reuniu nas mãos dos dirigentes os meios materiais de gestão. Equivale dizer que o Estado moderno expropriou todos os funcionários que, segundo o princípio dos ‘estados’ disponham outrora, por direito próprio, de meios de gestão, substituindo-se a tais funcionários, inclusive no topo da hierarquia”2. O Estado não apenas se define pelo emprego e gestão da violência, como concentra os meios materiais para exercê-la e cria uma classe de pessoas que tem como função distribuir e regular essa violência. Não discussão sobre violência que não deva passar, primeiro, por essa atribuição específica do Estado, tornando, inclusive, a expressão “violência de Estado” um pleonasmo.

Seguir nesse questionamento sobre a política, o Estado e a violência, implica se colocar, como fez Mbembe, uma questão fundamental de nossa época: “saber se a política pode ser outra coisa que não uma atividade relacionada ao Estado e na qual o Estado é utilizado para garantir os privilégios de uma minoria”3. Um início de reposta é indicado pelo próprio politólogo camaronês, radicado na África do Sul, entre os anarquistas, que forma os únicos a se oporem de forma radical e inegociável ao Estado, à política e à democracia no Ocidente: “o anarquismo, sob suas diferentes roupagens, apresenta-se como uma superação da democracia, em especial de sua vertente parlamentar. (…) Seu projeto era acabar com toda dominação política, sendo a democracia parlamentar uma de suas modalidades. Para Mikhail Bakunin, por exemplo, a superação da democracia burguesa passa pela superação do Estado, instituição cujo a essência é buscar acima de tudo a própria preservação e a das classes que, tendo se assenhorado dele, ora o colonizam. A superação do Estado inaugura o advento da comuna, figura por excelência da auto-organização do social, muito mais do que mera entidade econômica ou política”4.

Após localizar a única oposição radical à democracia estatal em território europeu, Mbembe pondera que “essas críticas à democracia, articuladas do ponto de vista das classes sociais que originalmente sofreram sua brutalidade no próprio ocidente, são relativamente conhecidas”. No entanto, “o triunfo da democracia moderna no Ocidente coincidiu com o período da sua história durante o qual essa região do mundo esteve implicada em um duplo movimento de consolidação interna e de expansão ultramarina. A história da democracia moderna é, no fundo, uma história de duas faces, ou melhor, de dois corpos: o corpo solar, de um lado, e o corpo noturno, de outro. O império colonial e o Estado escravagista – e, mais precisamente, a plantation e a colônia penal – constituem os maiores emblemas desse corpo noturno”5. Assim, não apenas o Estado moderno se funda e se caracteriza pela concentração do exercício da violência, os meios para geri-la e a criação de uma classe especial de funcionários para exercê-la, como sua versão civilizada e democrática se assenta na distribuição da violência para além das suas fronteiras e por um efeito boomerang, como definiu Foucault, que internaliza essa violência colonial por meio do arquipélago carcerário que produz uma colonização interna contra os que não se enquadravam no mundo civilizado racional-legal6.

Se considerarmos que os anos 1990 saudou o triunfo das democracias liberais por toda parte como única via possível, tendo como modelo a “democracia na américa”7, o planeta, hoje, é um só corpo noturno. Vejamos como anda essa democracia no Brasil, saindo neste momento, novembro de 2022, de um processo eleitoral democrático. Como essa violência ordinária e letal se inscreve, hoje, no próprio processo racional de disputa, distribuindo violências de toda sorte? Independente do monopólio que se coloca como legítimo e institucionalizado, há uma incitação entre os governados a serem partícipes dessa violência por meio dos ativismos, disputando, de forma legal e ilegal, o controle dos meios para exercê-la.

Terminada as eleições democráticas, que nada mais é que um método de seleção de líderes que imprime legitimidade a forma racional-legal de dominação burocrática, a crise segue como o modo de governo e, em meio as incertezas, todos clamam por segurança: jurídica, institucional, social, alimentar, ambiental.

Soma-se a isso, a intensidade comunicacional que imprime uma urgência em cada sujeito com o imperativo de que todos devem participar, estarem ativos, para defender o seu modo de ser governado com segurança e paz sobre si e sobre os outros. Apesar das turbulências e insatisfações que seguirão, o processo reafirma a resiliência das instituições democráticas, com suas correções jurídicas sempre a postos, e a vitória da moderação monitorada pelas polícias e suas violências específicas.

Neste momento, pode-se até se dizer que a eleição impediu o avanço institucional do neofascismo, mas recua-se na capacidade de ir além da democracia e do capitalismo, pois todos estão crentes que é preciso defender a legalidade e a Constituição para barrar o que classificam como golpismo (uma palavra bastante desgastada), assim como estar atentos aos ativismos jurídicos e proteções legais. Dizem que o momento é delicado e, por isso, é preciso esperar para que o quadro institucional se (re)componha. Em uma palavra: o imperativo da ordem está posto, independente dos desdobramentos que se possa ter de um processo eleitoral que não finda com o anúncio do resultado das urnas.

Uma das propaladas urgências é desmantelar a dita “politização das polícias”, como se estas já não fossem corporações com claras orientações políticas, o meio privilegiado para o exercício da violência de Estado. Outra é conter a turba alucinada de seguidores de Bolsonaro que clamam por intervenção federal (golpe) em espetáculos públicos de delírio coletivo que mesmo ridicularizados por uma parte das pessoas nas redes sociais digitais, mostra a capacidade de mobilização ativista da extrema-direita no Brasil que perdeu a eleição, mas segue com poder social. A imprensa e as autoridades estatais chamam esses adoradores da ordem (e das ordens do capitão) de baderneiros, insurrectos, revoltosos… não são nada disso, são apenas golpistas mesmo; saudosos de momentos tenebrosos da história do Brasil, especialmente da ditadura civil-militar que vigorou entre 1964 e 1985.

Autoridades e defensores da ordem democrática querem, com essa denominação de vândalos para designar o golpistas, matar dois coelhos numa cajadada só, pois, de um lado, criam aversão a qualquer forma de contestação da ordem reforçando um clamor que se faz em nome da legalidade da ordem constitucional e da defesa da democracia; de outro lado, isolam essas manifestações que, ainda que sejam numerosas, em algumas cidades são multitudinárias, não ganhem tração fora da seita de zumbis hipnotizada pelos grupos de whatsapp e telegram.

Mas não se deve subestimar o que se passa no Brasil.

Primeiro, porque apesar das formas delirantes de leitura da realidade, a maioria das pessoas que estão nas ruas por insatisfação com o resultado das eleições e pedindo intervenção federal são abertamente conservadoras, fanaticamente religiosas e, em muitos casos, declaradamente fascistas e neonazistas. Suas manifestações são apoiadas e financiadas por muitos empresários que vão desde o agronegócio e empresas de segurança privada, passando por donos de grandes lojas de comércio no varejo até pequenos comerciantes locais e donos de postos de gasolina ou concessionarias de carros8.

Segundo, porque mesmo que não logrem seu objetivo maior, essas manifestações conferem lastro social para a atuação no sistema eleitoral de uma espécie de partido informal composto por militares da reserva, policiais e ex-policiais que emplacam pautas conservadoras e reforçam os discursos de ordem e segurança na população em geral. Esse partido informal dos militares ganhou o Palácio dos Bandeirantes, o governo do estado de São Paulo, que possui o maior orçamento público do país, com um ex-chefe da seção técnica da Companhia de Engenharia do Brasil da MINUSTAH, formado na Academia Militar dos Agulhas Negras9. Além desse ex Capacete Azul da ONU, que trabalhou no governo Dilma como engenheiro interessado em questões de logística e transporte, militares e policiais ganharam eleições para Senador, Deputado e Governador em todo país, além dos mais de seis mil militares que compunham o governo derrotado em cargos de confiança, o que significa que eles estarão na transição para o governo eleito e terão força de barganha para negociar vantagens e assegurar pautas que lhes interessam. Os militares da ativa produziram um relatório, a pedido do Ministério da Defesa, sobre as urnas eletrônicas que está sendo usado por essas mobilizações para seguir contestando o resultado das eleições. Muitos desses ativistas dizem se escorar no artigo 142 da Constituição Federal que, segundo as interpretações de juristas simpáticos ao movimento, confere às Forças Armadas um papel de poder moderador da democracia brasileira. Esse relatório consegue alimentar a sanha golpista pelo absurdo de colocar as Forças Armadas como entidade legitimadora das questões técnicas que envolvem as urnas eletrônicas e pela ambiguidade de suas conclusões, já que não reconhece ou localiza objetivamente uma fraude eletrônica, mas não descarta a possibilidade de isso ter acontecido10.

Em termos institucionais, esses militares que viraram políticos e o bolsonarismo eleitoral de ocasião (candidatos que se elegeram na onda de popularidade do presidente derrotado) devem ser fagocitados pelo jogo de alianças no Congresso Nacional. Mas o bolsonarismo ativista, esses que estão nas ruas contestando a eleição e que agora desenvolveram um gosto por ocupar o governo, porque desfrutaram dele por 4 anos, seguem com uma rede mobilizada e podem, no mínimo, pautar questões e emplacar reivindicações independente de quem ocupe a representação no executivo. Seu partido digital, os inúmeros grupos de rede de mensagens, é forte, atuante, tem direção e financiamento. É preciso reduzir imediatamente a importância das redes sociais digitais em pautar o debate social e político, não há outra saída. O maior erro será pensar que ao evitar o que seria um golpe clássico na institucionalidade as coisas estariam resolvidas. Pois o neofascismo ao estilo brasileiro ganhou corpo e se espalhou por toda sociedade, com grande adesão de sujeitos mais ou menos radicalizados e prontos a atender às convocações como a que foi feita após o anúncio do resultado das urnas.

Mais do que nunca, após uma Pandemia e após 4 anos de governo Bolsonaro, é urgente criar, retomar e fortalecer as ações de movimentos sociais nas ruas, nas ocupações, nos parques; se desvencilhar das pretensões ativistas de construir hegemonia opinativa e se concentrar em ações locais, nos bairros, nas zonas rurais e em qualquer ação seja adicta da rede de comunicação e dos aplicativos de mensagens. O meio é a mensagem, já disseram. Isso é decisivo para quem se interessam por uma transformação radical e para não ficar na mão da elite política, pois uma parte dela está com os fascistas e ao outra parte (inclusive a esquerda) aposta todas as fichas na capacidade de moderação das instituições e da Constituição Federal 1988. Se não houver uma radicalização das ações em nível basal, alguém mais palatável, como o militar que governará São Paulo nos próximos 4 anos, pode voltar para cumprir o projeto dos militares que é, resumidamente, a não aceitação do fim da ditadura instalada por um golpe em 1964 e a abertura democrática em 1985. Essa não aceitação não significa exatamente uma volta ao passado, mas a manutenção do Estado e de seus meios de gestão para garantir os privilégios de uma minoria, só que desta vez com uma institucionalidade democrática, com a devida legitimação racional-legal do processo de dominação ordinário.

Em sentido mais amplo, o que se chama de bolsonarismo no Brasil é uma versão de um processo que vem acontecendo em todo planeta liderado pela alt-right: uma profunda transformação na concepção contemporânea de liberdade. Se na sociedade moderna, nascida das revoluções burguesas do final do século 18, liberdade era sinônimo de segurança da propriedade, garantida pela polícia de Estado e, portanto, livre era o burguês, o proprietário, e não cidadão genérico da lei na Constituição. No século 21, há uma associação subjetiva entre liberdade e segurança: as pessoas buscam paz e, para isso, estão dispostas a matar e morrer. Ser livre, nesta concepção, é estar seguro, estar a salvo junto à sua família, estar segurado e securitizado.

Assim se explica porque, apesar de toda violência e conservadorismo nos costumes e apesar das manifestações neonazistas, todas as pessoas que estão nas ruas pedindo intervenção federal no Brasil se dizem democráticas, pois elas entendem que precisam ser livres do governo de Estado (que elas vêm próximo do comunismo) para controlar a si e aos outros em nome da segurança de suas famílias, livre não é mais só o burguês proprietário, livre é o cidadão-polícia11, capaz de assegurar violentamente sua liberdade particular. Em tal conformação político-subjetiva, apesar das investidas autocráticas que sujeitos como Bolsonaro ou Orban encarnam, derivadas de uma concepção majoritarista de democracia (quem leva mais votos pode tudo), não há constituição de regimes autoritários e/ou ditatoriais, mas democracias que vivem em estado permanente de crise, pois não produzem mais a legitimidade da representação do conjunto da sociedade nas instituições pelo procedimento racional-legal das eleições. Isso explica por que as eleições, seja no Brasil, seja nos EUA, não terminam quando o resultado é anunciado.

Essas democracias buscam moderar a competição odiosa entre os jogadores no plano da representação, por isso são altamente judicializadas, dando grande protagonismo político aos juízes, sejam de piso ou de suprema corte. As forças de representação, que há muito tempo já não dependem apenas dos partidos formais, disputam o controle dos governos segundo a capacidade de oferecer maior segurança e seguridade aos cidadãos, que seguem suas vidas em jogo de eliminação mútua. Assim, as chamadas crises políticas ou a temida ameaça às democracias se estende ao infinito, provocando o acionamento constante de forças securitárias que, ao fim e ao cabo, são as instituições efetivamente garantem a ordem, na maior parte das vezes de maneira violenta e mortífera.

No Brasil, esse esgotamento da capacidade do sistema de representação democrática produzir consenso foi exposto pelas revoltas de 2013, época que o país era governado por um governo de esquerda. Naquele momento, muitos que hoje dizem combater o fascismo ignoraram ou mesmo reprimiram e detrataram as manifestações populares, apostando, como agora, na força mordedora das instituições democráticas. Essa insatisfação, portanto, seria drenada para algum lugar e foi fagocitada pelas redes do ativismo digital de extrema direita. Junho de 2013 sofreu uma dupla repressão: o acionamento das forças de segurança e do aparato judiciário do governo de esquerda da época e o assédio midiático-empresarial de que o esgotamento da capacidade de representação da democracia era uma ausência de ordem e um estado de corrupção generalizado. O problema que era político-subjetivo, teve encaminhamento jurídico e securitário. Deu no que deu. Hoje, alguns intelectuais da extrema-direita no Brasil já apontam para atuais manifestações como uma possível repetição de 2013 que abalaria a reposição da dita normalidade democrática, mas se esquecem que junho de 2013 estourou contra a repressão policial e não ao lado da polícia, como ocorre hoje.

É pouco provável que ocorra um golpe no Brasil, o que estamos vivendo é consolidação e legitimação pelo sistema de representação democrática de forças de extrema-direita com capacidade de mobilização social e traços neonazistas. Essa força cumprirá o papel de manter para o próximo governo eleito a crise como modo de governo, oferecendo, sempre que necessário, o motivo para o acionamento das forças de segurança e das exceções jurídicas. A tão esperada pacificação pelas urnas, conclamada pelas forças progressistas, não virá, assim como não veio com Biden nos EUA.

Por isso, seria mais correto dizer que o empreendedorismo de si e o ativismo político da extrema-direita, crescente no planeta após a crise de 2008, não é exatamente a volta do fascismo, nem o aprofundamento do neoliberalismo de Margareth Thatcher e Ronald Regan, mas suas recentes e recorrentes vitórias eleitorais e capacidade de mobilização social em todo planeta conformam o que podemos chamar de democracias securitárias12. Uma noção que não designa uma classificação de regime político, mas que nomeia a forma mesmo das democracias hoje, que move a representação política, à direita e à esquerda, pela busca por segurança e seguridade, e se realiza como a trindade do sujeito democrático hoje: a um só tempo ativista político, empreendedor de si e cidadão-polícia.

Não há a menor dúvida que apenas a mobilização social realmente anti-sistêmica (antiestatal, anticapitalista e antipolítica) e fora das redes sociais digitais, é capaz de retirar não só o Brasil, mas todos o planeta, desse impasse que tem feito da extrema-direita uma força eleitoral crescente e um movimento capaz de encher as ruas em nome da ordem.


Notas:

1 Professor no Departamento de Relações Internacionais da UNIFESP, onde coordena do LASInTec (Laboratório de Análise em Segurança Interacional de Tecnologias de Monitoramento), pesquisador no Nu-Sol (Núcleo de Sociabilidade Libertária da PUC-SP) e professor no Programa de Pós-Graduação em Psicologia Institucional da UFES. Contato acacio.augusto@unifesp.br

2 Max Weber. “A política como vocação” In Ciência e política, duas vocações. Tradução de Leonidas Hegenberg e Octany Silveira da Mota. São Paulo: Cultrix, 1968, p. 62.

3 Achille Mbembe. Políticas da inimizade. Tradução de Sebastião Nascimento. São Paulo: n-1, 2020, p. 44.

4 Idem, p. 44.

5 Idem, ibidem, pp. 45-46.

6 Michel Foucault. Em defesa da sociedade. Tradução Maria Ermantina Galvão. São Paulo: Martins Fontes, 2002.

7 Sobre o “imperialismo do universal estadunidense” e evidente referência ao clássico de Tocqueville, “A democracia na América”, ver Pierre Bourdieu. “Dois imperialismos do universal” In Daniel Lins e Loïc Wacquant. Repensar os Estados Unidos: por uma sociologia do superpoder. Campinas: Papirus, 2003, pp. 13-19.

8 Sobre esse financiamento, ver Arthur Stabile. “Deputado, políticos e empresários: quem são os identificados por envolvimento com bloqueios golpistas”, in G1 Notícias, 17/11/2022. Disponível em https://g1.globo.com/politica/noticia/2022/11/17/deputado-politicos-e-empresarios-quem-sao-os-identificados-por-envolvimento-com-bloqueios-golpistas.ghtml

9 Sobre a trajetória de Tarcísio de Freitas, de militar e burocrata de carreira à principal sucesso eleitoral do bolsonarismo no Brasil, ver Ana Clara Costa. “DE ALIADO PETISTA A BOLSONARISTA RAIZ”, in Revista Piauí, 30/09/2022. Disponível em https://piaui.folha.uol.com.br/eleicoes-2022/de-aliado-petista-a-bolsonarista-raiz/

10 Sobre o relatório e sua ambiguidade não conclusiva, ver Murilo Fagundes. “Defesa não vê fraude em eleição, mas sugere melhorias ao TSE” In Poder 360, 09/11/2022. Disponível em: https://www.poder360.com.br/governo/defesa-nao-ve-fraude-em-eleicao-mas-sugere-melhorias-ao-tse/

11 Sobre essa figura do cidadão-polícia como forma subjetiva das sociedades de controle, ver Acácio Augusto. Política e polícia: cuidados, controles e penalizações de jovens. Rio de Janeiro: Lamparina, 2013.

12 Sobre isso, ver as pesquisas do LASInTec, em https://lasintec.milharal.org/ especialmente o Boletim (Anti)Segurança, nº 26.

ISTO NÃO É UMA INSURREIÇÃO POPULAR – Breves notas pós-eleitorais

Bolsonaristas bloqueiam estrada em Santa Catarina

Mal terminou o processo eleitoral mais acirrado da história do país, com uma vitória apertada, e por meio de uma frente ampla, de Luiz Inácio Lula da Silva, por apenas 1,8% sobre Jair Bolsonaro, e protestos de apoiadores da extrema-direita, certamente organizados e financiados por forças empresariais e do agronegócio, tomaram as ruas de várias cidades do país. Primeiramente, com bloqueios de estradas e, sucessivamente, com acampamentos em frente aos quartéis, pedindo intervenção militar ao som do hino nacional, tais bolsonaristas, fomentados por uma enxurrada de notícias fakes e muitas vezes insuflados pelo fanatismo religioso, questionam o resultado das urnas.

Não é de agora no Brasil que a nossa variante pentecostal e miliciana da alt-right norte-americana se traveste de antissistêmica para surfar na onda da falência representacional. Desde a ascensão do bolsonarismo, vimos o sistema tomando vida própria se apresentar sob a máscara de uma alternativa que seria diferente e fora da democracia representativa. Vimos, por exemplo, um político com vários mandatos como deputado se eleger como sendo “o novo na política”. Vimos caminhoneiros trancar estradas com barricadas pedindo golpe militar (sim, não é a primeira vez1), e assistimos protestos contra o direito à livre manifestação, como se a contradição evidente não fosse um absurdo precisamente pela compreensão de que vivemos uma ordem sustentada por sucessivos e continuados estados de suspensão da ordem dita normal, e pela manutenção de um estado permanente de emergência.

Mas é claro que nem mesmo diante disso talvez imaginássemos a quantidade de mobilização que temos diante de nossos olhos por mais de 15 dias continuados, com milhares fazendo saudações nazistas, catársis coletivas nas ruas, guerra social em cada esquina, construções de realidades paralelas. Já faz tempo que os anarquistas apontam para o perigo de se confiar numa política feita apenas pelas instituições e com foco no processo eleitoral. Mas a falência da representação não se cura com uma vitória nas urnas, o jogo de forças não acaba com o final de uma apuração apertada, na qual um dos lados reúne multiplicidades discordantes (cuja única unidade parece ser a exclusão do bolsonarismo) contra um projeto político delimitado e crescente por dentro e por fora das instituições.

Quando Bolsonaro venceu as eleições em 2018, alguns setores da esquerda apontaram para a necessidade de se retomar as ruas, ocupar os espaços de construção de base, fazer a política que de fato pode transformar a sociedade, mas os setores majoritários da esquerda institucional preferiram apostar as fichas apenas no processo eleitoral, na negociação com os de cima, que não poderia ser atrapalhada por uma cidade insurgente. O discurso era: não é a hora, vamos ganhar em 2022, deixem ele sangrar. E todos nós sangramos. E o risco sempre foi, como ainda é: ganhar e não se levar. Ou ainda: até ganhar, mas em péssimas circunstâncias. Pois eles perderam a presidência, mas se consolidam como maior projeto político unificado no país. E se ganhou sim, não queremos dizer aqui que a derrota de Bolsonaro não significa nada (momento faz o L e agradece ao nordeste2). Mas o ponto é: isso não é suficiente, desde que não apenas se ganhou perdendo-se muito do caráter à esquerda, mas este caráter continuará tendo que ser negociado cada vez mais para se manter a governabilidade durante os próximos anos.

Diante de uma direita que não recua, nem mesmo com a derrota eleitoral, nossa resposta não pode ser recuar cada vez mais, inclusive de nossos valores mais importantes. O capital político que agora ocupa as ruas é capaz de barganhar recuos e vantagens muito mais até do que os próprios cargos que eles ocupam no congresso. Sobretudo se não houverem outras forças políticas dispostas a disputar. Para além da possibilidade real de um golpe institucional, o que se vê é uma amostra do que serão os próximos anos, pois se alguém entendeu a política para além do voto e as consequências da crise de representação, certamente não foi a esquerda institucional. Pouquíssimas têm sido até agora as respostas nas ruas por parte da esquerda. E o que houve como, por exemplo, alguns casos de desbloqueios de vias, partiram de coletivos autônomos antifascistas e torcidas organizadas, e não da esquerda institucional.

Antifascistas fazem bloqueio dia 24 julho de 2021 em resposta à carreatas antifacistas em Belo Horizonte.

O que se esperava com a vitória de Lula seria um novo pacto social, equivalente a uma recomposição do passado idílico (nunca existente realmente) da representação perdida. Alguns diziam, mesmo sem acreditarem totalmente, na comemoração do dia da vitória, que as ruas estavam sendo retomadas finalmente, desde que “aqueles vândalos terríveis de 2013” haviam colocado pra jogo o sistema vigente. Tantos divergentes teriam sido finalmente unidos, reunificados, na figura paternalista e salvadora de Lula, o único capaz de unificar nossa sociedade e suas contradições. O símbolo da reconciliação social. Porém, nem 24 horas depois, já era possível ver as ruas queimando, e o quanto isso era patentemente falso: não haverá novo pacto social, pois o fascismo uma vez saído do armário (e não precisamos aqui lembrar que os liberais e social-democratas ajudaram a abrir a porta em grande medida pra conter a insurreição popular), não pretende voltar para lá tão facilmente. E, diante disso, nunca se viu tanto uma esquerda defensora da suposta ordem e da constitucionalidade.

Tornar-se um fake daquilo que poderia combatê-lo – puxando greves, fechando estradas com barricadas, ocupando os espaços públicos – permite ao mesmo tempo tomar para si um lugar vazio, deixado pela ausência de um projeto de ruptura revolucionária à esquerda, bem como mobilizar as forças da ordem e os discursos (inclusive da própria esquerda) contrariamente a priori ao que poderia vir ser em qualquer momento uma insurreição popular. A quem interessa uma direita que é um fake da esquerda? A todo aquele que pretende enterrar para sempre qualquer possibilidade de modificação profunda da sociedade.

Deveria haver uma boa razão para os métodos da direita não serem os da esquerda3, se em algum sentido acreditamos que os meios não se separam dos fins. Parar a produção, atrapalhar a circulação de mercadorias, do ponto de vista do capital, seria barrar a economia, se colocar diametralmente contra o deus-mercado, aquele que estaria verdadeiramente acima de todos. Mas a questão é que, se por um lado, o poder é logístico, a crise também pode ser um muito bom negócio, além de um modo de governo. E, mais que isso: é tudo fake – a política na falência da representação se faz por símbolos invertidos e significantes sem significados. “No mundo realmente invertido, o verdadeiro é um momento do falso.4

Bolsonaristas queimam caminhão na BR-364, novembro, em Ariquemes (RO).

Dito de maneira mais precisa: uma direita que se traveste de um fake da esquerda, rouba-lhe a potência no mesmo movimento que a força a combater qualquer discurso revolucionário de antemão. É assim que se é capaz de fazer até com que os setores mais afeitos a uma transformação social profunda defendam o Estado e a ordem constitucional. Como se este modo de organização não fomentasse a própria crise que por agora o sustenta. É assim que o poste pode mijar no cachorro: que todos peçam mais polícia, repressão, que se volte à normalidade! “Manifestações legítimas, ok, mas todos concordamos que o direito de ir e vir é sagrado”, disse o vice de Lula , com seu grande histórico de repressão aos movimentos sociais nas costas e um sorriso amarelo no rosto. Nunca é demais lembrar: a normalidade mesma gerou as condições para que a extrema direita tomasse as proporções que toma hoje.

E é assim que vemos uma manifestação com a participação direta da polícia e pedindo intervenção militar ser chamada de desordeira, baderneira, ou mesmo de insurrecional. E é assim que vemos um líder autoritário partidário do golpe militar e do fim dos direitos democráticos dizer que ‘todo poder emana do povo’5. Melhor do que fabricar inimigos para gerar as medidas que visavam combatê-los, estratégia já largamente utilizadas pelos estados neoliberais desde o final da guerra fria, é tornar-se um pouco o próprio inimigo que se visava combater, o que significa ocupar o seu lugar ainda que de maneira totalmente inócua e vazia.

E, diante disso tudo, não é ainda surpreendente dizermos novamente: não é momento! “Tomar as ruas agora pode ser a desculpa para o golpe”, e quantos golpes não tomamos desde que esta frase vem sendo repetida? Tomar as ruas é força política e é formador também. Por que quando o fascismo ocupa as instituições, nós nos voltamos para a política institucional, mas quando eles ocupam também (e talvez sobretudo) as ruas, nós ainda vamos nos voltar apenas às instituições?! Estas se mostram insuficientes e voltadas à manutenção de uma forma de governo que favorece o esfacelamento de qualquer valor à esquerda. Sair dos espaços de construção coletiva deixou à esquerda não apenas uma direita que é um fake de nós mesmos, mas também nos transformou em fakes da direita. Desde a pandemia, todos os espaços com plenárias, espaços de construção política coletiva públicos, até mesmo as universidades, foram sistematicamente esvaziados de nossas presenças. Enquanto as igrejas pentecostais seguiram se multiplicando. Para o bem ou para o mal, nós não somos bons em ser fakes. Nossa força é a multiplicidade, é o incontrolável e o não negociável.

As ruas são nossas, vamos retomá-las!


Notas:

1 A greve dos caminhoneiros em 2018 foi um movimento autônomo e múltiplo bastante diverso do que vemos nos protestos atuais pós-processo eleitoral, que nos parece certamente em sua maioria empresarial, entretanto, já naquele momento haviam setores da extrema direita envolvidos e pedindo intervenção militar.

2 Frase utilizada nas comemorações da vitória eleitoral de Lula como forma de irritar bolsonaristas insatisfeitos com o resultado.

3 Frase dita por Bolsonaro em seu primeiro discurso público após a derrota nas urnas.

4 DEBORD, Guy. A Sociedade do Espetáculo. Tradução Estela dos Santos Abreu. Rio de janeiro: Contraponto, 2017, p. 40.

Esquerda Eleitoral, Ações Diretas Fascistas e Resistência Antifascista As Eleições Brasileiras de 2022

As eleições de 2022 no Brasil colocaram em confronto o nacionalismo autoritário de Jair Bolsonaro ao esquerdismo institucional, Luiz Inácio Lula da Silva do PT. Cada uma dessas estratégias rivais de governança se apresentava como a única salvação possível para a democracia. Toda a campanha foi marcada por atos de violência fascista, e não apenas de eleitores: nas semanas finais, parlamentares aliados a Bolsonaro trocaram tiros com policiais e perseguiram adversários nas ruas com armas na mão.

Para dar um panorama sobre o fosso em que estamos e os possíveis desdobramentos futuros, apresentamos essa breve análise escrita em conjunto com camaradas do coletivo CrimethInc. sobre os protestos ao fim das eleições de 2022.

As eleições de 2022 colocaram em confronto o nacionalismo autoritário de Jair Bolsonaro ao esquerdismo institucional, Luiz Inácio Lula da Silva do PT. Cada uma dessas estratégias rivais de governança se apresentava como a única salvação possível para a democracia. Toda a campanha foi marcada por atos de violência fascista, e não apenas de eleitores: nas semanas finais, parlamentares aliados a Bolsonaro trocaram tiros com policiais e perseguiram adversários nas ruas com armas na mão.

Dia 30 de outubro, aconteceu o segundo turno da eleição para determinar o presidente e os governadores, e Bolsonaro perdeu para o ex-presidente Lula. Mas Lula venceu por apenas 1,8%, preparando o terreno para o conflito que continuará dividindo o Brasil, assim como as eleições de 2020 nos Estados Unidos não marcaram o fim da polarização política.

Após o resultado ser divulgado na noite de domingo, protestos de apoiadores do atual presidente de extrema-direita começaram pelas ruas nas cidades e bloqueando estradas do país. A esquerda institucional e seus movimentos de base se mantiveram recuados e, mais uma vez, coube a antifascistas, torcidas organizadas e moradores das periferias partir para a ação e começar ações de desbloqueio das vias. Essa pode ser uma amostra dos impasses e conflitos que veremos nos próximos anos de governo petista e de reorganização da extrema-direita.

Um problema global.

Não se Derrotada o Fascismo nas Urnas

As primeiras horas após a eleição deixaram claro que, longe de ser uma “derrota do fascismo”, o resultado nas urnas mostra que o projeto bolsonarista, abertamente autoritário, misógino, racista e que trabalhou para agravar a pandemia que matou mais de 700 mil pessoas, ainda tem apoio de metade do eleitorado – quase 60 milhões de pessoas. Parte considerável desse grupo está disposta a lutar por ele, nunca parando de se mobilizar e ocupar as ruas. Além disso, os aliados de Bolsonaro que conquistaram o governo de 13 estados e uma grande bancada nos parlamento darão continuidade à sua agenda criada pelos militares que o colocaram no poder junto de setores conservadores da burguesia, do cristianismo fundamentalista e dentro das forças de segurança.

Naquela noite, momentos após o resultado da eleição ser divulgado, um bolsonarista armado matou duas pessoas e baleou várias de uma mesma família que celebrava a vitória de Lula em Belo Horizonte. Na madrugada de segunda-feira, já haviam bloqueios em 221 pontos em estradas na metade dos estados do país, e em dois dias, 26 dos 27 estados contavam com estradas bloqueadas por bolsonaristas, chegando a um ápice de quase 900 pontos com bloqueios ou manifestações pelo país.

Os bloqueios no Brasil não surgiram do nada. Eles atendem à uma mobilização e radicalização reproduzida pelo presidente e seus apoiadores desde a vitória em 2018. Nos últimos anos, houveram outras paralizações os bloqueios de caminhões desempenharam um papel significativo na agitação da extrema-direita nas Américas. No Chile, caminhoneiros de direita organizaram bloqueios nas rodovias, colocando-os como uma resposta ao ativismo indígena mapuche. No México, os trabalhadores dos transportes são frequentemente usados ​​como tropas de choque para exercer pressão em nome do PRI (Partido Revolucionário Institucional). No inverno passado, no Canadá, caminhoneiros de extrema-direita montaram bloqueios em protesto contra as leis obrigando a vacinação. Provavelmente veremos mais bloqueios de caminhões no futuro.

Bolsonaro repetiu diversas vezes que temia ter o mesmo “destino que Jeanine Añez”, que assumiu o governo da Bolívia após um golpe de estado promovido pelas forças policiais enquanto os militares apenas observavam, e acabou condenada à prisão. O fato de que a direção da PRF decidiu atrasar eleitores no domingo e apoiar ativamente os bloqueios dos bolsonarista mostra que o caso boliviano serviu de inspiração para seus planos.

Derrotado, Bolsonaro levou quase 48 horas para se pronunciar. Em seu discurso de 2 minutos, não reconheceu abertamente o resultado, criticou o movimento que bloqueia estradas e recomendou que fizessem outras forma de “protesto pacífico”, mas fez o típico discurso ambíguo da extrema-direita que mantém inflamadas as suas bases militantes ao mesmo tempo em que tenta evitar implicações legais .

Longe de ser uma “derrota do fascismo”, o resultado nas urnas mostra que o projeto bolsonarista, abertamente autoritário, misógino, racista e que trabalhou para agravar a pandemia que matou mais de 700 mil pessoas, ainda tem apoio de metade do eleitorado – quase 60 milhões de pessoas. Parte considerável desse grupo está disposta a lutar por ele, nunca parando de se mobilizar e ocupar as ruas. Além disso, os aliados de Bolsonaro conquistaram a maioria dos cargos nos estados e nos parlamentos e darão continuidade à sua agenda criada pelos militares que o colocaram no poder junto de setores conservadores da burguesia, do cristianismo fundamentalista e dentro das forças de segurança.

Para além dos aliados de Bolsonaro que se perpetuarão no poder, é importante lembrar que seus milhões de eleitores e, especialmente, sua base radicalizada não vão mudar de ideia de um dia para o outro. Como os recentes atos e bloqueios mostram, eles estarão dispostos a levar suas ideias adiante mesmo sem Bolsonaro. O silêncio do presidente após a derrota trouxe à superfície uma articulação radical que se articulou sem um chamado central do líder, de seus filhos ou apoiadores diretos e figuras públicas conhecidas. Os chamados se deram nos grupos de Whatsapp e Telegram responsáveis por criar e difundir notícias falsas, discursos de ódio e conspiracionistas.

Diferente das greves de caminhoneiros durante o governo Temer e as de 2018, essa não é uma paralisação da categoria como um todo, mas de alguns setores patronais e relativamente poucos militantes radicalizados. E não é preciso muito para fechar as estradas. Apenas um veículo e algumas pessoas.

Manifestantes clamando por um golpe de estado militar.

Durante o domingo de eleição a PRF (Polícia Rodoviária Federal) fez uma megaoperação ilegal de blitz e apreensões de veículos que impediram milhares de eleitores de chegar nos postos de votação, especialmente nas regiões onde Lula era mais popular. No entanto, quando começaram as ações de apoiadores de bolsonaro revoltados com sua derrota, a PRF nada fez para impedir ou acabar com os bloqueios bolsonaristas.

No dia 1 de novembro, o acesso ao aeroporto internacional de Guarulhos, o principal da cidade de São Paulo, contou com ajuda direta de agentes da PRF que foram filmados rompendo as grades de acesso ao aeroporto.

Em algumas cidades, como no estado de Santa Catarina, manifestantes adotaram um tom abertamente nazi-fascista, com saudações nazistas e frases racistas.

Ao longo de quatro anos de resistência popular, incluindo a revolta por George Floyd, Donald Trump manteve o apoio inabalável da polícia e do Departamento de Segurança Interna (Department of Homeland Security), mas perdeuo apoio de grande parte da hierarquia militar dos EUA. Em contrapartida, Bolsonaro ainda pode contar com a fidelidade de parte considerável dos militares brasileiros. Após o pronunciamento de Bolsonaro em 2 de novembro, muitos dos manifestantes pró-Bolsonaro dirigiram suas demandas aos militares, exigindo “intervenção federal” – em outras palavras, um golpe militar. Nos Estados Unidos de Trump e no Brasil de Bolsonaro, as eleições não terminam com o anúncio dos resultados nas urnas; eles são, em última análise, determinados pelo equilíbrio de poder dentro do Estado.

Essa “base bolsonarista sem Bolsonaro” pode estar agora à deriva e esperando um novo líder. E sua primeira aposta está sendo nos militares que, ao longo de 4 anos, infiltraram mais de 6 mil oficiais no governo, sendo 2.600 indicados diretamente para cargos de confiança.

Essa foi a recompensa paga por Bolsonaro por ter sido colocado como representante desse “partido militar” informal que é anterior e pode sobreviver ao fim do bolsonarismo. Outro representante dessa classe é o recém-eleito governador do estado de São Paulo, Tarcísio de Freitas. O mais populoso estado do país, com maior orçamento público, estará agora sob a gestão de um ex-militar presente nas operações de ocupação do Haiti, comandadas pelos governos Lula-Dilma nas oeprações da MINUSTAH, da ONU. Agentes das forças de segurança ganharam eleições para muitos cargos no congresso, avançando uma “politização das polícias”, usando, inclusive, candidaturas coletivas aos moldes daquelas criadas por ativistas que vieram de movimentos de rua dispostos a “renovar a democracia”.

Ações autônomas e antifascistas

Durante pandemia torcidas organizadas, antifascistas e anarquistas e moradores de favelas organizaram redes de apoio mútuo e, ao mesmo tempo, promoveram atos para demandar direito à moradia, saúde, suprimentos e vacinas. Além disso, as torcidas de esquerda foram as primeiras a convocar contramanifestações para barrar carreatas e ações de apoiadores do presidente em São Paulo, Porto Alegre e Belo Horizonte.

Por outro lado, a esquerda tornou o “fique em casa” como um mandamento para sua prática política e preferiu recuar e desmobilizar as ações de rua com receio de que isso desse “pretextos para mais repressão”, alegando que era “isso o que Bolsonaro queria” e precisava para um golpe. Antes das eleições, a estratégia era esperar o governo se queimar para eleger Lula mais uma vez – o único capaz de fazer oposição ao projeto bolsonarista. No entanto, ficou claro que essa política recuada e passiva é uma estratégia permanente, pois mesmo com Lula eleito e o presidente acuado, a esquerda institucional e os movimento sob a influência petista se negaram a convocar atos e contramanifestações. Por exemplo, quando o MSTS (Movimento dos Trabalhadores Sem Teto) convocou seus militantes a abrir as estradas, o MST (Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra) contestou, argumentando que a desobstrução das rodovias era papel do Estado.

Vale ressaltar aqui que até o New York Times, um dos mais veementes defensores da passividade nos Estados Unidos antes das eleições de 2020, apontou que o levante de George Floyd de fato contribuiu para mobilizar uma parcela significativa dos eleitores que permitiram a Joe Biden vencer as eleições de 2020. A verdadeira razão pela qual o editorial do New York Times, a liderança do Partido dos Trabalhadores e outras autoridades liberais e de esquerda desencorajam as mobilizações de rua não é porque acreditam que isso lhes custará eleições, mas porque desejam manter o controle total da situação em todos os níveis da sociedade e estão preparados para correr o risco de perder o poder por causa disso.

Se para eleger Lula a esquerda preferiu ficar em casa, agora com o petista eleito é que parece que vão ficar lá para sempre, aguardando a gestão estatal e policial resolver problemas como o fascismo na ruas. O problema é que os mesmos fascistas estão se mobilizando dentro da polícia e do próprio Estado.

Felizmente, nem todos estavam comprometidos com a passividade.

Logo no dia 1 de novembro, torcedores da Galoucura, do Atlético Mineiro, passaram pela BR-318 que liga Belo Horizonte a São Paulo para ver uma partida e romperam sozinhos os bloqueios bolsonaristas, desmobilizando manifestantes. No dia 2, torcedores da Gaviões, do Corinthians, fizeram o mesmo na Marginal Tietê, importante via de São Paulo, ainda jogaram fogos e perseguiram carros dos golpistas. Ainda em São Paulo, antifascistas perseguiram militantes bolsonaristas saindo dos atos de rua.

No feriado do dia 2 de novembro, militantes antifascistas do Rio de Janeiro fizeram um chamado para uma contramanifestação com 50 pessoas para enfrentar mais de 50 mil manifestantes pedindo golpe militar no centro da cidade, sem qualquer apoio dos maiores movimentos ou partidos. Ao chegarem, foram revistados pela Polícia Militar mais preocupada com a segurança da extrema-direita.

A ação direta e radical nunca deveria ter sido o plano B, uma vez que a rua ainda é fundamental ponto de encontro e articulação e as autoridades não tem o menor interesse em barrar o ressurgimento de hordas pro-fascistas. Quando anarquistas e antifascistas perdem batalha pela a narrativa e aceitam a estratégia da esquerda hegemônica, aceitamos que as ruas se tornem palco para ação e recrutar membros. Qualquer resistência à extrema-direita e a um novo governo petista deve levar em conta o papel central das ruas e da organização popular.

Antifascistas no Rio de Janeiro desafiando manifestação golpista: 50 contra 50.000.

Brilha a luz de uma estrela morta

Ao invés de uma derrota do fascismo pela esquerda, a eleição de 2022 significou a reconstituição do centro – um retorno a um 2013 sem esperança de mudança positiva, em que toda oposição radical será tratada como se estivesse ajudando a extrema direita. Resta saber se alguém ficará satisfeito com essa nova gestão, cujo aspecto mais radical é a nostalgia dos avanços moderados ocorridos há mais de uma década.

A campanha eleitoral de 2022 ressaltou algo que já estava evidente na eleição de 2018 que deu a vitória para Bolsonaro: a esquerda petista e sua base militante e eleitoral só conseguem prometer uma imagem do passado, de 2003 a 2012, quando Lula e Dilma governaram uma nova fase extrativista do capitalismo latino, compensando os impactos da extração violenta de recursos como minério, celulose, carne, grãos e petróleo com benefícios sociais. Essa política foi necessária para incluir as novas classes despossuídas, removidas de seus territórios para dar lugar ao agronegócio, barragens e usinas, e empobrecidas pela urbanização forçada e pela marginalização do trabalho. A escolha para os gestores era bem fácil: era isso ou esperar que mais gente fosse recrutada para o crime organizado ou aderisse à revolta popular.

Agora que o ciclo se fechou, uma extrema direita mais encorajada observa uma nova coalizão de centro-esquerda pacificando sua base eleitoral para ela saia das ruas e desista de lutar por uma sociedade igualitária, alegando que movimentos sociais como o levante de 2013 só ajudarão os “extremistas” distantes do centro.

Enquanto isso, Bolsonaro e sua seita ousam prometer um futuro pretensamente revolucionário, de “ruptura com o sistema”, “contra tudo” e contra a “velha política” – de ele mesmo que foi parte por 3 décadas como deputado. A imagem de futuro do bolsonarismo e do partido militar é uma reedição de diversos projetos da extrema-direita que vemos pelo mundo, que busca num passado distante uma revisão para seus sonhos autoritários, racistas e misóginos. A bandeira do império brasileiro, carregada por alguns setores da direita brasileira, tem o mesmo efeito que a bandeira dos confederados nos Estados Unidos, resgatando uma narrativa bandeirante de conquista do oeste, quando não existiam leis nem poderes que, em tese, regulam o mandatário, como seria no estado democrático de direito. Para ambos, o cenário perfeito é o da lei do seu monopólio da força armada usada contra o negro, o indígena, a mulher, as florestas e todo o território.

Torcida corinthiana a caminho do Rio de Janeiro exibem faixas que capturaram de bolsonaristas.

Em 2008, a América Latina via uma chamada “Onda Rosa” de governos progressistas que canalizaram décadas de levantes populares – iniciados com o Caracazo de 1989 e a redemocratização brasileira – para vencer nas urnas com o discurso de “mudar o mundo de cima para baixo”. Mas se tornaram apenas gestores humanizados do neoliberalismo. A opção pela conciliação de classe do PT não conseguiu incluir os pobres e satisfazer os ricos por muito tempo. E muito menos lidar com as classes médias, brancas, especialmente masculinas, que se sentiram pela primeira vez sendo alcançados por pobres, negros e mulheres no acesso a estudo e mercado de trabalho. O resultado foi a revolta popular estourar ao mesmo tempo em que o ressentimento reacionário, que conseguiu capturar melhor a energia das ruas, derrubar um governo petista e colocar um ex-militar no poder.

Ao contrário dos liberais e da direita tradicional, Bolsonaro e seus aliados não buscam realmente governar ou administrar o Brasil, apenas tomar o poder e gerir para poucos aliados e para suas bases radicalizadas. Em vez de comprar vacinas, exigir passaportes de sanitários e controlar o movimento das pessoas em nome da saúde pública, por exemplo, ele simplesmente deixou as pessoas morrerem para manter a economia funcionando.

Tanto Trump quanto Bolsonaro não conseguiram se reeleger como a maioria de seus predecessores. E agora o pêndulo da democracia volta para o lado progressista. É uma questão de tempo até que os novos governos da social-democracia decepcionem mais uma vez as bases exploradas e excluídas e a revolta exploda, como já vemos se desenhar no Chile e nos Estados Unidos. E o fascismo estará a espreita mais uma vez para reunir seu exército.

Uma oposição à esquerda que quer esperar pelas instituições, pelos direitos humanos e internacionais, por um julgamento no Tribunal de Haia, que se compromete com a paz e os ritos democráticos, está naturalmente desarmada e despreparada para enfrentar um inimigo disposto a matar ou morrer enquanto delira pelo seu líder, por deus e sua imagem de futuro glorioso. Assim como esperar que o Estado acabe com os protestos e puna militantes golpistas, ou demandar que faça isso com discursos que criminalizam o protesto, os bloqueios e a ação nas ruas apenas vão dar mais armas e legitimidade às polícias e aos justiceiros que vão nos enfrentar quando formos nós nas ruas protestando por motivos reais, como moradia, comida e dos territórios que sustentam nossa vida.

Também e notório que o uso das fake news e do sensacionalismo podem ter ajudado a desestabilizar a propaganda bolsonarista na reta final, mas alimentar a máquina de desinformação, confusão e a mediação da realidade por corporações como Meta e Google é preparar um terreno para uma luta que estamos condenados a perder. A extrema direita tem uma vantagem fundamental no sensacionalismo da mídia, pois não tem nenhum escrúpulo em mentir e a confusão geralmente serve à sua agenda.

Como fizeram nos anos que antecederam a revolta de 2013, a esquerda institucional voltou a optar por um governo aliado ao centro e à direita. Desta vez, podemos esperar resultados ainda piores em um contexto muito menos favorável. Ou retomamos as ruas e nos organizamos com base em bairros, ocupações, cooperativas, quilombos, aldeias, assentamentos e centros sociais, ou acabaremos descobrindo que somos obrigados a lutar em terreno inimigo, seja virtual ou institucional, quando for tarde demais.

Nenhuma mudança virá de cima. Ninguém está vindo para nos salvar. Tudo depende de nós.