Dia 21 de julho, ocorreu uma em São Paulo uma reunião de diversos movimentos sociais e partidos ditos de oposição com órgãos públicos e as forças policiais. Os grupos presentes foram: Partido Comunista Brasileiro (PCB), Partido da Social Democracia Brasileira (PSDB), Partido dos Trabalhadores Socialistas Unificados (PSTU), União Nacional dos Estudantes (UNE), Bengalas Voadoras, CSP Conlutas, União Municipal dos Estudantes Secundaristas de São Paulo (UMES) e Partido da Causa Operária (PCO).
A ata do encontro foi postada dias antes do ato na internet por um militante do PCO. Esse registro oficial permite destacar alguns aspectos extremamente relevantes para situarmos a presente criminalização de grupos anarquistas, autonomistas e/ou adeptos de ações diretas e diversidade de táticas nas manifestações de rua. Um processo histórico de criminalização e perseguição política que se intensificou depois das manifestações de junho de 2013 e se tornou o complemento macabro e securitário ao espetáculo jurídico-midiático, com ostensiva participação das redes sociais digitais, que se tornou a política na última década.
O primeiro aspecto diz respeito à jurisprudência gerada por reuniões anteriores visando evitar confrontos entre fascistas e antifascistas, em 2020. Momento no qual as torcidas antifascistas decidiram confrontar os eventos bolsonaristas que passaram a ser semanais na Avenida Paulista. Essa barganha foi capitaneado por Guilherme Boulos, líder do Movimento dos Trabalhadores sem Teto (MTST) e figura importante da Frente Povo Sem Medo. A liderança negociou um acordo com a Polícia Militar do estado de São Paulo que consistia em um revezamento, com os fascistas, dos protestos ocorridos na citada avenida. Isso, na visão de muitas pessoas, não apenas enfraqueceu a luta antifascista como teve efeito de arrefecimento da movimentação que parecia ter um enorme potencial para enfrentar o bolsonarismo na rua e barrar o fascismo.
O que vemos agora é apenas o desdobramento dessa disposição para a barganha e a negociação. A ata registra, como segundo aspecto dessa análise, uma reunião que vai muito além das exigências constitucionais para o exercício da livre manifestação. Os movimentos e partidos acordaram a possibilidade de punição com multa, estipulando a proibição tratada, daquele momento em diante, como lei, de que manifestantes com ideologias opostas ocupem o mesmo espaço ou organizem atos simultâneos. Isso obviamente estabelece um cerceamento que não permitiria que atos fascistas e intolerantes fossem impedidos de ocorrer por uma contramarcha que os repudiassem ou os atacassem, mesmo sendo atos que defendam o nazismo ou a perseguição às minorias.
Além disso, faz parecer que qualquer grupo que se manifeste no mesmo local professe a mesma ideologia, o que termina por igualar PCO e PSDB, como ideologicamente equivalentes. Pois, segundo a decisão da PM, não poderiam estar no mesmo ato. Ignora-se convenientemente que existem níveis de oposição, pacífica-se a multiplicidade das forças políticas, como se não-oposto momentaneamente, ou apenas toleráveis, significasse o mesmo, ou igual.
No entanto, lendo o documento acabamos por descobrir que, aceitando assinar esse acordo, PCO e PSDB descobrem realmente o seu grande solo comum: mediados pela Polícia Militar, eles se aceitam ideologicamente equivalentes (afinal, assinaram o documento!), em repudiar a ação direta e os atos “violentos” então atribuídos por ambos à tática de infiltração. É por repetirem esse discurso que, desde 2013, separaram os “verdadeiros manifestamente” dos “ilegítimos” e dos “vândalos“, juntamente à Polícia Militar, que vemos o que eles realmente têm em comum: aceitam a criminalização das táticas que não controlam, ajudam a criminalizar a espontaneidade da revolta e o imprevisível das manifestações populares. As organizações, mediadas pela polícia repressiva, se constituem como a polícia da paz em nome do governo das ruas.
Exatamente por partilharem da separação bom e mal manifestante, que eles assinam um documento pelo qual pretendem terminar o ato com hora marcada e antes de escurecer, e pelo qual pretendem marchar em ordem previamente comunicada à polícia, como em um desfile cívico onde nada poderia fugir ao planejado e ao controlável. A segurança que eles pretendem ter é a mesma dos que temem uma modificação radical do estado de coisas agora vigente, o que eles mais querem evitar é a força da revolta popular ingovernável. E, para tanto, são ativamente coniventes ao estado de exceção, pedem por ele para garantir que nada fuja ao controle, chegando a se comprometer com que as vias públicas não possam ser obstruídas sem diálogo prévio entre os organizadores do ato e a Polícia Militar. Isso cerceia, muito além do que existe hoje na legislação e na jurisprudência vigente, o direito à livre manifestação. Imaginem, uma ação tão simples, tão primária e espontânea de um protesto popular, como fechar uma rua, não podendo ocorrer sem previamente negociação entre burocratas partidários e os burocratas armados?!
O que restaria de força, de pressão, em uma manifestação popular que não pudesse surpreender nem incomodar, fosse realmente o caso de algo assim acontecer, sem que nenhum intolerável anarquista desobedecesse o acordo firmado, obviamente sem consulta prévia?! Quem precisa de uma ditadura com uma esquerda dessas? Quem pode temer a supressão dos direitos democráticos quando o manifestódromo se tornar a regra, montando um palanque animado com carros de som feito carros alegóricos, muitos sorrisos e discursos falsos?
Os comunistas e a esquerda oficial continuam para sempre legalistas em um Estado que nunca foi e cada vez mais faz questão de sequer fingir que segue seus ritos!
Assinando este documento, os partidos políticos em questão se colocam em pleno acordo com a repressão policial ao mínimo fechamento de uma via, desde que eles não a tenham negociado com a polícia. Como se eles fossem os donos da rua e da manifestação e, realmente, pudessem controlar e conter o incomensurável sempre presente em um protesto. Qualquer ação para além da acordada, será tratada, nos diz ainda o acordo firmado e documentado, com a conivência desses senhores, seus partidos e instituições, como caso de polícia a ser investigado pelo Ministério Público.
De fato, o documento é público e a comunicação de manifestações de rua é uma rotina burocrática das representações sindicais, partidárias e de alguns movimentos sociais. Algo que eles mesmo acabam levando cotidianamente para suas formas de atuação, demonstrando, no fim, que sua forma política é apenas uma imensa burocratização da vida. No entanto, essa reunião, os termos da referida ata e as reações às contestações sobre esse acordo nas redes sociais digitais deixam evidente que as frentes são aliadas da polícia no governo das ruas e que as manifestações “Fora Bolsonaro!” estão capturadas pela disputa eleitoral que visa o controle da máquina estatal. Nada mais do que isso. Esse é o jogo.
É preciso ser explícito: se o objetivo é barrar o fascismo e impedir o fechamento do regime em uma ditadura formal, negociar com a polícia não é e nunca será o caminho.
O colaboracionismo sempre terá muitos nomes, mas se faz pelas mesmas práticas!