Revista Tormenta #2 – 2021

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Esta é segunda edição da Revista Tormenta, que compila alguns dos principais artigos de análise, entrevistas e traduções que fizemos sobre as lutas sociais radicais no Brasil e outros países em 2021. Escrevemos ainda sob os efeitos da maior pandemia do século agravada por um dos governos mais desastrosos que já dominaram este território. Gostaríamos de estar aqui comentando os avanços das lutas antifascistas em 2021, mas os eventos nos limitam buscar ânimo e recuperar o fôlego depois que o potencial das mobilizações de rua se chocaram com os medos e de desejos legalistas de partidos e movimentos alinhados com a lei burguesa. Esses sim lutaram como nunca para pacificar as ruas. Entre sonhos de trazer uma imagem do passado de governos petistas e a falta de senso crítico, preferiram se juntar à direita e negociar a paz com a polícia. Vimos os atos antibolsonaristas serem rifados pelas frentes amplas de partidos e centrais sindicais. A criminalização, a agressão física e até a fabricação de “infiltrados” serviu para isolar qualquer forma de ação combativa, linhas de frente e blocos autônomos capazes de defender manifestantes e atacar as estruturas de poder capitalista e estatal.

Enquanto no oeste da Europa, ou países como Índia, Tunísia e Grécia, a ciência e o combate à pandemia são usados como pretexto para a repressão policial, por aqui a mentalidade obscurantista do governo faz uso de discursos anticientíficos (ou de uma metódica ciência eugenista) para deixar morrer centenas de milhares de pessoas de uma infecção evitável – que em seu segundo ano, não conta sequer com dados sobre infecções e hospitalizações transparentes. Como previmos, o governo de Jair Bolsonaro e seus militares segue inabalado apesar da CPI da Covid enumerar seus inúmeros crimes contra a vida e a deliberada propagação do vírus. Ainda que os governos de extrema-direita estejam perdendo tração e sendo derrotados nas urnas nos últimos dois anos, não podemos ter a esperança de que eleições eliminem o bolsonarismo e o fascismo da política, da polícia ou das ruas. Construir a luta radical, de base, direta e autônoma será necessário para provar mais uma vez que a institucionalidade e a democracia representativa nunca foram atalhos para uma transformação social real.

Esperar que um novo governo PT reproduza, no atual contexto de resseção e retração dos investimentos externos, a política econômica que aliviou a miséria de milhões no início dos anos 2000 é tão absurdo quanto esquecer o aumento de 620% do encarceramento, as UPPs, os desalojos de milhares de pessoas para obras da Copa e Olimpíadas, lei antiterrorismo, o uso do exército como polícia e toda a estrutura repressiva que o atual governo herdou – se alguém se espanta com o a atuação do General Heleno, atual ministro-chefe do GSI, deve lembrar dos massacres que ele comandou no Haiti em nome do governo Lula. A volta do PT ao governo pode afrouxar a corda nos nossos pescoços, mas a forca estará sempre montada para ser usada, especialmente quando a extrema-direita tomar o poder novamente.

Após o fracasso de Trump em se reeleger, da vitória de Boric no Chile e as pesquisas eleitorais apontarem Lula como favorito em 2022, é possível que vejamos os limites dos governos de aspiração fascista e estilo populista. O extremismo dos que se dizem “sem viés ideológico” carrega tanta ideologia que os torna capazes até de ignorar dados científicos primários – em vez de utilizá-los em prol da gestão neoliberal e se apresentarem como heróis com a solução para a pandemia. As mortes e prejuízos econômicos e diplomáticos dessa equação podem não ser capazes de manter o poder em suas mãos por muito tempo. No entanto, apesar da perícia petista em gestão, conhecemos bem os limites dos governos progressistas que falharam em sanar os efeitos catastróficos do neoliberalismo nas Américas nas últimas décadas. Enquanto buscam respeitar as leis e a etiqueta dos ritos democráticos, não conseguem competir com as paixões mobilizadas pela direita que declara abertamente seu ódio às minorias, afirma que opositores são inimigos e devem ser eliminados, que seus apoiadores devem se armar e que somente uma “guerra civil resolverá os problemas do país”.

O moralismo de esquerda ainda não é páreo para a radicalidade do pânico moral fascista. Muito menos para eliminar sozinho a estrutura mafiosa dos militares se mantiveram no poder ao fim da ditadura e construíram uma base miliciana, com grupos de extermínio e toda sorte de crime organizado que hoje celebra e se beneficia do governo Bolsonaro. Sabemos, também, que apesar das forças de centro-esquerda se colocarem como oposição ao bolsonarismo, sua possível volta ao governo servirá mais uma vez como recomposição das forças com a manutenção do pacto de pacificação e amansamento das possibilidades de insurreição. O plano deles é que “tudo mude” para que permaneça exatamente igual.

Podemos esperar um dos mais conflituosos anos eleitorais. A promessa de violência nas ruas para contestar qualquer resultado negativo nas urnas já está feita. E a demonstração de que há números e disposição para ocupar as ruas foi feita no último 7 de setembro. Subestimar o potencial de seus militantes mais fanáticos é ignorar a influência que a invasão do Capitólio em janeiro de 2021 pode ter sobre o bolsonarismo por aqui.

A eleição vai colocar como nunca esse embate à prova, às custas da pacificação de qualquer oposição radical nas ruas contra esse governo. Além de espalhar mais uma vez uma outra campanha para mostrar que existe ação política além do voto, devemos combater tanto a ordem que a esquerda neoliberal quer impor quanto o caos dentro da ordem que esse governo fascista quer fazer crescer. Não importa quem for eleito, seremos ingovernáveis!!


VÍDEO: FIM DE ANO / FIM DO MUNDO

Para enterrar esse ano e abrir um novo ciclo de lutas, aqui uma mensagem de ano novo do coletivo Antimídia, com quem tivemos a honra de colaborar em diversos vídeos em 2021:

Somos Todos Antifa? Sobre a Necessidade de não Dialogar com o Fascismo

O texto a seguir é um dos artigos que integra a coletânea “ANTIFA: Modo de Usar“, livro lançado em 2020 pela editora Circuito, no qual o coletivo Facção Fictícia contribui com um artigo, traduções e uma entrevista com Mark Bray.

No momento em que as ruas voltam a ser espaço de disputa e atuação política e a radicalidade é sabotada amplamente pela esquerda, surgem manifestações de liberais e da direita que apoiou Bolsonaro a chegar ao poder depois que o mesmo fez seu maior ensaio golpista no último 7 de Setembro. Assim, parte da esquerda – que não usa tudo ao seu alcance para apoiar as lutas indígenas contra o Combo da Morte e a PL 490 – debate energicamente se deve se juntar ou não aos protestos dessa gente, ou se deve oferecer a eles uma oposição tão firme quanto ao fascismo escancarado.

É preciso ter claro que os liberais não são (nem nunca foram) aliados para barrar o avanço do fascismo, seja na base ou no topo das instituições. Os partidos e grupos liberais são os que toleram e abrem as portas para fascistas no governo – muitas vezes com apoio da centro-esquerda. Portanto, a luta contra antifascista deve ser uma luta anticapitalista que enfrente todos os possíveis aliados do fascismo.

Boa leitura.

Bloqueio do elevado Helena Greco em Belo Horizonte, 3 de julho de 2021.

Recentemente a onda de protestos nos EUA, que se espalhou por vários lugares do mundo, deflagrados pelo assassinato de George Floyd pela polícia, colocou novamente em cena o tema do antifascismo, levando uma quantidade enorme de coletivos e indivíduos a se declararem antifas. Essa popularização através da propaganda pelo ato pode ser de fato formadora, mas também pode ser um esvaziamento de sentido dos movimentos antifascistas, que os apaga enquanto alternativa diferenciada de luta. Dizer “somos todos antifas” é importante porque, como em outras insígnias semelhantes, aponta na direção contrária à criminalização: não há um grupo específico de pessoas que possa ser qualificado em tribunais como associação criminosa, que se possa denominar “os antifascistas”, trata-se, antes de tudo, de uma certa orientação geral prática que vários coletivos e indivíduos reivindicam. Mas dizer “somos todos antifascistas” também pode significar uma tentativa de assimilação em curso, de domesticação, de cooptação. Tal como avaliamos, a popularização do termo antifa não deve significar o apagamento dessa prática política e de sua diversidade de táticas, caso contrário essa propagação se tornaria uma diluição. O presente texto pretende contribuir para evitar tal processo, retomando o sentido da oposição fascismo/antifascismo na contemporaneidade e reforçando, particularmente, uma de suas características mais marcantes, a saber: com o fascismo não se discute, se combate.

Em tempos de governos que defendem abertamente valores fascistas, nos quais a luta antifascista chegou à consciência do público geral e a mídia corporativa se dedica a tentar explicar o que é o fascismo e o antifascismo — para muitas vezes igualar os dois ou criminalizar os antifascistas enquandrando-os como um grupo de caráter homogêneo, externo e invasor —, é preciso retomar alguns pontos importantes que sempre estiveram presentes na luta antifascista contemporânea e que podem ajudar aqueles que estão aderindo agora às lutas antifascistas.

Na contemporaneidade, a designação antifa diz respeito a uma orientação reivindicada por certos coletivos e movimentos quanto a não tolerância do fascismo de maneira alguma. Não diz respeito a um grupo específico, que pudesse ser uma organização terrorista, mas também não diz respeito a ser simplesmente contra o fascismo. Trata-se de uma orientação geral e prática preconizada por certos grupos, em sua maioria anarquistas, mas não apenas. Organizados em grupos de afinidade, são coletivos que legitimam a ação direta e que afirmam: com o fascismo não se discute, se combate diretamente. É importante notar que estes grupos têm raízes na contracultura punk dos anos 1980 e também, em alguns casos, nas torcidas organizadas de futebol, acostumadas a enfrentar a força policial diretamente. Não legitimam a luta jurídica, eleitoral ou institucional no combate ao fascismo, mas se organizam para impedir o fascismo de crescer, seja ao impedir uma manifestação fascista, seja ao impedir o fascismo no micro da sociedade. Os movimentos antifas defendem a autodefesa, a ação direta e a resistência não institucional ao fascismo. O antifascismo é uma reação à ameaça fascista e à ação violenta das forças policiais, na medida em que estas encarnam de forma evidente elementos fascistas. A violência policial racista e seus assassinatos são deflagradores recorrentes da resistência antifascista. E é interessante notar que o nascimento contemporâneo da antifa nos EUA se deu justamente em Minneapolis, onde o assassinato de George Floyd deu início à insurreição atual.[1]

O que significa a ação direta que estes coletivos reivindicam como arma primordial no combate ao fascismo? E por que, em se tratando do fascismo, ela parece ser a única possível? Em último grau, o que estamos dizendo que é intolerável quando dizemos que não dialogamos por quaisquer meios, que não negociamos o fascismo?

Primeiramente é preciso sempre desconstruir a ideia segundo a qual ação direta significa ação violenta. Uma ação é direta por não ser indireta, ou seja, por rejeitar representantes ou mediações para atingir seus objetivos. Mas não se trata aqui apenas de rejeitar a política institucional, e sim de encarnar na própria ação o objetivo buscado, rompendo com dualismos e com a separação entre meios e fins buscados. Neste sentido, organizar educação popular é ação direta; ocupar um imóvel abandonado também; tanto quanto promover eventos de contracultura e contrainformação. Adicionalmente, toda a luta na micropolítica onde o fascismo se encontra enraizado é uma luta por meio da ação direta, e aqui é preciso dizer ainda que as transformações reais, profundas, se dão de baixo para cima, no âmbito dos valores, no âmbito das práticas. Se atualmente a fascistização da nossa sociedade aparece de modo tão evidente, isso se deve em grande medida ao fato de que nunca houve uma modificação de baixo para cima naqueles valores que constituem o cerne do fascismo. E sobre isso nunca será demais lembrar as palavras de Foucault:

E não somente o fascismo histórico de Hitler e de Mussolini — que tão bem souberam mobilizar e utilizar o desejo das massas —, mas o fascismo que está em nós todos, que martela nossos espíritos e nossas condutas cotidianas, o fascismo que nos faz amar o poder, desejar esta coisa que nos domina e nos explora.[2]

Como liberar nosso discurso e nossos atos, nossos corações e nossos prazeres do fascismo? Como expulsar o fascismo que está incrustado em nosso comportamento?[3]

Os grupos antifas na contemporaneidade defendem que é um equívoco interpretar o fascismo apenas no seu sentido histórico ou como uma característica nacional específica de algum povo, como os alemães ou os italianos. O fascismo nunca desapareceu para ser revivido novamente. Ele sempre esteve entre nós em silêncio, para voltar de tempos em tempos quando as classes dominantes, amedrontadas diante de uma sociedade em completa falência política, social e econômica, como na qual vivemos, recorrem ao fascismo para salvá-la da revolução social. Para eles, o fascismo não é apenas um tipo de regime, nem uma ideologia para um regime em potencial. Ele pode ser entendido também como uma prática, um método, baseado no desejo fascista de dominar, oprimir, obliterar o outro. O fascismo também não seria uma perversão ou desvio dos valores da nossa sociedade, mas uma consequência deles. Assim o psicanalista Wilhelm Reich definiu a mentalidade fascista como aquela do homenzinho subjugado que anseia por autoridade e se rebela contra ela ao mesmo tempo. Reich afirmou que não é por acaso que todos os ditadores fascistas surgem do ambiente do homenzinho reacionário.[4] E de modo ainda mais enfático:

As minhas experiências em análise do caráter convenceram-me de que não existe um único indivíduo que não seja portador, na sua estrutura, de elementos do pensamento e dos sentimentos fascistas. O fascismo como um movimento político distingue-se de outros partidos reacionários pelo fato de ser sustentado e defendido por massas humanas.[5]

Antifascistas exibem cartazes e bandeiras tomados de Bolsonaristas durante o 7 de setembro de 2021. Local desconhecido.

O problema dos fascismos cotidianos, dos microfascismos com os quais vivemos, acaba por complicar a dicotomia fascista/antifascista. Se todos nós possuímos elementos de fascismo de alguma forma, como podemos falar de antifascismo, diferenciar e dar nome aos fascistas? “Mate o policial dentro da sua cabeça” — diz um ditado anarquista. Para os antifas, o fascismo não é uma doença ou uma patologia inata, e sim algo normalizado no nosso cotidiano, uma perversão do desejo produzida pelas formas de vida capitalista e moderna: práticas de dominação, autoritarismo e exploração que nos integram de tal jeito que não podemos simplesmente decidir sair delas. Mas nem todo mundo se torna um neonazista. Isso também demanda uma prática fascista, uma reafirmação constante do desejo fascista de oprimir e viver em um mundo opressivo. E, com certeza, o mundo contemporâneo fornece essa reafirmação. Neste sentido, nos tempos como os que vivemos, precisamos praticar o antifascismo, trabalhando para criar formas de vida não hierárquicas, construindo espaços seguros para os grupos oprimidos, redes de solidariedade contra a violência policial e de grupos fascistas, agindo diretamente para combater o avanço do fascismo nos locais em que convivemos. É importante destacar aqui que não existe um comitê central que determina as regras e as diretrizes sobre como atuar ou sobre quem deve ser considerado fascista o suficiente para ser combatido; cada grupo que escolhe se engajar numa ação antifascista deve decidir sobre as estratégias e táticas apropriadas para a situação na qual se encontra. O antifascismo é, antes de tudo, uma prática ética e coletiva de resistência, não é um código moral.

A identidade é fundamentalmente sobre distinguir-se dos outros. O antifascismo, no entanto, é para todos. Devemos tomar cuidado para não isolá-lo dentro de uma demografia específica com um código de vestimenta e linguagem específicos. Isso é primordial, porque a extrema direita está se esforçando para descrever a antifa como uma organização alienígena monolítica, hostil. Nossa tarefa não é apenas construir uma rede de grupos, mas criar um momentum antifascista que se espalhe contagiosamente por toda a sociedade, junto a as críticas e táticas necessárias para essa luta.[6]

Por meio das ações diretas, os grupos antifas têm mobilizado exatamente os elementos que podem guiar o combate cotidiano ao fascismo, como presentes no texto “Introdução à vida não fascista”. Os grupos são múltiplos e por isso libertos da paranoia da organização totalizante; são não hierárquicos e agenciados entre si também de modo não burocrático; não separam teoria e prática e não se engajam em disputas institucionais e jurídicas por poder.

Ousaríamos mesmo dizer aqui que, na medida em que se colocam fora do âmbito da representação, se afastam da mobilização de afetos tristes.[7] E é por isso que podemos dizer que suas práticas não se separam do fim almejado. E também no caso da resistência ao fascismo histórico, foram fundamentais as ações diretas, descentralizadas e as redes clandestinas.[8]

São Paulo, 3 de junho de 2021.

O avanço da chamada nova direita no mundo pode ser entendido como um reviver dos valores fascistas, que sempre estiveram aí e se espalham hoje sem muita vergonha. Quais valores e práticas são essas? Basicamente, podemos resumi-la nas seguintes características: o culto ao militarismo e ao autoritarismo; o nacionalismo, ainda que meramente discursivo, dentro de economias privatistas periféricas abertas ao capital internacional, como a nossa; um certo fundamentalismo religioso; o racismo; a misoginia; a homofobia; e uma política de segurança que estabelece a morte como modo de governo, criando inimigos internos que se configuram discursivamente de modo distinto em cada território, seja como combate ao terrorismo, ao imigrante ilegal ou ao tráfico de drogas. Por meio dessas ideias, o fascismo continuou existindo no Estado moderno. É também por meio delas que podemos entender o caráter fascista do avanço conservador na política recente. Não é correto dizer, sobretudo na realidade latino-americana, que o fascismo ficou um tempo fora de cena para retornar no seio da democracia. De fato, os elementos fascistas sempre estiveram presentes no poder por aqui, acompanharam nossa história da colonização[9] ao estado novo, passando pela ditadura militar. O que talvez nos falte seja justamente uma resistência antifascista organizada, que se entenda como tal, que identifique diretamente estes elementos como constitutivos das políticas de segurança hoje e que se insurja contra eles em todos os âmbitos das nossas vidas. Apesar de não se identificarem expressamente como fascistas, a família Bolsonaro, o bolsonarismo e tudo o que a chamada nova direita representa, na prática, se encaixam perfeitamente nesses elementos. E aqui é sempre útil lembrar o que afirmou Durruti sobre o tema:

Nenhum governo do mundo combate o fascismo até suprimi-lo. Quando a burguesia vê que o poder lhe escapa das mãos recorre ao fascismo para manter o poder de seus privilégios, e isso é o que ocorre na Espanha. Se o governo republicano tivesse desejado eliminar os elementos fascistas, podia tê-lo feito a muito tempo. Em vez disso, contemporizou, transigiu e gastou seu tempo buscando compromissos e acordos com eles. [10]

Buenaventura Durruti, 1936.

Há mais de meio século, grupos anarquistas ou autonomistas denominados antifas chamam a atenção para o fato de que o fascismo não acabou com o fim da ii Guerra Mundial, até porque, como já analisava Maria Lacerda de Moura na década de 1920, é o filho predileto do Estado e do Capital. Em Fascismo – Filho dileto da igreja e do capital, a pensadora anarquista defendeu que o sistema capitalista sempre é potencialmente fascista, e demonstrou a sua relação interna com a instituição religiosa, a igreja e o clero.[11] O fascismo seria a consequência do Estado capitalista. Esta análise é extremamente atual e nos ajuda a entender como muitas das características do fascismo histórico se perpetuaram no seio das chamadas democracias representativas liberais. A história mostra, em vários momentos, que o antifascismo não deve dar os braços aos liberais, porque, quando o risco de uma revolução popular é real, estes últimos ajudarão a abrir passagem para os fascistas contra os revoltosos. Sem que a ameaça de sublevação seja real, as elites abrem as portas para líderes conservadores e aceitam a ascensão do fascismo, que mantêm sempre em seu cerne como um mal menor. [12] A impressão é de que sempre haverá um liberal ou social-democrata abrindo caminho para a extrema direita massacrar uma possível rebelião. Certamente a história não se repete, mas nos deixa lições: não se pode confiar nos meios eleitorais ou nas instituições ditas democráticas para derrotar o fascismo. E isso não apenas porque os fascistas chegam ao poder legalmente,[13] mas porque reside no cerne da representação espetacular do antissistêmico. Neste sentido, o princípio do fascismo é o extremo oposto da ação direta enquanto fim sem nenhum meio, já que nestas os meios são os fins. O fascismo é o sistema da representação tomando vida própria, se tornando absoluta, é o exercício do poder soberano em ato puro, sem necessidade de legitimação por parte do poder constituinte. Essa instituição que toma vida própria, com poderes absolutos, se apresenta falsamente como um antissistêmico, quando é de fato a encarnação do sistema. O estado de exceção que esteve sempre no cerne das democracias modernas. A ação policial com carta branca para matar é sem dúvida a sua experiência mais concreta. Neste sentido, os confrontos entre grupos fascistas e antifascistas nunca foram e não podem ser tratados como meros confrontos entre gangues rivais, tratam-se antes de confrontos com o fascismo, que é, e sempre foi, tolerado no cerne das sociedades ditas democráticas, e que é particularmente propagado hoje por setores religiosos e presente diretamente na prática das forças policiais. Talvez entender como a noção de Estado Policial é atual envolva compreender como a instituição policial encarna elementos fascistas, ainda que dentro da democracia liberal.[14] No Brasil e no mundo, a luta contra a polícia está interligada com a luta contra o fascismo. Todos os dias, nas periferias e favelas desse país, a polícia atua como um exército em guerra que ocupa territórios inimigos. O genocídio do povo negro e pobre é um projeto político de Estado. É o fascismo sendo exercido através das forças policias, dos aparatos de repressão e controle de populações.

Dos estádios às manifestações, as antifas no Brasil, desde seu surgimento, têm apontado para características fascistas das forças de segurança do Estado, sendo a luta contra a violência policial uma de suas principais bandeiras. “Não acabou, tem que acabar, eu quero o fim da polícia militar” é talvez a palavra de ordem mais repetida nas linhas de frente das manifestações compostas por antifas. Não é coincidência que o crescimento da violência policial na última década anda em conjunto com o avanço da extrema direita no mundo, além disso, é notório as fortes relações entre esses dois grupos pelo mundo todo. São diversos exemplos aos logo da história, mas não precisamos ir tão longe, basta notar como um policial trata um neonazista e como ele trata um favelado numa abordagem cotidiana.

A cada ano batemos novos recordes de mortes por policiais, enquanto as instituições ditas democráticas se tornam cada vez mais fascistizadas. Os antifas entendem que agora vivemos sob duas epidemias: a da brutalidade policial e a de Covid-19. Por isso muitos coletivos têm trabalhado desenvolvendo diversas ações diretas de solidariedade entre as comunidades e combatendo o fascismo por todos os meios necessários. Muitas dessas ações pelo Brasil estão sendo interrompidas pela brutalidade policial e pela violência do Estado que não dão trégua nem em tempos de pandemia. No Complexo da Maré e na Favela da Providência, no Rio de Janeiro, por exemplo, ações de solidariedade desse tipo foram violentamente interrompidas por operações policias que resultaram na morte de participantes das ações e de pessoas atendidas por elas.[15]

Nem todos estão do mesmo lado das barricadas.

Vivemos no país mais violento do mundo. Com uma taxa de homicídio de mais de 60 mil, a violência no Brasil atinge níveis maiores do que em vários países em guerra. Temos a polícia mais letal do mundo.[16] A cada 23 minutos, um jovem negro é assassinado nesse país, sendo a maioria pela polícia.[17] Durante a pandemia, mortes por policias aumentaram 43% no Rio de Janeiro. [18] Um aparato de repressão militar, herança da ditadura, em uma instituição que já é uma herança colonial escravocrata criou essa máquina de moer carne humana que é a polícia militar. Como se já não bastasse, também somos o país que mais mata LGBTQIA+ no mundo, os maiores assassinos de indígenas das Américas e estamos caminhando para liderar o ranking mundial de violência contra a mulher. Mas quando o assunto é a violência dos grupos antifas parece que esse pano de fundo descrito não existe. A opinião pública tende a igualar fascistas e antifascistas como extremistas equivalentes, algo muito grave, que impulsionou, em mais de uma ocasião, o crescimento do fascismo. A mídia e o governo sempre fazem o possível para deslegitimar a ação antifa. A sociedade brasileira é violenta e sanguinária, o projeto colonial genocida se estende até os dias atuais, porém nos acostumamos a ele. Praticar o o antifascismo é, em grande medida, nunca se acostumar. O antifascismo é autodefesa contra tudo isso e, assim, a tão propagada “violência antifa” é, de fato, uma contraviolência. Portanto, é de suma importância entender o antifascismo como elemento de um objetivo abolicionista e anticapitalista maior, que busca dar fim à polícia, às prisões e às hierarquias opressivas. Não ter tolerância com a intolerância não é equivalente a ser intolerante. O que não é aceito de modo algum neste caso é justamente a defesa da morte do outro, o que é um detalhe lógico, como veremos adiante.

A experiência histórica nos mostrou como certos discursos são perigosos e não devem ser tolerados porque eles se vinculam muito diretamente ao genocídio e à naturalização da barbárie. Quando grupos antifas se esforçam para impedir que eventos fascistas possam ocorrer, por exemplo, eles estão se baseando nessa experiência que nos foi legada. A mensagem dessas ações é: se algo similar começa a surgir deve ser imediatamente impedido antes que cresça. As vias normais de negociação e diálogo não só se mostraram historicamente incapazes de barrar o fascismo como, em princípio, nem poderiam fazê-lo, já que o fascismo constitui precisamente uma ruptura com essas vias. E de tal forma que tentar defender a liberdade de expressão do próprio fascismo só pode constituir-se como uma evidente contradição em termos. Não há o que argumentar quando o efeito prático é a eliminação literal de um lado da interlocução. O fascismo não pode se expressar porque se ele se expressa ninguém mais se expressa. Sua própria possibilidade discursiva precisa ser banida como absurda. Para explicar melhor este ponto, é útil uma breve análise linguística. Tomemos as seguintes afirmações:

1. Todos têm direito a expressar sua opinião;

2. Mas a opinião de alguns é justamente que: não é o caso 1;

3. Então, nem todos têm direito a expressar sua opinião.

O conjunto de proposições acima tem a forma de um paradoxo por autorreferência. O paradoxo se desfaz quando observamos que 1 não é uma mera opinião dentro do sistema de opiniões, mas é uma proposição metalinguística, ou melhor, tem um valor normativo em relação ao sistema. Isso significa dizer que ela é condição de possibilidade de haver opiniões dentro do sistema e, por isso, é uma necessidade que não pode ser negada ou colocada em questão. O fascismo funciona exatamente assim, ele não é uma opinião entre outras em um sistema, é a dissolução da possibilidade mesma de continuar havendo opiniões. Por isso não deve ser tolerado. Toda argumentação cai por terra contra o fascismo, pois não se pode argumentar com quem nega o pano de fundo sobre o qual se desenrolam argumentações. Você não pode dizer que o fascismo é simplesmente falso, você deve combater a sua própria possibilidade como dotada de significação. Pois uma vez que você tolera o fascismo, você tolera o absurdo como possível, ou seja, você destitui aquilo que deveria ser necessário deste estatuto de necessidade. E é precisamente por isso que dialogar com o fascismo já é deixá-lo vencer.


Notas:

  1. “Podemos localizar a gênese antifa na América do Norte em um pizzaria de Minneapolis, onde um grupo de skinheads antirracistas e multirraciais chamados Baldies estava reunido durante as férias de Natal em dezembro de 1987.” Bray, Mark. Antifa: o manual antifascista. Tradução Guilherme Ziggy. São Paulo: Autonomia Literário, 2019, p. 146.
  2. Foucault, Michel. “Introdução à vida não fascista”. Preface in: Gilles Deleuze e Félix Guattari. Anti-Oedipus: Capitalism and Schizophrenia. New York: Viking Press, 1977, pp. xi–xiv. Traduzido por Wanderson Flor do Nascimento.
  3. Ibidem, p. 03.
  4. Reich, Wilhelm. Psicologia de massas do fascismo (1946). Tradução Mary Boyd
    Higgins. São Paulo: Martins Fontes, 1972, p. 13
  5.  Ibidem, p. 12.
  6. Not Your Grandfather’s Antifascism. Coletivo CrimethInc., 29/08/2017. Tradu-
    zido por Erick Rosa.
  7. Ver: foucault, Michel, op. cit., pp. xi–xiv.
  8. Ver: bray, Mark, op. cit., pp. 99–100.
  9. Aqui é também interessante lembar a análise desenvolvida por Achille
    Mbembe, segunda a qual o fascismo histórico de fato aplicou à Europa os prin-
    cípios de ação que já eram utilizadas no processo colonizatório. O nazismo teria como premissas fundamentais o imperialismo colonial racista e os mecanismos desenvolvidos pela própria revolução industrial. Ver, por exemplo: mbembe, Achille. Necropolítica. Tradução Renata Santini. São Paulo: n-1, 2019, pp. 22–23.
  10. Entrevista de Buenaventura Durruti ao jornalista Van Passen, 1936.
  11. moura, Maria Lacerda de. Fascismo – Filho dileto da igreja e do capital. São
    Paulo: Paulista, 1934.
  12. Ver: bray, Mark, op. cit., pp. 54–56; pp. 61–63 e p. 70.
  13. Ver: Ibidem, pp. 247–252.
  14. Essa ideia foi desenvolvida pela autora em: jourdan, Camila. “Estado Policial
    e Estado de Exceção: notas sobre a sociedade contemporânea.” Em: Abolicionismos – Vozes antipunitivistas no Brasil e contribuições libertárias. Org. Guilherme Moreira Pires. Santa Catarina: Editora Habitus, 2020, pp. 57–68.
  15. Sobre isso, conferir: “Jovem é morto durante entrega de cestas básicas no rj;
    vizinhos criticam pm”, Uol Cotidiano, 21/05/2020. E: “Operação policial interrompe doação de cestas e deixa mais um jovem morto no rj”, Brasil de Fato, 23/05/2020.
  16. Sobre isso, conferir: “Polícia brasileira é a que mais mata no mundo, diz
    relatório”, Exame, 08/09/2015. E: “Com 62,5 mil homicídios, Brasil bate recorde de mortes violentas”, Uol Cotidiano, 05/06/2018.
  17. . Dados disponíveis em: “A cada 23 minutos, um jovem negro é assassinado no
    Brasil, diz cpi”, Flacso Brasil, 06/06/2016.
  18. Sobre isso, conferir: “Mortes por policiais crescem 43% no rj durante quaren-
    tena, na contramão de crimes”, Folha de S. Paulo, 26/05/2020.

A Construção do Presente e o Anarquismo Construtivo – por Tomás Ibanez

Este texto a seguir, extraído do livro “Anarquismo é Movimento“, de Tomás Ibanez, coloca em questão a distinção, propagada por Murray Bookchin e ainda muito influente nos meios anarquistas atuais, entre anarquismo social e anarquismo como estilo de vida. Tomas Ibañez explora os limites dessa distinção no que se refere ao próprio sentido histórico do anarquismo, que sempre operou na destituição das dualidades próprias à política da representação. De fato, chamar algo de ‘mero estilo de vida’ significa na maioria das vezes um qualitativo depreciativo, quase um xingamento, que procura situar por oposição aqueles assim adjetivados na esfera do não-sério; não-organizado ou não-comprometido. Ibañez, por outro lado, problematiza a própria noção de organização assim definida como uma idealização, mostrando que de fato não existe jamais um grupo, seja de afinidade, seja voltado à realização de uma atividade qualquer pontual, que esteja totalmente desorganizado, pois existem níveis de organização determinados por aquilo a que se deseja ou necessita. O desejo da organização ideal, única, totalizante é muitas vezes um fetiche oriundo de nossa educação institucional e estatal, que não nos permite ver a organização estabelecida pela prática concreta. Adicionalmente, a separação entre ‘social’ e ‘estilo de vida’ é filha da separação entre público e privado; político e pessoal; vida e gestão da vida, entre outras… separações estas que se estabelecem sempre já desqualificando um dos seus termos, até que a vida concreta mesma seja colocada na esfera do ‘nenhum valor em si’, pois o seu valor estaria sempre no âmbito abstrato das suas representações, seja política ou econômica, organizadas. Mas é justamente contra estas separações rígidas, no capitalismo; no Estado e na representação, que nós anarquistas nos insurgimos. É justamente a distinção entre o viver e o organizar a vida que nós recusamos. Sendo assim, Ibañez nos ajuda a ver que refundar essas distinções danosas no seio da luta libertária só pode nos levar à confusão ou à criação de microestados em nossos meios. A multiplicidade das práticas anarquistas e suas potências estão em não separar a luta da vida, que é talvez o que constitui sua maior força. Em máximo grau, nós anarquistas queremos uma sociedade na qual não estejam separados o modo de viver do próprio viver, e é por isso que em nossa prática não precisamos opor rigidamente o social ao ‘estilo de vida’. Muito por outro lado, desejamos uma política que vem, e que não se separa da vida, que é antes de tudo uma forma de viver.

Trecho do artigo A Construção do Presente e o Anarquismo Construtivo, no livro Anarquismo é Movimento (Intermezzo, 2015)

A importância de revisar as práticas de dessubjetivação hoje coloca diretamente em questão a famosa dicotomia que Murray Bookchin estabeleceu, em meados da década de 1990, entre anarquismo social e anarquismo de estilo de vida, pois os dois tipos de anarquismo, longe de serem opostos, estão de fato intimamente ligados. Com efeito, a necessária construção de uma subjetividade diferente através das lutas, sejam elas de uma perspectiva global ou local, implica que não existe um anarquismo social que não carregue componentes existenciais fortes e que não existe um anarquismo de estilo de vida que não esteja impregnado de componentes sociais. Apesar disso, costuma-se dizer que, ao contrário do que acontece com as revoltas ancoradas na questão social, as revoltas classificadas como existenciais são totalmente inócuas para o sistema porque, embora ultrapassem a esfera estritamente privada, não deixam de ficar presas a espaços confinados que não podem perturbar o bom funcionamento do sistema.

No entanto, este não é exatamente o caso. Se o anarquismo – que também é, acima de tudo, diriam alguns, um modo de ser, um modo de viver e sentir, uma forma de sensibilidade e, portanto, uma opção claramente existencial – representa um problema para o sistema, é, em parte, porque ele opõe uma forte resistência, não só contra sua intimidação repressiva, mas, acima de tudo, contra suas manobras de sedução e integração. Na verdade, apesar das exceções óbvias, acontece com bastante frequência que aqueles que foram profundamente marcados por uma experiência anarquista permanecem irrecuperáveis ​​para sempre.

Ao manter viva sua alteridade irredutível em relação ao sistema, eles obviamente representam um perigo para ele. Não é apenas que eles o desafiam permanentemente com sua mera existência, mas também servem como um retransmissor para o nascimento de novas sensibilidades rebeldes. Isso guarda alguma relação com o que Christian Ferrer, um bom amigo e filósofo anarquista que vive na Argentina, costumava me dizer: “O anarquismo não se ensina e não se aprende nos livros – embora possam ajudar – mas se espalha por contágio; e quando alguém está infectado, na maioria das vezes, é para sempre.

Então eu entendo que o anarquismo social, também chamado de anarquismo organizado, e o anarquismo de estilo de vida estão mutuamente implicados. Com efeito, é esse o caso na medida em que, por um lado, o desafio que representa a adoção de um estilo de vida diferente daquele preconizado pelo sistema instituído e a recusa em participar nas suas normas e valores constituem uma forma de luta que corrói sua pretensão de hegemonia ideológica e que gera conflito social, quando o sistema toma medidas normalizadoras ou quando dissidentes realizam atividades hostis. Em qualquer caso, o anarquismo de estilo de vida produz efeitos de mudança social que, às vezes, podem ser notáveis. Por outro lado, é óbvio que ninguém pode lutar pela emancipação coletiva e se engajar em lutas sociais sem afetar profundamente seu estilo de vida e modo de ser. Acontece também que as duas formas de anarquismo frequentemente coincidem no terreno das lutas concretas.

Isso não impede que certos setores do movimento anarquista se esforcem para erguer barreiras entre essas duas formas de praticar o anarquismo. É porque estou convencido de que essas barreiras enfraquecem o anarquismo que gostaria de argumentar aqui brevemente contra aqueles que se esforçam para consolidá-las: em geral, aqueles que são classificados, na maioria das vezes contra sua vontade, como partidários do anarquismo estilo de vida – que incluiria a maioria dos neo-anarquistas – mostra pouca beligerância com a diferenciação das correntes ideológicas libertárias e se sente pouco interessada nas lutas internas dentro do movimento. Em vez disso, são os defensores do anarquismo social ou anarquismo organizado – que se sobrepõe, em grande medida, às orientações comunistas libertárias – que se esforçam para estender seu raio de influência dentro do movimento e confinar os anarquistas estilo de vida às suas margens. São, portanto, os seus argumentos que gostaria de discutir aqui, mas não sem antes especificar alguns pontos para evitar mal-entendidos. É óbvio que o anarquismo “sem adjetivos”, só é sustentável como tal se estiver comprometido com a justiça social e a liberdade entre iguais. O anarquismo não só deve denunciar a exploração e as desigualdades sociais, mas também combatê-las com a maior eficácia possível; deve estar presente entre aqueles que se envolvem nessas lutas e deve tentar expandir sua influência entre aqueles mais diretamente afetados pelas injustiças do sistema. Nada a dizer, portanto, contra os esforços feitos por certos anarquistas para se organizarem especificamente a fim de ajudar a desenvolver melhor essas lutas, muito pelo contrário. No entanto, também é óbvio que o anarquismo social ou organizado muitas vezes transmite suposições e práticas políticas que o distanciam sub-repticiamente de suas raízes libertárias, seja porque adota estruturas insuficientemente horizontais – senão no papel, pelo menos na prática -, seja porque se deixa tentar por uma certa vanguarda, seja também porque é propenso a desenvolver práticas sectárias, entre outras coisas.

O capitalismo é, por hipótese, nosso inimigo mais direto e não temos que lhe dar trégua. A luta contra ele constitui um requisito inalienável para o anarquismo. No entanto, considerando a diversidade de natureza cultural ou outra que caracteriza os mais de sete bilhões de seres humanos que povoam a Terra, não é razoável pensar que nossos valores e nossos modelos sociais possam refletir as preferências das pessoas. Perspectivas totalizantes não nos sustentam, portanto, nem dentro da estrutura do vasto “mundo mundial”, é claro, nem dentro da estrutura de uma sociedade particular.

Se não quisermos ressuscitar as ilusões escatológicas, devemos admitir que aqueles entre nós que se engajam nas batalhas pela emancipação nunca conhecerão o sucesso final dessas batalhas, nem o advento do tipo de sociedade com que sonhamos. O que conheceremos será apenas a experiência dessas lutas e seus resultados nunca definitivos. Consequentemente, o anarquismo, social ou não, organizado ou não, está, em última instância, modificando o presente – uma modificação necessariamente local e parcial – na qual devemos apostar, fazendo ouvidos moucos aos cantos das sereias totalizantes, e abandonando as ilusões escatológicas: se o comunismo libertário generalizado não pode ser estabelecido, nem toda a humanidade, nem uma sociedade particular, ser anarquista, o que pode o anarquismo reivindicar e o que nos resta?

Bem, mesmo assim, ainda temos a luta contra a dominação em suas múltiplas facetas, e isso inclui, é claro, o domínio da esfera econômica, embora vá além desta amplamente. Ficamos também com a transformação do presente, sempre localizada e parcial, mas radical, e isso inclui também a nossa própria transformação. E nos resta, enfim, a saída de nosso confinamento, de nosso gueto, para atuar junto com os outros, não para convencê-los, mas para aceitá-los; não por uma preocupação estratégica, mas por princípios.

Agir com outras pessoas? Pois é, camaradas que lutam no seio do anarquismo que se proclama “organizado”, agir com os outros, como vocês costumam fazer, e isso os honra, também significa agir com anarquistas que não se inscrevem sob a bandeira de organizações que afirmam ser “anarquismo social”, mas que, longe de se refugiarem na esfera privada, são também comprometido com lutas radicais. Na verdade, como quase sempre acontece com as dualidades, a dicotomia sugerida por Bookchin distorce a realidade porque não existem duas categorias de anarquismo, mas um continuum. Encontramos, em um extremo, um anarquismo de estilo de vida retraído em si mesmo e totalmente indiferente às lutas sociais, enquanto, no outro extremo, existe um anarquismo social impenetrável à qualquer coisa que não seja a luta social contra o capital. Entre esses dois extremos, se desenrola uma extensão onde estão representadas todas as dosagens entre os dois tipos de anarquismo.

O que cria a dicotomia, pela simples razão de que só deixa em aberto duas possibilidades, é a possibilidade de pertencer ou não a uma determinada organização. Mas se a dicotomia se origina desse fato, obviamente não pode funcionar dizer que o “anarquismo social” se encontra de um lado, e que o que se encontra do outro não é social.

O mesmo ponto pode ser aplicado à expressão “anarquismo organizado”. Não existe anarquismo organizado, por um lado, e um que não é, por outro lado. É claro que você tem que se organizar e que o desenvolvimento de qualquer tipo de atividade coletiva exige sempre alguma forma de organização, bem como o desdobramento de determinada atividade organizacional, mesmo que seja apenas para editar algumas folhas ou para debater um tema. Portanto, a questão não é organizar ou não, mas como organizar? E a resposta é que, para sabermos nos organizar, é preciso sabermos a razão pela qual queremos nos organizar. Isso condiciona a forma da organização.

O modelo tradicional pressupõe a criação de uma estrutura permanente, estável e abrangente, articulada em torno de bases programáticas e objetivos comuns de caráter suficientemente geral para que a estrutura tenha uma perspectiva temporal ampla. É um modelo pouco condizente com as condições sociais atuais, e que perdeu muito de sua eficácia, em tempos que correm sob o signo da velocidade, caracterizados pela rapidez das mudanças. A realidade atual exige modelos muito mais flexíveis, mais fluídos, orientados por objetivos simples de coordenação para realizar tarefas concretas e específicas. Na medida em que, para ser eficaz, a forma da organização deve ser adaptada à natureza das tarefas e aos objetivos para os quais é criada, e na medida em que estes são diversos e, por vezes, variáveis ​​e transitórios, é uma multiplicidade de formas organizacionais que devem coexistir da maneira mais complementar possível, não hesitando em desaparecer ou transformar-se ao ritmo das mudanças e acontecimentos sociais.

A questão da organização provavelmente deve ser repensada e ressignificada, no estilo do que aconteceu com o conceito de ‘revolução’, não para proclamar a ausência ou inutilidade da organização, mas para renovar seu conceito, suas formas e suas práticas. É claro que o fascínio atualmente exercido, em certos setores militantes, pelo antigo modelo de organização – criado como uma panaceia para aumentar a eficácia e difusão do anarquismo – não facilita em nada essa tarefa. Os esforços dedicados à construção de uma organização anarquista e a prioridade dada a essa tarefa se desviam de outras tarefas focadas mais diretamente nas lutas, e alimentam a ilusão de que as dificuldades que afligem as lutas atuais se devem principalmente à ausência de uma grande organização libertária e que irão desaparecer assim que esta vier à luz.

A preocupação com a organização e a atividade organizacional deve ser constante para que as atividades coletivas possam ser desenvolvidas. No entanto, isso é muito diferente de tentar construir uma organização. É por isso que o uso da expressão “anarquismo organizado” é enganoso. Esta expressão se refere, na realidade, ao anarquismo enquadrado em uma organização clássica, ou ao anarquismo focado no esforço de construir tal organização,e sugere que, não importa quão altamente organizados certos grupos ou coletivos anarquistas sejam para realizar tarefas concretas e específicas, eles não fazem parte do anarquismo organizado.

Expressão enganosa, mas também perigosa, porque introduz, como quase todas as dicotomias, uma dissimetria de valores e uma hierarquia entre os dois polos da dualidade criada. Assim, uma vez que organizar é obviamente um valor positivo, o anarquismo válido é o anarquismo organizado e o outro tipo de anarquismo é desprezível. Obviamente, a diferença entre eles não se deve ao fato de serem organizados ou não, ambos o são, mas porque um faz parte de determinada organização ou busca construí-la, e o outro não. Mas, é claro, se as coisas fossem ditas dessa forma, o efeito avaliativo e hierárquico que emana da expressão “anarquismo organizado” se perderia e o chamado para construir “a organização” seria enfraquecido. Minha maneira de tratar essa questão não deveria ser interpretada como um apelo por um anarquismo travado na esfera individual e relutante a qualquer ação organizada. Com efeito, questionar a dicotomia criada pela referência ao anarquismo social e ao anarquismo organizado não significa dizer que o anarquismo não deva atingir uma projeção social e, mais precisamente, uma projeção nos movimentos sociais. Se o anarquismo ressurgiu hoje, é justamente porque esteve presente nas grandes mobilizações populares deste início de século; e é óbvio que, se o anarquismo quer ter algum tipo de validade, deve permear o mais amplo movimento social possível – como, por exemplo, o anarquismo espanhol fez até o final dos anos 1930. Isso implica, é claro, que esses movimentos não podem ser compostos principalmente por anarquistas, nem devem ser especificamente anarquistas. Essa impregnação libertária, pela presença de militantes anarquistas, bem como de pessoas e grupos que atuam de forma libertária, mesmo que não se definam como tal, pode ser observada mais recentemente nas mobilizações massivas que não param de crescer e se radicalizar na França, de 2008 até hoje; contra a construção de um aeroporto em Notre-Dame-de-Landes, na Bretanha; ou nas mobilizações contra despejos na Espanha. Se o anarquismo contemporâneo muda, é precisamente porque está envolvido, com outros grupos, nas lutas atuais e porque incorpora ao seu próprio passado as principais características dessas lutas. Em sintonia com essas lutas, o neo-anarquismo participa de seu imaginário e incorpora alguns de seus aspectos a um imaginário anarquista que não pode deixar de ser modificado. Em última análise, o anarquismo que muda é o anarquismo que luta e que luta no presente.

 


Para Ler Mais:

O Anarquismo como Catapulta: Entrevista com Tomás Ibáñez

“Anarquismo es Movimiento” – livro completo em espanhol

 

A Luta é Pela Vida – parte II

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Esta é a segunda parte da coleção de textos anarquistas sobre pandemia, capitalismo e a luta pela vida. Assim como no primeiro tomo, os textos aqui reunidos foram escritos por grupos, associações e pessoas presentes em diferentes territórios. Contudo, como a pandemia teve maior expansão inicial nas terras conhecidas como China, Europa e América do Norte, o tomo UM focou nos estudos produzidos nessas localidades. Com o avanço do novo coronavírus para o sul, anarquistas dessas regiões escreveram análises, narraram acontecimentos e experimentaram propor ações coletivas a serem levadas a cabo por diferentes grupos libertários, “não como um programa, mas como uma conspiração”.

Os textos aqui compilados tratam dos efeitos da pandemia a partir de diferentes pontos. Entre eles estão o modo pelo qual os Estados e as sociedades nacionais lançam mão mais uma vez da ideia de inimigo comum para se fortalecer e validar suas ações, independentemente de quanto sangue escorre pelas mãos de seus policiais, militares e políticos. A metáfora militar de guerra ao vírus induz a noção de que as principais forças que devem ser mobilizadas são as de segurança, polícias e exércitos, para combater tal inimigo. Inimigo este que é invisível, disseminado por corpos de pessoas. Logo, com a mobilização estatal de combater o vírus, todas as pessoas se tornam um potencial inimigo, passíveis de serem presas, espancadas e assassinadas em nome da salvação da espécie, da vida biológica. Mas sabemos: nem todo sabão e água do planeta conseguirão limpar o sangue que escorre das fardas.

Com o argumento de combater a pandemia, os Estados buscam defender a vida biológica, a humanidade, que ao universalizar nossas existências, cria uma abstração sobre nossos corpos e, com isso, expandem o controle em meios abertos e fechados. Aplicam leis e decretos, empregam a polícia e as forças armadas para restringir a circulação das pessoas. Junto ao capitalismo, que é indissociável do Estado, tentam manter a sensação de uma exceção temporária, de que este mundo não está caindo sobre suas cabeças, que tudo voltará ao normal, que tudo vai passar. Contudo, o que é esse “normal”? Uma vida de miséria, de exploração, de submissão, de extermínio. Os governantes, estatais e privados, mostram com isso o quanto temem a revolta das pessoas exploradas, insubmissas e alvos de seu extermínio.

Por isso, anarquistas em diferentes partes do planeta, sobretudo ao sul, explicitam que “não queremos voltar ao normal, pois o problema é a normalidade!”. Nos governam pelo medo e por meio de ameaças. Eles nos temem e sabem que somos uma ameaça a sua normalidade. Medo da morte, medo de que este mundo de produção capitalista, onde vamos da casa para o emprego e do emprego para casa (quando se tem um emprego e uma casa, obviamente). Num fluxo interminável de exploração, de mortificação de nossas vidas. Entendemos que nós não vivemos para servir a ninguém, nem ao Estado, nem às empresas, nem a Deus, nem ao patrão, nem ao marido; a ninguém! Não queremos mais uma vida de miséria, onde nossa existência se restrinja ao biológico, não queremos mais sermos governadas pelo medo, porque não queremos mais ser governados! Não aceitamos suas ameaças!

Compas da região uruguaia explicitam como o isolamento obrigatório acaba também por silenciar uma série de violências por sobre o corpo de mulheres e crianças feitas principalmente por pais e maridos, e o efeito do fato de existirem poucas iniciativas de (auto)defesa dessas pessoas expostas a este tipo de situação. O pouco estímulo às práticas de apoio mútuo ou, em muitos casos, o desconhecimento de tais iniciativas, acaba por levar algumas dessas pessoas que foram violentadas a recorrerem a uma segunda violação: a polícia, exames de corpo de delito (que muitas vezes funcionam como um segundo estupro), inquérito, delações etc., alimentando o Estado e o seu braço armado.

Além disso, nesta publicação, são retomados momentos históricos para repensarmos as práticas de resistência frente à atual situação, como as greves de aluguéis, fortalecimento de laços de interação, grupos de afinidade, expropriações, ocupações, entre outros.

Por fim, saudamos as iniciativas individuais e coletivas de autocuidado para enfrentarmos a pandemia, para nos fortalecermos, não porque tememos o fim deste mundo, mas para acelerar sua queda, sua ruína. Quando as iniciativas têm como base a ação direta, o antiautoritarismo, o Estado perde, pouco a pouco. Seu monopólio rui nas mãos de cada pessoa, que junto de companheiras, toma sua vida nas próprias mãos.

Que esse momento nos sirva para começarmos a pensar em questões pouco debatidas entre anarquistas, como práticas de saúde antiautoritária e autocuidado, vinculadas diretamente ao apoio mútuo. Como afirma um texto anônimo publicado em Buenos Aires, “que a quarentena fortaleça nossa ânsia de liberdade e reafirme nossa negação de toda autoridade!”

Saúde e liberdade!