UMA SOLUÇÃO ANARQUISTA PARA O AQUECIMENTO GLOBAL

“Fico preocupado é se os brancos vão resistir. Nós estamos resistindo há 500 anos.”

– Ailton Krenak

Apresentação

por Facção Fictícia

Vivemos o auge da maior ameaça a toda forma de sustentabilidade da vida, dos biomas e das comunidades nesse planeta. Essa ameaça se chama Capitalismo, foi criada há séculos por seres humanos, e pode ser eliminada se assim quiserem os seres humanos. No entanto, mesmo abolindo esse sistema econômico-político que explora pessoas, promove genocídios, polui, degrada e envenena a terra, a água e o ar, teremos que sobreviver convivendo com as consequências de termos deixado a burguesia e o Estado chegarem tão longe. A destruição de ambientes inteiros, os venenos nos rios e em nossos corpos, as espécies que se foram, as geleiras que desapareceram e os rios que foram pavimentados, tudo isso permanecerá assim por anos. Viveremos coletando o que precisamos de ruínas e das pilhas de sucatas deixadas para trás. Tudo o que foi tirado do solo para ser jogado na superfície, nos mares e em nossos organismo não vai voltar da noite pro dia para o seu lugar de origem.

Essa inevitável constatação afeta nossas perspectivas de futuro. E é lá que residem as perspectivas revolucionárias e do fim do Capitalismo. Não existe mais uma promessa de futuro além do Capitalismo que seja apenas uma promessa de partilha e fartura, mas sim uma promessa de compartilhar a autogestão de nossas vidas em meio a recuperação da saúde dos biomas, das nossas relações e nossos corpos, após séculos de agressão e exploração. O que existe de fato é um consenso entre a comunidade científica, ativistas, instituições políticas, povos originários e pessoas tanto do campo como das cidades quanto aos riscos cada vez mais eminentes trazidos pelo aquecimento global e o impacto da industrialização e urbanização, que estão prestes a se tornarem irreversíveis.

Protesto contra o governo e os desmatamentos na Amazônia, em São Paulo, 23 de agosto de 2019.

Projetos de expansão do extrativismo para exportação de petróleo, commodities agrícolas e políticas desenvolvimentistas de aceleração do crescimento na época da gestão do PT, como a construção da usina de Belo Monte, que desalojou e impactou comunidades indígenas, milhares de pessoas que vivem no campo, mostram que governos de esquerda ou de direita enxergam a natureza e a vida humana como recursos para produzir bens de consumo. A ameaça oferecida por um governo de extrema direita, como o de Jair Bolsonaro, declaradamente inimigo do povo, das mulheres, dos povos indígenas, disposto a estimular sem pudores da violência física da repressão política e policial, consiste na intensificação das agressões que nunca deixaram de acontecer.

Queimadas aumentaram 82% em 2019 em relação ao mesmo período no ano passado no Brasil segundo o INPE. Uma fumaça de detritos causada pelos focos de incêndio florestais na região amazônica encobriu cidades do estado de São Paulo, fazendo o dia virar noite às 15h da tarde. Tudo isso no mesmo mês em que, na Islândia, pessoas organizaram o primeiro funeral, com lápide e tudo, para uma geleira declarada morta que desapareceu devido às altas temperaturas.

Cenas terríveis e trágicas, quase pitorescas, quase absurdas, nos lembram dos cenários e eventos fictícios como os do romance Não Verás País Nenhum, uma distopia social e ambiental brasileira de Ignácio de Loyloa Brandão. O livro, escrito na década de 1970 – em plena ditadura civil-militar no Brasil – descreve um regime ditatorial fictício conhecido como “civiltar”, que celebra – com datas festivas e tom ufanista – eventos como o corte da última árvore da Amazônia e declara com orgulho ter agora “um deserto maior que o do Saara”. Compondo o cenário trágico, todos os rios brasileiros estão mortos e jarros com a água de cada um dos rios extintos são expostos em um museu hidrográfico. Dunas de latas de alumínio e rodovias onde tomadas por carcaças de carros abandonados são o cenário que compõem os arredores de São Paulo. A cidade, por sua vez, sofre com súbitos bolsões de calor capazes de matar qualquer desavisado e doenças misteriosas que consomem os cidadãos, principalmente aqueles; em situação de rua. O autor alega ter se inspirado em eventos reais que pareciam absurdos, mas hoje se mostram cada vez mais reais do que nunca.

No mundo real, as notícias do aumento de queimadas na Amazônia chocaram a opinião pública ao redor do mundo, gerando indignação das pessoas e de líderes políticos como o presidente francês Emmanuel Macron que levou o tema para a reunião de cúpula do G7 e trocou farpas com Bolsonaro na mídia. No entanto, a solidariedade internacional entre povos explorados e excluídos é fundamental. Mas a intervenção de estados estrangeiros com interesses econômicos não é nada além da continuidade do colonialismo que começou em 1492. Não será nenhum governo que vai solucionar o problema dos incêndios e dos desmatamentos. O máximo que conseguirão é retardar ou diminuir a exploração, mas o Capitalismo neoliberal não aceita nada que não seja crescimento e mais crescimento, isto é: a transformação das matas e dos recursos dos solos em bens de consumo competitivos no mercado global. O que queima a Amazônia – e todo o planeta – é o latifúndio, a disputa por terras, o lucro e propriedade privada. Nada disso será tocado por nenhum governo eleito ou imposto. Uma perspectiva ambiental deve ser uma perspectiva revolucionária pelo fim do Capitalismo.

Anarquistas em protesto contra o governo e os desmatamentos na Amazônia, em São Paulo, 23 de agosto de 2019.

Exercitar nossa capacidade de imaginar

Utopia é por definição um lugar que não existe ou é inalcançável. Logo, são inúteis. Precisamos de outros lugares possíveis. Precisamos ser capazes de imaginar um mundo diferente. É preciso compartilhar referências de sociedades funcionando sem Estado e sem Capitalismo, como a Comuna de Paris em 1871, a Revolução Russa e Ucraniana de 1917 (antes de serem traídas e esmagadas pela ditadura bolchevique), ou a Revolução Espanhola de 1936. E também os episódios atuais como o levante Zapatista no México desde 1996 e a revolução em andamento em Rojava na Síria, onde os povos nativos se levantaram em armas e milhões de pessoas organizam sua economia, seu trabalho, sua educação e a gestão de cidades, vilas e campos sem um estado ou uma economia baseada na propriedade privada dos meios de produção. Além deles, há exemplos de todas as nações indígenas ao nosso redor: Guaranis, Mundurukus, Tapajós e Krenaks e tantas outras que, há cinco séculos, resistem à expansão colonial europeia e capitalista. Todos são exemplos que anarquistas devem ter como referência de vida, organização e resistência sem Estado e contra o Estado!

Guerreiros Mundurukus sem apoio do Estado partem para a ação direta para expulsar madeireiros da Terra Indígena Sawré Mybu, no Pará.

Se usássemos nossa capacidade de inventar ou acreditar em apocalipses zumbis e desastres proféticos do cinema ou da literatura para imaginar e construir uma realidade para além do Capitalismo desde já, estaríamos em um caminho muito melhor. Hoje nosso caminho beira a descrença e a passividade. Mas não existe neutralidade em um trem em movimento correndo para um abismo. Cruzar os braços é ser conivente. Agir individualmente é insuficiente. É preciso imaginar e também buscar referências revolucionárias recentes ou tradicionais e milenares de vida autogerida, organizada e igualitária entre os povos do mundo.

Por isso, compartilhamos o texto Uma Solução Anarquista para o Aquecimento Global, do anarquista Peter Gelderloos, para que possamos exercitar nossa imaginação. Para quem gostar da ideia, recomendamos o livro de autoria desconhecida, chamado Bolo Bolo, que imagina um planeta inteiro vivendo uma era pós Capitalismo.

Para mais exemplos e referências de sociedades anarquistas revolucionárias ou povos tradicionais e indígenas vivendo e solucionando seus problemas sem chefes ou governantes –, recomendamos o livro Anarquia Funciona, também escrito por Peter Gelderloos e disponível livremente na internet. O livro aborda com exemplos históricos e factuais questões como tomada de decisão, economia, solução de conflitos, meio ambiente, crime, organização de comunidades e revolução.

Boa leitura.

“De fato, já estamos no olho do furacão. Os preços da energia subiram como consequência de já havermos alcançado o pico na produção global de petróleo e seu consequente e inevitável declínio posterior. Furacões, secas e padrões climáticos imprevisíveis tornaram-se mais frequentes e intensos, fazendo-nos sofrer as consequências do aquecimento global que nós mesmos provocamos. Enquanto isso, a qualidade do solo e da água continua a se degradar e a biodiversidade colapsa com uma taxa de extinção de espécies 10.000 vezes superior a normal. Por sua vez, a tremenda crise nos preços dos alimentos em que se vê mergulhando o mundo neste momento é a indicação mais poderosa até agora de que já não se deve esperar um retorno a situação anterior. Pelo contrario, o que vemos é a batalha final entre a necessidade infinita de crescimento do capitalismo neoliberal e os recursos limitados de um único planeta. E não é com toda a engenharia financeira ou as invenções de tecnologias de última geração que o dinheiro pode comprar que este sistema irá escapar de seu colapso inevitável. Ele atingiu o ponto de inflexão e nós somos a geração a que corresponde à duvidosa honra de viver e morrer em seus últimos espasmos.”

Uri Gordon, Presságios Sombrios: política anarquista na época do colapso

Nem utopia, nem distopia: revolução!

Uma Solução Anarquista para o Aquecimento Global

por Peter Gelderloos

Se a resposta dos “capitalistas verdes” para as mudanças climáticas somente joga mais lenha na fogueira, e se os governos em escala mundial são incapazes de resolver o problema, como anarquistas sugeririam reorganizar a sociedade para poder diminuir a quantidade de gases estufa na atmosfera e sobreviver a um mundo que já mudou?

Não há uma só posição anarquista e muitos anarquistas se negam a oferecer qualquer tipo de proposta argumentando que quando a sociedade se libertar do Estado e do Capitalismo, ela mudará organicamente e não de acordo com um anteprojeto. Além disso, a atitude policial de ver o mundo desde cima e impor mudanças é inseparável da cultura responsável por destruir o planeta e oprimir a seus habitantes.

Contudo, queremos esboçar uma possível maneira de como poderíamos organizar nossas vidas, não dando uma proposta concreta, mas sim porque as visões nos fazem mais fortes e todos nós necessitamos de coragem para romper de uma vez por todas com as instituições existentes e com as soluções falsas que nos oferecem. Seguindo os propósitos deste texto, não vou entrarem nenhum dos importantes debates com respeito a ideais – níveis apropriados de tecnologia, escala, organização, coordenação e formalização. Vou descrever como uma sociedade ecológica e antiautoritária poderia se manifestar, fluindo desde a complexidade social do momento presente. Por razões de simplicidade,tampouco entrarei em debates científicos sobre o que é e o que não é sustentável. Esses debates e a informação que apresentam são acessíveis extensamente para quem queira fazer sua própria investigação.

Baseio a descrição deste possível futuro mundo no que é fisicamente necessário e o que é eticamente desejável, em concordância com as seguintes premissas:

  • A extração de combustíveis fósseis e seu consumo devem se encerrar por completo.
  • A produção de comida industrial deve ser substituída pela colheita sustentável de comida a nível local.
  • Estruturas centralizadas de poder são inerentemente exploradoras do meio ambiente e opressivas para as pessoas.
  • A mentalidade de valor quantitativo, acumulação, produção e consumo – ou melhor dizendo, a mentalidade do mercado livre – é inerentemente exploradora do meio ambiente e opressiva para as pessoas.
  • A descentralização, a associação voluntária, a auto-organização, o apoio mútuo e a não-coerção são viáveis e funcionaram dentro e fora da civilização ocidental inumeráveis vezes.

Bem-vindas ao futuro. Ninguém imaginaria que a sociedade global seria desta maneira. Sua característica mais definitiva é sua heterogeneidade. Algumas cidades foram abandonadas, árvores crescem através de suas avenidas, rios fluem onde antes o asfalto cobria a terra e os arranha-céus se desmoronam enquanto capivaras pastam em meio ao cimento rachado.

Outras cidades prosperam, porém mudaram a ponto de se tornarem irreconhecíveis. Terraços, lotes vazios e avenidas foram convertidas em hortas. Árvores frutíferas e nozes formam fileiras em cada quadra. Galos cantam a cada amanhecer. Em torno de um décimo das ruas – as grandes vias – permanecem pavimentadas ou asfaltadas, ônibus funcionando com biodiesel passam com frequência. Outras ruas foram amplamente ocupadas por jardins e hortas, embora ciclovias cortem o centro delas. Os únicos edifícios que tem eletricidade durante as vinte e quatro horas do dia são os centros de tratamento de água, os hospitais e as estações de rádio. Os teatros e os edifícios comunitários obtém energia em rodízio somente até atarde para que possam ficar abertos para noites de cinema ou outros eventos. Praticamente todos tem velas e lamparinas, e é assim que sempre há alguma luz em muitas janelas até tarde. Porém não é nada parecido com o que era antes. Na noite é possível ver as estrelas no céu e as crianças ficam boquiabertas quando os mais velhos lhes dizem como as pessoas haviam abandonado esse prazer.

A eletricidade é produzida por uma rede de usinas de energia que queimam desperdícios agrários (como espigas de milho, por exemplo), por meio de alguns biocombustíveis e através de uma quantidade reduzida de turbinas eólicas e painéis solares. Porém a cidade funciona com só uma fração do que usava anteriormente .As pessoas aquecem e resfriam seus lares por meio de um design solar e eficiente, sem eletricidade alguma. Nas regiões mais frias, as pessoas complementam isso no inverno com a queima de combustíveis renováveis, porém as casas estão bem isoladas e os fornos estão projetados com a máxima eficiência, por isso não é necessário muito. As pessoas também cozinham em fornos a base de combustíveis ou, em climas mais temperados, com fornos solares. Algumas cidades que utilizam mais eletricidade para a indústria manufatureira e para manter formas de geração de eletricidade renovável (solar, eólica e energia das marés e correntezas dos rios) também cozinham com eletricidade. Muitos edifícios tem uma lavadora coletiva, sem secadoras e todas as vestes são secadas como antigamente: em uma corda de varal.

Ninguém tem um refrigerador, embora cada edifício ou apartamento tenha um congelador comunal. As pessoas guardam alimentos perecíveis como iogurtes, ovos e legumes em uma geladeira portátil ou no porão, e comem alimentos frescos ou enlatados. Elas colhem nas hortas de suas quadras a metade do que consomem. Quase todos os alimentos que consomem são colhidos a vinte milhas de onde vivem. Nenhum alimento é geneticamente modificado ou produzido com químicos e todos são produzidos pelo seu sabor e nutrição, não por sua perenidade e facilidade de transporte. Em outras palavras, todos os alimentos tem um melhor sabor e as pessoas são muito mais saudáveis. Doenças cardíacas, diabetes e câncer, alguns dos maiores assassinos da sociedade capitalista, desaparecem. Os supervírus, criados durante o capitalismo, que mataram milhões de pessoas durante o colapso desapareceram em sua maior parte e o uso de antibióticos quase chegou ao fim. As pessoas vivem em condições mais saudáveis globalmente e tem sistemas imunológicos mais fortes. As viagens globais não são nem tão frequentes nem tão aceleradas. As pessoas também tem uma maior consciência com respeito ao meio ambiente e uma conexão pessoal com a biorregião porque se alimentam do que se produz em temporada e o do que se colhe localmente, e também porque são elas mesmas quem os colhem.

Cada casa tem um banheiro de compostagem e uma pia, porém não há esgoto. Se tornou uma espécie de regra subentendida ao redor do mundo que cada comunidade deve assumir a responsabilidade por seus próprios dejetos com bacias de evapotranspiração. Livrar-se de resíduos jogando-os rio abaixo tornou-se o maior tabu. As relativamente poucas fábricas restantes usam fungos e micróbios em grandes terrenos florestais ao redor das zonas industriais para corrigir qualquer eventual contaminação que produzam. Os bairros convertem seus dejetos em adubo ou combustível. A quantidade de água é limitada, porém os edifícios estão equipados com coletores de água da chuva para as hortas e para fazer faxinas. As vivências que excedem em muito a cota recomendada de uso de água são publicamente surpreendidas. A cota recomendada não é imposta, é simplesmente uma sugestão compartilhada por quem trabalha nos consórcios de tratamento das águas, baseada na quantidade de água que a cidade está permitida desviar da fonte principal e em concordância com todas as comunidades que compartilham a fonte.

Na maioria das cidades, as pessoas organizam assembleias periódicas para a manutenção de hortas, estradas, ruas, edifícios, creches e para mediar conflitos. As pessoas também participam de reuniões em qualquer sindicato ou projeto infraestrutural que desejam dedicar seu tempo. Estes podem incluir o consórcio de água, as cooperativas de transporte, o consórcio de eletricidade, os hospitais, a união de construtores, as fábricas ou as enfermarias (a maioria dos tratamentos médicos é realizado por herbalistas, naturopatas, homeopatas, acupunturistas, massoterapeutas, parteiras e outros especialistas que atendem a domicílio). A maioria destas organizações são descentralizadas ao máximo, confiando a indivíduos e pequenos grupos de trabalho a realização de suas tarefas, embora quando necessário, se coordene através de reuniões que normalmente funcionam como assembleias abertas usando o consenso, com uma preferência por compartilhar perspectivas e informação sem tomar decisões sempre que possível. Algumas vezes, reuniões interregionais (como por exemplo, a reunião de comunidades que compartilham a fonte de água), são organizadas com uma estrutura de delegações, ainda que as reuniões sempre estejam abertas a todo mundo, e sempre procuram chegar a decisões que satisfaçam a todos já que não há instituições coercitivas e qualquer tipo de coerção é reprovada por tentar “trazer de volta os velhos tempos”.

Como o poder está sempre num nível local, na medida do possível, a grande maioria das decisões é tomada por indivíduos ou grupos pequenos que compartilham afinidades e trabalham juntos regularmente. Uma vez que não há ênfase para controlar e acumular poder impondo homogeneidade ou singularidade de resultados, as pessoas descobrem que a maior parte da coordenação pode ocorrer organicamente,com gente diferente tomando diferentes decisões e resolvendo por si mesmas como reconciliar suas decisões com as dos demais.

Embora as sociedades de hoje estão estruturadas para criar sentimentos de comunidade e mutualidade, existe também espaço para a privacidade e solidão. Muitos bairros tem cozinhas comunais e salas de jantar, porém as pessoas podem cozinhar e comer por si mesmas, quando lhes der vontade – e elas normalmente o fazem. Algumas sociedades tem muitos chuveiros públicos, e outras não, dependendo das diferenças culturais. A comunização forçada em experimentos passados de utopias socialistas não existem nesse mundo. A propriedade privada foi abolida no sentido clássico dos meios de produção que as pessoas necessitam para sua sobrevivência, porém, qualquer um pode ter quantos objetos pessoais elas conseguirem – roupas, brinquedos, reservas de doces e outras iguarias, uma bicicleta, etc.

Quanto menor a comunidade, maior a probabilidade dela operar com uma economia de dádiva – qualquer coisa que você não use pode dar como um presente, reafirmando seus laços sociais e aumentando a quantidade de objetos em circulação – a qual é talvez a economia mais comum e de mais larga trajetória na história do ser humano. Além do nível de bairro, ou quando se trata de objetos raros ou que não são produzidos localmente, as pessoas podem negociar. Os sindicatos de algumas cidades podem utilizar um sistema de cupons para a distribuição de coisas que escasseiam ou que são de produção limitada. Se você trabalha no sindicato de eletricidade, por exemplo, pode obter um número de cupons que podem ser usados para conseguir coisas da fábrica de bicicletas ou de alguma fazenda fora da cidade.

Os itens mais comumente produzidos nas fábricas são bicicletas, ferramentas de metal, roupa, papel, equipamentos médicos, biodiesel e vidro. Mais comum que a fábrica é a oficina, onde as pessoas fabricam quaisquer tipo de coisa, com uma qualidade maior e em um ritmo mais lento e digno e saudável. As oficinas usualmente usam materiais reciclados (afinal, há muitos centros comerciais antigos e cheios de lixo e sucata) para fabricar coisas como brinquedos, instrumentos musicais, roupas, livros, rádios, geradores de eletricidade, bicicletas e partes de automóveis.

O trabalho não é obrigatório, porém quase todo mundo trabalha. Quando não se tem chefes é possível fazer coisas que são úteis e que têm significado, as pessoas tendem a desfrutar do trabalho. Aqueles que não contribuem trabalhando de nenhuma forma são muitas vezes desprezados ou excluídos dos aspectos mais agradáveis de viver em sociedade, porém nunca é aceitável negar a alguém comida ou tratamento médico. Pelo motivo de não ajudarem a seus próximos, é pouco provável que consigam boas comidas, consultas médicas, massagens ou acupuntura a menos que tenham um problema específico que as impeçam de trabalhar. Porém nunca serão deixadas morrer de fome. É uma pequena gasto de recursos para a comunidade, porém nada com parado como parasitismo de chefes, políticos e forças policiais do passado.

Não há mais polícia. Geralmente, as pessoas estão armadas e treinadas em autodefesa, e a vida de todos inclui atividades que incentivam sentimentos coletivos ou comunais de interesse próprio. As pessoas dependem da cooperação e do apoio mútuo para sobreviver e serem felizes, deste modo aqueles que estragam seus laços sociais, acabam se isolando e prejudicam a si mesmos. As pessoas lutaram para derrotar seus opressores. Derrotaram a polícia e as forças armadas das classes dirigentes, e recordam essa vitória. O imperativo de nunca voltar a sermos governados forma uma grande parte da identidade hoje em dia. Não serão intimidados por ocasionais psicopatas ou quadrilhas de mafiosos.

Em suma, a cidade tem uma insignificante pegada ambiental. Uma grande concentração de pessoas vive em uma área determinada, que contudo contém uma grande biodiversidade, com muitas espécies de plantas e animais vivendo juntas. Não produzem poluição que não sanem elas mesmas. Usam água de fontes, porém muito menos que uma cidade capitalista, e em acordo com outras comunidades que usam as mesmas fontes. Produzem gases estufa através da queima de combustível, porém a quantidade é menor do que a absorvida da atmosfera pela sua própria agricultura (pois todos os combustíveis são de origem agrária, e o carbono que produzem é o mesmo que essas plantas removeram da atmosfera enquanto cresciam). Quase toda a comida local é produzida de forma sustentável. Existe uma pequena quantidade de produção industrial, porém a grande parte dela usa materiais reciclados.

Fora da cidade, o mundo está ainda mais transformado. Desertos, selvas, montanhas, pântanos, tundras e outras áreas que não podem sustentavelmente suportar altas populações humanas regressaram a seu estado natural. Nenhum tipo de programa governamental foi necessário para criar reservas naturais, simplesmente não valia a pena permanecer nestes lugares quando a produção de combustíveis fósseis parou. Em muitas destas, as pessoas vivem como caçadores-coletores, levando a cabo a mais inteligente forma de economia possível nesta biorregião e tornando a noção convencional do que é futurístico de cabeça.

Algumas comunidades rurais são autossuficientes, sustentadas com a agricultura e a pecuária, ou mais intencionalmente com a permacultura. Muitas pessoas que deixaram as cidades durante o colapso formaram estas comunas e são mais felizes e saudáveis do que durante o capitalismo. Algumas das comunidades permaculturais são compostas de unidades familiares mais tradicionais, com cada família ocupando uma dois acres de terra, estendido sem uma distribuição homogênea sobre um vasto território. Outras compreendem um núcleo densamente povoado, com centenas de habitantes vivendo em doze acres de campos intensamente cultivados, rodeados por árvores frutíferas e campinas com frutas, nozes e gado, rodeados por sua vez por um anel de bosques naturais que servem como um cinturão ecológico, e com o espaço para um ocasional corte de árvores e caça de animais. Estas comunidades rurais são quase completamente autossuficientes, tem uma relação sustentável com a terra, fomentam uma alta biodiversidade, e sua emissão de gases de efeito estufa facilmente equivale a zero.

As comunidades rurais nos pequenos raios em torno das das cidades levam a cabo uma agricultura intensiva, ajudada por alguns produtos manufaturados, em uma relação simbiótica com seus vizinhos urbanos. Cada semana, utilizando carruagens ou caminhonetes a biodiesel, trazem comida e biocombustíveis até um bairro específico da cidade, e levam de volta compostagem (a maioria proveniente de banheiros, já que os restos de comida servem para alimentar as aves urbanas). Com este nutritivo composto, vidros para estufas, ferramentas de metal e o ocasional uso de tratores ou arados mecânicos compartilhados entre várias pequenas fazendas, é possível produzir altos rendimentos todo o ano sem destruir a terra nem depender de químicos ou combustíveis fósseis. Elas cultivos intercalados e outros métodos derivados da permacultura para preservar o estado saudável da terra e evitar pragas. As fazendas contam com árvores frutíferas e pequenos bosques, e por isso há uma grande biodiversidade, incluindo grande quantidade de aves que se alimentam de insetos. Já que não praticam a monocultura, as pestes e as doenças não se expandem tão incontrolavelmente como na agricultura industrial capitalista. O uso de plantas nativas, diferentes espécies, a proteção do solo, e a preservação de bosques também mitigam o impacto das secas e do clima extremo causado pelas mudanças climáticas.

Ainda existe uma quantidade aceitável de transporte entre biorregiões. As cidades estão conectadas por meio de trens a biodiesel e as pessoas cruzam regularmente os oceanos em barcos que funcionam com energia eólica. Uma quantidade de finida de comércio interregional funciona desta maneira, porém o transporte interregional serve, principalmente, para permitir o movimento das pessoas, ideias e identidades. As pessoas se locomovem menos do que nos últimos dias de capitalismo, porém, por outro lado, não tem que se preocupar por seguir os caprichos da economia que as obrigava a se mudar para longe em busca de trabalho. As biorregiões são quase completamente autossuficientes economicamente e as pessoas encontram o sustento necessário. Se querem partir é porque querem viajar para ver o mundo e são livres para fazê-lo porque as fronteiras deixaram de existir.

A comunicação de longa distância funciona principalmente através de rádio. A maioria das comunidades urbanas e semi-urbanas tem telefone e internet. A produção altamente tóxica de computadores quase acabou, porém algumas poucas cidades usam métodos inovadores e mais limpos para produzir computadores em uma escala mínima e mais lenta. No entanto, existem suficientes peças em circulação e a maioria dos bairros podem manter alguns computadores funcionando se assim desejam. Muitas pessoas da zona rural vivem o suficientemente perto de uma cidade para ter acesso a estas formas de comunicação de vez em quando. Ainda é possível receber notícias de todo o mundo e continuar a cultivar uma identidade parcialmente global.

A base econômica da sociedade se diversificou bastante dentro de cada comunidade linguística. Em outras palavras, uma pessoa pode viver em uma comuna agrícola com um nível de tecnologia muito similar ao da sociedade ocidental no século dezenove, mas na vizinhança existe um bosque habitado por caçadores-coletores. E, algumas vezes por ano, essa pessoa pode visitar uma cidade organizada por sindicatos e assembleias, onde há eletricidade, ônibus, uma estação de trem ou um porto, onde se pode ver filmes ou ler o blog de alguém que está no outro lado do planeta. Imagens e notícias ao redor do mundo passam por cada comuna regularmente. Se fala o mesmo idioma e se compartilha uma cultura e história similar com estas comunidades que são, no entanto, muito diferentes entre si. O resultado disso é que uma identidade exclusivamente separatista e isolada, que poderia trazer problemas como o renascimento de comportamentos dominadores e imperialistas, é constantemente balanceada pelo crescimento de uma identidade global e a mescla com membros tão diferentes de uma comunidade ampla. Na verdade, já que a maioria das comunidades linguísticas se estendem bem mais além de uma biorregião e já que as pessoas desfrutam de uma mobilidade social sem precedentes, cada indivíduo decide, quando chega a uma certa idade, se quer viver na cidade, no campo ou nos bosques. Não somente as fronteiras não existem entre nações artificialmente construídas; as fronteiras sociais tampouco detém o movimento entre diferentes categorias identitárias e culturais.

Para as pessoas mais velhas, esta forma de vida se assemelha ao paraíso, mesclado com os sombrios detalhes da realidade – conflitos, trabalho duro, desamores e pequenos dramas. Os jovens simplesmente pensam que este tipo de vida é resultado de um senso comum.

Ecada ano, o mundo se cura um pouco mais dos estragos causados pelo capitalismo industrial. Novas áreas retornam ao estado silvestre e a quantidade de bosques e zonas úmidas aumenta, enquanto que áreas altamente povoadas se tornam ecossistemas saudáveis graças a jardinagem, a permacultura e a eliminação dos carros. Os níveis de gases de efeito estufa se reduzem lentamente, pela primeira vez em décadas, o carbono retorna aos solos, aos bosques e zonas úmidas, a novas áreas urbanas verdes; e a queima de combustíveis fósseis é erradicada. Mais de um terço das espécies no planeta se extinguiram antes das pessoas mudarem a maneira de viver, porém agora que a perda de habitat foi invertida, muitas espécies voltam a se proliferar. Enquanto a humanidade não esquece a lição mais difícil que já aprendeu, em alguns milhões de anos e a biodiversidade do planeta será tão grande como sempre foi.

Uma vida digna substituiu o lucro como o novo termômetro social e, em um golpe a todos os engenheiros do planejamento social, todo mundo pode fazer suas próprias metas e determinar por si mesmos como alcançá-las. As pessoas recuperaram a habilidade de se alimentar e de fazer suas próprias casas, e as comunidades individuais mostraram que elas são as que se encontram melhor situadas para projetar um modo de sustentabilidade adaptado as condições locais e as várias mudanças resultantes do aquecimento global. Era algo tão óbvio. A única solução que todos os que se beneficiavam com uma economia que gerava mudanças climáticas nunca discutiram era as que poderiam realmente funcionar.

Durante a maior parte do tempo, as pessoas não acreditavam em quem tentava alertar sobre as mudanças climáticas, sobre o colapso ecológico, e outros problemas criados pelo governo e pelo capital – os mesmos que clamavam soluções radicais. Ao final, viram que a melhor decisão que tomaram em suas vidas foi a de parar de confiar naqueles que estão no poder, os responsáveis por todos esses problemas, e ao invés disso começar a confiar em si mesmas e se partirem para a ação.

A esses leitores que duvidam da possibilidade desta visão, podem dar uma olhada em “Campos, Fábricas e Oficinas”, de Peter Kropotkin, onde cientificamente se mostra uma proposta similar já há mais de cem anos. Também podem prestar atenção em como a terra nativa onde vivem foi organizada antes da colonização. De onde eu venho a Confederação Powhatan manteve a paz e coordenou o comércio entre várias nações no sul da Bahia de Chesapeake, na costa atlântica dos Estados Unidos. Ao norte, os Haudensaunne mantiveram a paz entre cinco, e logo seis nações, por cem anos. Ambos grupos suportaram uma alta densidade populacional mediante a horticultura intensiva e pescando sem degradar o meio ambiente.

Onde agora vivo, em Barcelona, os trabalhadores tomaram a cidade e as fábricas e geriram tudo por si mesmos em 1936. E onde estou escrevendo este artigo, em Seattle, houve uma greve geral de um mês em 1919 e os trabalhadores também se provaram capazes de se organizar e manter a paz. Não é um sonho. É uma possibilidade iminente, porém somente se tivermos a coragem de acreditar nela!

São Paulo, 23 de agosto de 2019.
UM OUTRO FIM DO MUNDO É POSSÍVEL!

Textos recomendados:

 

 

 

 

 

A AMEAÇA À ROJAVA: zine para imprimir

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No mês de julho de 2019, o governo da Turquia anunciou que está pronto para invadir Rojava, território autônomo e autogerido no norte da Síria, para reacender a guerra civil no país. O presidente Erdogan quer massacrar pessoas que derrotaram o grupo jihadista, terrorista e fascista conhecido como Estado Islâmico.

Em dezembro de 2018, após o anúncio surpresa do presidente Donald Trump de que ele está retirando da Síria as tropas dos EUA que ajudaram a barrar os avanços dos jihadistas, anarquistas combatendo em Rojava escreveram esse artigo, explicando o que isso significa para a região e quais são os efeitos em escala global. É preciso entender o que se passa e que coloca em risco a vida de milhões de pessoas que lutam há anos em uma guerra pela liberdade e há séculos pelo direito de existir.

Está chegando o Dia X, o começo de uma invasão turca: tomem as ruas, realizem ações, ocupem, perturbem e bloqueiem! Mostre aos responsáveis nos escritórios do governo e nos locais de trabalho o que você acha da guerra deles! Juntos podemos parar a guerra de agressão da Turquia! Nenhuma guerra contra o norte da Síria!

A revolução no nordeste da Síria sairá vitoriosa, todo fascismo será esmagado!

Mais informações:

riseup4rojava.org

internationalistcommune.com

“A POLÍTICA DO SEGREDO COMO O SEGREDO DA DOMINAÇÃO”: notas sobre o vazamento do Intercept e a judicialização da vida cotidiana

O governo não pode pois apresentar-se como outra coisa senão como uma facção. O que se chama de governo é apenas a facção vitoriosa, e é precisamente no fato mesmo de ser facção que reside a necessidade de sua queda…
Hegel – Fenomenologia do Espirito

 

Nas últimas semanas Glenn Greenwald, jornalista e ganhador do Pulitzer, vem revelando por meio do site Intercept e sua equipe de jornalistas diversas conversas vazadas entre o ex-Juiz e agora Ministro da Justiça Sérgio Moro e Deltan Dallagnol, procurador da República e coordenador da Lava Jato, além de outros procuradores e integrantes da operação.

A operação que ficou conhecida como “Lava Jato” iniciou-se em 2014 e ainda está em andamento, como um conjunto de investigações da Polícia Federal visando apurar um enorme esquema de lavagem de dinheiro envolvendo políticos, doleiros e empresas que movimentaram bilhões de reais em propina. Com presença constante na mídia a operação  cumpriu inúmeras ações de busca e apreensão, prisões temporárias, prisões preventivas, conduções coercitivas, dentre outras ações envolvendo políticos de diversos partidos, grandes empresários, empreiteiras, operadores e doleiros, como demostram os dados divulgados no próprio site da Policia Federal.

A Lava Jato foi tomada pela imprensa e setores mais conservadores da sociedade como um marco na luta contra a corrupção no Brasil, considerada uma resposta a notável impunidade dos setores políticos e empresariais e sendo aclamada  por uma população cada vez mais indignada com os “poderosos” e suas “roubalheiras”. Ainda que não tenha sido a causa do Impeachment sofrido pela ex-Presidenta Dilma Rousseff em 2016, a operação serviu para desgastar a já abalada imagem do Partido dos Trabalhadores, tendo inclusive vazado ilegalmente o diálogo entre a então presidente e o ex-presidente Lula, causando ainda mais a sensação de que a corrupção e o governo eram não só os grandes problemas a serem resolvidos mas como um único problema.

O ponto alto das ações notadamente se dá com a condenação e prisão do ex-presidente Lula em um processo cercado de diversos questionamentos legais e uma enorme espetacularização, parecendo polarizar ainda mais a política no país, sendo apontada inclusive com uma sobrevida moral do Partido dos Trabalhadores no campo da esquerda (lançando uma expressiva campanha “Lula Livre“). Lula está preso hoje em virtude de apenas uma condenação dos nove processos contra ele na Lava Jato.

Até o presente momento a Lava Jato principalmente na figura de Sérgio Moro era considerada um bastião da moralidade, sua alta aprovação nos meios populares e na mídia levaram o recém eleito presidente Jair Bolsonaro a convidar Moro para ocupar o Ministério da Justiça de seu governo em 2018. Fato que levantou ainda mais duvidas sobre a suposta imparcialidade da operação, já que é possível especular que Moro tenha favorecido a campanha de Bolsonaro em vários momentos, como no episódio em que de férias tentou evitar que Lula fosse solto pela decisão de um juiz de plantão, quando ordenou interceptação telefônica de familiares e advogados do Lula, e também a já mencionada suspensão do sigilo de conversas por telefone entre Lula e Dilma.

As conversas privadas entre Moro, Dallagnol e outros procuradores  explicitaram a óbvia relação incestuosa de mais uma das facções criminosas que compõe o poder, a saber, o poder Judiciário. Aqui não podemos deixar de apontar, como também revela a relação do governo Bolsonaro com as milicias (temos o recente caso do militar, integrante a comitiva presidencial, que foi preso viajando com 39 kg de cocaína em um avião oficial), que no capitalismo tardio a gestão do governo só pode tomar a forma da máfia. Guy Debord ainda na década de 80 afirmava que “o segredo domina este mundo, é em primeiro lugar como segredo da dominação“, a relação entre Estado, economia, judiciário e outras instancias do poder precisam cada vez mais ser geridas em total opacidade. Ainda que as operações estejam a vista de todos, cobertas pela mídia em cada passo, seu núcleo precisa perpetuar um segredo generalizado como seu complemento perverso e mais importante. Apenas os ingênuos podem ter a benesse de dizer “disso nós não sabíamos”.

É interessante notar a semelhança da Operação Lava Jato e a Operação Mãos Limpas, tendo sido inclusive uma enorme inspiração para Sérgio Moro como mostra seu artigo “Considerações sobre a Operação Mani Pulite” publicado ainda em 2004, o então juíz afirma que a operação é “um momento extraordinário na história contemporânea do Judiciário” e que “constituiu uma das mais exitosas cruzadas judiciárias contra a corrupção política e administrativa”. A Operação Mãos Limpas começa na Itália da década de 90 onde vem a tona casos em que diversos empresários pagavam propina para políticos dos mais diversos partidos para conseguir licitações e uso do poder público. A operação, seus precedentes e decorrências nos permitem observar como o país foi desde muito tempo esse intenso laboratório anti-insurgente de técnicas repressivas policiais, estatais e judiciárias. Não é por acaso que isso se inicia na década de 70, onde a luta proletária estava mais avançada e radical, as novas formas de criminalização das lutas e sua judicialização que começam nos grupos radicais autonomistas chegam com as Mãos Limpas aos partidos tradicionais. A operação termina assim com a chamado Primeira República Italiana, onde são extintos o Partido Socialista Italiano e a Democracia Cristã, principais forças políticas do país na época. Não é a toa que o vazio político é tomado pela ascensão do magnata Silvio Berlusconi ao cargo de primeiro-ministro da Itália… as semelhanças com Bolsonaro são óbvias e reveladoras!

“Mãos Limpas” e “Lava Jato” aparecem para nós como sintomas da judicialização da política e consequentemente da vida cotidiana, onde cada vez mais o procedimentalismo jurídico e as decisões judiciais eclipsam as lutas políticas e sociais. É evidente como também no campo da esquerda isso acabou invertendo os modos de atuação, já que mais que cultivar práticas de ação através do ordenamento jurídico, alimentou a fé que tal judicialização seria “justa”, seguisse as “leis” e pudesse inclusive mudar o sistema. Quem diria que a esquerda seria o polo legalista, esquecendo que o papel do direito foi sempre da  manutenção, reprodução e instrumentalização do poder ! Três juristas no artigo “O Fim das Ilusões Constitucionais de 1988?” chegam mesmo a apontar como Brasil vivemos em um estado de exceção permanente semelhante a jurisprudência do Terceiro Reich, logo se fiar na ilusão constitucional da legalidade é deixar de ver que o modelo atual é o da contrarrevolução permanente, ou seja, qualquer um é potencialmente um criminoso e/ou inimigo.

A renovada centralidade do problema da corrupção na mídia e no campo social, uma luta encampada desde sempre pelos setores mais conservadores e de direita, levou vários grupos de esquerda a tentar dar uma resposta moral e política (consequentemente populista) ao problema, incorporando o significante aos seus discursos como uma medida que supostamente iria angariar apoio e projeção popular. Diversos ideólogos e partidos chegaram a saudar Moro e a Lava-Jato, e o próprio PT foi no início bastante ambíguo com a operação, dirigentes inclusive chegaram a defende-la publicamente.

Essa “habermazeação” das lutas e a crença na autonomia das instituições demonstram  que a real importância dos vazamentos da Intercept é dar visibilidade ao fato de que a democracia e seus aparatos jurídicos são dispositivos espetaculares a serem destruídos, não instituições que devam ser aprimoradas e protegidas. Não acreditamos no Estado Democrático de Direito, não cultivamos esperanças nos meios “legais”, é inútil protestar legalmente contra a implosão completa do quadro legal. Se o Partido dos Trabalhadores chegou até esse momento com sua imagem prejudicada e seu principal líder na cadeia é por sua responsabilidade e crença nesse sistema, o próprio Lula afirmou isso quando foi preso: “Se eu não acreditasse na Justiça, eu não tinha feito um partido político. Eu tinha proposto uma revolução nesse país“, poucas frases condensam tão bem o lulismo!

É crucial que se diga que se nós também desejamos e apoiamos a soltura de Lula da prisão é porque acreditamos que TODA prisão é política, que NINGUÉM deve ser preso e as cadeias devem ser destruídas. Não é “privilégio” do Lula ter sido preso injustamente, principalmente se pensarmos no aumento da população carcerário nos governos petistas!

Toda vez que a esquerda infla e aposta no poder judiciário ele se volta contra a própria esquerda, então a derrota do PT(assim como de toda esquerda pró-capital), sua ideologia e suas práticas conciliatórias, devem ser políticas e não por meio da justiça burguesa que eles mesmos tanto cultivaram. Em nossas práticas e discursos não devemos nunca esquecer que são nossos inimigos todos aqueles que se aliam a burguesia, apoiam o encarceramento, incentivam o lucro dos empresários, bancos e empreiteiras, realizam megaeventos, recuam no processo da reforma agrária, não garantem o direito dos povos originários, reprimem manifestações e implementam a chamada “Lei Antiterrorismo”. Toda busca do Lulismo, consequentemente do petismo e da esquerda do capital, foi para bloquear qualquer tipo de radicalidade, querendo nos fazer crer que ainda há possibilidade de uma normalização das instituições, da pactuação política e pacificação do caos social.

Já não é mais possível sermos ingênuos e nos permitirmos ainda ter fé no sistema, na democracia e no Direito, mais que nunca é necessário jogar em outro terreno… nunca é tarde para desertar!

DA DEMOCRACIA À LIBERDADE – parte 3 de 4

lucyweb

NOTA: Esse texto faz parte de uma série e um debate internacional analisando a Democracia sob uma perspectiva anarquista. Para saber mais e participar, veja o primeiro artigo.

Os Excluídos: Raça, Gênero e Democracia

Frequentemente ouvimos argumentos pela democracia baseados em que, por ser a forma mais inclusiva de governo, ela seria a melhor opção para combater o racismo e o sexismo em nossa sociedade. Entretanto, enquanto categorias de governantes/governados e incluídos/excluídos estiverem dentro da estrutura da política, codificadas como “maiorias” e “minorias”, mesmo quando as minorias são em maior número que as maiorias, desequilíbrios de poder nas linhas de raça e gênero irão sempre aparecer como disparidades no poder político. É por isso que mulheres, a população negra, e outros grupos ainda carecem de influência política proporcional aos seus números, apesar de já possuírem o tão alardeado direito ao voto por um século ou mais.

Nós não nos beneficiamos da democracia nos Estados Unidos. Nós apenas sofremos com a hipocrisia dos Estados Unidos.”

Malcolm X, “The Ballot or the Bullet”

Em The Abolition of White Democracy (A Abolição da Democracia Branca) o falecido Joel Olson apresenta uma empolgante crítica do que ele chama dedemocracia branca — a concentração de poder político democrático nas mãos de brancos através de uma aliança interclasses entre aqueles que possuem privilégio de raça. Mas ele aceita sem questionar o fato de que a democracia é o sistema mais desejado, assumindo que a supremacia branca é um obstáculo incidental ao seu funcionamento ao invés de uma consequência natural dela. Se a democracia é a forma ideal das relações igualitárias, por que ela tem sido implicada em racismo estrutural durante praticamente toda a sua existência?

Onde a política é construída como uma competição de soma-zero, aqueles que detém o poder abominarão a ideia de compartilhá-lo com outros. Leve em consideração os homens que se opuseram ao sufrágio universal e as pessoas brancas que se opuseram à extensão do direito de voto às pessoas de cor: as estruturas da democracia não desencorajam o seu preconceito, mas lhes dão um incentivo para institucionalizá-lo.

Olson traça o caminho pelo qual a classe dominante nutriu a supremacia racial para dividir a classe trabalhadora, mas ele negligencia a forma como as estruturas democráticas se prestaram a esse processo. Ele argumenta que nós devemos promover a solidariedade de classes como uma resposta a estas divisões, mas (como Bakunin argumentou contra Marx) a diferença entre os que governam e os governados é ela mesma uma diferença de classe – pense na antiga Atenas. A exclusão baseada em raça sempre foi o outro lado da moeda da cidadania.

“Ao erigir uma sociedade escravagista, os Estados Unidos criou a base econômica para o seu grande experimento em democracia… A indispensável classe trabalhadora dos Estados Unidos existia como propriedade além do reino da política, deixando os norte-americanos brancos livres para alardear o seu amor pela liberdade e pelos valores democráticos.”

Ta-Nehisi Coates, “The Case for Reparations”

Então a dimensão política da supremacia branca não é apenas uma consequência das disparidades raciais no poder econômico – ela também as produz. Divisões étnicas e raciais foram embutidas na nossa sociedade muito antes do surgimento do capitalismo; o confisco da propriedade de judeus durante a Inquisição financiou a colonização inicial das Américas, e a pilhagem das Américas e a escravização dos africanos providenciou o capital inicial para dar a partida no capitalismo na Europa e depois na América do Norte. É possível que as divisões raciais também possam sobreviver às próximas grandes mudanças econômicas e políticas – por exemplo, como assembleias compostas predominantemente por cidadãos brancos (ou judeus ou mesmo curdos).

Não existem soluções fáceis para este problema. Reformistas falam com frequência em tornar o nosso sistema político mais “democrático”, querendo dizer mais inclusivo e igualitário. Mas quando as suas reformas são realizadas de forma que legitimam e fortalecem as instituições do governo, isso só põe mais peso atrás dessas instituições quando elas atacam os perseguidos e marginalizados – veja o encarceramento em massa de pessoas negras desde o movimento pelos direitos civis. Malcolm X e outros defensores do separatismo negro tinham razão quando disseram que uma democracia fundada por brancos jamais poderia oferecer liberdade aos negros – não porque brancos e negros não possam coexistir, mas porque, ao transformar a política numa competição pelo poder político centralizado, a governança democrática cria conflitos que impedem a coexistência. Se os conflitos raciais de hoje pudessem ser resolvidos, seria através do estabelecimento de novas relações com base na descentralização, e não através da integração dos excluídos na ordem política dos incluídos1.

Enquanto houver polícia, de quem você acha que ela vai abusar? Enquanto houver prisões, quem você acha que vai estar lá dentro? Enquanto houver pobreza, quem você pensa que serão os pobres? É ingenuidade acreditar que podemos alcançar a igualdade em uma sociedade baseada na hierarquia. Você pode embaralhar as cartas, mas ainda é o mesmo baralho.”

Para Mudar Tudo

Enquanto nós entendermos o que estamos fazendo juntos politicamente como democracia – como o governo através de um processo de tomada de decisões legítimo – nós veremos essa legitimidade sendo invocada para justificar programas que são funcionalmente racistas, quer sejam políticas de um Estado ou decisões de um conselho. (Lembrem-se, por exemplo, das tensões entre os processos de tomada de decisões das assembleias gerais predominantemente brancas e dos acampamentos menos brancos dentro de muitos grupos do movimento Occupy). Somente quando nós dispensarmos a ideia de que qualquer processo político é inerentemente legítimo seremos capazes de nos despirmos do álibi final das disparidades raciais que sempre caracterizaram a governançademocrática. Isso nos dá uma nova perspectiva sobre as razões que levaram Lucy Parsons, Emma Goldman e outras mulheres a argumentar que a demanda pelo voto feminino estava errando o alvo. Por que alguém iria rejeitar a opção de participar na política eleitoral, imperfeita como é? A resposta mais curta é que elas queriam abolir o governo completamente, não torná-lo mais participativo. Mas ao olhar mais de perto, podemos encontrar algumas razões mais específicas pelas quais as pessoas preocupadas com a libertação das mulheres podem suspeitar da oferta.

A história das atividades políticas dos homens prova que elas não lhes deram absolutamente nada que ele não poderia ter alcançado de forma mais direta, menos custosa e mais duradoura. A propósito, toda pequena conquista que ele teve foi através da luta constante, uma briga incansável pela autoafirmação, e não através do sufrágio. Não existe nenhuma razão para crer que a mulher, na sua escalada pela emancipação, foi ou será ajudada pelo voto.”

Emma Goldman, “Women Suffrage”

Vamos voltar à polis e ao oikos – a cidade e o lar. Sistemas democráticos se baseiam em uma distinção formal entre as esferas pública e privada; a esfera pública é o local de todas tomadas de decisão legítimas, enquanto a esfera privada é excluída ou desacreditada. Em uma grande variedade de sociedades e eras, esta divisão foi profundamente baseada no gênero, com os homens dominando as esferas públicas – propriedade, trabalho assalariado, governo, chefia e locais públicos – enquanto as mulheres e outras pessoas fora do binarismo de gênero foram relegadas às esferas privadas: o lar, a cozinha, a família, criação dos filhos, trabalhadoras do sexo, cuidadoras e outras formas de trabalho invisível e não-remunerado.

Na medida em que os sistemas democráticos centralizam o poder e a autoridade para tomada de decisão na esfera pública, acabam reproduzindo os padrões patriarcais de poder. Isso é mais óbvio quando as mulheres são formalmente excluídas da política e do voto – mas mesmo quando não o são, elas frequentemente enfrentam obstáculos informais na esfera pública enquanto carregam responsabilidades desproporcionais na esfera privada.

A inclusão de mais participantes na esfera pública serve para legitimar ainda mais um espaço onde as mulheres e aquelas pessoas que não se conformam às normas de gênero operam em desvantagem. Se “democratização” significa uma mudança no poder de tomada de decisão de locais informais e privados para espaços políticos mais públicos, o resultado pode até mesmo desgastar algumas formas de poder feminino. Lembrem-se de como os abrigos para mulheres de iniciativa popular fundados na década de 1970 foram profissionalizados através de financiamento estatal a tal nível que, na década de 1990, as mulheres que os fundaram não estariam qualificadas nem para as vagas de emprego destinadas a iniciantes.

Assim, não podemos confiar no grau de participação formal feminina na esfera pública como um índice de libertação. Ao invés disso, podemos desconstruir a distinção baseada em gênero nas esferas pública e privada, validando aquilo que acontece nas relações, famílias, lares, vizinhanças, redes sociais e outros espaços que não são reconhecidos como parte da esfera política. Isso não significa formalizar estes espaços ou integrá-los em uma prática política supostamente neutra na questão de gênero, mas legitimar múltiplas maneiras de tomar decisões, reconhecendo os diversos locais de poder dentro da sociedade.

Existem duas formas de responder à dominação masculina na esfera política. A primeira é tentar tornar os espaços públicos formais o mais acessíveis e inclusivos possível – por exemplo, aceitando o registro de mulheres para votar, provendo creches, estabelecendo cotas de quem deve participar das decisões, avaliando quem deve ter permissão para falar nas discussões, ou até mesmo, como em Rojava, estabelecendo assembleias exclusivamente femininas com poder de veto. Esta estratégia busca implementar a igualdade, mas ainda pressupõe que todo poder deve ser investido na esfera pública. A alternativa é identificar locais e práticas de tomada de decisão que já empoderam as pessoas que não se beneficiam do privilégio masculino, e lhes dar maior influência. Esta abordagem aproxima-se de tradições feministas consagradas que priorizam as vidas e experiências das pessoas acima das estruturas e ideologias formais, reconhecendo a importância da diversidade e valorizando dimensões da vida que são geralmente invisíveis.

Essas duas abordagens podem somar-se e complementar uma à outra, mas somente se descartarmos a ideia de que toda legitimidade deve estar concentrada em um única estrutura institucional.

“De todas as ilusões modernas, o voto foi certamente o maior… O princípio de governo é em si errado: nenhuma pessoa tem o direito de governar outra.”– Lucy Parsons, “The Ballot Humbug

Argumentos Contra a Autonomia

Existem diversas objeções à ideia de que as estruturas de tomada de decisão devam ser voluntárias ao invés de obrigatórias, descentralizadas ao invés de esculpidas em pedra. Nos dizem que sem um mecanismo central para resolver conflitos, a sociedade se degradará em guerra civil; que é impossível se defender contra agressores centralizados sem uma autoridade central; que nós precisamos do aparato de um governo central para lidar com a opressão e a injustiça.

Na verdade, é tão provável que a centralização de poder provoque conflitos quanto que os solucione. Quando todos têm que ganhar influência nas estruturas do Estado para obter controle sobre as condições de sua própria vida, isso está fadado a gerar atritos. Em Israel/Palestina, Índia/Paquistão e outros lugares onde pessoas de uma variedade de religiões e etnias coexistiram de maneira autônoma em relativa paz, a necessidade imposta pela colonização de disputar poder político dentro da estrutura de um Estado único produziu prolongada violência entre etnias. Tais conflitos também eram comuns na política estadunidense do século 19 – considere a briga de gangues que rodeava as eleições em Washington e Baltimore, ou a luta pelo Kansas Sangrento. Se essas disputas não são mais comuns nos E.U.A., isso não é prova de que o Estado tenha resolvido todos os conflitos que gerou.

O governo centralizado, propagandeado como uma forma de resolver disputas, apenas consolida o poder de forma que os vitoriosos possam manter a sua posição através da força das armas. E quando as estrutura centralizadas colapsam, como aconteceu com a Iugoslávia durante a sua introdução à democracia na década de 1990, as consequências podem ser muito sangrentas. Na melhor das hipóteses, a centralização apenas adia as brigas – como uma dívida acumulando juros.

Mas será que as redes descentralizadas têm alguma chance contra as estruturas de poder centralizado? Se elas não têm, então toda essa discussão é irrelevante, já que qualquer tentativa de experimentar com a descentralização será esmagada por rivais mais centralizados.

A resposta ainda está por vir, mas os poderes centralizados de hoje não estão de forma alguma seguros da sua invulnerabilidade. Já em 2001, a RAND Corporation estava argumentando que redes descentralizadas, no lugar das hierarquias centralizadas, serão os atores importantes do século XXI. Nas últimas duas décadas, desde o assim chamado movimento antiglobalização até o Occupy e a experiência curda de autonomia em Rojava, as iniciativas que obtiveram sucesso em abrir espaço para novos experimentos (tanto democráticos quanto anarquistas) foram descentralizadas, enquanto tentativas mais centralizadas, como o Syriza, foram cooptadas quase imediatamente. Diversos estudiosos estão agora teorizando as vantagens e as características distintivas da organização em rede.

DIagramaAs vantagens da organização baseada em rede, descentralizada e autônoma sobre a democracia representativa e sobre a democracia direta baseada em assembleia.

E finalmente, há a questão de se uma sociedade necessita de um aparato político centralizado para ser capaz de colocar um fim na opressão e na injustiça. O primeiro discurso inaugural de Abraham Lincoln, feito em 1861 na véspera da Guerra Civil, é uma das expressões mais fortes deste argumento:

Claramente, a ideia central da secessão é a essência da anarquia. Uma maioria restringida por limitações constitucionais, e sempre capaz de mudar facilmente com cuidadosas mudanças dos sentimentos e opiniões públicas, é a única verdadeira soberania de um povo livre. Quem a rejeita o faz pela necessidade de migrar para a anarquia ou para o despotismo. A unanimidade é impossível. O governo da minoria, como um acordo permanente, é completamente inadmissível; tanto que, ao rejeitar o princípio da maioria, tudo que sobra é a anarquia ou o despotismo…

Fisicamente, nós não podemos nos separar. Não podemos separar nossas respectivas seções uns dos outros nem construir um muro impenetrável entre elas. Um marido e uma mulher podem se divorciar e afastarem-se um do outro, mas as diferentes partes de nosso país não podem fazer isso. Elas não podem senão ficar cara a cara, e a interação entre elas, seja amigável ou hostil, deve continuar. É possível então, tornar essa interação mais vantajosa ou mais satisfatória depois da separação do que era antes? Pessoas estranhas podem fazer tratados com mais facilidade do que amigos podem fazer leis? Podem os tratados serem mais policiados entre estranhos do que as leis entre amigos? Suponha que você vá para a guerra, você não pode lutar para sempre; e quando, depois de muita perda dos dois lados e nenhum ganho por nenhum, você pare de lutar, as mesmas velhas disputas estarão sobre vocês novamente.

Este país, com suas instituições, pertence às pessoas que nele habitam. Sempre que elas se cansarem do governo existente, elas podem exercer seu direito constitucional de alterá-lo ou o seu direito revolucionário de desmembrá-lo e derrubá-lo.”

Siga esta lógica o suficiente no mundo globalizado de hoje e você chegará na ideia de governo global: governo da maioria numa escala que abrange todo o planeta. Lincoln está certo, quando contraria os defensores do consenso, ao dizer que o governo unânime é impossível e que aqueles que não querem ser governados por maiorias devem escolher entre o despotismo e a anarquia. O seu argumento de que estranhos não podem fazer tratados mais facilmente do que amigos fazem leis soa convincente num primeiro momento. Mas amigos não impõem leis uns sobre os outros – leis são feitas para serem impostas sobre as partes mais fracas, enquanto tratados são feitos entre iguais. Governo não é algo que acontece entre amigos, não mais do que um povo livre precisa de soberano. Se tivermos que escolher entre despotismo, governo da maioria e anarquia, anarquia é o mais próximo da liberdade – aquilo que Lincoln chama de nosso “direito revolucionário” de derrubar governos.

Quando associou anarquia com a separação dos estados do sul dos EUA, Lincoln estava elaborando uma crítica da autonomia que ainda ecoa nos dias de hoje. Se não fosse pelo governo federal, diz o argumento, a escravidão nunca teria sido abolida, nem a segregação teria terminado e os direitos civis instaurados para as pessoas de cor. Essas medidas contra a injustiça tiveram que ser introduzidas à força pelos exércitos da União e, um século mais tarde, pela Guarda Nacional. Neste contexto, defender a descentralização parece significar aceitar a escravidão, a segregação e a Ku Klux Klan. Sem um corpo central de governo legítimo, qual mecanismo poderia impedir as pessoas de agirem de forma opressiva?

Existem vários erros aqui. O primeiro equívoco é óbvio: das três opções de Lincoln – despotismo, governo da maioria, e anarquia – os separatistas representavam o despotismo, não a anarquia. Da mesma maneira, é ingenuidade acreditar que o aparato do governo central será utilizado somente para defender a liberdade. A mesma Guarda Nacional que supervisionou a integração do sul, usou munição de verdade para conter a revolta dos negros por todo o país; hoje existem tantas pessoas negras nas prisões dos E.U.A. quanto haviam escravos antes. E, finalmente, não precisamos despejar toda a legitimidade em um único corpo de governo para poder agir contra a opressão. Ainda podemos agir – só devemos fazê-lo sem o pretexto de estar fazendo cumprir a lei.

Opor-se à centralização do poder e da legitimidade não significa retirar-se e ficar calado. Alguns conflitos devem ocorrer, não há como evitá-los. Eles surgem de diferenças verdadeiramente irreconciliáveis, e a imposição de uma falsa unidade apenas os adia. Em seu discurso inaugural, Lincoln estava pleiteando em nome do Estado a suspensão do conflito entre abolicionistas e defensores da escravidão – um conflito que era inevitável e necessário, que já havia sido adiado por décadas de tolerância inaceitável. Enquanto isso, abolicionistas como Nat Turner e John Brown foram capazes de agir decisivamente sem a necessidade de uma autoridade política central – na verdade, eles só foram capazes de agir assim pois não reconheciam tal autoridade. Se não fosse a pressão gerada por ações autônomas como as suas, o governo federal nunca teria intervindo no sul; e se mais pessoas tivessem tomado iniciativas como eles fizeram, a escravidão não teria sido possível e a Guerra Civil não teria sido necessária.

Em outras palavras, o problema não foi muita anarquia, mas muito pouca. Foi a ação autônoma que trouxe à tona o assunto da escravidão, não as deliberações democráticas. E mais, se houvessem mais defensores da anarquia, ao invés de do governo da maioria, não teria sido possível para os brancos do sul reconquistarem a supremacia política depois da Reconstrução.

Um outro fato merece ser mencionado. Depois de seu discurso inaugural, Lincoln se dirigiu a um comitê de homens de cor para defender que eles deviam emigrar para fundar outra colônia como a Libéria com esperança que os outros negros da América do Norte os seguissem. Relativo às relações entre negros emancipados e os cidadãos brancos estadunidenses, ele argumentou:

É melhor para nós ficarmos separados… Existe uma falta de vontade por parte do nosso povo, por mais cruel que seja, de que vocês, pessoas de cor livres, fiquem conosco.”

Então, na cosmologia política de Lincoln, a polis dos cidadãos brancos não pode se separar, mas assim que os escravos negros do oikos não tiverem mais sua função econômica, é melhor eles irem embora. Isso deixa as coisas bem claras: a nação é indivisível, mas os excluídos são descartáveis. Se os escravos libertados depois da Guerra Civil tivessem emigrado para a África, eles teriam chegado bem a tempo de vivenciar os horrores da colonização europeia, com uma taxa de morte de dez milhões só no Congo Belga. A solução correta para tais catástrofes não é integrar o mundo todo em uma única república governada pela maioria, mas combater todas instituições que dividem as pessoas em maiorias e minorias – governantes e governados – por mais democráticas que possam ser.

Obstáculos Democráticos à Libertação

Exceto se houver guerra ou milagre, a legitimidade de todo governo constituído está sempre sendo corroída; ela só pode ser corroída. Não importa as promessas do Estado, nada pode compensar por termos que abrir mão do controle sobre nossas vidas. Toda reclamação específica ressalta este problema sistêmico.

E é aqui que entra a democracia: outra eleição, outro governo, outro ciclo de otimismo e decepção.

A democracia é uma ótima forma de garantir a legitimidade do governo, quando ele faz um mau trabalho e não dá o que o povo quer. Em uma democracia em funcionamento, manifestações em massa desafiam os governantes. Mas não desafiam a natureza fundamental do sistema político do Estado.”

Noah Feldman, “Tunisia’s Protests Are Different This Time”

Mas isso nem sempre pacifica a população. Na última década vimos movimentos e insurreições por todo o mundo – de Oaxaca a Túnis, de Istambul ao Rio de Janeiro, de Kiev a Hong Kong – nas quais os desiludidos e os descontentes tentam resolver os problemas eles mesmos. A maioria delas girou em torno do padrão de mais democracia e de melhor democracia, embora isso não tenha sido unanimidade.

Considerando quanto poder o mercado e o governo têm sobre nós, é tentador imaginar que nós poderíamos de alguma forma virar o jogo e governá-los. Mesmo aquelas pessoas que não acreditam que é possível para o povo governar o governo acabam governando a única coisa que lhes resta – a sua resistência a ele. Abordando os movimentos de protesto como experimentos em democracia direta, eles pretendem prever as estruturas de um mundo mais democrático.

Mas e se a democracia prefigurativa for parte do problema? Isso explicaria por que tão poucos desses movimentos foram capazes de montar uma oposição irreconciliável com as estruturas que pretendem opor. Com as discutíveis exceções de Chiapas e Rojava, todos eles foram derrotados (Occupy), reintegrados ao governo estabelecido (Syriza, Podemos) ou, pior ainda, derrubaram o governo sem atingir qualquer mudança verdadeira na sociedade (Tunísia, Egito, Líbia, Ucrânia).

Quando um movimento busca de legitimar na base dos mesmos princípios que a democracia estatal ele tenta vencer o Estado em seu próprio jogo. Mesmo que ele obtenha sucesso, a recompensa pela vitória é ser cooptado e institucionalizado – quer seja dentro das estruturas existentes do governo ou através de sua reinvenção. Portanto, movimentos que começam como revoltas contra o Estado acabam o recriando.

Ocasionalmente você se rebela, mas é apenas para recomeçar a fazer a mesma coisa do zero.”

Albert Libertad, “Voters: You Are the Real Criminals”

Isso pode terminar de duas maneiras diferentes. Há os movimentos que se tornam ineficientes ao alegarem que são mais democráticos, mais transparentes ou mais representativos que as autoridades; movimentos que chegam ao poder através da política eleitoral, somente para trair seus objetivos originais; movimentos que propõe táticas diretamente democráticas que acabam sendo igualmente úteis àqueles que buscam o poder estatal; e movimentos que derrubam governos, somente para substituí-los. Vamos analisar cada um deles.

Se limitarmos nossos movimentos ao que a maioria dos participantes conseguir concordar com de antemão, talvez não sejamos capazes nem de tirá-los do papel. Quando grande parte da população aceita a legitimidade do governo e suas leis, a maioria das pessoas acha que não tem o direito de fazer nada que desafie a estrutura de poder existente, não importa o quão mal ela os trate. Consequentemente, um movimento que toma suas decisões pelo voto da maioria ou pelo consenso pode ter dificuldade em concordar em utilizar táticas que não sejam puramente simbólicas. Você consegue imaginar os residentes de Ferguson, no Missouri tendo uma reunião para chegar a um consenso se eles incendeiam ou não a primeira loja de conveniência e lutam com a polícia? E ainda assim, foram essas as ações que deram início ao movimento que se tornou conhecido como Black Lives Matter (Vidas Negras Importam). As pessoas geralmente têm que experimentar uma coisa nova para se abrirem para ela; é um equívoco confinar um movimento inteiro ao que já é familiar à maioria dos participantes.

Na mesma lógica, se insistirmos que nossos movimentos devem ser completamente transparentes, isso significa deixar que as autoridades ditem quais tática nós podemos usar. Em condições de infiltração e vigilância bastante difundidas, conduzir todo processo de tomada de decisões em público com completa transparência é um convite a repressão a qualquer um que seja percebido como uma ameaça ao status quo. Quanto mais público e transparente for o mecanismo de tomada de decisão, mais conservadoras provavelmente serão as suas ações, mesmo quando isso contradiz a sua razão de ser – pense em todas coalizões ambientais que nunca tomaram uma única medida para parar as atividades que causam as mudanças climáticas. Dentro da lógica democrática, faz sentido exigir transparência do governo, já que supostamente ele deve representar e responder ao povo. Mas fora dessa lógica, ao invés de exigir que os participantes dos movimentos sociais representem e respondam uns aos outros, devemos procurar maximizar a autonomia com a qual eles podem agir.

Se nós alegarmos legitimidade baseada no fato de que nós representamos o público, nós oferecemos às autoridades uma maneira fácil de nos derrotar, enquanto pavimentamos o caminho para que outros cooptem os nossos esforços. Antes da introdução do sufrágio universal, era possível sustentar que um movimento representava a vontade do povo, mas hoje em dia uma eleição pode levar mais gente às urnas do que o mais massivo dos movimentos consegue mobilizar nas ruas. Os vencedores das eleições serão sempre capazes de alegar que representam mais pessoas do que as que participam dos movimentos2. Da mesma forma, os movimentos que se propõem a representar os setores mais oprimidos da sociedade podem ser vencidos ao serem incluídos como representantes simbólicos desses setores nas instituições de poder. Enquanto nós validarmos a ideia de representação, algum novo partido ou político poderá usar nossa retórica para subir ao poder. Nós não devemos alegar que representamos o povo – devemos afirmar que ninguém tem o direito de nos governar.

O que acontece quando um movimento chega ao poder através da política eleitoral? A vitória de Lula e de seu Partido dos Trabalhadores (PT) no Brasil parece apresentar o melhor exemplo possível em que um partido baseado na organização de base popular e radical assumiu o controle do Estado. Na época, o Brasil possuía alguns dos movimentos sociais mais poderosos do mundo, incluindo o Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST) que com 1,5 milhão de integrantes defende a bandeira da reforma agrária; muitos desses movimentos eram interconectados com o PT. Mas depois que Lula assumiu a presidência em 2002, os movimentos sociais entraram em um grande declínio que durou até 2013. Membros do PT largaram a organização local para assumir posições no governo, enquanto as necessidades da política pragmatista (realpolitik) preveniram Lula de dar concessões aos movimentos que ele apoiou anteriormente. O MST havia forçado o governo conservador que antecedeu Lula a legalizar muitas ocupações de terras, mas ele não obteve nenhum avanço sob o governo de Lula. Este padrão é recorrente por toda América Latina quando políticos supostamente radicais traíram os movimentos sociais que os elegeram. Hoje, os movimentos sociais mais poderosos no Brasil são os protestos de direita contra o Partido dos Trabalhadores. Não existem atalhos eleitorais para a liberdade.

E se ao invés de buscarmos o poder estatal, nós nos focarmos em promover modelos diretamente democráticos como assembleias de bairro? Infelizmente, essas práticas podem ser apropriadas para servirem a diversas agendas. Depois das revoltas na Eslovênia em 2012, enquanto as assembleias de bairro auto-organizadas continuaram a se encontrar em Ljubljana, uma ONG financiada pelas autoridades locais começou a organizar assembleias em um bairro “negligenciado” como um projeto piloto de “revitalização” da área, com a intenção explícita de trazer cidadãos descontentes de volta ao diálogo com o governo. Durante a revolução ucraniana de 2014, os partidos fascistas Svoboda e Right Sector ganharam importância através das assembleias democráticas na Maidan ocupada. Em 2009, membros do partido fascista grego Aurora Dourada juntaram-se à população local no bairro ateniense de Agios Panteleimonas para organizar uma assembleia que coordenou ataques a imigrantes e anarquistas. Se quisermos fomentar a inclusão e a autodeterminação, não basta propagar a retórica e os procedimentos da democracia participativa3. Precisamos difundir um contexto que se oponha ao Estado e a outras formas de poder hierárquico.

Até mesmo estratégias explicitamente revolucionárias podem ser revertidas para favorecer os poderes mundiais em nome da democracia. Da Venezuela à Macedônia, vimos que agentes do governo e interesses disfarçados canalizam a genuína dissidência popular em movimentos sociais artificiais com o objetivo de encurtar o ciclo eleitoral. Geralmente, o objetivo é forçar o partido governante a renunciar para que seja substituído por um governo mais “democrático” — ou seja, um governo mais simpático aos objetivos dos Estados Unidos ou da União Europeia. Tais movimentos geralmente se focam na “corrupção”, sugerindo que o sistema funcionaria direito se as pessoas certas estivessem no poder. Quando vamos às ruas, para não correr o risco de nos tornarmos marionetes de alguma iniciativa da política estrangeira, não devemos nos mobilizar contra qualquer governo em particular, mas contra a ideia de governo em si.

A revolução no Egito ilustra dramaticamente o beco sem saída da revolução democrática. Depois de centenas de pessoas perderem suas vidas para derrubar o ditador Hosni Mubarak e instituir a democracia, as eleições populares trouxeram outro autocrata ao poder, Mohamed Morsi. Um ano depois, em 2013, nada havia melhorado, e as pessoas que haviam iniciado a revolução foram às ruas mais uma vez para rejeitar os resultados da democracia, forçando o exército egípcio a depor Morsi. Agora, o exército continua sendo quem governa o país de fato, e a mesma opressão e injustiça que inspirou duas revoluções continua. As opções representadas pelos militares, por Morsi e pelas população rebelada são as mesmas que Lincoln descreveu em seu discurso inaugural: tirania, governo da maioria e anarquia.

Aqui, na fronteira das lutas contra a pobreza e a opressão, nós sempre nos levantamos contra o Estado em si. Enquanto aceitarmos que nos governem, o Estado irá ficar alternando entre a tirania e o governo da maioria conforme necessário — duas expressões do mesmo princípio. O Estado pode assumir muitas formas; como a vegetação, ele pode morrer, para crescer novamente a partir de suas raízes. Ele pode assumir a forma de uma monarquia ou da democracia parlamentar, de uma ditadura revolucionária ou de um conselho provisório; quando as autoridades tiverem fugido e o exército tiver se amotinado, o Estado pode permanecer como um germe transmitido por defensores da ordem e do protocolo em uma assembleia geral aparentemente horizontal. Todas estas formas, por mais democráticas que sejam, podem se regenerar em um regime capaz de esmagar a liberdade e a autodeterminação.

A única maneira garantida de evitarmos a cooptação, a manipulação e o oportunismo é nos recusando a legitimizar qualquer forma de governo. Quando as pessoas solucionam seus problemas e suprem suas necessidades diretamente através de estruturas flexíveis, horizontais e descentralizadas, não existem líderes a ser corrompidos, nem estruturas formais que possam ser calcificadas, nem um processo único que possa ser sequestrado. Livre-se das concentrações de poder e aqueles que almejam o poder para si não poderão se apropriar da sociedade. Um povo ingovernável provavelmente terá que se defender de aspirantes a tiranos, mas nunca verá sua força sendo utilizada pelos esforços deles para governar.

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Fim da terceira parte.


1. Nessa questão podemos concordar com Booker T. Washington, quando ele disse: “O experimento Reconstrução na democracia racial falhou porque começou no ponto errado, enfatizando meios políticos e decretos de direitos civis em vez de meios económicos e auto-determinação. “

2. No final de maio de 1968, o anúncio de eleições antecipadas quebrou a onda de greves e ocupações que varreram a França; o espetáculo da maioria dos cidadãos franceses que votando no partido do presidente de Gaulle foi suficiente para dissipar toda a esperança de revolução. Isso ilustra como as eleições servem como um espetáculo que representa os cidadãos uns perante os outros enquanto participantes no sistema dominante.

3. Como as crises econômicas crescem junto com a descrença na política de representativa, vemos os governos oferecem participação mais direta na tomada de decisões para pacificar o público. Assim como as ditaduras na Grécia, Espanha, Brasil e Chile foram forçados a transição para governos democráticos para neutralizar os movimentos de oposição, o Estado está abrindo novos papéis para aqueles que de outra forma poderiam liderar a oposição a ele. Se somos diretamente responsáveis por fazer o sistema político funcionar, vamos culpar a nós mesmos quando ele falhar, não o sistema em si. Isto explica as novas experiências com orçamentos “participativos” de Porto Alegre para Poznań. Na prática, os participantes raramente têm qualquer influência sobre os gestores da cidade; no máximo, eles podem atuar como consultores, ou votar em um mísero 0,1% dos fundos da cidade. O propósito real do orçamento participativo é redirecionar a atenção popular a partir das falhas do governo para o projeto de torná-lo mais democrático.