PORQUE NÃO FAZEMOS DEMANDAS

Estamos em um momento delicado e determinante no Brasil. A direita finalmente conseguiu eleger com voto popular uma das suas piores figuras, o plano B (ou C), o baixo clero, que veio à tona após as polarizações firmadas após as eleições de 2014 e o impeachment de 2016. Com o PT, vimos a social democracia aliada a uma economia neoliberal que permitiu medidas de transferência de renda como Bolsa Família e maior acesso a educação, saúde e emprego. Mas o clima mudou ainda com Dilma Rousseff no poder e com Michel Temer vimos a austeridade iniciada ainda no fim do governo PT ser transformada em um ataque ainda maior a direitos trabalhistas, ambientais e das minorias. No governo Bolsonaro não será diferente. Cortes na educação, reforma na Previdência, ataque a leis e órgãos que protegem minimamente minorias, povos indígenas florestas. As mortes nas periferias batem recorde. Em meio a tantas ofensivas que desmontam os poucos direitos e conquistas históricas das classes oprimidas, é fácil nos perder apenas reagindo a tantas ameaças e perdas concretas. Como não deixar os movimentos radicais e anticapitalistas serem tragados pela constante necessidade de reagir a agenda de nossos inimigos? Como manter nossa própria agenda enquanto tentamos não perder o que foi conquistado ao longo de séculos de luta? Como não esquecer que, para além das demandas e das reformas, precisamos construir uma luta de longo prazo pelo fim do Estado e do Capitalismo em um nível nada menos que global? Essa é a contribuição de anarquistas para uma crítica construtiva da política de demandas únicas. Se não vamos destruir o Capital uma demanda de cada vez, precisamos ter em mente que nossa luta e nossa agenda somos nós que fazemos.

Porque não fazemos demandas.

De ocupações de praças e escolas a poderosas insurreições populares, sempre que surgem grandes movimentos sociais, os comentários mais comuns na mídia e nas ruas os acusam de não possuírem demandas concretas. Por que os descontentes não resumem os seus objetivos em pautas coerentes? Por que não elegem representantes que possam negociar com as autoridades de forma a fomentar uma agenda concreta através dos canais institucionais adequados? Por que estes movimentos não se expressam em uma linguagem comum, usando meios já consagrados?

Frequentemente isso não passa de uma retórica dissimulada usada por aqueles que gostariam que os movimentos se limitassem a demandas bem comportadas. Quando perseguimos objetivos que eles preferem não reconhecer, nos acusam de sermos irracionais ou incoerentes. Compare a Marcha Popular pelo Clima de 2014 em Nova Iorque, com as revoltas ocorridas em Baltimore em abril de 2015 quando a polícia matou um jovem negro. A Marcha juntou 400 mil pessoas com uma mensagem simples ao mesmo tempo em que fazia tão pouco para protestar que a polícia não precisou fazer uma prisão sequer. Quando foi a última vez que 400 mil pessoas se reuniram em Nova Iorque sem que a polícia prendesse alguém? Aquilo foi mais uma válvula de escape do que um protesto propriamente dito, mais uma forma de pacificação ativa — uma forma de diminuir os atritos entre os manifestantes e a ordem à qual eles se opunham. Muitos louvaram a Marcha Pelo Clima enquanto tachavam as revoltas de Baltimore como irracionais, inconscientes e ineficazes; ainda assim a Marcha Pelo Clima teve pouco impacto concreto, enquanto as revoltas de Baltimore obrigaram o Procurador Geral a formalizar acusações contra policiais, algo praticamente sem precedentes. Você pode apostar que se 400 mil pessoas respondessem às mudanças climáticas da forma como milhares responderam ao assassinato de Freddie Gray, os políticos mudariam suas prioridades.

Mesmo as pessoas que pedem por demandas com as melhores intenções geralmente consideram a falta delas mais como omissão do que uma escolha estratégica. Ainda assim, os movimentos que agem dessa forma hoje não são uma expressão de falta de maturidade, mas sim uma resposta pragmática ao impasse que caracteriza todo o sistema político atual.

“Reformas que alcançam
ganhos de curto prazo
geralmente montam o
cenário para problemas
de longo prazo.”

Você deve pensar que se fosse fácil para as autoridades atender às exigências dos manifestantes deveríamos ver isso mais vezes. Na verdade, de Obama ao Syriza, nem mesmo os políticos mais idealistas foram capazes de cumprir as promessas de reforma com as quais se elegeram. O fato de terem sido formalizadas denúncias contra os assassinos de Freddie Gray após as revoltas de Baltimore sugere que a única forma de fazer algum avanço seria dar um fim à lógica de proposição de demandas.

Portanto, o problema não é que faltam demandas aos movimentos de hoje; o problema é a própria política de demandas. Se buscamos realizar mudanças estruturais, precisamos elaborar nossas agendas fora dos limites dos discursos daqueles que detêm o poder, fora da moldura das suas instituições. Devemos parar de apresentar demandas e passar a definir objetivos. Eis aqui o motivo.

Elaborar demandas nos coloca em uma posição inferior de negociação.

Mesmo que sua intenção seja de apenas negociar, você se coloca em uma posição inferior de barganha ao deixar claro desde o início qual é o mínimo necessário que vai satisfazer suas demandas. Nenhum negociador minimamente astuto começa fazendo concessões de início. É mais inteligente parecer implacável: então você deseja chegar a um acordo e dar um fim aos protestos? Faça-nos uma oferta. Enquanto isso, vamos continuar aqui bloqueando as rodovias e ateando fogo nas coisas.

Não existe moeda de troca maior que a capacidade de implementar por nós mesmos as mudanças que queremos, superando as instituições oficiais. Aliás, esse é o verdadeiro sentido da ação direta. Sempre que formos capazes de fazer isso, as autoridades vão competir inutilmente para nos oferecer tudo o que havíamos exigido. Por exemplo, a decisão do julgamento de Roe vs. Wade que tornou o aborto legal ocorreu apenas depois que grupos como o Coletivo Jane criaram redes auto-organizadas que realizavam abortos acessíveis a dezenas de milhares de mulheres.

É claro, comunidades que podem implementar diretamente as mudanças que desejam não precisam fazer exigências a ninguém — e quanto antes reconhecerem isso, melhor. Lembre-se como o povo bósnio ateou fogo em prédios do governo em Fevereiro de 2014, e depois realizou plenárias para formular demandas para apresentar a esse mesmo governo. Um ano depois, não receberam nenhuma atenção às suas demandas e sim acusações criminais, e o governo voltou a se erguer tão estável e corrupto quanto antes.

Após 2013, achar os “20 centavos” parecia mais decisivo que o poder da revolta popular para pressionar autoridades. Desde aquela vitória, a clareza e a concretude das demandas não barram mais nenhum aumento.

Limitar um movimento a demandas específicas sufoca a diversidade, condenando-o ao fracasso.

A sabedoria convencional diz que os movimentos precisam se reunir em torno de demandas. Sem demandas, ele seria difuso, efêmero, ineficaz.

Mas as pessoas que possuem demandas diferentes, ou não possuem demanda nenhuma, ainda assim podem ajudar a construir o poder popular coletivamente. Se entendermos os movimentos como espaços de diálogo, coordenação e ação, é fácil imaginar como um único movimento pode representar uma diversidade de agendas. Quanto mais horizontalmente organizado ele for, mais ele será capaz de acomodar objetivos diferentes.

A verdade é que praticamente todos os movimentos naufragam em razão de conflitos sobre como se organizar e sobre como definir suas prioridades. A necessidade de apresentar demandas concretas geralmente surge como uma disputa de poder entre facções dentro dos próprios movimentos que já se encontram melhor investidas pelas instituições dominantes, como uma forma de deslegitimar aqueles que querem construir o poder autonomamente ao invés de simplesmente pleitear junto às autoridades. Isto coloca de forma equivocada diferenças políticas genuínas como se fossem o caso de simples desorganização, e a verdadeira oposição às estruturas de governança como ingenuidade política.

“Nenhuma corporação irá impedir o aquecimento global; nenhuma agência do governo irá parar de espionar a população; nenhuma força policial irá abolir o privilégio branco.”

Forçar um movimento diversificado a reduzir sua agenda a um número específico de demandas inevitavelmente consolida o poder nas mãos de uma minoria. Pois quem decide quais demandas serão prioridade? Geralmente, são as mesmas pessoas que detêm uma fatia enorme de poder em nossas sociedades: indivíduos geralmente brancos e bem sucedidos devidamente versados no funcionamento do poder institucional e da mídia corporativa. As pessoas já marginalizadas são marginalizadas novamente dentro de seus movimentos em nome da eficiência.

Agir dessa forma raramente serve para tornar um movimento mais eficaz. Um movimento com espaço para as diferenças pode crescer; um movimento fundado na unanimidade se retrai. Um movimento que inclui uma multiplicidade de agendas é flexível, imprevisível; é difícil cooptá-lo, difícil de convencer seus membros a abrir mão de sua autonomia em troca de umas poucas concessões. Um movimento que preza pela uniformidade redutiva está condenado a alienar um segmento após o outro à medida em que subordina suas necessidades e preocupações.

Um movimento capaz de incorporar uma variedade de perspectivas e de críticas pode desenvolver estratégias mais compreensivas e multifacetadas que uma campanha de tema único. Forçar todas as pessoas a se alinharem sob um conjunto definido de exigências é uma estratégia ruim: mesmo quando dá certo, não funciona.

Limitar um movimento a demandas específicas debilita a sua longevidade.

Atualmente, conforme a história anda cada dia mais rápido, as exigências podem se tornar obsoletas antes mesmo de uma campanha decolar. Em resposta ao assassinato de Michael Brown, alguns reformistas exigiram que a polícia usasse câmeras — mas antes que essa campanha fosse deflagrada, um grande júri anunciou que o policial que matou Eric Garner não seria julgado, apesar do assassinato ter sido gravado em vídeo.

Movimentos pautados por demandas específicas entrarão em colapso assim que essas demandas forem ultrapassadas pelos acontecimentos. E os problemas que elas propunham resolver persistirão. Mesmo sob uma perspectiva reformista, faz mais sentido construir movimentos em torno dos objetivos visados, ao invés de qualquer solução particular.

Limitar um movimento a demandas específicas pode dar a falsa impressão de que existem soluções fáceis para problemas que na verdade são extremamente complexos.

Ok, você possui uma série de reclamações – quem não possui? Mas nos diga, qual solução você propõe?”

A exigência por demandas específicas é compreensível. Não faz sentido se manifestar apenas para aliviar um pouco a pressão; o objetivo é mudar o mundo. Mas mudanças significativas exigem muito mais do que qualquer pequeno ajuste que as autoridades estão dispostas a garantir. Quando falamos como se houvessem soluções simples para os problemas que enfrentamos, correndo para nos apresentarmos como tão “práticos” quanto os especialistas em políticas do governo, criamos as condições para o nosso próprio fracasso, sejam as nossas demandas atendidas ou não. Isto dará lugar a frustração e apatia muito antes de desenvolvermos a capacidade coletiva de chegar à raiz das coisas.

Especialmente para aqueles entre nós que acreditam que o problema fundamental é a distribuição desigual de poder e liberdade de ação em nossa sociedade, ao invés da necessidade deste ou daquele ajuste político, é um erro prometer remédios fáceis na vã tentativa de nos legitimarmos. Não é nossa obrigação apresentar soluções prontas que as massas possam aplaudir às margens do processo; deixe isto para os demagogos. Nosso desafio, na verdade, é criar espaços onde as pessoas possam discutir e implementar soluções diretamente, em uma base permanente e coletiva. Ao invés de propor ajustes rápidos, deveríamos divulgar novas práticas. Não precisamos de esquemas, mas sim de pontos de partida.

Fazer demandas concretas presume que você quer coisas que seu adversário pode lhe conceder.

Por outro lado, é de se duvidar que as instituições dominantes possam garantir a maioria das coisas que visamos mesmo que seus líderes tivessem corações de ouro. Nenhuma iniciativa corporativa irá impedir o aquecimento global; nenhuma agência do governo irá parar de espionar a população; nenhuma força policial irá abolir o privilégio branco. Apenas membros de ONGs ainda se apegam à ilusão de que essas coisas são possíveis – provavelmente porque seus empregos dependem disso.

“O mesmo sistema judiciário que regulou o fim da escravidão hoje aprisiona um milhão de negros; o mesmo Exército Brasileiro que ocupou o Haiti demonstrando força imperialista, hoje patrulha e mata pobres nas favelas ocupadas em seu próprio território.”

Um movimento forte o suficiente pode desferir duros golpes contra a poluição industrial, a vigilância estatal, e a supremacia branca institucionalizada, mas apenas se não se limitar à mera exigência. A política baseada em demandas limita o escopo inteiro de mudanças a reformas que possam ser feitas dentro da lógica da ordem existente, nos marginalizando e expulsando as verdadeiras mudanças para além do horizonte.

Não faz sentido exigir das autoridades coisas que elas não podem conceder e não concederiam caso pudessem. Também não devemos dar-lhes uma desculpa para adquirir ainda mais poder do que já têm sob o pretexto de que é necessário para a satisfação das nossas exigências.

Fazer exigências às autoridades legitima o poder delas, centralizando a capacidade de ação em suas mãos.

É uma tradição honrosa de organizações sem fins lucrativos e coalizões de esquerda apresentar demandas que elas sabem que nunca serão atendidas: não à invasão do Iraque, pelo fim dos cortes na educação, pelo perdão das dívidas das pessoas e não dos bancos, pelo fim do genocídio dos jovens negros. Em troca de curtas audiências com burocratas que prestam contas a atores muito mais perspicazes, elas diluem suas exigências e tentam obrigar seus colegas menos solícitos a se comportarem. Isto é o que elas chamam de pragmatismo.

Tais esforços podem não alcançar seu propósito expresso, mas realizam algo: enquadram uma narrativa na qual as instituições existentes são os únicos protagonistas concebíveis da mudança. Isto, por sua vez, pavimenta o caminho para mais campanhas infrutíferas, para mais espetáculos eleitorais nos quais novos candidatos ludibriam jovens idealistas, para mais anos de paralisia na qual o indivíduo médio apenas pode imaginar alcançar o seu próprio poder através da mediação de algum partido ou organização política. Rebobine a fita e aperte o play.

A verdadeira autodeterminação não é algo que uma autoridade possa nos garantir. Temos de criá-la agindo por nossas próprias forças, nos colocando no lugar de protagonistas da história.

Fazer demandas muito cedo pode limitar adiantadamente o escopo de um movimento, limitando o campo de possibilidades.

No começo de um movimento, quando os participantes ainda não tiveram a chance de conhecer a sua força coletiva, eles podem ser incapazes de reconhecer o quão complexas são as mudanças que realmente querem. Especificar as exigências neste ponto da trajetória de um movimento pode tolher o seu crescimento, limitando as ambições e a imaginação dos seus membros. Da mesma forma, criar, no começo, um precedente para resumir e diluir seus objetivos apenas aumenta a possibilidade de que isto irá acontecer novamente.

Imagine se o Movimento Occupy tivesse elaborado demandas concretas desde o seu surgimento — será se ele teria servido como um espaço aberto onde tantas pessoas pudessem se conhecer, elaborar suas análises, e se radicalizar? Ou teria acabado como um simples acampamento de protesto preocupado apenas com a personalidade jurídica, cortes orçamentários, e talvez o Banco Central? É melhor desenvolver os objetivos de um movimento à medida que o próprio movimento se desenvolve, proporcionalmente à sua capacidade.

Fazer exigências coloca algumas pessoas como representantes do movimento, criando uma hierarquia interna e dando a elas incentivo para controlar os outros membros.

Na prática, unificar um movimento em torno a demandas específicas geralmente significa designar porta-vozes para negociar por ele. Mesmo se estes forem escolhidos “democraticamente,” sob a base de seu comprometimento e experiência, eles não podem fazer outra coisa a não ser desenvolver interesses diferentes dos outros membros como consequência de representarem este papel.

Com o objetivo de manter a credibilidade do seu papel de negociadores, estes porta-vozes devem ser capazes de pacificar ou isolar qualquer pessoa que não esteja disposta a apoiar os acordos que eles fizerem. Isto dá a aspirantes a líderes um incentivo para reinar em um movimento, na esperança de conquistar uma cadeira à mesa de negociação. As mesmas almas corajosas cujas ações inflexíveis granjearam ao movimento sua posição altiva subitamente encontram ativistas de carreira que surgiram mais tarde lhes dizendo o que fazer – tentando impedir que eles sequer façam parte do movimento. Este drama foi representado em Ferguson em Agosto de 2014, onde os locais que fizeram o movimento decolar ao enfrentar a polícia foram caluniados por políticos e figuras públicas como estranhos que queriam tirar vantagem do movimento para realizar atividades criminosas. A verdade era exatamente o contrário: estranhos estavam tentando sequestrar um movimento iniciado através de honrosa atividade ilegal, com o objetivo de relegitimar as instituições de autoridade.

No longo prazo, este tipo de pacificação colabora apenas para a morte de um movimento. Isto explica a relação ambígua que a maioria dos líderes possui com os movimentos que representam: para servir às autoridades, eles devem ser capazes de subjugar os seus camaradas, mas os seus serviços não seriam minimamente necessários se o movimento não representasse qualquer ameaça. Disso surge a estranha mistura de retórica militante e obstrução prática que geralmente caracteriza tais figuras: eles devem montar o cavalo bravo e mantê-lo sobre controle.

Algumas vezes a pior coisa que pode acontecer a um movimento é que suas demandas sejam atendidas.

Reformas servem para estabilizar e para preservar o status quo, matando o ímpeto dos movimentos sociais. Isso garante que não sejam realizadas mudanças mais profundas. Garantir pequenas demandas serve para dividir um movimento poderoso, persuadindo os membros menos comprometidos a voltarem para casa ou fazerem vista grossa à repressão daqueles que não se comprometerem. Tais pequenas vitórias só são garantidas porque as autoridades as consideram a melhor forma de evitar maiores mudanças.

Em tempos de convulsão social, quando tudo está no ar, uma forma de desarmar uma revolta florescente é atender suas demandas antes que ela comece a crescer. Algumas vezes isto se parece com uma verdadeira vitória — como na Eslovênia em 2013, quando dois meses de protestos derrubou o governo. Isto pôs um fim à agitação antes que ela pudesse visar os problemas estruturais que lhe deram origem, que iam muito além de qual governante ocupava o cargo. Outro governo ocupou o poder enquanto os manifestantes ainda estavam aturdidos com seu sucesso — e as coisas voltaram a ser como antes.

Durante o crescimento da revolução de 2011 no Egito, Mubarak repetidamente ofereceu aquilo que os manifestantes estavam exigindo alguns dias antes de pedirem; mas à medida em que se intensificava a situação nas ruas, os manifestantes se tornaram cada vez mais inflexíveis. Se Mubarak tivesse feito uma oferta maior, talvez ainda estaria no poder hoje. Realmente, a revolução egípcia falhou não por que pediu demais, mas sim porque não foi longe o suficiente: ao remover o ditador mas manter intactos a infraestrutura do exército e do “Estado profundo”, os revolucionários deixaram a porta aberta para novos déspotas consolidarem o poder. Para a revolução ser bem sucedida, teriam de ter destruído a própria arquitetura do Estado enquanto as pessoas ainda estavam nas ruas e a janela de oportunidade estava aberta. “As pessoas exigem o fim do regime” oferecia uma plataforma conveniente para agregar a maioria do povo egípcio, mas isto não os preparou para os regimes que se seguiriam.

No Brasil em 2013, o MPL (Movimento Passe Livre) ajudou a catalisar protestos gigantescos contra o aumento no transporte público; este é um dos poucos exemplos de um movimento que foi bem sucedido na conquista de suas demandas. Milhões de pessoas foram às ruas, e o aumento de vinte centavos na tarifa foi cancelado. Os ativistas brasileiros escreveram e deram palestras sobre a importância de se definir demandas concretas e paupáveis, de modo a ganhar impulso através de vitórias elementares. Em seguida, tentaram forçar o governo a tornar o transporte público.

Por que sua campanha contra o aumento da tarifa foi bem sucedida? À época, o Brasil era uma das poucas nações do mundo com uma economia ascendente; ele havia se beneficiado da crise econômica mundial atraindo os dólares de investimento longe do volátil mercado estadunidense. Em outros países — na Grécia, na Espanha, inclusive nos Estados Unidos — os governos estavam contra a parede tanto quanto os movimentos anti-austeridade, e não podiam atender às demandas destes mesmo que desejassem. Não foi por falta de demandas específicas que nenhum outro movimento foi capaz de alcançar tais concessões.

Mal havia completado um ano e meio, quando as ruas se esvaziaram e a polícia reafirmou seu poder, o governo brasileiro introduziu outra série de aumentos de tarifas — maiores desta vez. O MPL tinha que começar tudo de novo. Acontece que você não pode derrubar o capitalismo com uma reforma por vez.

Se você quer conquistar concessões, vise além do alvo.

Mesmo se o que você quer é realizar pequenas mudanças dentro do status quo, a estratégia mais inteligente é almejar mudanças estruturais. Frequentemente, mesmo se quisermos alcançar pequenos objetivos concretos, devemos almejar muito além. Aqueles que se recusam a aceitar acordos presenteiam as autoridades com uma alternativa indesejável além (da alternativa) de tratar com reformistas. Sempre vamos encontrar alguém desejoso de ocupar a posição de negociador — mas quanto mais as pessoas se recusam, melhor será sua posição de barganha. Aqui o ponto de referência clássico é a relação entre Martin Luther King, Jr. e Malcolm X: se não fosse por causa da ameaça representada por Malcolm X, as autoridades não teriam tanto incentivo para negociar com o Dr. King.

Para aqueles dentre nós que visam mudanças genuinamente radicais, não se ganha nada diluindo nossos objetivos para consumo público. A Janela de Overton — o espectro de alternativas consideradas politicamente viáveis — não é determinada por aqueles no pretenso centro do espectro político, mas pelos extremos. Quanto mais ampla for a distribuição de alternativas, mais o território se abre. Os outros podem não se juntar imediatamente a você nos extremos, mas saber que algumas pessoas estão dispostas a defender aquela agenda pode encorajá-las a agir mais ambiciosamente.

“Não pediremos nada. Não Demandaremos nada. Vamos tomar, ocupar.”

Em termos puramente pragmáticos, aqueles que aceitam uma diversidade de táticas são mais fortes, mesmo quando se trata de alcançar pequenas vitórias, do que aqueles que limitam a si mesmos e aos outros e excluem aqueles que recusam a se limitar. Por outro lado, sob a perspectiva da estratégia de longo prazo, a coisa mais importante não é se nós alcançamos algum resultado particular imediato, mas como cada engajamento nos coloca em relação às questões posteriores. Se adiamos infinitamente as questões que queremos colocar, o momento ideal nunca chegará. Não precisamos apenas ganhar concessões; precisamos desenvolver competências.

Fazer as coisas sem elaborar propostas não significa ceder espaço no discurso político.

Talvez o argumento mais convincente a favor da elaboração de demandas concretas é que se não o fizermos, outros farão — sequestrando o ímpeto da nossa organização para promover suas próprias agendas. O que aconteceria se, por culpa da nossa falha em apresentar demandas, as pessoas acabarem consolidando uma plataforma liberal reformista — ou, como em muitas partes da Europa hoje, uma agenda nacionalista de direita?

Certamente isso ilustra os perigos do fracasso em expressar nossos sonhos de transformação com aqueles com quem dividimos as ruas. É um erro aumentarmos o tom das nossas táticas sem comunicar os nossos objetivos, como se todo confronto tendesse necessariamente à emancipação. Na Ucrânia, onde as mesmas tensões e ímpetos que deram origem à Primavera Árabe e ao Occupy engendraram uma revolução nacionalista e uma guerra civil, podemos ver como até os fascistas podem se apropriar dos nossos modelos táticos e de organização para seus propósitos.

Mas isso dificilmente justifica endereçarmos nossas exigências às autoridades. Pelo contrário, se sempre dissimularmos nossos desejos radicais dentro de uma frente reformista comum por medo da alienação do público em geral, aqueles que não têm paciência para as verdadeiras transformações irão muito provavelmente correr em direção aos nacionalistas e fascistas, como os únicos que estão buscando abertamente mudar o status quo. Precisamos ser explícitos sobre o que queremos e como buscamos conquistá-lo. Não para obrigar as pessoas a seguir nosso método como o fazem organizadores autoritários, mas para oferecer uma alternativa e um exemplo para todos aqueles que estiverem buscando um caminho a seguir. Não para apresentar uma pauta específica, mas o oposto disso: nós queremos autodeterminação, algo que ninguém pode nos conceder.

Se não vamos trazer propostas, então o que faremos?

A forma como fazemos nossas análises, a forma como nos organizamos e a forma como lutamos — devem falar por si mesmas. Elas devem servir como um convite para se juntarem a nós em uma forma diferente de se fazer política, baseada na ação direta ao invés da propositura. As pessoas de Ferguson e de Baltimore que reagiram aos assassinatos de Michael Brown e Freddie Gray confrontando fisicamente a polícia fizeram mais pela discussão sobre violência policial do que décadas de defesa da vigilância comunitária. Ao tomar espaços e distribuir recursos, desviamos do caminho circular e insensível da representação. Se devemos enviar uma mensagem às autoridades, que seja esta exigência única e simples: Não mexam conosco.

Ao invés de fazer demandas, vamos começar a traçar objetivos. A diferença é que nós traçamos nossas próprias metas, no nosso próprio ritmo, conforme surgem as oportunidades. Elas não precisam ser limitadas pela lógica das forças dominantes, e sua realização não depende da boa vontade das autoridades. A essência do reformismo é que mesmo quando você conquista alguma coisa, você não adquire controle sobre ela. Devemos desenvolver a capacidade de agir em nossos próprios termos, independente das instituições com que estivermos lidando. Este é um projeto de longo prazo, e ele é urgente.

Ao perseguir e conquistar nossos objetivos, desenvolvemos a capacidade de lutar por objetivos maiores e mais ambiciosos. Isto contrasta fortemente com o modo como movimentos reformistas tendem a entrar em colapso quando suas exigências são atendidas ou consideradas irreais. Nossos movimentos serão mais fortes se puderem acomodar uma diversidade de objetivos, considerando que os mesmos não conflitem abertamente entre si. Quando compreendemos os objetivos uns dos outros, se torna possível identificar por que faz sentido cooperarmos entre si, e quando não faz — um tipo de clareza que não resulta do alinhamento em torno de um mínimo denominador comum.

A partir deste ponto, podemos perceber que escolher não elaborar demandas específicas não necessariamente é um sinal de imaturidade política. Pelo contrário, pode ser uma recusa perspicaz a cair nas armadilhas que debilitaram as gerações anteriores. Vamos conhecer nossa própria força, longe das jaulas e filas da democracia representativa — longe da política de demandas.

“Talvez, portanto, a moral da história (e a esperança
do mundo) reside não naquilo que as
pessoas exigem dos outros, mas de si mesmas.”

–James Baldwin
No Name in the Street

 

Originalmente publicado por camaradas do Coletivo CrimethInc.

DA DISCORDÂNCIA AO ÓDIO

Como nossa forma de comunicar pode sabotar nossos esforços*

Nas últimas duas décadas nossos costumes avançaram pelo menos um pouco no sentido de aceitação da homossexualidade, na luta contra o racismo, na igualdade de gêneros e no respeito às minorias de forma geral. Agora estamos assustadas com uma onda reacionária que dominou o país, propagando um discurso de ódio e intolerância com as minorias e com os movimentos sociais, ao ponto de pipocarem agressões homofóbicas, antifeministas e esquerdofóbicas por todo o lado. O que deu errado? Por quê as pessoas estão se opondo tão violentamente a mudanças que visam construir um mundo com mais tolerância e igualdade e sentem tamanho ódio por ativistas e pessoas que defendem a igualdade das mulheres, a igualdade de gêneros?

Em termos de conteúdo, nosso discurso pode ser muito diferente do da direita reacionária e conservadora, mas, pelo menos até o momento, tem sido idêntico na forma. “Eu tô certo, você está errado!” é a forma de comunicação preferida na civilização ocidental e nas suas esferas de influência desde o seu surgimento. Seja com nossas famílias, em nosso círculo de amizades, com nossas colegas de trabalho ou com uma pessoa estranha na rua, quando nos deparamos com uma discordância, somos ensinadas desde pequenas a argumentar, jamais a dialogar. Quando uma criança faz algo que pessoas adultas não aprovam, ela logo é posta em seu lugar: “Não pode!”, “Sua irresponsável!”, “Isso é errado!”. Ao invés de dialogarmos com ela para descobrir por que fez e o que estava tentando fazer com aquilo, somos impelidas (pela nossa própria criação) a demonstrar todas as formas em que elas erraram.

E nas nossas discussões sobre política e transformação social, agimos da mesma forma. Estamos sempre prontas para acusar e criticar, mas jamais para tentar compreender o que faz aquela pessoa pensar e agir daquele jeito, nem para expor nossos sentimentos e juntas tentarmos encontrar uma solução para nossos problemas. Quando fazemos isso sem ouvi-las e buscar a empatia, estamos negando a validade do seu ponto de vista, da sua vivência e tentando impor a nossa visão como a Verdade.

E isso parece não estar dando certo para ninguém.

Todo ataque, gera resistência.

Assim como a violência do Estado e do capitalismo gera resistência por parte das pessoas que lutam por liberdade e por um mundo com mais igualdade, quando agimos ou dizemos algo que outras pessoas interpretam como crítica, julgamento ou reprovação, é muito provável que surja resistência às mudanças que estamos tentando realizar. É normal ficar na defensiva durante um ataque, mesmo que argumentativo, e, dentro de um certo limite, isso é até mesmo saudável para não aceitarmos acriticamente tudo que nos dizem e sermos manipuladas.

Os últimos anos de avanços na igualdade social, como o maior acesso da população negra às universidades através das cotas, o empoderamento das mulheres para denunciar abusadores publicamente e a coragem de casais homoafetivos de demonstrar o seu amor em público, entre outros, trouxeram no seu encalço uma resistência feroz. Pessoas que se sentiram julgadas ou acusadas de serem machistas, racistas, homofóbicas, e todo mundo que se identificou com elas por ser parte de uma cultura que ainda propaga esses valores, ficaram na defensiva e ali se entrincheiraram. Isso colaborou com a polarização política que acabou levando Bolsonaro, Mourão e uma horda de reacionários ao Palácio do Planalto, o que agora pode pôr tudo a perder.

Ainda estamos presas a uma mentalidade de tentar realizar transformações acusando as outras pessoas de estarem erradas, e isso não está funcionando.

Quando abrimos mão do diálogo, a única forma de mudar o comportamento opressivo de outra pessoa é através do constrangimento ou do medo. Ou seja, através da ameaça de ostracização ou de uso da força. A ostracização não resolve o problema, apenas o afasta de nossos olhos. Por exemplo, ostracizar uma pessoa homofóbica não fará com que ela deixe de ser hostil a pessoas em relacionamentos homoafetivos, apenas fará com que ela faça isso longe de nossos olhos e de nossa esfera de influência – ou seja, empurramos o problema para outras pessoas.

Já a força não é uma forma eficaz de convencimento e de mudanças a longo prazo, principalmente se o que queremos é um mundo baseado no princípio da liberdade. O uso da força pode sim ser eficiente como defesa, para preservar a vida frente a uma ameaça. Se a polícia representa uma ameaça à liberdade e à vida das pessoas, a força pode ser útil para impedir o seu avanço, protegendo as pessoas da repressão. Se uma mulher está prestes a ser violentada por um homem, esfaqueá-lo pode ser uma forma eficaz de preservar a integridade física e mental dela. A ameaça de violência física também pode dissuadir um grupo fascista de cometer ataques homofóbicos e racistas, e a sabotagem pode proteger uma floresta do desmatamento iminente. Embora a força possa ser uma boa solução para ameaças imediatas à vida, não é a melhor solução a longo prazo.

“As pessoas foram treinadas a criticar, insultar e se comunicar de formas que distanciam as pessoas.”

— Marshall B. Rosenberg

Se forçamos alguém através do constrangimento, da coerção ou do medo de punição a fazer algo contra a sua vontade, essa pessoa voltará a fazer isso assim que enxergar uma oportunidade de fazê-lo sem sofrer retaliação. Se o número de pessoas constrangidas for grande, elas poderão fazer parte de um movimento reacionário.

Opondo-se a ideias, não a pessoas

Chamar alguém de fascista, machista, racista ou homofóbico pode fazer a gente se sentir bem, descarregar um pouco da nossa raiva e frustração e reforçar nosso sentimento de estarmos do lado da justiça e da liberdade. Mas vai ser pouco eficiente em transformar as ações dessa pessoa. Se ela luta por mudanças radicais, como nós, isso pode fazer com que se sinta inferiorizada, que não é boa ou pura o suficiente, e isso pode acabar imobilizando-a ou afastando-a do movimento. Se ela simpatiza com nossa luta, mas não é tão radical quanto nós, a probabilidade de afastá-la é ainda maior e poderemos ser taxadas de extremistas, reduzindo nosso apoio em grupos mais moderados. Por outro lado se ela for mais conservadora ou não for familiarizada com ideias mais radicais, ela pode acabar se identificando com os rótulos que impomos a elas, assumindo a pecha de antifeminista, de defensor dos direitos dos homens, passar falar de racismo invertido e outras formas de vitimismo.

Há uma diferença entre acusar alguém de “ser” racista e de ter agido de forma racista. O mesmo vale para o sexismo, a homofobia ou o fascismo. Essas opressões estão entranhadas dentro de nós e mesmo a pessoa mais esclarecida pode cometer atos machistas, racistas, sem ter consciência, mas isso não significa que ela pense que mulheres ou pessoas negras são inferiores ou que devem ser tratadas de forma diferente. Se em certo momento ela agiu de forma que consideramos opressora, se conversarmos sobre essa ação específica será mais fácil para nós dialogarmos abertamente e também para ela evitar realizar aquela mesma ação no futuro. Mas se a rotulamos como machista, racista, homofóbica, a congelamos no status de opressora, e será muito mais difícil para nós estabelecermos um diálogo com ela e mais difícil será para ela mudar, e portanto estaremos mais distantes do nosso objetivo de acabar com a opressão.

Se enxergamos as outras pessoas como iguais e não queremos oprimi-las, impondo nosso ponto de vista, a saída é estabelecer um diálogo. Para isso, precisamos ouvir e ser ouvidas, o que é muito raro hoje em dia. Realmente escutar nossa interlocutora não é ficar pensando, enquanto ela fala, em como retrucá-la, mas ouvir o que ela tem a dizer, tentar descobrir como ela está se sentindo e o que leva ela a se sentir assim. Muitas vezes, somente depois de ter certeza que você ouviu o que ela tinha a dizer, uma pessoa se abrirá para saber o que você sente, precisa e as mudanças que gostaria de ver. Precisamos aprender a discordar das ideias de alguém sem desumanizar a pessoa.
É improvável que conseguiremos resolver as disputas numa única conversa, mas mesmo que haja discordância é precioso mantermos os canais abertos para irmos compreendendo umas às outras e quem sabe um dia elas estarão prontas para atender nossos pedidos.

“O mundo não está dividido entre Oriente e Ocidente. Você é americana, eu sou iraniana, nós não nos conhecemos, mas conversamos e nos entendemos perfeitamente. A diferença entre você e seu governo é muito maior que a diferença entre você e eu. E a diferença entre eu e meu governo é muito maior que a diferença entre eu e você. E nossos governos são muito parecidos.”

— Marjane Satrapi, quadrinista iraniana.

Nem sempre é fácil manter um diálogo com quem pensa e fala coisas que ferem nossos princípios e valores. Fica mais fácil se mantivermos o foco em qual necessidade humana aquela pessoa está tentando proteger quando diz e pensa isso. Afinal, todas precisamos das mesmas coisas: sustento, segurança, liberdade, paz, compreensão, etc. É claro que manter esse tipo de diálogo demanda uma boa quantidade de disposição e energia e, por vezes, pode ser muito tentador mandar a pessoa catar coquinhos e seguir com nossa vida. Por essa razão, precisamos conhecer e respeitar nossos próprios limites. Se não estamos conseguindo manter um diálogo, temos que ter em mente que é sempre possível interrompê-lo e perguntar à outra pessoa se ela estaria disposta a continuar em outro momento. Também precisamos aprender a pedir ajuda quando necessário.
A fim de conseguirmos escutar alguém, precisamos nos sentir escutadas e para isso é importante ter pessoas em quem confiamos com quem podemos nos abrir e desabafar. Ao criar redes de pessoas que se escutam, começamos a criar uma cultura de diálogo. Essa cultura se faz muito necessária em uma conjuntura que, estimulada pelas redes sociais corporativas (Facebook, Instagram, etc.), facilita o bloqueio e a exclusão de pessoas de quem discordamos de nossas bolhas e da nossa própria existência digital.

Quem mais se beneficia do isolamento e da desintegração das comunidades é o Estado, o fascismo e qualquer grupo interessado em fazer perseguição política. Se queremos um mundo livre de opressão, precisamos encontrar formas não-coercitivas de criá-lo, senão estaremos reproduzindo as mesmas dinâmicas e estaremos portanto fadadas ao fracasso.

 

*Originalmente publicado por camaradas da revista Fagulha.

TODAS CONTRA BOLSONARO E A NOVA DIREITA!

No dia primeiro de janeiro de 2019, Jair Bolsonaro assumirá a presidência do Brasil. Sua candidatura, seu governo e seus aliados representam o que há de pior em qualquer sociedade: o autoritarismo, o sexismo, o racismo, a homofobia e a xenofobia. O capitalismo aliado a práticas com fortes tendências fascistas!

O novo presidente já mostrou que as minorias políticas serão os principais alvos de seu governo: a classe trabalhadora e pobre, as mulheres, a população negra e periférica, toda comunidade LGBTTIQ, os povos indígenas e imigrantes terão ainda mais direitos ameaçados e suas vidas colocas em risco.

Usando notícias falsas, boatos e distorções dos fatos, Bolsonaro e seus apoiadores foram capazes de influenciar milhões de pessoas e fugir de todos os debates sobre seus projetos e ideias.

Ele representa um risco aos ecossistemas ao querer acabar com leis e acordos ambientais, negando a existência do aquecimento global e planejando entregar reservas ecológicas e terras indígenas ao agronegócio e ao mercado internacional. Escândalos envolvendo sua equipe apenas mostram que Bolsonaro usará da mesma corrupção que os governos anteriores.

Suas visões políticas foram amplamente elogiadas por supremacistas brancos como David Duke da Ku Klux Klan e sua corrida eleitoral apoiada por Steve Bannon, estrategista de campanha de Donald Trump, presidente americano que Bolsonaro promete total subserviência.

Portanto, não é possível esperar: 2019 deve ser um ano de luta ainda mais intensa. Convidamos a todas e todos, comunidades, movimentos, coletivos, associações, estudantes, trabalhadores e trabalhadoras e quem não tem trabalho para a organizar uma luta ampla e para além da política partidária. A polarização entre direita e esquerda no nível eleitoral tem servido de distração e colocado projetos de poder semelhantes como aparentemente opostos. Enquanto isso, deixa intacta a raiz do problema que se encontra no Estado e na forma capitalista da sociedade.

Devemos lembrar que as leis antiterroristas que criminalizam protestos e movimentos sociais foram criadas e aplicadas durante o governo dito de esquerda de Lula e Dilma Rousseff. E agora, serão aprimoradas e usadas pelo governo de Bolsonaro para neutralizar qualquer oposição popular nas ruas.

Nas palavras do próprio Bolsonaro: as oposições e também as todas as formas de ativismo estarão banidas do país. A violência policial será ainda mais intensa e a turba influenciada por seus discursos de ódio que saíram do armário em sua campanha, não voltará para lá. Eles também estarão nas ruas agora!

Não podemos recuar. Estivemos nas ruas contra o aumento das passagens e a Copa das Confederações em 2013, contra os impactos da Copa do Mundo em 2014 e das Olimpíadas em 2016. Nas ocupações das escolas em 2015 enfrentando os cortes da educação. Nas escolas e instituições culturais ocupadas contra as medidas de Michel Temer em 2016. Em 2017 e 2018 em todas as greves, ocupações e marchas contra o atual governo.

É necessário tomar novamente as ruas para resistir, deslegitimar e expor os absurdos defendidos por Bolsonaro como uma ameaça a todas as pessoas, para o meio ambiente e para as gerações futuras.

Estaremos nas ruas com protestos, organização popular, ação direta. Convidamos agora para essa luta, todas e todos aqueles que sistematicamente vem sido prejudicados por governos e pelo capitalismo durante toda sua vida, e também aqueles que agora serão ainda mais atingidos e desejam resistir ao governo de extrema-direita de Jair Bolsonaro, combatendo os grupos autoritários, conservadores, neoliberais e fascistas que estão tomando às ruas e as instituições políticas nos últimos anos.

Desde o dia da sua posse, primeiro de janeiro, ocuparemos as ruas contra toda e qualquer medida imposta pelo seu governo. A luta pela terra, por moradia, pela nossa existência, por justiça e igualdade deverá ser mais intensa do que nunca. Estaremos também nos dias históricos das lutas populares:

oito de março, dia da mulher; 19 de abril, dia da resistência indígena; primeiro de maio, dia dos trabalhadores e trabalhadoras; 28 de junho, dia do orgulho LGBTTIQ; sete de setembro e o grito dos excluídos; 20 de novembro dia da consciência negra.

Será preciso tomar toda oportunidade de demonstrar que não existe consenso. A maioria da população não votou em um governo autoritário, que abre as portas para maior militarização da sociedade, para o fascismo e para a supremacia branca e patriarcal.

Não iremos parar de lutar até que o Estado e o capitalismo caiam!

Em 2019, Bolsonaro e seus aliados não terão descanso!

Organizar a morte do Estado e do Capital, não de pessoas – perspectivas revolucionárias sobre atentados e assassinato de poderosos

“A terrível guilhotina de 1793 que não pode ser acusada nem de preguiça, nem de lentidão, não chegou a destruir a classe nobre na França. (…) E em geral, pode-se dizer que as carnificinas políticas nunca mataram os partidos; mostraram-se, sobretudo, impotentes contra as classes privilegiadas, porque a força reside menos nos homens do que nas posições ocupadas pelos homens privilegiados na organização das coisas, isto é, a instituição do Estado e sua consequência assim como sua base natural, a propriedade individual.”

– Mikhail Bakunin

No dia 6 de setembro de 2018, em Juíz de Fora, Minas Gerais, o deputado federal e candidato à presidência Jair Bolsonaro recebeu uma facada na barriga enquanto era carregado pelas ruas da cidade e escoltado por mais de 20 policiais. A ação foi flagrada por câmeras e celulares e repetida até a exaustão na televisão e pela internet. O algoz, Adelio Bispo de Oliveira, foi preso em flagrante. Taxado de “simpatizante de esquerda” por alguns e “lunático conspiratório” por outros, Adelio teria supostamente confessado o crime alegando “divergências pessoais” e que teria feito a ação “a mando de Deus”.

Pintura de Flavio Costantini representando o momento em que anarquista italiano Gaetano Bresci mata o Rei Umberto em 1900. Um ano antes, Bresci salvou a vida do ilustre anarquista Errico Malatesta ao se jogar sobre um homem que queria matá-lo com um tiro nos Estados Unidos.

Enquanto algumas pessoas analisam os impactos do atentado na campanha de Bolsonaro – um defensor da ditadura, homofóbico, machista e racista declarado –, outras dizem é tudo uma completa encenação. Há também quem, num tom mais alarmista, compare o ataque contra o parlamentar ao assassinato do diplomata alemão Ernst vom Rath em 1938, que foi o estopim da Noite dos Cristais: ataques em massa contra sinagogas, casas e lojas de judeus na Alemanha e na Áustria, resultando na prisão e morte de dezenas de pessoas. De fato, é bem possível que Bolsonaro e seus eleitores usem do atentado como estratégia para se passar por vítima e despertar solidariedade em forma de ódio contra algum grupo – como sempre fazem os fascistas. Ou pior: alguns fanáticos podem usar o episódio como pretexto para praticar seus ataques semelhantes aos tiros contra o ônibus de uma caravana de apoiadores do PT e de Lula no Paraná em março de 2018. Mas, para além desses pontos, é importante discutir o uso político de atentados e assassinatos de pessoas poderosas na sociedade fora de um contexto de combate ou guerra e enquanto ação de propaganda ou mobilização social.

O momento em que um cidadão confere se um parlamentar tem sangue e merda na barriga como todos os outros mortais.
A visão estratégica e a visão ética

Após o ataque a Bolsonaro, a internet e as ruas ferveram em debates sobre a legitimidade ou a necessidade de matar defensores de políticas de extrema-direita e que, em última instância, colocam em risco real a vida de milhões de pessoas negras, LGBTTIQ, pobres ou imigrantes apenas por serem parte de minorias políticas. Enquanto anarquistas, nos interessa o debate porque ele toca a luta contra políticas e regimes autoritários. É um debate sobre como resistir ao extremismo da direita, mas também a qualquer forma de Estado e exploração capitalista. E as questões mais importantes que queremos tratar aqui seriam principalmente estratégicas e éticas.

Anarquistas e socialistas já mataram presidentes e reis. Mas será que conseguiram alguma mudança sistêmica profunda com ações isoladas para eliminar certos indivíduos em posições de poder? Os fatos levam a crer que não, pois as instituições que acumulam poder continuaram intactas e operando com carne sempre nova. Bakunin nos alertou também sobre essa questão quando disse que “as carnificinas políticas nunca mataram os partidos; mostraram-se, sobretudo, impotentes contra as classes privilegiadas, porque a força reside menos nos homens do que nas posições ocupadas pelos homens privilegiados na organização das coisas”. Como explica Alexandre Samis, “Bakunin acreditava que as energias revolucionárias deveriam ser concentradas na destruição das ‘coisas’, no caso, do Estado e da sociedade dividida em classes, e não das ‘pessoas’. A questão suscitada, para muito além de um contexto histórico, define para os libertários um princípio basilar: o do antiautoritarismo”. Ou seja, há muito tempo que anarquistas apontam que nossos maiores inimigos são as instituições políticas, econômicas e culturais que alimentam o conflito quando colocam umas poucas pessoas em posições de privilégios e outras em situações de opressão e subordinação.

Do ponto de vista estratégico, matar um fascista como Bolsonaro em praça pública fará pouco pelo fim do fascismo e toda forma de autoritarismo e opressão. Um problema sistêmico não desaparece com a morte de um indivíduo, por mais que tentemos personificar ideias e políticas nele. Se fosse assim, bastava esperar a morte de um ditador para que regimes caíssem e os povos vivessem em liberdade. Sabemos que sistemas autoritários permanecem após a morte de seus líderes e que atentados e assassinatos contra indivíduos separados de uma ampla luta social criam mártires e pretextos para perseguição de movimentos políticos.

Do ponto de vista ético, se confundimos as pessoas com as instituições que elas operam, cairemos na ideia de que matar um por um de cada policial, juiz, presidente ou milionário vai nos livrar das desigualdades do mundo, como se as ideias, as práticas e as instituições que criam essas desigualdades residissem nos corpos dos que matamos. E se o nosso foco for executar adversários políticos, independente da situação ou das consequências, o que garante que após uma revolução não façamos paredões de execução de inocentes e supostos “contrarrevolucionários”? Não somos pacifistas e sabemos que sempre haverá violência decorrente dos conflitos de uma revolução social que enfrente os defensores de uma ordem opressora. Mas acreditar que o fim dessa ordem depende essencialmente do sangue dos seus defensores pode abrir caminho para aparatos sociais tirânicos e assassinos que não sabem mais quando parar de matar. Vemos isso muito bem no caso dos Jacobinos após a Revolução Francesa de 1789 ou da Revolução Russa e a tomada do poder pelos Bolcheviques em 1917.

Confundir pessoas com sistemas e instituições historicamente construídas nos parece não apenas um erro estratégico mas também aponta caminhos para questões éticas, como o surgimento de tribunais revolucionários que penalizariam indivíduos como forma social exemplar e uma política de extermínio de inimigos por divergências políticas e ideológicas.

“A minha hipótese é que o tribunal não é a expressão natural da justiça popular, mas pelo contrário, tem por função histórica reduzi-la , dominá-la, sufocá-la, reinscrevendo-a no interior de instituições características do aparelho de Estado.”

– Michel Foucault

Bolsonaro e sua metralhadora imaginária: você pode matar um homem, mas a babaquice é imortal.
Exemplos históricos

“Matar um homem para defender uma ideia não é defender uma ideia, é matar um homem.”

– Jean-Luc Godard

Em 1901, William McKinley, presidente dos Estados Unidos foi atacado com dois tiros pelo jovem anarquista e filho de imigrantes poloneses chamado Leon Czolgosz. O presidente morreu oito dias depois devido aos ferimentos. McKinley ficou conhecido por suas políticas imperialistas na América e na perseguiçao aos povos indígenas. Durante seu governo, os Estados Unidos ganharam controle dos territórios de Porto Rico, da Ilha de Guam e do Havaí. Muitos dizem que foi durante seu governo que os EUA conquistou o papel de “polícia do mundo”. Como podemos perceber, sua morte não mudou os rumos do estado que comandava, e suas políticas não apenas permaneceram vivas, como se intensificaram. Theodore Roosevelt assumiu como presidente após a morte de McKinley e consolidou o caminho do imperialismo estadunidense nas Américas e no mundo.

Por sua vez, Leon Czolgosz não tinha muitos laços no movimento anarquista e “seu gosto por violência fez com que muitas pessoas achassem que ele era um infiltrado até o dia em que matou o presidente”. O jovem foi preso sem direito a ver qualquer familiar ou amigos e morreu na cadeira elétrica um mês depois do atentado. Na sua época, Emma Goldman foi uma das poucas pessoas no movimento anarquista que buscou entender e defender Czolgosz – mesmo depois de ter sido presa por semanas junto com mais 12 militantes anarquistas após o assassinato do presidente, sem nenhuma acusação ou justificativa formal. Muitos apontam que foi nesse momento que o socialismo ganhou destaque nos Estados Unidos enquanto o anarquismo perdeu credibilidade devido aos ataques da mídia e do governo que depreciavam anarquistas como terroristas sedentos por sangue. Os mesmos tipos de estratégias vimos após 2013 no Brasil, com a prisão de 23 militantes no Rio de Janeiro em 2014 e a tentativa de criminalizar o movimento anarquista no Rio Grande do Sul em 2017. Em ambos os casos o Estado e mídia burguesa usaram manifestações, filiações políticas e atos isolados de depredação para forjar organizações criminosas fictícias que nunca feriram nem mataram pessoas e demonizar os movimentos sociais, especialmente os anarquistas.

Se atos que nem mesmo chegaram a tirar vidas são usados para criminalizar movimentos, a violência contra indivíduos enquanto forma de propaganda política pode colocar o movimento numa posição de fragilidade contra os ataques da mídia, do Estado e da opinião pública. Não é preciso sermos reféns da opinião pública, nem nos dispor a fazer apenas aquilo que uma maioria na sociedade iria aceitar. Mas devemos entender as consequências de nossos atos e o quão fortes são nossos laços sociais e políticos para aguentar a difamação, o medo e a perseguição política.

Pessoas comuns, que ainda não tomaram partido, tendem a ver os movimentos que ganham fama com atentados como apenas uma facção militarizada, especializada em combate ou em ataques. Se uma construção de relações sociais fortes, como ocupações, cooperativas, sistemas educação e uma ampla estrutura autogerida não se tornarem conhecidas antes dos conflitos com agentes do Estado, dificilmente terão suporte após ações isoladas violentas.

Como nos contam camaradas do coletivo CrimethInc, depois que McKinley foi morto pelas mãos de um anarquista, “multidões atacaram comunas e jornais anarquistas em retaliação. O governo dos EUA passou leis anti-anarquistas. O medo do movimento abriu caminho para a criação do Bureau of Investigation (Departamento de Investigação), em 1908, que se tornou o FBI trinta anos depois. A maioria das leis anti-anarquistas não foram usadas até a Primeira Guerra Mundial, quando passaram a ser usadas contra imigrantes anarquistas e qualquer outro imigrante que representasse alguma ameaça para a nação”.

Mais recentemente, temos o exemplo da revolução social em andamento em Rojava, no norte da Síria, que tem suas raízes no surgimento do Partido dos Trabalhadores do Curdistão (PKK), fundado em 1978 no sul da Turquia levando adiante uma guerrilha urbana marxista-leninista. O povo curdo é o maior povo sem estado do mundo e conta com cerca de 4 milhões de pessoas espalhadas pelos territórios da Síria, Iraque e Turquia, vivendo há séculos como refugiados, perseguidos políticos sem direitos. Curdistão é o nome desse território não reconhecido por onde está espalhado seu povo. O PKK, desde o início formado por homens e mulheres curdas, iniciou suas ações promovendo sequestros, ataques e atentados que mataram grandes proprietários de terras que exploravam o povo curdo e alvos políticos e militares do estado turco. Paralelamente aos atentados, o PKK buscava construir atividades culturais e organizativas com o objetivo de estimular um levante popular e a criação de um estado socialista curdo independente. A forte repressão após o golpe militar na Turquia em 1980 fez com que o partido fosse considerado um grupo terrorista pela Turquia e por toda a comunidade internacional, forçado a agir na clandestinidade. Parte de suas lideranças foram presas e seus militantes se refugiaram na Síria e na Europa. Com dificuldade para atuar na Turquia, o PKK começou a realizar atentados nos países europeus.

No fim da década de 1990 o PKK anuncia que não pretende mais lutar pela criação de um estado nacional curdo e sim focar em criar autonomia para os povos fora das estruturas estatais e em 2005 declara um cessar fogo unilateral. Seu projeto político principal se torna o Confederalismo Democrático, uma forma de democracia de comunas locais dos bairros e cidades. Baseada na igualdade de gênero e no pluralismo, seu Confederalismo promove a autonomia e autodeterminação não apenas dos curdos, mas de povos de ao menos quatro etnias e três religiões. Inspirados pela revolução Zapatista no México e por ideias anarquistas como as de Murray Bookchin, os movimentos em Rojava organizaram durante décadas as estruturas educacionais, econômicas e políticas para sua autonomia e libertação. Com o início dos levantes da Primavera Árabe e a deflagração da guerra civil na Síria em 2014, os curdos não tiveram outra opção que não pegar em armas por suas vidas e seu projeto político quando encurralados entre o fascismo do Estado Islâmico e o totalitarismo dos governos da Turquia e da Síria e demais grupos rebeldes e jihadistas.

Milícias internacionalistas anarquistas/queer em Rojava: quando o confronto for inevitável, sabemos que matar fascistas não deve ser um dilema.

A revolução em Rojava mostrou que é importante a “democratização da violência”. Isto é, todas as pessoas, grupos e povos devem saber se defender. Uma vez que não há um Estado monopolizando o uso legítimo da violência, saber se defender de opressores externos e resolver conflitos internos passa a ser uma missão de todas as pessoas. A revolução curda conta com uma forte e disciplinada milícia popular (YPG) e uma ainda mais temida e exemplar milícia exclusivamente feminina (YPJ). Juntas, essas forças foram decisivas para derrotar e expulsar o Estado Islâmico do norte da Síria, mas hoje enfrentam as ofensivas do governo da Turquia para eliminar qualquer resistência e organização curda, mesmo fora de seu território.

A lição que o PKK e a revolução em Rojava pode nos ensinar é que começar um movimento baseado em atentados isolados e no assassinato de poderosos dificilmente vai fazer ruir um sistema opressor e construir estruturas que garantem a autonomia e a liberdade de um povo. Qualquer grupo que, para divulgar suas ideias, parta desde o início das ações violentas isoladas acaba criando uma barreira com o resto da população e ficam sem apoio contra os discursos criminalizadores do Estado. Esse tipo de ação, quando realizada fora de um contexto de guerra social ou sem um amplo trabalho de construção de poder de base, apenas coloca o movimento em um risco estratégico.

Sem o foco na construção do apoio e da participação popular, o PKK estaria fadado a acabar com seus membros presos ou mortos. Ao mudar sua política, seus objetivos a longo prazo e organizar a violência como uma forma de autodefesa coletiva, eles se afastaram dos atos de vingança contra indivíduos para construir a maior revolução social e experiência de organização de um povo sem Estado no século XXI até então. Os curdos aprenderam com as ideias e práticas anarquistas. Está na hora de aprenderemos com a experiência desses homens e mulheres comuns que escrevem juntos uma história extraordinária.

“O problema da luta armada só existe para aquele que quer conservar seu próprio monopólio de armamento legítimo, o Estado. O que existe, por outro lado, é efetivamente uma questão de uso das armas. Quando, em março de 77, 100.000 pessoas se manifestam em Roma, dentre as quais 10.000 armadas, e ao fim de um dia de enfrentamentos nenhum policial foi morto ou gravemente ferido, quando teria sido muito fácil fazer um massacre, percebemos um pouco melhor a diferença que existe entre o armamento e o uso de armas. Estar armado é um elemento da correlação de forças, a recusa de permanecer de maneira desprezível à mercê da polícia, uma maneira de se arrogar nossa impunidade legítima. Resolvido esse assunto, resta a questão da relação com a violência, uma relação cuja falha de elaboração prejudica em toda parte os progressos da subversão anti-imperial.”

– Tiqqun

Destituição no lugar de paredão

“A revolução da vida cotidiana liquidará as noções de justiça, de castigo e de suplício – noções determinadas pela troca e pelo reino do fragmentário. Não queremos ser justiceiros, mas senhores sem escravos, reencontrando, para além da destruição da escravidão, uma nova inocência, uma nova graça de viver. Trata-se de destruir o inimigo não de julgá-lo”

Raoul Vaneigem

Anarquistas sempre rejeitaram as eleições e a democracia representativa por serem mera ilusão: uma pessoa não é capaz de encarnar os interesses de uma classe, suas vontades ou ideias.  Ela, no máximo, consegue defender os interesses de uma elite administrativa enquanto parte dela. E, de fato, quem toma o Estado coloca os interesses do Estado e das classes poderosas acima das classes inferiores. Fazendo o caminho contrário, o mesmo raciocínio mostra que matar uma única pessoa não vai acabar com suas ideias, eliminar sua classe, nem necessariamente desencoraja seus apoiadores. Uma dura lição aprendida também pela Fração do Exército Vermelho (RAF) na Alemanha. Entre as décadas de 1970 e 1990 o grupo praticou assassinato de políticos, oficiais, policiais e empresários sem qualquer efeito maior na sociedade alemã. O grupo caminhou para o total isolamento na clandestinidade, além de levar à morte ou à prisão a maioria de seus membros. Os exemplos atravessam os séculos e os continentes (onde podemos destacar a Guerrilha da Araguaia no Brasil, as Brigadas Vermelhas na Itália, as FARC na Colômbia, como exemplares da limitação dessas ações), mas não caberia aqui analisar todos.

A luta revolucionária não deve ter como fim o julgamento e punição de quem praticou atos que condenamos, a revolução não é um elogio à vingança e ao ressentimento, muito menos a instrumentalização do ódio. Ela deve ser um esforço positivo de construção de estruturas de vida paralelas sem relações mediadas pela violência. Isso não significa criar um dilema moral quanto ao uso da violência. Malatesta explica muito bem que “a ideia central do anarquismo é a eliminação da violência na vida social, é a organização das relações sociais fundamentada na livre vontade de todos e de cada um, sem intervenção do policial. É por isso que somos contra o capitalismo que, apoiando-se na proteção do policial, obriga os trabalhadores a deixar-se explorar por aqueles que detêm os meios de produção, ou mesmo ficar sem trabalho e sofrer de fome quando os patrões não tem interesse em explorá-los. Eis porque somos inimigos do Estado, que é a organização coercitiva, ou seja, violenta da sociedade”. E continua: “a violência só é justificável quando é necessária para defender a si mesmo ou defender os outros contra a violência. O delito começa lá onde acaba a necessidade.” A violência pode destruir e nos libertar de uma ordem opressora, mas não é o melhor laço para manter uma sociedade livre.

“Só ajuda a violência, onde reina a violência…”

– “Santa Joana dos Matadouros”, Bertolt Brecht

Execução do pedagogo anarquista catalão Francisco Ferrer retratado também por Costantini: quando não vencemos, somos nós os primeiros corpos contra a parede

Quando Durruti diz que “o Fascismo não se debate, se destrói”, acreditamos que ele está falando mais de sistemas políticos e ideias do que apenas de seus partidários. Mesmo sabendo que uma vez no front de batalha da Revolução Espanhola, sua vida e a de seu povo dependia da morte de fascistas armados que estavam tentando tomar o controle do Estado. Anarquistas não acreditam na tomada do Estado, seja pelo voto ou pela força porque sabem que a existência do Estado em si depende e perpetua uma divisão da sociedade em classes de dirigentes e dirigidos. Em uma sociedade onde não existem cargos executivos ou militares que acumulam tanto poder, não existe o risco de um fascista tomar esse cargo e fazer valer suas vontades políticas e caprichos pessoais. Sem o Estado, o Exército, a propriedade privada e a polícia para defendê-la, homens como Jair Bolsonaro ou Eike Batista são apenas idiotas arrogantes e egoístas. Sem essas posições de poder, esses homens não são nada. Mas sem esses homens, tais posições de poder continuam sendo uma ameaça para nós aqui embaixo, pois basta alguém assumir seu lugar que o sistema continua seu trabalho da mesma forma.

Se vamos tomar de volta a capacidade de nos organizar, devemos começar pela capacidade de organizar a morte do Estado e do Capital, não de indivíduos. Somente a organização descentralizada, horizontal e autônoma da sociedade de forma a tornar essas instituições fracas e inúteis vai nos libertar dos efeitos opressivos delas. Se queremos uma sociedade livre, devemos priorizar a criação de um poder coletivo e social que torne essas instituições fracas e inoperantes, a ponto delas não fazerem a menor diferença em nossas vidas, sem necessariamente destruir as pessoas operando elas, ou fazer disso um projeto político. E então, poderemos destruí-las, deixando-as perecer sem ninguém por perto. Como descrito pelo Comitê Invisível, precisamos destituir o poder estatal e capitalista:

Subtrair-se às instituições é tudo menos deixar um vazio, é sufocá-la positivamente. Destituir não é, portanto, atacar instituição, mas, sim, a necessidade que temos dela. Não é criticá-la (…), mas assumir realmente o que se supõe que ela faz, fora dela. Destituir a universidade é estabelecer longe dela lugares de pesquisa, de formação e de pensamento mais vivos do que ela é (…). Destituir a justiça é aprender a regular, nós mesmos, nossos desacordos, colocar para isso um método, paralisar sua faculdade de julgar e expulsar seus oficiais de justiça de nossas vidas. Destituir a medicina é saber o que é bom para nós e o que nos deixa doentes, arrancar da instituição os saberes apaixonados que nela sobrevivem em suas obras e não voltar jamais a se encontrar só, no hospital, com o corpo entregue à soberania artística de um cirurgião desdenhoso. Destituir o governo é se tornar ingovernável. Quem falou em vencer? Superar é tudo. O gesto destituinte não se opõe à instituição, ele não coloca contra ela uma luta frontal, mas a neutraliza, esvazia-a de sua substância, dá um passo para trás e a observa morrer.”

(Agora – Motim e Destituição)

Coragem para se encontrar

Não é necessário também oferecer um julgamento moral das ações de outros anarquistas ou indivíduos aparentemente desesperados como Adelio Bispo, que tiveram coragem de mostrar a políticos e outros poderosos que suas ações para manter um mundo de desigual e opressivo terão consequências. Precisamos, acima de tudo, entender o contexto de isolamento e frustração causados pela vida em uma sociedade tão desigual, que pode levar alguém a tomar partido e realizar tais ações tão extremas.

Muitas pessoas oprimidas se sentem impotentes e querem romper com esse sentimento da forma mais rápida possível. Tão comum como o atentado contra figuras de poder, é a autodestruição transforma em da ação política. Já comentamos sobre o homem de cinquenta anos que ateou fogo em si mesmo na frente do Palácio do Planalto no dia em que um muro era erguido por presidiários para separar manifestantes de esquerda de manifestantes de direita no dia da votação do Impeachment de Dilma Roussef em 2016. Ele foi levado ao hospital com cerca de 70% do corpo queimado, mas sobreviveu. Seu gesto se compara ao de Mohamed Bouazizi, o vendedor ambulante tunisiano impedido de trabalhar que se matou com gasolina e fogo em frente a um prédio público e foi o estopim das revoltas hoje conhecidas como Primavera Árabe. Ambos os atos denunciam a violência silenciosa de uma sociedade que cala e isola indivíduos até que não sobre nada além da solidão e do desespero. Na impossibilidade de se encontrar com outros corpos para organizar a resistência, a opção encontrada por esses homens foi transformar o desespero em uma forma de potência, mesmo que autodestrutiva – com a diferença de que a do brasileiro que ateou fogo em seu próprio corpo não iniciou nenhum grande levante.

Adelio Bispo pode até saber que Bolsonaro representa uma ameaça a vida dos pobres e minorias, porém, mais do que nunca, é a vida de Adelio que agora está em risco. Depois de ser linchado e preso, ele será processado com base na Lei de Segurança Nacional, criada durante a ditadura que Bolsonaro tanto elogia e tem saudades – mais uma prova de que mesmo anos após a saída ou mesmo a morte de seus líderes, os aparatos de uma ditadura militar não apenas continuam vivos, mas continuam operantes dentro de uma democracia.

Por fim, temos uma mensagem a todas as pessoas que, por raiva ou frustração, pensam em furar um bloqueio policial para tirar a vida de um tirano com suas próprias mãos, ou atear fogo em si mesmas como um último protesto: vocês não estão sós!

E uma mensagem para todos aqueles que querem nos manter sob controle, opressão ou mortos: vocês não estão seguros!

É possível e necessário nos encontrar e nos organizar para planejar a queda de regimes inteiros e não apenas de um tirano. Não deixaremos a ansiedade e a frustração guiarem nossos atos nem aceitem correr o risco de ir para a prisão ou túmulo sem apoio, solidariedade ou mesmo em vão. A construção de um novo mundo livre da autoridade do Estado ou do capital certamente levará ao confronto com pessoas que querem defender sua existência, por isso não devemos hesitar na hora de defender nossas vidas e as de nossos pares. Existem pessoas que já mostraram a coragem de arriscar a vida pelo bem de todas as outras pessoas oprimidas. É preciso sermos fortes e nos organizar para que ninguém tenha que lutar ou sofrer na solidão, no isolamento. Quanto mais pessoas oprimidas compartilharem dessa coragem, mais teremos força para derrubar os tiranos desse mundo, levando seus regimes com eles – e a esse dia daremos o nome de revolução.

Marcha antifascista no Rio de Janeiro, 2016: Esmagar o fascismo, abolir o Capitalismo e destruir o Estado – nada menos que tudo isso junto!