POR UMA NOVA DÉCADA DE LUTA!

Santiago, novembro de 2019

O ano de 2019 foi longo e muito produtivo para o coletivo Facção Fictícia e toda a rede de projetos editoriais, movimentos anarquistas/anticapitalistas com quem trabalhamos.

Encerramos o ano e a década felizes por participar de grandes produções dedicadas a narrar, repensar e provocar as lutas sociais por um mundo livre de estados, do capital e toda forma de opressão. Produzimos conteúdo não apenas sobre as mobilizações, mas de dentro dessas mobilizações nas quais nos envolvemos – sejam ocupações por moradia, nas mobilizações por melhores condições de vida e toda forma de protesto e ação direta que busca construir nosso poder de organização e luta para além e em confronto com o estado e o mercado.

Santiago, Chile, 2019

Escrevemos essa nota enquanto as ruas ainda ardem em Hong Kong, no Chile e na Grécia, mostrando que o neoliberalismo não venceu e a história dos de baixo ainda vai contar seu fim. Escrevemos enquanto a fumaça da guerra social ainda sobe em meio à resistência dos povos da Amazônia e de Rojava. E nos deixa muito contentes saber que pudemos compartilhar experiências e ouvir relatos em primeira mão das barricadas da Comuna de Quito e das trincheiras da revolução na Síria com a Comuna Internacionalista em Rojava. Pudemos também relembrar ações de libertação animal em São Roque em 2013 com testemunho pessoais de quem esteve na linha de frente. E publicamos nossos textos em diferentes portais e em pelo menos cinco línguas!

Quito, outubro de 2019

Além do trabalho escrito, pegamos muita estrada em 2019. No primeiro semestre colaboramos na turnê com Vitalist International e a editora Glac por 3 estados do Brasil, visitando centros sociais, culturais debatendo organização de base e paralelos possíveis entre Américas do Sul e do Norte.

Entre os meses junho e julho, realizamos uma grande turnê com o coletivo CrimethInc. passando por 15 cidades em 7 estados e pelo distrito federal, para lançar o livro impresso Da Democracia à Liberdade, que traduzimos e produzimos em parceria com os coletivos Subta e No Gods No Masters. Ao todo, foram 21 eventos, passando por centros sociais, ocupações, sedes de sindicatos, universidades, centros de pesquisa e alguns lugares inusitados. A proposta era levar tanto as ideias do livro como promover debates com pessoas e grupos organizados em lutas sociais em lugares tão diversos. Foi uma grande experiência visitar e compartilhar aprendizados, estratégias e histórias com quem luta para construir um mundo além do Capitalismo.

Turnês com Vitalist e Crimethinc em 2019

Escrevemos uma introdução que acompanha o livro Chamada da editora Glac. Chamada reúne manifestos e chamados anônimos como o italiano Ai Ferri Corti e o estadunidense Como Iniciar um Incêndio e dentre outros. Além disso, o livro conta com artigos que comentam e analisam esses chamados e sua relevância para a luta anticapitalista no século XXI. Assim, nós que desde 2013 estamos organizando e lançando publicações subterrâneas, copiáveis e pirateáveis, pudemos contribuir em 2019 com o lançamento de dois livros de maior tiragem que achamos muito importantes. Seguimos também contribuindo com dois artigos em mais uma edição da Revista Fagulha.

Nossas parcerias renderam frutos para além dos livros e textos. O coletivo Antimídia registrou e transformou as apresentações da turnê com CrimethInc. em ótimos vídeos para continuarmos o debate. Tanto a fala sobre o livro Da Democracia à Liberdade quanto a apresentação sobre A Resistência Anarquista na Era Trump podem ser vistas a qualquer momento por quem não conseguiu comparecer pessoalmente em alguma das atividades que realizamos. Aproveitem e vejam mais alguns dos ótimos vídeos realizados pelo coletivo Antimídia em seu blog antimidia.noblogs.org.


A próxima década tem tudo para ser de muitos conflitos sociais e decisiva para barrar o avanço dos novos movimentos de direita e aspiração fascista que estão em ascensão em praticamente todos os continentes. Do mesmo modo, precisaremos oferecer soluções para além da cooptação eleitoral que o próximo ano promete: partidos de esquerda ou conservadores e grupos liberais tentarão drenar a radicalidade das ruas para nos vender o menor denominador comum através das urnas. Não cairemos nessa armadilha!

A direita que está agora no poder dá aos movimentos radicais e anticapitalistas a chance de mostrarem formas de luta e objetivos que não dependem de relação com o Estado. Rompendo o laço (ou a cooptação) que os movimentos sociais mantinham com a esquerda no controle do Estado e dificulta, mesmo que por um tempo, a identificação que os movimentos e as pessoas podem ainda ter com o aparato estatal e suas narrativas progressistas, democráticas e institucionais.

No fim das contas, sabemos que nem a esquerda, nem muito menos a direita no comando do Estado serão capazes de minimizar os impactos de uma economia neoliberal globalizada, cada vez mais brutal e excludente. A frustração atingirá eleitores de Bolsonaro e sua turma de forma ainda mais violenta que atingiu quem votou no PT e agora mudou de lado. Precisamos ter consciência desse pêndulo de atração e insatisfação que reúne a simpatia das massas hora à direita, hora à esquerda em períodos eleitoras. Em momentos de crise neoliberal, pode ser útil assumir reformas apresentadas pela esquerda institucional para incluir os pobres nas linhas de crédito e consumo ou a um relativo bem-estar. Mas quando é o momento de retomar as rédeas e os lucros da elite, populistas, neoliberais ou fascistas serão sempre uma opção para a retomada do total controle do Estado.

Essa consciência nos ajudará a apresentamos nossas propostas e mostrar de que lado lutamos e resistimos contra todos os que estão no poder do Estado e do Capital, usando seu aparato policial contra nós da base da pirâmide. Não esquecemos que foi no governo do PT que vimos um aparelho repressivo contra movimentos sociais e a ocupação das favelas serem levadas adiante como nunca. Tudo isso feito de forma a dar legitimidade para tais ações e instituições militarizadas que agora Bolsonaro – assim como Temer – herdou para usar contra movimentos sociais e toda a população.

Sendo assim, fazemos coro junto aos que entendem o cenário dos conflitos sociais em escala global não como apenas no embate binário entre direita/esquerda, conservadores/progressistas, bolsonarista/petistas. Existem ao menos três lados nos conflitos globais se delineando hoje, dentre os quais podemos nos situar de acordo com a perspectiva de ação e proposta para futuro:

  • Neoliberais de todos os tipos, de Hillary Clinton nos EUA a partidos supostamente esquerdistas como o SYRIZA na Grécia, Podemos na Espanha e o Partido dos Trabalhadores no Brasil. Embora discordem dos detalhes, todos compartilham um objetivo comum de usar a governança estatal global em rede para estabilizar o mundo em prol do Capitalismo.
  • Nacionalistas como Trump, Erdogan, Bolsonaro, Netanyahu e extremistas como o grupo Estado Islâmico, que deixaram claro que não se incomodam com a construção de estados genocidas e a eliminação de povos – sejam indígenas, negros, LGBTTTQI, imigrantes, mexicanos, curdos ou palestinos. Essa categoria também inclui Assad, Putin e outros demagogos que – como os neoliberais – costumam estar em desacordo uns com os outros, mas todos buscam a mesma visão de um mundo pós-neoliberal de etnoestados concorrentes entre si.
  • Movimentos sociais radicais de libertação que buscam promover a autodeterminação pluralista e igualitária, com base na autonomia e na solidariedade. Anarquistas, Zapatistas e a revolução em Rojava são exemplos que se encaixam nessa categoria, mesmo que grande parte também tenha um caráter nacionalista.

Nesse cenário, onde o conflito social não é mais binário, mas se divide em três, movimentos sociais anticapitalistas precisam reunir forças e desenvolver suas próprias narrativas e estratégias para difundir conhecimento, apoio, solidariedade e coordenação. É nessa perspectiva que buscaremos manter e ampliar nosso campo de trabalho no ano e na década que se inicia.

Por uma nova década de luta! Pelo fim do estado, do capital, do racismo, sexismo e toda forma de opressão!

BLACK BLOCS E LIBERTAÇÃO ANIMAL – 6 Anos da Ação em São Roque em 2013

Bons exemplos mas não um modelo pronto

Em outubro de 2013, exatos 6 anos atrás, um protesto contra o uso de animais em testes realizados em um laboratório no interior do estado de São Paulo se transformou em uma das mais emblemáticas ações diretas daquele ano que mudou o cenário político e os movimentos sociais no Brasil. O evento por si só já chama a atenção pelo tamanho e pela eficiência, ainda mais no contexto brasileiro, pouco familiarizado com ações radicais pela libertação animal com uma perspectiva anticapitalista. Acreditamos ser importante revisitar tais acontecimentos para aprender com suas limitações e desenvolver seus acertos no que diz respeito a diversidade de táticas, coordenação de diferentes movimentos, radicalidade e contundência da ação que pode inspirar outros grupos e novas campanhas.

A ação em São Roque:

Após dias acorrentadas nos portões do Instituto Royal, na cidade de São Roque, denunciando o uso e o assassinato de animais com técnicas como a vivissecção (cortar animais ainda vivos e sem anestesia para experimentações), ativistas atraíram a atenção da mídia e de outras organizações para a causa. E na madrugada do dia 18 daquele mês a manifestação se tornou uma ação de resgate dos animais que libertou quase 200 cães da raça beagle e dezenas de ratos. Toda a ação foi fotografa e filmadas pelas participantes.

Do lado de fora do laboratório, a estrada foi tomada por barricadas logo pela manhã. Uma viatura da polícia militar e um carro da imprensa foram queimados por manifestantes. Algumas pessoas menos acostumadas com a dinâmica de resistência em protestos de rua ainda tentaram formar uma barreira para proteger os carros de emissoras de TV da destruição, mas não adiantou. Do lado de dentro, jaulas foram esvaziadas, computadores, documentos e materiais de pesquisa foram destruídos. Paredes pixadas por símbolos da Frente de Libertação Animal (ALF) e ruas tomadas por Black Blocs que montaram barricadas para impedir que a tropa de choque chegasse ao laboratório e prendesse manifestantes.

Carro de emissora de TV depredada e viatura da Polícia Militar incendiada na estrada em frente ao laboratório.

Para muitas pessoas ali, era como se enfim chegasse o dia que toda uma geração de movimentos pela libertação animal, anticapitalistas e anarquistas sonharam e trabalharam para ver. Era o momento em que táticas radicais se encontram, convergem permitindo que movimentos distintos, com táticas distintas, operassem em conjunto para uma ação efetiva. Foi possível atingir tanto seu objetivo imediato (resgatar os animais e impor consequências ao laboratório pelo uso e tortura dos mesmos), quanto objetivos de médio e longo prazo (o fechar o laboratório e a educar a opinão pública sobre o tema). A ação chamou a atenção do público geral e tomou as notícias em todo o país, provocando uma mudança inédita no imaginário das pessoas sobre o que é possível fazer em uma ação direta pelos animais e educando as pessoas sobre o quão perverso e inútil são os testes em animais e o uso dos animais para qualquer fim. Tudo isso devido a uma janela de possibilidades aberta nas ruas em junho de 2013 nos grandes levantes contra o aumento das passagens no transporte público.

A invasão do Instituto Royal é um exemplo emblemático mas que também desperta curiosidade e demanda reflexão. Como nas ruas tomadas na luta contra o aumento em todo o país em junho daquele ano, a batalha em São Roque contou com a presença de uma grande diversidade de pessoas. Diferentes idades, posições políticas, classes sociais e também diferentes táticas e modos de luta e organização: ativistas que defendem o “bem estar animal” (ou que focam sua ação apenas em cães e gatos) estavam lado a lado com grupos veganos anticapitalistas. Personalidades da TV ou manifestantes de classe média que defendem a causa animal protegidas atrás de barricadas feitas por Black Blocs anarquistas. Um mosaico de inúmeras formas e contextos de luta se aliaram com um objetivo comum. A articulação prévia de longos dias foi organizada por um número reduzido de pessoas e catalisou a luta que surgiu de forma espontânea para centenas de pessoas que aderiram ao movimento imediatamente após um chamado aberto para a ação direta. Uma estratégia improvisada e repentina se tornou a principal arma contra uma polícia despreparada e incapaz de prever os movimentos de pessoas determinadas a agir.

Animais foram resgatados, o laboratório declarou falência e o impacto nas leis e na opinião pública foi maior do que todo o ativismo estritamente legalista ou outros protestos simbólicos contra a empresa durante os cinco anos anteriores: até o início de 2014, novas leis que regulam e restringem o uso de animais em testes foram aprovadas, incluindo a proibição desse tipo de teste para cosméticos em todo o país. O que nos prova que mesmo quando as pessoas querem apenas reformas, novas leis ou o fim de uma instituição opressiva, é melhor demonstrar força popular para realizar essas mudanças por nossas própria ações do que pedir pacificamente e esperar a boa vontade de poderosos. Se nos mostrarmos irredutíveis e com disposição para ação, as autoridades vão correr para nos atender antes que consigamos algo por nossa conta. Nesse momento é que os movimentos devem buscar ainda mais força para dobrar as autoridades.

Manifestantes rompendo as barreias policiais e ativistas resgatando cães dentro das dependências do Instituto Royal.

A invasão ao Instituto Royal serve com um exemplo de sucesso obtido quando a organização de longo prazo encontra a imprevisibilidade de ações imediatas, inovadoras e capazes de mudar de táticas para encontrar uma brecha no sistema, antes que a repressão policial seja capaz de reagir à altura. Questionando o discurso tradicional das lutas sociais legalistas, vimos que a diversidade de táticas e de formas de organização, quando aliadas, podem ser a chave para vitórias que tornam possível o que era até mesmo impensável.

Ainda assim, o episódio é um bom exemplo e não um modelo ou receita a serem seguidos metodicamente. Mais do que buscar respetir suas táticas e etapas de ação, é preciso entender e assimiliar as posturas que permitiram o sucesso da ação. Mesmo conflituosa e divergente para muitas pessoas que participaram, a ação mostra que uma diversidade de táticas e frentes de luta diferentes pode ser muito mais eficientes, tanto a curto quanto a longo prazo. Diferentes níveis de luta, como ação direta e confronto com forças de repressão, mídia independente e autônoma, comissões legais e porta-vozes, ajudam a distribuir a legitimidade dos movimentos e torna difícil a tentativa do Estado de isolar e silenciar “minorias infiltradas” ou “grupos radicais” do resto da luta. Essa harmonia e cumplicidade entre formas diferentes de ação se mostrou muito efetiva para libertar os animais, impor danos ao laboratório e não dividir o movimento entre “legítimos” e “ilegítimos”, “legais” ou “ilegais”, impedindo que as autoridade encontrassem divisões fáceis entre participantes que permitisse isolar e prender quem realizou ações ilegais de invasão, dado a propriedade.

O sucesso imediato e a continuidade do debate sobre o uso de animais como objetos e sua condição de propriedade em um sistema capitalista conseguem ir para além do reformismo bem-estarista (que visa apenas regular o uso de animais) e desafia o moralismo burguês dos movimentos abolicionistas (que lutam para que nenhum animal seja considerado propriedade) que se baseiam, muitas vezes, em princípios pacifistas como valores absolutos.

Black Blocs formando um cordão de proteção para bloquear o avanço da polícia em direção ao laboratório.

É necessário sempre repensar táticas, ser capaz de inovar e sempre fazer uma autocrítica. Não há problema na radicalização das ações antiautoritárias e de libertação. O problema não é atacar ferozmente o sistema, mas sim não continuar atacando. Somente a radicalização aliada ao debate sobre uma diversidade de táticas e discursos pode impedir que a legitimidade das lutas seja determinada pela mídia, pelo Estado ou por ativistas privilegiados – empresários, apresentadoras de TV e políticos – que buscam sequestrar lutas sociais organizadas por pessoas anônimas ou invisibilizadas como forma de acumular ainda mais poder e privilégios.

Para compreender um pouco mais de como foi a luta por trás das barricadas e por baixo das máscaras, publicamos aqui dois relatos escritos por pessoas que estiveram na invasão do laboratório. Elas contam como foram esses momentos de luta e descrevem sua importância para ações futuras. É preciso mais debates e, principalmente, mais ações que desafiam as leis e as “receitas de bolo” revolucionárias.

Por uma luta de libertação animal e humana total, radical e anticapitalista!

Primeiro Relato:

Em meio ao instável cenário político que veio após os protestos de junho de 2013, ativistas pelos direitos animais começaram uma campanha para fechar o Instituto Royal, um laboratório localizado no interior do estado de São Paulo conhecido pelos testes em animais e pelas práticas de vivissecção.

Após alguns dias atraindo atenção para o assunto e para esse estabelecimento em particular, a noite que mudaria como a mídia, a população e até legisladores encaram a vivissecção estava por vir. E sua história seria escrita através da ação direta. Naquela noite, em especial, as pessoas se reuniam em frente ao portão do laboratório atraídas pelas notícias que circulavam nas mídias sociais. No momento que cheguei àquela área rural cortada por estradas de terra e algumas poucas casas, a polícia estava guardando os portões e podíamos ver funcionários e seguranças privados andando dentro do prédio. Caminhões entravam e saíam, aparentemente, levando documentos e animais por medo de uma invasão. Mas essa não era uma ação da Frente de Libertação Animal (ALF). Pessoas de todos os tipos estavam presentes. Algumas só se importavam com os beagles, outras com apenas cães e gatos em geral, outras eram ativistas dos direitos animais. Black Blocs também estavam lá e até apresentadoras de TV que apoiam causas animais chegaram pois a mídia começou a divulgar que uma invasão estaria para acontecer. O que fez com que a mídia burguesa aparecesse e também mais pessoas em geral.

A polícia logo ficou em menor número e claramente incapaz de lidar com o fenômeno que tomava forma ali. É importante lembrar que São Roque fica a uma hora de qualquer cidade maior. Em poucas horas éramos muitas à postos naquela estrada sem saída cercada de mato. A estrada termina em um portão com uma largura que cabe 15 pessoas enfileiradas. De repente não parecia mais ser uma barreira e a polícia já demonstrava não estar preparada para a situação. O que pode dizer que eles poderiam reagir de forma desproporcional, mas como não se tratava do batalhão de choque, era mais provável que iriam apenas recuar. Especialmente devido à diversidade da multidão composta por senhoras de cinquenta ou sessenta anos junto a estudantes e pessoas vestidas como um Black Bloc.

Por volta da meia noite os carros do laboratório não conseguiam mais sair pelo portão e os latidos dos cães nos lembrava que as pessoas do lado de fora não eram as únicas apreensivas. Redes sociais funcionavam fortalecendo centenas de nós que estavam ali. Às duas da manhã, no dia 18 de outubro, ficou óbvio que haveria uma invasão. Bastou alguém tomar a iniciativa de começar a bater no cadeado do portão com uma pedra para que todo mundo ver que estava na hora. O portão já estava sendo derrubado enquanto gente cortava as cercas e a multidão pressionava em todas as possíveis entradas.

Rodovia que leva ao laboratório bloqueada por manifestantes.

Entramos! Uma pequena estrada leva ao prédio principal, com mais portas a serem quebradas e arrombadas. A polícia só conseguia olhar e a mídia estava lá dentro também com as câmeras ligadas. A maioria das pessoas usava máscaras como em um resgate aberto. Algumas de nós, que temiam o que podia acontecer depois, tínhamos o cuidado de cobrir nossos rostos.

Um por um, quase 200 beagles foram transportados no colo subindo o morro até onde, há poucos minutos, havia um portão onde outras ativistas esperavam com seus carros – praticamente todo mundo chegou lá de carro porque não havia outro meio de transporte para o local a essa hora da noite. Quem libertava os cães de suas jaulas não sabia para onde eles estavam sendo levados. O que importava era que estavam sendo libertos da exploração. Isso foi útil quando ativistas que estavam lá dentro sob o foco das câmeras começaram a ser identificados e sofrer acusações por roubar “propriedade privada”. Como argumentamos, as chamadas “propriedades” nunca foram tomadas como posse daquelas pessoas que os tiraram de lá.

Pessoas carregam cães um a um para fora do Instituto.

Um grupo de advogados voluntários se formou para defender quem era identificado e uma rede clandestina de veterinárias se dispuseram a remover chips que poderiam identificar animais adotados. Curiosamente, um deputado que atua na área de bem estar animal também estava presente durante o resgate, atraído pela presença da mídia e pela multidão de ativistas. Ele adotou dois beagles que passaram a morar em sua casa e poucos dias depois a mídia estava lá para filmar os cães e contar sua história. Em seu benefício, a lei brasileira diz que um membro do congresso não pode ser acusado desse tpo de crime enquanto exerce seu mandato. Para pessoas menos privilegiadas, podíamos apenas ter a companhia de alguns beagles que sofreram abusos, com sinais de mutilação e traumas psicológicos que às vezes são difíceis de notar.

A invasão foi realmente uma cena caótica, sem planejamento prévio, nenhuma direção e, provavelmente, não é um modelo a ser repetido. Sua espontaneidade foi a mágica que fez com que tudo fosse possível. Sua diversidade foi um fator que fez os números de participantes possíveis e a repressão impossível. A compaixão de todo mundo presente foi a força que ampliou seu significado para além dos indivíduos salvos.

Poucas semanas depois, após extensiva e persistente cobertura da mídia sobre o assunto, leis começaram a ser propostas na cidade, no estado e no país. A prefeitura mandou trancar o laboratório e manifestantes mantiveram a pressão até que o Instituto Royal anunciou seu fechamento no dia seis de novembro. Ainda assim, eles recusavam a liberar os animais que ainda estavam lá durante o primeiro resgate. Então uma nova e legítima ação da ALF realizada no dia 13 de novembro por uma pequena célula resgatou os 300 ratos que ainda estavam lá e nenhum animal esteve presente para testemunhar os últimos momentos do Instituto Royal.

Interior do laboratório atacado durante a madrugada.

Vídeo da segunda invasão ao Instituto Royal para resgatar ratos que ainda estavam presos.

Tendo em vista as elevadas e irreparáveis perdas e os danos sofridos em decorrência da invasão realizada no último dia 18 – com a perda de quase todo o plantel de animais e de aproximadamente uma década de pesquisas -, bem como a persistente instabilidade e a crise de segurança que colocam em risco permanente a integridade física e moral de seus colaboradores, os associados concluíram que está irremediavelmente comprometida a atuação do Instituto Royal para dar continuidade à realização pesquisa científica e testes mediante utilização de animais. Por este motivo, o Instituto decidiu encerrar suas atividades na unidade de São Roque”

Declaração do Instituto Royal em 06/11/2013 sobre seu fechamento.

Segundo Relato:

Nós fomos de carro de São Paulo a São Roque em três pessoas no segundo dia de manifestação. Ativistas que retiraram os cães ficaram a noite toda lá e, no dia seguinte, iriam retirar os roedores que restaram. Eu cheguei em São Paulo pela manhã e nós chegamos no instituto no começo da tarde, a Rodovia Raposo Tavares já estava interditada pela Polícia Militar muito antes. Chegando lá havia muito tumulto e uma divisão bem clara: de um lado, ativistas pacifistas pelos cães com faixas e dizeres cristãos, se recusando a cobrir o rosto e mantendo distância do conflito com a Tropa de Choque. Do outro, pessoas de máscaras e bandanas iam de encontro a linha policial. A polícia parecia estar evitando o conflito e focando na porta do instituto, que já estava fortemente protegida pela PM para evitar a segunda entrada dos militantes. Uma viatura foi incendiada e logo após outro carro de uma emissora de TV também estava em chamas. A polícia interviu muito após isso para tentar dispersar a manifestação e me juntei a um grupo que se formou para tentar entrar no instituto através da mata em volta. Pulamos uma cerca e tentamos dar a volta para entrar pela parte de trás onde não havia policia, mas havia helicópteros sobrevoando o local e nos encondemos em uma casa abandonada. De lá chegamos perto dos limites do instituto para encontrar com uma segurança privada, sem identificação e portando de armas de fogo.

Polícia ataca manifestantes e Black Blocs formam barricadas pare resistir e responder à agressão policial em frente ao laboratório.

A PM percebeu a tentativa de entrar por trás e começou a perseguir alguns manifestantes dentro da mata. O grupo inicial havia se dividido em vários por não concordar em como entrar no instituto. Havia ainda ativistas que se recusam a cobrir o rosto por insistir em que resgatar animais não consistia em crime. E foi esse o sentimento que persistiu do começo ao fim.

Considerando que as pessoas que organizaram a manifestação inicial são pacifistas e cristãs, houve muita desorganização por conta desse racha ideológico. As pessoas pacifistas colocaram muito em risco a identidade e segurança de quem se dispôs a entrar no instituto e enfrentar a polícia.

Polícia tenta dispersar a multidão sem sucesso.

Por fim, encurralados, saímos da mata muito longe do instituto e fomos cercadas por bombas de gás. A manifestação foi se dispersando no fim da tarde e só nos restou o plano de voltar em outra ocasião.

Havia pessoas de várias partes do país. Todas as placas, cercas, carros e estruturas no perímetro do instituto foram destruídas. Em comparação a junho de 2013, houve muito mais organização, disposição em se arriscar e união. Todos presentes nas ações radicais sabiam claramente qual era o objeto e que tal objeto era extremamente legítimo. Motivadas de maneira quase emotiva, as pessoas viram claramente que aquilo era apenas o começo e que a PM não era capaz de frustrar nossas tentativas, tamanha a presença e vontade de muitas pessoas dispostas a libertar aqueles animais por quaisquer meios necessários. Esse evento inspirou o resgate das chincilas em Itapecirica e outras ações. E independente de rachas ideológicos, foi possível conciliar a disposição dos Black Blocs em se arriscar com a força legalista para fechar o instituto Royal permanentemente e proteger as pessoas que tiveram suas identidades expostas.

Um acontecimento sem precedentes no Brasil e uma semente que, acredito eu, ainda vá germinar em forma de um Frente pela Libertação Animal concreta.

A COMUNA DE QUITO: por dentro da insurreição no Equador

No início de outubro, uma onda de protestos tomou as ruas do Equador contra os cortes no subsídio da gasolina e, consequente aumento dos custos de vida. A agitação se transformou no maior levante popular do país das últimas décadas. Marchas indígenas chegaram à capital Quito e ocuparam o prédio do Parlamento e milhares de manifestantes enfrentaram as forças policias do presidente Lenin Moreno, obrigando o governo a mudar sua sede da capital do país para tentar escapar da insurreição popular. Moreno é o sucessor e ex-vice presidente de esquerda Rafael Correa, que chegou ao poder impulsionado pelos movimentos sociais da década de 1990 e governou o país por 12 anos sob o mesmo padrão neoliberal e pacificação/cooptação dos movimentos sociais aplicado por outros governos de esquerda na América Latina – como PT no Brasil. A convergência de vários grupos do campo, da cidade, estudantes, mulheres e indígenas foi o que permitiu uma radicalização da luta que se transforma agora numa insurreição popular. Foram contabilizados até agora 554 feridos, 929 prisões e 5 mortes nos 9 primeiros dias repressão as manifestações.

Conduzimos essa entrevista com companheiros diretamente das barricadas nas ruas do Equador para debater algumas das questões mais relevantes sobre a mobilização.

Manifestantes invadem parlamento em Quito, dia 8 de outubro de 2019.
1. Os governos do Brasil, Argentina e instituições ligadas à União Europeia declaram apoio ao governo de Lenin Moreno no Equador e denunciam a revolta popular da classe trabalhadora e povos indígenas. Obviamente, essas instituições sabem que as políticas de austeridade também estão em sua agenda e temem que o mesmo cenário se espalhe pelas Américas e outras partes do globo. Como vocês enxergam a resistência às políticas de austeridade e corte de subsídios afetando a vida cotidiana no Equador? Qual o caminho que, na sua opinião, levou a população das cidades e aos indígenas a dizer basta? Existe um sentimento anticapitalista compartilhado nas ruas?

A resistência que está acontecendo nesse momento que já tem oito dias, já constitui uma data importante, um evento histórico. É a maior revolta dos últimos anos, historicamente não sei, mas seguramente é a maior greve dos últimos anos, que tem como protagonista os indígenas, porque os levantes do passado não duraram tanto tempo como está durando agora.

A austeridade e a política de redução de subsídios afetam a vida cotidiana no Equador, mas creio que há uma divisão de classe no que está acontecendo nesses dias na cidade de Quito e no Equador inteiro. Há uma parte da população que não entende as razões do protesto e que dizem que na verdade o governo não está aumentando o preço da gasolina mas apenas retirando um subsídio que existia. O que não entendem é que aumentar a gasolina é aumentar o preço das passagens, por exemplo. Um aumento de 10 centavos para um estudante de universidade pública é muito. Comprar alimentos nesse período também aumentou. Para as pessoas que tem negócios, que vão comprar coisas para seu uso cotidiano e ganham o mínimo, isso os afeta muito. Por exemplo, o saco de batata que estava a 18 dólares há 10 dias agora está de 30 a 35 dólares. Digamos que há um efeito imediato do aumento do preço da gasolina, já que os subsídios fornecidos anualmente permitiam um acesso maior a cesta básica e a outros tipos de bens de consumo. Além disto, a maior parte dos alimentos, vegetais e verduras que são cultivadas na Sierra (a região dos Andes) ou, por exemplo, as bananas cultivadas nas plantações da Costa, são todos transportados em caminhões a diesel. A maior parte dos ônibus urbanos, também. Há uma conexão entre os subsídios e a cesta básica, se aumenta um aumenta todos os preços, como já vem aumentando.

Escultura “Esfera de movimientos oscilantes”, em Quito, dia 8 de outubro.

E como disse, há uma questão de classe, a classe média pode ser que não sinta essas medidas, mas a maior parte da população já está sentindo. E os indígenas sabem que não vão conseguir vender seus produtos, e quando tiverem que vender para as pessoas da cidade, vão ganhar muito pouco. No final, acaba sendo uma cadeia na qual o produtor direto é o que vai ganhar menos, e eles sabem disso. É necessário que se entenda que aqui o alimento nas grandes cidades chega pelo campo, então há aí um efeito direto do aumento do preço da gasolina sobre os pequenos produtores no campo, onde a maioria dos companheiros indígenas vivem.

Sobre o sentimento anticapitalista nas ruas, a esquerda durante os últimos 12 anos esteve muito dividida, desde que o Rafael Correa chegou ao poder, um governo que se dizia de esquerda e que chegou ao poder capitalizando os protestos sociais dos anos 90 e da primeira década dos anos 2000. Desta forma, muito dos protagonistas destes tempos de luta entraram para o governo. Durante esses anos haviam pessoas que acreditavam neste projeto de governo, e que depois se deram conta que ele seguia uma direção muito capitalista. Isso impediu que houvesse uma verdadeira união na esquerda. Agora, neste momento histórico, não creio que houve um processo de crescimento pelo qual os movimentos sociais estavam articulados até chegar a este momento de explosão. Mesmo se aconteceram diversas coisas no campo social nos últimos anos, não havia um encaminhamento claro a respeito da organização revolucionária e comunitária, digamos. É como se os movimentos sociais estivessem adormecidos e, da noite para o dia, graças ao “paquetazo”*, todo o povo de repente se uniu, e isso permitiu que se radicalizasse a luta. Houveram, por exemplo, muitos bloqueios nos bairros, nos arredores das cidades, em pequenos povoados e isso manteve vivo os 8 dias de paralisação em que estamos.

*Paquetazo: refere-se o decreto 883 do governo de Lênin Moreno e seu pacote econômico, em espanhol usa-se a expressão para dar um sentido negativo

Parlamento ocupado em Quito, 8 de outubro.
2. No dia 8 de outubro, milhares de indígenas chegaram marchando à capital Quito e ocuparam o prédio do Parlamento. Como se deu esta mobilização indígena na cidade neste dia? Em torno de quais pautas e ações eles estão se organizando?

Na realidade os indígenas chegaram no dia 7 de outubro, na segunda-feira houve uma batalha campal na cidade de Quito que durou 5 ou 6 horas entre sobretudo estudantes, movimentos sociais e cidadãos de Quito que procuravam manter a polícia ocupada para permitir a entrada dos companheiros indígenas. Lembramos que estamos vivendo em Estado de Exceção, então os militares estão nas ruas e tinham bloqueado neste momento as principais entradas de Quito, as entradas Norte e Sul, para impedir que os indígenas vindos de outras províncias pudessem entrar. Mas, estes estavam tão bem organizados, que não teve inteligência militar capaz de parar a sua determinação. E o fato da luta ocorrer no centro da cidade, também permitiu abrir brechas para que os indígenas pudessem chegar até o centro histórico.

Bem no momento em que conseguimos que a polícia recuasse, vimos chegando os caminhões cheios de gente, e as motos que acompanhavam a caravana indígena, foi um momento muito emocionante. Eles foram diretamente até o Parque El Arbolito, ao lado da Universidade Salesiana onde está organizado um apoio logístico ao movimento. No dia seguinte se convocou uma concentração no Parque El Arbolito e foi decidido tomar a Assembleia. Chegando lá, uma primeira delegação entrou e aos poucos foram entrando mais gente, enquanto havia milhares de pessoas na porta da Assembleia querendo entrar. A polícia lançou bombas de gás no meio das pessoas, o que criou um movimento de pânico. Pessoas poderiam ter stido mortas pisoteadas porque muitos, não podiam respirar, outros muitos corriam em várias direções. Enquanto isso a polícia continuava atirando bombas de gás e balas de borracha nos manifestantes. Nesse momento começou uma repressão muito grande. A Assembleia, estrategicamente, é como um pequeno forte, situada em cima de um morro; para protege-la, a polícia se posicionou em um ponto mais alto e tinha condições de acertar os manifestantes com franco-atiradores. Consequentemente houve um número muito grande de feridos e alguns mortos, já que policiais estavam em uma posição estratégica para reprimir.

A ideia de ir até a Assembleia era uma das ações que o movimento indígena havia decidido executar durante estes dias que estiveram em Quito. Até ontem (quarta-feira, dia 9/10), havia bastante preocupação, porque não havia estratégia clara, enquanto o Governo não recuava e estava aumentando a repressão. Inclusive, o fato da polícia ter lançado bombas de gás dentro de centros de paz e espaços de acolhimento, como a Universidade Salesiana e a Universidade Catolica, causou muita indignação e, de uma certa forma, atingiu o Governo porque a notícia circulou, apesar do cerco midiático que as grandes mídias e o Governo estão tentando manter.

Manifestantes enfrentam as forças de segurança no centro de Quito.

Hoje (quinta-feira, dia 10/10) pela manhã, 8 policiais foram detidos pelo movimento e trazidos para a grande assembleia popular e indígena na Casa da Cultura onde havia cerca de 10.000 ou 15.000 pessoas. Os jornalistas dos grandes meios de comunicação que estavam lá acabaram transmitindo ao vivo a assembleia, mesmo que não o fizessem da melhor maneira. Isso permitiu de certa maneira quebrar o cerco midiático divulgando, por exemplo, o fato que um companheiro liderança indígena de Cotopaxi, Inocencio Tucumbi, foi morto. Ele desmaiou após ter inalado muito gás lacrimogêneo e em seguida foi pisoteado por um cavalo da polícia. Isso até então não tinha saído na grande mídia. De repente apareceram os mortos nos grandes canais de TV’s e foi se tornando evidente para o grande público que sim, o Governo está matando e está criando um nível de repressão muito grande!

Então, a estratégia de hoje teve êxito. Como eu te disse, ontem ainda não havia estratégia muito precisa, mas hoje já estávamos mais organizados. Houve uma missa, e foi organizado um corredor humano de 1 km da Casa da Cultura até o Hospital para poder encaminhar o corpo do nosso companheiro, muita gente aplaudiu, foi também um momento de grande emoção. Nos despedimos dele com muita honra, porque era um grande companheiro de luta. Também prometeu-se naquele momento que em sua memória a luta iria continuar. Também foi um momento para juntar forças, para descansar, para pensar sobre a estratégia a seguir nos próximos dias e para compartilhar essa dor geral pensando naqueles que caíram, naqueles que estão feridos e nos dar animo para seguir lutando.

A exigência da CONAIE (Confederação de Nacionalidades Indígenas do Equador) em seguida foi clara, dizendo que se o Governo radicalizasse a violência, obviamente a rua também iria em resposta se radicalizar.

Chegando a noite, os policiais foram libertados e foram entregues na frente da Assembleia, em meio à uma grande manifestação. Pelo fato da Assembleia e da Casa da Cultura estarem próxima, havia uma espécie de manifestação-plantão permanente na frente da Assembleia e a zona estava repleta de manifestantes. Havia esta noite cerca de 30.000 pessoas no local. Foram então entregues os policiais e os indígenas deixaram claro que eles haviam sido detidos por terem entrado em uma zona que havia sido declarada zona de paz. Foram portanto detidos, mas estavam sendo entregues são e salvos. Diferente da prática da polícia, pois no dia em que a Assembleia foi tomada, houveram cerca de 80 presos. E quase todos foram soltos, ontem, com marcas de violência e machucados.

3. Os povos indígenas declaram seu próprio estado de exceção em seus territórios, ameaçando prender agentes do estado que ousariam entrar nessas regiões. Como se dá essa autonomia e organização territorial dos povos? E quais são esses povos?

Sobre o Estado de Exceção decretado nos territórios indígenas, isto explica também o episódio todo que eu te contei. Pois neste momento a Casa da Cultura e toda a região ao redor estão sendo considerados como territórios indígenas, então foi considerado que os policiais violaram a soberania excepcional dos povos indígenas e por isto fora detidos. Isto aconteceu também em outros territórios indígenas nesta semana, onde foram detidos militares que violaram estes territórios, foram sequestrados ônibus e veículos blindados de militares. Isto acontece porque os povos indígenas, desde há tempos já exigem a autonomia em seus territórios e possuem sua própria lei indígena. Quando acontece algum problema dentro destes territórios, alguém roubando ou causando problemas, o caso é resolvido pela justiça indígena, sem passar pela justiça estatal.

Então, a partir do momento em que o Governo decretou o Estado de Exceção, em resposta os indígenas decretaram também o Estado de Exceção em seus territórios como uma forma de diminuir o nível de repressão e também de pressionar os militares e a polícia que, seja na rua ou nos territórios, reprime os povos, para que estes saibam que correm o risco de serem detidos, como aconteceu. Como disse, em diferentes territórios, militares e policiais foram retidos, desarmados e, depois de alguns dias, foram soltos após ter passado pela justiça indígena. Isso funciona claramente no sentido de expor na frente da pessoa acusada tudo que ela fez, dependendo do delito cometido e em relação a este se decide o castigo a ser sofrido pelo preso de modo comunitário.

E sobre as etnias, digamos que a CONAIE está dividida entre todos os povos indígenas e outros povos incluindo cholos (mestiços) e povos negros do equador. Existem os indígenas do litoral, os povos da Serra Norte, da Serra Central, da Serra do sul e os do oriente, da região Amazônica e todos se articulam através da Confederação das Nacionalidades Indígenas do Equador.

4. Existem rumores – criados pela grande midia vinculada ao governo – de que a CONAIE está fazendo acordos com o governo e parece que este último está tentando dividir o movimento entre bons e maus. Más nas últimas horas (10/10), no entanto, houve notícias de que não há acordo entre a CONAIE e o governo. Quanta chance essas tentativas tem de ser bem-sucedidas? Quanto a CONAIE estaria disposta a radicalizar o movimento ou negociar? E que influência ou representação efetiva a CONAIE tem em relação aos povos indígenas?

É claro que houve rumores, fofocas, mentiras e falsidades feitas pelo governo e pela mídia que obviamente tentam dividir a luta popular que hoje está ocorrendo nas ruas de Quito e em todo o Equador. Deve-se dizer que essas grandes organizações como a CONAIE, o FUT (que é o maior sindicato dos trabalhadores do país) historicamente também tiveram momentos em que negociaram, em períodos de fraqueza, e essas negociações não chegaram a nenhum lugar. E, por serem grandes organizações, também estão dentro de um cenário super-político; portanto, às vezes os próprios movimentos os vêem como estruturas políticas ambíguas. Mas isso é normal, além disso, devemos ver a capacidade organizacional que eles têm, neste caso especialmente a CONAIE, com seu papel histórico, considerando que no passado ela conseguiu derrubar vários presidentes. Nesses dias também temos visto a força das agremiações de transportadores e motoristas de táxi que paralisam a cidade e aquela dos estudantes que saíram às ruas. A verdade é que os transportadores têm um papel histórico muito mesquinho no Equador e eles decidiram sair da greve logo de que conseguiram aumentar o preço das passagens. Enquanto as pessoas e especialmente os estudantes conseguiram manter a luta nas ruas e os indígenas imediatamente se juntaram. Tanto o movimento urbano quanto o movimento indígena logo conseguiram descentralizar a atenção que era inicialmente exclusivamente para os transportadores.

Então sim, houve esses rumores. Mas hoje também tem o fato de que houve atenção para os polícias presos e, com aquilo, os jornalistas que foram imediatamente para lá. Os líderes de cada grupo indígena e o próprio presidente da CONAIE, o Sr. Vargas, declararam publicamente que não vão negociar com o governo porque que o sangue dos mortos não pode ser negociado e que, para iniciar um diálogo, eles colocam como condição a eliminação do decreto 883 (o “paquetazo”), que o FMI deixe o país, e que a ministra do Interior Maria Paul Robles e o ministro da Defesa, Oswaldo Jarrín, renunciem imediatamente, pois são os culpados pela morte dos companheiros que caíram nestes dias.

Obviamente, há uma grande pressão das bases. Nos dias anteriores, havia poucas reuniões, principalmente de líderes e alto comando de organizações políticas Mas hoje (10/10) foi decidido fazer essa assembleia popular que durou muitas horas e toda decisão era fruto de uma consulta a população, as bases que estavam lá e que, como eu disse, eram umas 10 a 15 mil pessoas e tudo foi então decidido coletivamente. Também podemos dizer que a pressão das bases está permitindo que a liderança também tome decisões radicais, e não seja vendida, por desespero, por medo de ser presa ou por dinheiro que o governo desejar dar a eles por debaixo da mesa.

A CONAIE, em geral, tem uma enorme representatividade. No Equador, se você pensa nos povos indígenas, pensa diretamente na CONAIE. É uma organização muito grande, com uma estrutura política incrível e também comunicativa, estratégica. Hoje vimos muito bem como eles conseguiram “virar la tortilla” e colocar o governo em dificuldade.

5. O governo acusa Correa de estar por trás das manifestações. Mas, ao olhar aquelas, não parece que os correistas estejam tendo um papel protagonista. Qual é o papel de Correa na fase atual, tanto nas marchas quanto na possibilidade de cooptação e saida “pacífica” ou eleitoral do conflito?

Obviamente, o governo acusou Correa, acusou Maduro, disse que Correa havia viajado para a Venezuela e que a partir daí ele desenvolveu um plano para desestabilizar o governo. Agora eles também dizem que por trás do tumulto nas ruas estão o Latinquín, que é uma “pandilla” (uma gangue) e as FARC, ou seja, esse senhor não sabe mais o que dizer. Obviamente, culpar Correa é uma coisa que ele está acostumado, tem dois anos que Correa tem sido culpado de tudo. Apesar de Correa ser um corrupto que deve pagar pelos crimes contra a humanidade, pela repressão que ocorreu durante seus governos, pelos casos de corrupção, não se pode culpá-lo por tudo que é de responsabilidade do atual governo, que comanda o país há mais de dois anos. Então há essa acusação geral por parte de toda a direita  que, neste momento, apóia Lenin Moreno e esse costume de culpar Correa toda vez que há uma crise: se falta dinheiro é porque Correa o levou; se há criminosos é porque Correa fez leis que liberavam criminosos; se há muitos migrantes é por causa da lei da mobilidade – o governo anterior sempre é o culpado.

Dito isto, apesar do fato de que nos últimos meses, no ano passado, nas mobilizações e marchas que contra o governo – que eram muito menores do que são agora, pois agora é uma verdadeira revolta – os correistas estavam sempre presentes e isso criava problemas para alguns movimentos sociais, que não queriam estar junto com eles. Isso nos fez pensar que eles ainda estariam presentes nas marchas desses dias, pois também são um grupo muito consistente. De fato, no primeiro dia foram marchar e foram reprimidos, no segundo também apareceram mas estavam por trás da marcha e queimaram dois pneus fora do Banco Central enquanto mais a frente os estudantes tentavam entrar no centro histórico e enfrentavam a polícia. Depois daquele dia os correistas praticamente desapareceram, as pessoas não lhe deram espaço. Hoje (10/10) estávamos fazendo entrevistas com alguns companheiros auto-organizados e perguntamos a eles: e Correa? E todos responderam com muita clareza: não sou correista, não estou aqui por Correa, Correa não nos paga. E isso é evidente: os correistas não estão nas marchas, certamente um ou outro há, mas não estão de forma organizada.

Milhares de indígenas marchando rumo a Quito no dia 9 de outubro.

Dois dias atrás, no dia da assembléia, o padre Tuárez – presidente do Conselho de Participação do Cidadão e foi demitido por ser fanático religioso – disse que Deus havia lhe dito que Correa era o Salvador e que ele precisava voltar, coisas assim. Ele tentou se infiltrar nas mobilizações e as pessoas o colocaram para correr. Ou seja, essa possibilidade não existe. Isso também é o interessante: nem os partidos políticos nem os políticos tradicionais foram capazes de se apropriar do que está acontecendo. As únicas autoridades digamos mais “políticas” que têm legitimidade e que neste momento estão liderando as mobilizações são as do sindicato FUT e da CONAIE. Na verdade, é todo o povo que fica nas ruas, e isso é muito assustador para a direita, para a burguesia, para os banqueiros, para os “donos” do país porque a rua não aceita nenhum dos líderes políticos. Então, a solução pode ser que o “paquetazo” caia e que por algum momento retorne a calma, mas obviamente isso não poderá durar muito tempo. Outra possibilidade é que Lenin Moreno renuncie, e o “paquetazo” permaneça e o governo tentaria distrair o povo que ele se acalme e para que a atenção fique no fato de Moreno ter saído ou o fato de que um governo popular possa realmente ser construído, um governo nascido das ruas – e esses rumores já estão circulando. Então imagine o que estão pensando a direita, a burguesia equatoriana. Eles não absolutamente podem permitir que as ruas ganhem, porque isso significaria que depois de 12 a 13 anos se mostra às pessoas algo que na percepção comum não existe mais, isto é, ir às ruas é bom e se você se organizar, se resistir, se continuar insistindo, alcançará seu objetivo. Essa seria uma reação em cadeia que permitiria novamente que as pessoas acreditassem em suas possibilidades. Eles sabem disso e é por isso que estão todos unidos para evitá-lo.

6. Como o bloco no poder está enfrentando as manifestações? Existem divisões possíveis (entre os partidos, nas Forças Armadas…)?

O bloco no poder está todo unido. Os maiores líderes políticos (Lenin Moreno, Guillermo Lasso, Jaime Negot, Álvaro Noboa) estão todos unidos. Correa obviamente não diz nada porque o que ele quer fazer é capitalizar o que está acontecendo nas próximas eleições. Ele sabe bem que não é conveniente para ele falar muito porque o governo já está dizendo que a culpa é dele e não é estratégico para ele se envolver demais. Basta que as pessoas pensem que “tudo era melhor quando ele estava lá” e nas próximas eleições é muito provável que ele possa ganhar. O presidente está agora em Guayaquil, que é o refúgio dos social-cristãos, o partido de direita, que todos temiam que fosse vencer na próxima eleição. Mas agora não parece possível porque, certamente, ele não vai ter o voto da Serra, de cidades como Quito, Ambato, Riobamba, das comunidades indígenas. Então todos estão unidos, tentando usar todos os meios possíveis para criminalizar o protesto.

Quanto às Forças Armadas, agora temos um Ministro da Defesa treinado em Israel, pelo Mossad e pela Escola das Américas, um louco fascista, um militar. Há quatro dias, o governo criou uma cadeia nacional de uma hora, na qual esse louco falou metade do tempo, ameaçando, dizendo que as Forças Armadas saberão se defender, que não devem ser provocadas, que as pessoas precisam manter a calma porque se não a repressão será feroz, como se estivéssemos na ditadura. Isso claramente levou as pessoas a serem bastante indignadas. Ainda não se sabe, não existem dados precisos sobre deserções dentro do exército ou da polícia. O certo é que o papel histórico do exército sempre foi reprimir o povo e, em um determinado momento, quando o descontentamento popular já é evidente, eles tentam alcançar uma estratégia para impedir a existência de um governo popular e se apresentam como mediadores para criar um novo governo, mas que geralmente sempre termina sendo pior que o anterior. Então é possível que em algum momento as Forças Armadas comecem a criar rupturas dentro da organização popular e também a tirar o apoio do presidente.

O Estado e o Capital mantendo seus cães de guarda devidamente alimentados.
Lenin Moreno saiu de Quito, mas deixou seus cães devidamente abastecidos.
7. Como o movimento transformou a vida cotidiana na cidade de Quito? E como se organiza o dia dia nos espaços ocupados pelos manifestantes?

É impressionante o nível de solidariedade que se instalou aqui na cidade, que alguns tem rebatizado a Comuna da Quito, justamente porque não são apenas indígenas, não são apenas os estudantes, não são apenas manifestações. Há bloqueios feitos nos bairros que estão organizados. Como no Centro Histórico, o bairro de San Juan por exemplo, se organiza autonomamente. Quando a manifestação chega lá, pessoas te dão comida, água. No dia de ontem, quando a tensão se deslocou para os arredores de San Juan, na parte alta do Centro histórico, haviam vários moradores que chegavam trazendo pedras, pessoas que desde as janelas das casas davam aos manifestantes materiais para poder queimar ou para se proteger do gás de pimenta. Na porta das casas, haviam pessoas que nos davam água.

Cozinha comunitária organizada pela CONAIE.

Dentro das casas haviam pessoas que recebiam e ajudavam os feridos, oferecendo um espaço para que os médicos voluntários pudessem os atender, já que as ambulâncias não conseguiam chegar até lá. Tem muitos médicos voluntários, muitos deles estudantes de medicina, de enfermaria, que estão ajudando nas ruas, dando assistência emergencial aos feridos para evitar que haja mortos ou que as feridas se agravem. Temos portanto um aparato médico incrível, muito organizado.

Temos locais de recepção de alimentos, faço parte de um destes grupos no Whatsapp porque o lugar onde eu trabalho está funcionando como ponto de coleta de produtos. E por todo centro, por todas as Universidades, tem lugares funcionando como cantinas populares, como espaços de acolhimento para as pessoas de fora que vieram à Quito para lutar. Estes lugares estão cheio de doações e, por vezes, nem sabem onde levar todas estas doações que recebem. Tem cozinhas comunitárias, onde pessoas vem oferecer seu tempo para preparar alimentos. Ontem, eu estava conversando com pessoas de uma cozinha comunitária, no Parque Arbolito, havia ali um senhor que foi ferido enquanto a polícia atacava o Parque, porque apesar do ataque a cozinha continuou no local, ajudando as pessoas. Foi um bairro de Quito que montou a cozinha, se organizando através de uma igreja evangélica, estava ali o pastor e suas três panelas gigantes. Me disseram que haviam alimentado 700 pessoas apenas neste dia. Conheci também uma senhora muito humilde do sul de Quito, com a qual eu conversei, que tinha um pequeno negócio e veio pela tarde com uma pequena van, junto com seu filho, passando pelo Parque distribuindo café e pão para as pessoas. Então realmente, a comida não falta, há comida por toda parte, hoje mesmo eu já comi quatro vezes, por todo canto há pessoas te chamando para comer algo e às vezes se ofendem se você recusa porque é uma forma de doação.

Tem pessoas organizadas para apagar os gases de pimenta, ou para cuidar das pessoas atingidas pelos gases. Tem todo tipo de organização, tem pessoas que se encarregam de cuidar das crianças. (Tosse forte, “foi mal, é o efeito dos gases nos pulmões”.) Tem pessoas que organizam brincadeiras para as crianças. Tem pessoas que passam o dia cantando, tocando música. É realmente muito muito interessante o que está acontecendo aqui. Por isto, alguns falam aqui da Comuna de Quito, alguns dizem que de certa forma já ganhamos neste ponto de vista, no nível da auto-organização espontânea. Mas foram muitas assembleias para poder organizar o que está acontecendo agora. E creio que esta é a maior vitória, e esperamos que isso poderá continuar, este espírito de auto-organização. Este fato de mostrar que juntos já podemos resistir 8 dias e paralisar um país por 8 dias, para dizer que nossos direitos sejam respeitados.

8. Como o movimento planeja se organizar a partir de amanhã?

Hoje, durante todo o dia (10/10), houve uma manifestação, com a entrega dos policiais que haviam sido detidos, com o chamado para continuar a luta e os indígenas ainda estão aqui em Quito. Hoje foi um dia de tranquilidade, paz, luto. De fato, a CONAIE anunciou três dias de luto, não sei se isso significa que nos próximos três dias haverá apenas marchas pacíficas. Mas acho que estrategicamente também pode servir um pouco, por exemplo, hoje foi um dia “pacífico”, mas muitas coisas foram alcançadas, a atenção da mídia foi alcançada, a barreira da mídia foi quebrada. Apesar do fato de que eles cortaram nosso sinal de telefone celular e a Internet, o que dificultou a documentação de mídias independentes e pessoas desde os telefones celulares particulares. Então, acho que todos estamos nos preparando para uma longa resistência, se no início pensávamos que poderia terminar de um momento para o outro, depois do que vimos nesse últimos dias, entendemos e temos a sensação de que isso durará muito mais tempo – e é por isso que devemos organizar estrategicamente os momentos de luta e não queimá-los imediatamente. É importante tentar gerar opinião pública, quebrar a barreira da mídia, criar novas estratégias de combate, além das manifestações, dos momentos de riot, dos momentos de conflito com a polícia. Isso não significa que uma coisa esteja certa e outra errada, mas que precisamos usar todas as ferramentas possíveis para obter a vitória.

Certamente a luta continuará! Hoje prometemos diante do caixão do camarada morto pela polícia, que a luta continuará!

CINCO LIÇÕES HISTÓRICAS PARA ANTIFASCISTAS

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Este texto é um capítulo do livro Manual Antifascista, do autor estadunidense Mark Bray, lançado em português em 2019. Ele analisa brevemente cinco lições que muitos antifascistas extraem ou deveriam extrair da história. Cada uma delas começa com uma descrição mais factual de um determinado fenômeno histórico antes de passar para uma interpretação antifascista dos fatos em questão. Como todos os fenômenos históricos, esses fatos estão sujeitos a múltiplas interpretações. Essas certamente não são as únicas lições do antifascismo, mas esclarecem o embasamento de algumas de suas principais fundamentações históricas.

1. AS REVOLUÇÕES FASCISTAS NUNCA FORA BEM-SUCEDIDAS. OS FASCISTAS ALCANÇARAM O PODER LEGALMENTE.

Primeiro, alguns fatos importantes: a marcha de Mussolini em Roma foi apenas um espetáculo legitimando um convite anterior para formar um governo. O Putsch da Cervejaria de Hitler em 1923 falhou miseravelmente. Sua eventual ascensão ao poder veio quando o presidente Hindenburg o nomeou chanceler. A lei que lhe concedeu o poder completo foi aprovada pelo parlamento.

Para os militantes antifascistas, esses fatos históricos lançam dúvidas sobre a fórmula liberal de oposição ao fascismo. Essa fórmula equivale essencialmente na fé de um “debate fundamentado” para combater ideias fascistas, na polícia para combater a violência fascista nas ruas e nas instituições governamentais parlamentares para combater as tentativas fascistas de tomar o poder. Não há dúvidas que por algumas vezes essa fórmula funcionou. Também não há dúvidas de que algumas vezes ela falhou. O fascismo e o nazismo surgiram como apelos emocionais e antirracionais fundamentados em promessas masculinas de renovação do vigor nacional. Enquanto a argumentação política sempre é importante para fazer um apelo a uma potencial base popular do fascismo, sua nitidez se ofusca quando confrontada com as ideologias que rejeitam os termos do debate racional. A racionalidade não foi capaz de impedir os fascistas ou os nazistas. Apesar de necessária, da perspectiva antifascista, infelizmente a razão é insuficiente por si só.

Assim, não é surpresa que a história mostre que governos parlamentares nem sempre são uma barreira para o fascismo. Pelo contrário, em várias ocasiões, foram responsáveis por estender o tapete vermelho. Quando as elites econômicas e políticas do período entre guerras se sentiram suficientemente ameaçadas pela perspectiva da revolução, voltaram-se para figuras como Mussolini e Hitler para esmagar impiedosamente a dissidência e proteger a propriedade privada. Embora seja um erro reduzir inteiramente o fascismo a um último recurso de um sistema capitalista ameaçado, esse elemento de sua composição desempenhou um papel importante e muitas vezes decisivo em suas vitórias. Quando os líderes autoritários do período entre guerras se sentiam muito menos ameaçados, implementavam muitas vezes políticas fascistas de cima para baixo. Para a maioria dos revolucionários, isso significa que o antifascismo deve necessariamente ser anticapitalista. Enquanto o capitalismo continuar a fomentar a luta de classes, eles dizem, o fascismo sempre surgirá como uma solução autoritária para conter a revolução popular.

Quanto à polícia contra a violência fascista – houve vezes que a polícia prendeu e perseguiu fascistas, mas o registro histórico mostra que, junto com os militares, eles também estão entre os mais ansiosos para “restauração da ordem”. Estudos mostram que uma alta porcentagem de policiais gregos votou no Aurora Dourada. Nos EUA, está claro que muitos policiais receberam Trump como o presidente das “Blue Lives Matter” (uma alusão satírica do movimento antirracista Black Lives Matter), que permitiria que a aplicação da lei continuasse com as agressões e assassinatos nas desprotegidas comunidades negras e latinas. Recentemente, foi revelado que o FBI vem investigando de forma alarmante (embora não surpreendente) altos níveis de infiltração de supremacistas brancos na polícia por décadas. Além disso, independentemente da composição da força policial dos EUA, o fato que ela se origina das patrulhas escravocratas no Sul e da oposição ao movimento trabalhista no Norte nos dá uma visão do papel da supremacia branca dentro do sistema de “justiça” criminal.

Tudo isso para dizer que o fato de que as revoltas fascistas sempre falharam não deve diminuir as preocupações sobre seu potencial insurrecional. A “estratégia de tensão” fascista na Itália, o desenvolvimento do conceito de “lobo solitário” e “resistência sem líder” promovido pelo líder norte-americano da Klan, Louis Beam, e a luta armada fascista que se desenvolveu em ambos os lados nos conflitos na praça Euromaidan na Ucrânia atestam o perigo material da violência fascista insurrecional. Não obstante, historicamente o fascismo ganhou acesso aos corredores do poder não derrubando seus portões, mas convencendo seus porteiros gentilmente a abri-los.

2. MUITOS LÍDERES E TEÓRICOS ANTIFASCISTAS DO PERÍODO ENTRE GUERRAS NÃO LEVARAM O FASCISMO VERDADEIRAMENTE A SÉRIO ATÉ QUE FOSSE TARDE DEMAIS.

Para cada revolução, houve uma contrarrevolução. Para cada ataque da Bastilha havia um Termidor. Depois da Comuna de Paris, centenas de pessoas foram executadas e outras milhares presas e deportadas. Mais de 5 mil presos políticos foram executados e 38 mil foram presos após o fracasso da Revolução Russa de 1905, que também testemunhou 690 pogroms antissemitas que mataram mais de 3 mil judeus. Os radicais europeus e as minorias étnicas de modo algum eram estranhos à violência da reação tradicional.

No entanto, o fascismo representava algo novo. Inovações ideológicas, tecnológicas e burocráticas criaram um veículo para o imperialismo e o genocídio que os europeus haviam exportado de todo o mundo quando trouxeram suas guerras de extermínio de volta para casa.

Sem surpresa, muitos comentaristas de esquerda conceituaram incialmente o fascismo dentro dos parâmetros das forças contrarrevolucionárias existentes na época. De acordo com a Federação Socialista dos Trabalhadores, os fascistas italianos eram “no sentido mais estrito, uma Guarda Branca”, referindo-se aos contrarrevolucionários da Revolução Russa. O Partido Comunista da Grã-Bretanha os chamou de “os Black and Tans italianos”, se referindo às forças contrarrevolucionárias britânicas na Guerra da Independência da Irlanda. Na década de 1920, alguns marxistas usaram a análise do comunista húngaro Geörgy Lukács de “terror branco” para argumentar que os squadristi de Mussolini eram apenas um baluarte não-ideológico da classe dominante.

Por outro lado, vários comentaristas destacaram os recursos exclusivos do fascismo. Eles reconheceram a novidade do flerte nacionalista com o socialismo e seu elitismo populista. Eles observaram como setores anteriormente antagônicos, como os latifundiários tradicionais e capitalistas burgueses, podiam formar um movimento contrarrevolucionário unido. O foco marxista na dinâmica de classes subjacente ao fascismo revelou novos elementos dessa intrigante doutrina que os observadores centristas não foram capazes de captar. No entanto, esse foco também tendeu a limitar o perigo potencial que o fascismo poderia representar para os confins de seu suposto papel de guarda-costas da classe dominante, e assim os marxistas e muitos outros falharam em antecipar como o alcance de sua violência se estenderia além do que era “necessário” para proteger o capitalismo. Além disso, embora o fascismo do período entre guerras tenha se desenvolvido principalmente a partir de círculos eleitorais da classe média com o apoio da classe alta, à medida que os movimentos fascistas cresciam, às vezes, mas nem sempre, eles conquistavam apoiadores na classe trabalhadora – um fato que os marxistas demoraram a aceitar.

Independente do conteúdo de suas análises, muitos políticos socialistas e comunistas não agiram como se a própria existência de seus movimentos estivesse em jogo. Os socialistas italianos assinaram o Pacto de Pacificação com Mussolini em 1921, e nem eles nem os comunistas achavam que a ascensão do Duce ao poder representaria mais do que uma nova oscilação para a direita no velho pêndulo da política parlamentar burguesa. Dessa forma, eles não eram totalmente diferentes da maioria dos socialistas espanhóis que colaboraram com o governo militar meio-fascista de Primo de Rivera na década 1920. Na Alemanha, os comunistas acreditavam que o fascismo já havia chegado quando os “governos presidenciais” do início da década de 1930 começaram a governar por decreto. No entanto, nem os supostos “governos presidenciais” fascistas nem a chancelaria de Adolf Hitler foram suficientes para convencer a liderança do partido que eles enfrentavam uma ameaça existencial. Para a liderança do KPD, o fascismo não pedia resistência por quaisquer meios necessários, mas sim paciência. Seu slogan era “Hitler primeiro, depois nós”. Na virada do século, os esquerdistas tinham razões para antecipar que épocas de repressão iriam e viriam. O fascismo mudou as regras do jogo.

O primeiro reconhecimento substancial da essência do perigo fascista veio com a “Revolta de Fevereiro” de 1934, quando os socialistas austríacos lutaram contra as incursões do autoritário chanceler Dollfuss nos centros socialistas (instigadas por Mussolini). A revolta foi brutalmente reprimida, deixando 200 mortos, 300 feridos e o partido na clandestinidade. No entanto, sua bravura inspirou os mineiros socialistas espanhóis que se rebelaram mais tarde naquele ano nas Astúrias. Seu slogan era “Melhor Viena do que Berlim”, onde a ascensão de Hitler ao poder não foi combatida pela força. Quando a Guerra Civil Espanhola eclodiu, o antifascismo foi amplamente entendido como uma luta desesperada contra o extermínio.

A tendência dos teóricos e políticos esquerdistas em conceituar excessivamente o fascismo com base no paradigma da contrarrevolução tradicional impediu a capacidade da esquerda de se ajustar à nova ameaça que enfrentava. Uma vez que as formas de resistência sempre devem ser calibradas contra aquilo que está sendo resistido, cabe aos antifascistas reavaliar continuamente seus arsenais teóricos, estratégicos e táticos, se baseando nas mudanças das ideologias e de práxis de seus adversários da extrema-direita. Matthew N. Lyons colocou essa lição em prática ao criticar escritores que argumentam que a alt-right deveria só ser chamada de neonazista. Embora muitos membros da alt-right claramente sejam neonazistas, Lyons argumenta que isso “internaliza a infeliz ideia de que as políticas de supremacia branca são basicamente as mesmas…. Que não é preciso compreender nosso inimigo”. Conceber o inimigo nos termos de um paradigma ultrapassado custou muito caro aos antifascistas. Em algum ponto, a evolução da extrema-direita pode significar transcender completamente a estrutura do “fascismo”, à medida que nos afastamos cada vez mais do século XX.

É essencial que os antifascistas desenvolvam uma compreensão clara e precisa do fascismo. No entanto, a fim de compreender a natureza robusta e flexível da política antifascista, devemos reconhecer a relação entre dois dos muitos registros do antifascismo: o analítico e o moral.

O registro analítico consiste em mobilizar definições e interpretações historicamente informadas sobre o fascismo para elaborar uma estratégia antifascista adequada aos desafios específicos contra grupos e movimentos com ideologias fascistas. Métodos de oposição a grupos neonazistas podem não fazer sentido contra outros grupos de extrema-direita. Compreender sua diferença deve ser o que mantém as escolhas táticas e estratégicas bem informadas.

O registro moral se desenvolveu com o poder retórico do epíteto “fascista” – chamar alguém ou algo de fascista – no período do pós-guerra. Ele é colocado em jogo quando a lente antifascista é direcionada a fenômenos que tecnicamente podem não ser fascistas, mas são fascistóides.

Por exemplo, os Panteras Negras estavam errados ao chamar os policiais que matavam negros impunemente de “porcos fascistas” se eles pessoalmente não possuíssem crenças fascistas ou se o governo dos EUA não fosse literalmente fascista? Em uma manifestação antifa em Madrid, vi uma bandeira do arco-íris com o slogan “homofobia é fascismo”. A existência de homofóbicos não-fascistas invalida o argumento? Os guerrilheiros que lutaram contra Franco na Espanha ou Pinochet no Chile se equivocaram ao chamar sua luta de “antifascista” se, de acordo a maioria dos historiadores, esses regimes não foram tecnicamente fascistas?

Como já discutimos, é importante analisar cada um desses casos e muitos outros para podermos desenvolver uma análise bem afinada. No entanto, o registro moral do antifascismo compreende como o “fascismo” se tornou um significante moral que aqueles que lutam contra uma variedade de opressões têm utilizado para destacar a ferocidade dos inimigos políticos que enfrentam e os elementos de continuidade que eles compartilham com o fascismo real. A Espanha de Franco pode ter sido mais um regime militar católico tradicionalista do que fascismo per se, mas isso pouco importava para aqueles que eram perseguidos pela Guarda Civil.

O desafio em definir o fascismo embaça a linha entre esses dois registros. Além disso, o registro analítico contém uma crítica moral, assim como o registro moral implica em uma ampla análise da relação entre uma determinada fonte de opressão e o fascismo. Embora seja verdade que, em certo ponto, o epíteto fascista perde um pouco seu poder se for usado de forma muito genérica, um componente-chave do antifascismo é se organizar contra ambas políticas, fascistas e fascistóides, em solidariedade com todos aqueles que sofrem e lutam. Questões de definições devem influenciar nossas táticas e estratégias, não nossa solidariedade.

3. POR RAZÕES IDEOLÓGICAS E ORGANIZATIVAS, A LIDERANÇA SOCIALISTA E COMUNISTA DEMOROU MAIS QUE SUA BASE PARA AVALIAR COM PRECISÃO A AMEAÇA DO FASCISMO.

Como inicialmente muitos socialistas e comunistas consideravam o fascismo uma variação da política contrarrevolucionária tradicional, eles se concentraram muito mais em combater uns aos outros do que seus inimigos fascistas. Ambas as frentes argumentavam que, se unissem o proletariado sob sua liderança, superariam qualquer obstáculo da direita.

Assim, enquanto alguns socialistas de base se mantiveram lado a lado com o Arditi Del Popolo para lutar contra os camisas negras italianos no início da década de 20, os quadros do partido se retiraram para retomar sua trajetória eleitoral legalista. Quando esse caminho definitivamente foi bloqueado, o partido cambaleou para conseguir mudar seus rumos.

De forma similar os socialistas alemães optaram, na mesma época, por um curso estritamente legalista nas décadas de 1920 e 30, apesar do crescente desconforto dos membros do partido. Embora os socialistas do Reichsbanner, e mais tarde na Frente de Aço, tenham pressionado por medidas mais agressivas, o aparato do partido estava mal equipado para considerar estratégias alternativas. Da mesma forma, a base do socialismo austríaco lutava para empurrar a liderança do seu partido para a autodefesa militante frente aos ataques da extrema-direita. Na Grã-Bretanha, os membros do Labour Party e do Trades Union Congress confrontaram os fascistas na rua, apesar das advertências de seus líderes. A liderança trabalhista condenou os membros que participaram da Batalha de Cable Street – quando vários grupos enfrentaram os camisas negras de Oswald Mosley no quarteirão judeu do East End em Londres – e se recusou a apoiar os que se juntaram às Brigadas Internacionais para combater na Espanha. Como argumenta o historiador Larry Ceplair, os sociais-democratas “haviam jogado o jogo parlamentar por muito tempo e seus líderes se tornaram ideológica e psicologicamente incapazes de organizar, ordenar ou aprovar qualquer tipo de resistência armada ou revolução preventiva”.

Não obstante, muitos socialistas independentes, que eram muito menos sobrecarregados pela ideologia partidária legalista e pela estratégia eleitoral ditada por uma direção, parecem ter sido mais sensíveis às mudanças de condições na base e muito mais preparados para enfrentar o fascismo.

No início da década de 1920, a Internacional Comunista acreditava que a tarefa mais urgente da revolução era traçar uma clara e antagônica distinção entre o marxismo-leninismo e a social-democracia, para que ela pudesse liderar a onda de insurgência que parecia estar engolfando o continente. Esse objetivo voltou à tona com o início do “terceiro período” do Comintern em 1928. O modelo organizacional leninista de “Centralismo Democrático” ditava uma cadeia de comando disciplinada do Comintern em Moscou por intermédio dos partidos nacionais para suas filiais regionais e quadros de cada bairro. Esse modelo permitiu que o movimento comunista internacional agisse em uníssono por vastas extensões geográficas, mas também significava que as intermináveis disputas entre a elite do partido em Moscou produziam um impacto maior nas políticas do Comintern do que as condições materiais de cada local.

A linha “social-fascista” foi um desses exemplos. Muitas lideranças nacionais a adotaram a contragosto e rapidamente a negligenciaram com a mudança do Comintern para a política de Frente Popular em 1935. Os comunistas e os socialistas de base geralmente não se odiavam tanto quanto seus líderes. Na verdade, as primeiras iniciativas de unidade entre socialistas e comunistas na França e na Áustria, por exemplo, vieram de baixo. Todos esses exemplos demonstram algumas das desvantagens da organização hierárquica.

4. O FASCISMO ROUBA DA IDEOLOGIA, DA ESTRATÉGIA, DA CULTURA E DO IMAGINÁRIO DE ESQUERDA.

O nazismo e o fascismo surgiram no desejo da burguesia capitalista de libertar o nacionalismo, o militarismo e uma masculinidade “decadente” intrínseca à frente dos governos italiano e alemão, e de capturar as políticas populares coletivistas da esquerda socialista “degenerada”. Mesmo antes de Hitler assumir, o Partido Alemão dos Trabalhadores (predecessor do NSDAP) já usava uma considerável dose de vermelho em suas bandeiras e cartazes, e seus membros chamavam uns aos outros de “camaradas”. Isso produziu paradoxos anti-ideológicos e antirracionais como o “nacional-sindicalismo” e o “nacional-socialismo”. Fascistas e nazistas “de esquerda” foram expurgados à medida que seus partidos conquistavam poder e se uniam às elites econômicas, embora a cooptação nacionalista da retórica popular da classe trabalhadora tenha desempenhado um papel fundamental para fazê-los chegar até lá.

Com base nas suas boas relações com os empresários, os nazistas foram responsáveis por criar novos postos de trabalho para os desempregados. De certa forma, essa era uma variação colaboracionista entre classes, do papel do sindicato como um intermediário para alcançar o emprego em uma indústria. As tabernas das Stormtroops (SA) nazistas claramente floresceram inspiradas na tradição socialista, que datava do século XIX.

Eles também forneceram comida e abrigo gratuito para seus apoiadores no período da Grande Depressão. Essa foi uma ruptura marcante com os conservadores tradicionais, que demonstravam desprezo pelos pobres e desempregados e, no máximo, contribuíam ocasionalmente para instituições de caridade apolíticas ou religiosas.

Esse modelo de caridade política de extrema-direita foi adotado pela Aurora Dourada grega, a CasaPound italiana, o Hogar Social Madrid, e a britânica National Action, todos os quais começaram a distribuir alimentos e mantimentos grátis para gregos, italianos, espanhóis – apenas “brancos”. Os ativistas da CasaPound começaram a imitar as ocupações autonomistas em prédios abandonados, e a Hogar Social Madrid não apenas começou com ocupações, mas também se organizou contra a expulsão de espanhóis étnicos em uma clara tentativa de capitalizar com o vibrante movimento de esquerda espanhol.

Mais profusamente, os fascistas do pós-guerra continuaram a se voltar para a esquerda revolucionária e para seus insights estratégicos. Os que seguiam a linha da “Terceira Posição” procuraram aplicar teorias maoístas de revolução no Terceiro Mundo às metas de “libertação europeia”, que implicavam em uma remoção forçada de “não-europeus”. Na década de 1980, uma facção francesa chamada Troisième Voie procurou usar uma “estratégia trotskista” para se infiltrar no Front National, a fim de aparelhá-lo por dentro. Os fascistas ucranianos tentaram se apropriar do legado do líder anarquista ucraniano Nestor Makhno, enquanto as bases fascistas espanholas Autónomas elogiavam o anarquista Buenaventura Durruti.

Começando no final dos anos 80 e início dos anos 90, e ganhando força no final dos anos 2000, os fascistas em toda a Europa tentaram copiar até a tática black bloc dos autonomistas alemães. Esses “nacionalistas autônomos” vestidos de preto, que às vezes usam o logotipo das bandeiras antifascistas com slogans nacionais-socialistas ou kaffiyehs palestinos, tentaram imitar o apelo da esquerda radical defendendo o anticapitalismo, antimilitarismo e anti-sionismo na Alemanha, Grécia, República Tcheca, Polônia, Ucrânia, Inglaterra, Romênia, Suécia, Bulgária e Holanda. Essa tendência começou a declinar na Europa Ocidental por volta de 2013. A ideia de “nacional-anarquismo” é outra nova variação dessa farsa. Os “nacionais anarquistas” abusam do conceito anarquista de autonomia para defender “comunidades étnicas” separadas e homogêneas, incluindo uma pátria só de brancos.

Muitos outros exemplos poderiam ser citados, mas esses são suficientes para demonstrar como o antifascismo não se trata apenas de um escape aventuresco na oposição ao fascismo, mas sim da proteção Against the Fascist Creep, como sugere o título do maravilhoso trabalho “Les autonomes nationalistes en Allemagne” de Alexander Reid Ross. Eles também demonstram a importância da ideologia de esquerda. Sem estabelecer como eles se encaixam, conceitos como “autonomia”, “libertação nacional”, ou mesmo “socialismo”, e táticas como as ocupações, organização de mutirões de alimentos ou a formação de black blocs podem ser cooptadas bem debaixo dos nossos narizes.

5. NÃO É PRECISO UM GRANDE NÚMERO DE FASCISTAS PARA CONCEBER O FASCISMO

Em 1919, o Fasci de Mussolini tinha 100 membros. Quando Mussolini foi nomeado primeiro-ministro em 1922, cerca de 7% a 8% da população italiana, e apenas 35 dos mais de 500 membros do parlamento, pertenciam ao seu Partito Nazionale Fascista (PNF). O Partido Alemão dos Trabalhadores tinha meros 50 membros quando Hitler participou de sua primeira reunião após a Primeira Guerra Mundial. Quando Hitler foi nomeado chanceler em 1933, apenas cerca de 1,3% da população pertencia ao NSDAP (Nationalsozialistische Deutsche Arbeiterpartei, ou Partido Nacional Socialista dos Trabalhadores Alemães). Em toda a Europa, partidos fascistas de massas emergiram daquilo que inicialmente eram pequenos núcleos durante o período entre guerras. Mais recentemente, o sucesso eleitoral de muitos partidos fascistas, minúsculos antes da crise financeira de 2008, e a recente onda de migração, demonstraram o potencial para um rápido crescimento da extrema-direita quando as circunstâncias se tornam favoráveis.

Esses partidos certamente cresceram e ambos os regimes consolidaram seu poder, conquistando apoio das elites conservadoras, industriais ansiosos, dos alienados proprietários de pequenos negócios, nacionalistas desempregados e outros. As triunfantes narrativas de resistência pós-guerra talvez tenham negado que todos, menos os ideólogos do fascismo mais comprometidos, tenham apoiado figuras como Mussolini ou Hitler, mas na verdade ambos os regimes conseguiram cultivar um amplo apoio popular, obscurecendo ainda mais nosso entendimento do que significava ser um fascista ou um nazista nos anos 1930. Nesse sentido, foram necessários alguns fascistas para conceber o fascismo. O ponto é, no entanto, que antes de conseguir tal apoio popular, os fascistas e os nazistas não eram mais que minúsculos grupos de ideólogos.

Enquanto isso, é importante notar que, ao mesmo tempo em que Mussolini montava um grupo com 100 veteranos amargos e alguns socialistas nacionalistas peculiares, e Hitler lutava pela liderança do minúsculo Partido Alemão dos Trabalhadores, a Itália e a Alemanha aparentemente estavam à beira de uma revolução social. Não havia razão para que a esquerda tivesse olhado para qualquer crescimento. Esses pequenos grupos não poderiam ter sido mais irrelevantes.

Dado o que anarquistas, comunistas e socialistas sabiam na época, não havia razão para que eles dedicassem qualquer tempo ou atenção aos primórdios do fascismo. No entanto, é impossível não nos perguntarmos o que poderia ter acontecido se eles tivessem prestado mais atenção. É uma hipótese impossível de se levar a sério, e refletir demais sobre ela significaria omitir os fatores sociais mais amplos que prepararam o terreno para a ascensão do fascismo. Não obstante, os antifascistas concluíram que, como o futuro não é escrito e o fascismo frequentemente emerge de pequenos grupos marginais, todo grupo fascista ou supremacista branco deveria ser tratado como se fossem os 100 fasci de Mussolini ou os 54 membros do Partido Alemão dos Trabalhadores que ofereceram a Hitler a base para seus primeiros passos.

A trágica ironia do antifascismo moderno é que, quanto mais bem-sucedido, mais sua razão de ser é questionada. Seus maiores sucessos estão no limbo hipotético: quantos movimentos fascistas assassinos foram cortados pela raiz nos últimos 70 anos por grupos antifas antes que sua violência pudesse se espalhar? Nós nunca saberemos – e isso efetivamente é uma coisa muito boa.