“Fico preocupado é se os brancos vão resistir. Nós estamos resistindo há 500 anos.”
Apresentação
por Facção Fictícia
Vivemos o auge da maior ameaça a toda forma de sustentabilidade da vida, dos biomas e das comunidades nesse planeta. Essa ameaça se chama Capitalismo, foi criada há séculos por seres humanos, e pode ser eliminada se assim quiserem os seres humanos. No entanto, mesmo abolindo esse sistema econômico-político que explora pessoas, promove genocídios, polui, degrada e envenena a terra, a água e o ar, teremos que sobreviver convivendo com as consequências de termos deixado a burguesia e o Estado chegarem tão longe. A destruição de ambientes inteiros, os venenos nos rios e em nossos corpos, as espécies que se foram, as geleiras que desapareceram e os rios que foram pavimentados, tudo isso permanecerá assim por anos. Viveremos coletando o que precisamos de ruínas e das pilhas de sucatas deixadas para trás. Tudo o que foi tirado do solo para ser jogado na superfície, nos mares e em nossos organismo não vai voltar da noite pro dia para o seu lugar de origem.
Essa inevitável constatação afeta nossas perspectivas de futuro. E é lá que residem as perspectivas revolucionárias e do fim do Capitalismo. Não existe mais uma promessa de futuro além do Capitalismo que seja apenas uma promessa de partilha e fartura, mas sim uma promessa de compartilhar a autogestão de nossas vidas em meio a recuperação da saúde dos biomas, das nossas relações e nossos corpos, após séculos de agressão e exploração. O que existe de fato é um consenso entre a comunidade científica, ativistas, instituições políticas, povos originários e pessoas tanto do campo como das cidades quanto aos riscos cada vez mais eminentes trazidos pelo aquecimento global e o impacto da industrialização e urbanização, que estão prestes a se tornarem irreversíveis.
Projetos de expansão do extrativismo para exportação de petróleo, commodities agrícolas e políticas desenvolvimentistas de aceleração do crescimento na época da gestão do PT, como a construção da usina de Belo Monte, que desalojou e impactou comunidades indígenas, milhares de pessoas que vivem no campo, mostram que governos de esquerda ou de direita enxergam a natureza e a vida humana como recursos para produzir bens de consumo. A ameaça oferecida por um governo de extrema direita, como o de Jair Bolsonaro, declaradamente inimigo do povo, das mulheres, dos povos indígenas, disposto a estimular sem pudores da violência física da repressão política e policial, consiste na intensificação das agressões que nunca deixaram de acontecer.
Queimadas aumentaram 82% em 2019 em relação ao mesmo período no ano passado no Brasil segundo o INPE. Uma fumaça de detritos causada pelos focos de incêndio florestais na região amazônica encobriu cidades do estado de São Paulo, fazendo o dia virar noite às 15h da tarde. Tudo isso no mesmo mês em que, na Islândia, pessoas organizaram o primeiro funeral, com lápide e tudo, para uma geleira declarada morta que desapareceu devido às altas temperaturas.
Cenas terríveis e trágicas, quase pitorescas, quase absurdas, nos lembram dos cenários e eventos fictícios como os do romance Não Verás País Nenhum, uma distopia social e ambiental brasileira de Ignácio de Loyloa Brandão. O livro, escrito na década de 1970 – em plena ditadura civil-militar no Brasil – descreve um regime ditatorial fictício conhecido como “civiltar”, que celebra – com datas festivas e tom ufanista – eventos como o corte da última árvore da Amazônia e declara com orgulho ter agora “um deserto maior que o do Saara”. Compondo o cenário trágico, todos os rios brasileiros estão mortos e jarros com a água de cada um dos rios extintos são expostos em um museu hidrográfico. Dunas de latas de alumínio e rodovias onde tomadas por carcaças de carros abandonados são o cenário que compõem os arredores de São Paulo. A cidade, por sua vez, sofre com súbitos bolsões de calor capazes de matar qualquer desavisado e doenças misteriosas que consomem os cidadãos, principalmente aqueles; em situação de rua. O autor alega ter se inspirado em eventos reais que pareciam absurdos, mas hoje se mostram cada vez mais reais do que nunca.
No mundo real, as notícias do aumento de queimadas na Amazônia chocaram a opinião pública ao redor do mundo, gerando indignação das pessoas e de líderes políticos como o presidente francês Emmanuel Macron que levou o tema para a reunião de cúpula do G7 e trocou farpas com Bolsonaro na mídia. No entanto, a solidariedade internacional entre povos explorados e excluídos é fundamental. Mas a intervenção de estados estrangeiros com interesses econômicos não é nada além da continuidade do colonialismo que começou em 1492. Não será nenhum governo que vai solucionar o problema dos incêndios e dos desmatamentos. O máximo que conseguirão é retardar ou diminuir a exploração, mas o Capitalismo neoliberal não aceita nada que não seja crescimento e mais crescimento, isto é: a transformação das matas e dos recursos dos solos em bens de consumo competitivos no mercado global. O que queima a Amazônia – e todo o planeta – é o latifúndio, a disputa por terras, o lucro e propriedade privada. Nada disso será tocado por nenhum governo eleito ou imposto. Uma perspectiva ambiental deve ser uma perspectiva revolucionária pelo fim do Capitalismo.
Exercitar nossa capacidade de imaginar
Utopia é por definição um lugar que não existe ou é inalcançável. Logo, são inúteis. Precisamos de outros lugares possíveis. Precisamos ser capazes de imaginar um mundo diferente. É preciso compartilhar referências de sociedades funcionando sem Estado e sem Capitalismo, como a Comuna de Paris em 1871, a Revolução Russa e Ucraniana de 1917 (antes de serem traídas e esmagadas pela ditadura bolchevique), ou a Revolução Espanhola de 1936. E também os episódios atuais como o levante Zapatista no México desde 1996 e a revolução em andamento em Rojava na Síria, onde os povos nativos se levantaram em armas e milhões de pessoas organizam sua economia, seu trabalho, sua educação e a gestão de cidades, vilas e campos sem um estado ou uma economia baseada na propriedade privada dos meios de produção. Além deles, há exemplos de todas as nações indígenas ao nosso redor: Guaranis, Mundurukus, Tapajós e Krenaks e tantas outras que, há cinco séculos, resistem à expansão colonial europeia e capitalista. Todos são exemplos que anarquistas devem ter como referência de vida, organização e resistência sem Estado e contra o Estado!
Se usássemos nossa capacidade de inventar ou acreditar em apocalipses zumbis e desastres proféticos do cinema ou da literatura para imaginar e construir uma realidade para além do Capitalismo desde já, estaríamos em um caminho muito melhor. Hoje nosso caminho beira a descrença e a passividade. Mas não existe neutralidade em um trem em movimento correndo para um abismo. Cruzar os braços é ser conivente. Agir individualmente é insuficiente. É preciso imaginar e também buscar referências revolucionárias recentes ou tradicionais e milenares de vida autogerida, organizada e igualitária entre os povos do mundo.
Por isso, compartilhamos o texto Uma Solução Anarquista para o Aquecimento Global, do anarquista Peter Gelderloos, para que possamos exercitar nossa imaginação. Para quem gostar da ideia, recomendamos o livro de autoria desconhecida, chamado Bolo Bolo, que imagina um planeta inteiro vivendo uma era pós Capitalismo.
Para mais exemplos e referências de sociedades anarquistas revolucionárias ou povos tradicionais e indígenas vivendo e solucionando seus problemas sem chefes ou governantes –, recomendamos o livro Anarquia Funciona, também escrito por Peter Gelderloos e disponível livremente na internet. O livro aborda com exemplos históricos e factuais questões como tomada de decisão, economia, solução de conflitos, meio ambiente, crime, organização de comunidades e revolução.
Boa leitura.
“De fato, já estamos no olho do furacão. Os preços da energia subiram como consequência de já havermos alcançado o pico na produção global de petróleo e seu consequente e inevitável declínio posterior. Furacões, secas e padrões climáticos imprevisíveis tornaram-se mais frequentes e intensos, fazendo-nos sofrer as consequências do aquecimento global que nós mesmos provocamos. Enquanto isso, a qualidade do solo e da água continua a se degradar e a biodiversidade colapsa com uma taxa de extinção de espécies 10.000 vezes superior a normal. Por sua vez, a tremenda crise nos preços dos alimentos em que se vê mergulhando o mundo neste momento é a indicação mais poderosa até agora de que já não se deve esperar um retorno a situação anterior. Pelo contrario, o que vemos é a batalha final entre a necessidade infinita de crescimento do capitalismo neoliberal e os recursos limitados de um único planeta. E não é com toda a engenharia financeira ou as invenções de tecnologias de última geração que o dinheiro pode comprar que este sistema irá escapar de seu colapso inevitável. Ele atingiu o ponto de inflexão e nós somos a geração a que corresponde à duvidosa honra de viver e morrer em seus últimos espasmos.”
– Uri Gordon, Presságios Sombrios: política anarquista na época do colapso
Uma Solução Anarquista para o Aquecimento Global
por Peter Gelderloos
Se a resposta dos “capitalistas verdes” para as mudanças climáticas somente joga mais lenha na fogueira, e se os governos em escala mundial são incapazes de resolver o problema, como anarquistas sugeririam reorganizar a sociedade para poder diminuir a quantidade de gases estufa na atmosfera e sobreviver a um mundo que já mudou?
Não há uma só posição anarquista e muitos anarquistas se negam a oferecer qualquer tipo de proposta argumentando que quando a sociedade se libertar do Estado e do Capitalismo, ela mudará organicamente e não de acordo com um anteprojeto. Além disso, a atitude policial de ver o mundo desde cima e impor mudanças é inseparável da cultura responsável por destruir o planeta e oprimir a seus habitantes.
Contudo, queremos esboçar uma possível maneira de como poderíamos organizar nossas vidas, não dando uma proposta concreta, mas sim porque as visões nos fazem mais fortes e todos nós necessitamos de coragem para romper de uma vez por todas com as instituições existentes e com as soluções falsas que nos oferecem. Seguindo os propósitos deste texto, não vou entrarem nenhum dos importantes debates com respeito a ideais – níveis apropriados de tecnologia, escala, organização, coordenação e formalização. Vou descrever como uma sociedade ecológica e antiautoritária poderia se manifestar, fluindo desde a complexidade social do momento presente. Por razões de simplicidade,tampouco entrarei em debates científicos sobre o que é e o que não é sustentável. Esses debates e a informação que apresentam são acessíveis extensamente para quem queira fazer sua própria investigação.
Baseio a descrição deste possível futuro mundo no que é fisicamente necessário e o que é eticamente desejável, em concordância com as seguintes premissas:
- A extração de combustíveis fósseis e seu consumo devem se encerrar por completo.
- A produção de comida industrial deve ser substituída pela colheita sustentável de comida a nível local.
- Estruturas centralizadas de poder são inerentemente exploradoras do meio ambiente e opressivas para as pessoas.
- A mentalidade de valor quantitativo, acumulação, produção e consumo – ou melhor dizendo, a mentalidade do mercado livre – é inerentemente exploradora do meio ambiente e opressiva para as pessoas.
- A descentralização, a associação voluntária, a auto-organização, o apoio mútuo e a não-coerção são viáveis e funcionaram dentro e fora da civilização ocidental inumeráveis vezes.
Bem-vindas ao futuro. Ninguém imaginaria que a sociedade global seria desta maneira. Sua característica mais definitiva é sua heterogeneidade. Algumas cidades foram abandonadas, árvores crescem através de suas avenidas, rios fluem onde antes o asfalto cobria a terra e os arranha-céus se desmoronam enquanto capivaras pastam em meio ao cimento rachado.
Outras cidades prosperam, porém mudaram a ponto de se tornarem irreconhecíveis. Terraços, lotes vazios e avenidas foram convertidas em hortas. Árvores frutíferas e nozes formam fileiras em cada quadra. Galos cantam a cada amanhecer. Em torno de um décimo das ruas – as grandes vias – permanecem pavimentadas ou asfaltadas, ônibus funcionando com biodiesel passam com frequência. Outras ruas foram amplamente ocupadas por jardins e hortas, embora ciclovias cortem o centro delas. Os únicos edifícios que tem eletricidade durante as vinte e quatro horas do dia são os centros de tratamento de água, os hospitais e as estações de rádio. Os teatros e os edifícios comunitários obtém energia em rodízio somente até atarde para que possam ficar abertos para noites de cinema ou outros eventos. Praticamente todos tem velas e lamparinas, e é assim que sempre há alguma luz em muitas janelas até tarde. Porém não é nada parecido com o que era antes. Na noite é possível ver as estrelas no céu e as crianças ficam boquiabertas quando os mais velhos lhes dizem como as pessoas haviam abandonado esse prazer.
A eletricidade é produzida por uma rede de usinas de energia que queimam desperdícios agrários (como espigas de milho, por exemplo), por meio de alguns biocombustíveis e através de uma quantidade reduzida de turbinas eólicas e painéis solares. Porém a cidade funciona com só uma fração do que usava anteriormente .As pessoas aquecem e resfriam seus lares por meio de um design solar e eficiente, sem eletricidade alguma. Nas regiões mais frias, as pessoas complementam isso no inverno com a queima de combustíveis renováveis, porém as casas estão bem isoladas e os fornos estão projetados com a máxima eficiência, por isso não é necessário muito. As pessoas também cozinham em fornos a base de combustíveis ou, em climas mais temperados, com fornos solares. Algumas cidades que utilizam mais eletricidade para a indústria manufatureira e para manter formas de geração de eletricidade renovável (solar, eólica e energia das marés e correntezas dos rios) também cozinham com eletricidade. Muitos edifícios tem uma lavadora coletiva, sem secadoras e todas as vestes são secadas como antigamente: em uma corda de varal.
Ninguém tem um refrigerador, embora cada edifício ou apartamento tenha um congelador comunal. As pessoas guardam alimentos perecíveis como iogurtes, ovos e legumes em uma geladeira portátil ou no porão, e comem alimentos frescos ou enlatados. Elas colhem nas hortas de suas quadras a metade do que consomem. Quase todos os alimentos que consomem são colhidos a vinte milhas de onde vivem. Nenhum alimento é geneticamente modificado ou produzido com químicos e todos são produzidos pelo seu sabor e nutrição, não por sua perenidade e facilidade de transporte. Em outras palavras, todos os alimentos tem um melhor sabor e as pessoas são muito mais saudáveis. Doenças cardíacas, diabetes e câncer, alguns dos maiores assassinos da sociedade capitalista, desaparecem. Os supervírus, criados durante o capitalismo, que mataram milhões de pessoas durante o colapso desapareceram em sua maior parte e o uso de antibióticos quase chegou ao fim. As pessoas vivem em condições mais saudáveis globalmente e tem sistemas imunológicos mais fortes. As viagens globais não são nem tão frequentes nem tão aceleradas. As pessoas também tem uma maior consciência com respeito ao meio ambiente e uma conexão pessoal com a biorregião porque se alimentam do que se produz em temporada e o do que se colhe localmente, e também porque são elas mesmas quem os colhem.
Cada casa tem um banheiro de compostagem e uma pia, porém não há esgoto. Se tornou uma espécie de regra subentendida ao redor do mundo que cada comunidade deve assumir a responsabilidade por seus próprios dejetos com bacias de evapotranspiração. Livrar-se de resíduos jogando-os rio abaixo tornou-se o maior tabu. As relativamente poucas fábricas restantes usam fungos e micróbios em grandes terrenos florestais ao redor das zonas industriais para corrigir qualquer eventual contaminação que produzam. Os bairros convertem seus dejetos em adubo ou combustível. A quantidade de água é limitada, porém os edifícios estão equipados com coletores de água da chuva para as hortas e para fazer faxinas. As vivências que excedem em muito a cota recomendada de uso de água são publicamente surpreendidas. A cota recomendada não é imposta, é simplesmente uma sugestão compartilhada por quem trabalha nos consórcios de tratamento das águas, baseada na quantidade de água que a cidade está permitida desviar da fonte principal e em concordância com todas as comunidades que compartilham a fonte.
Na maioria das cidades, as pessoas organizam assembleias periódicas para a manutenção de hortas, estradas, ruas, edifícios, creches e para mediar conflitos. As pessoas também participam de reuniões em qualquer sindicato ou projeto infraestrutural que desejam dedicar seu tempo. Estes podem incluir o consórcio de água, as cooperativas de transporte, o consórcio de eletricidade, os hospitais, a união de construtores, as fábricas ou as enfermarias (a maioria dos tratamentos médicos é realizado por herbalistas, naturopatas, homeopatas, acupunturistas, massoterapeutas, parteiras e outros especialistas que atendem a domicílio). A maioria destas organizações são descentralizadas ao máximo, confiando a indivíduos e pequenos grupos de trabalho a realização de suas tarefas, embora quando necessário, se coordene através de reuniões que normalmente funcionam como assembleias abertas usando o consenso, com uma preferência por compartilhar perspectivas e informação sem tomar decisões sempre que possível. Algumas vezes, reuniões interregionais (como por exemplo, a reunião de comunidades que compartilham a fonte de água), são organizadas com uma estrutura de delegações, ainda que as reuniões sempre estejam abertas a todo mundo, e sempre procuram chegar a decisões que satisfaçam a todos já que não há instituições coercitivas e qualquer tipo de coerção é reprovada por tentar “trazer de volta os velhos tempos”.
Como o poder está sempre num nível local, na medida do possível, a grande maioria das decisões é tomada por indivíduos ou grupos pequenos que compartilham afinidades e trabalham juntos regularmente. Uma vez que não há ênfase para controlar e acumular poder impondo homogeneidade ou singularidade de resultados, as pessoas descobrem que a maior parte da coordenação pode ocorrer organicamente,com gente diferente tomando diferentes decisões e resolvendo por si mesmas como reconciliar suas decisões com as dos demais.
Embora as sociedades de hoje estão estruturadas para criar sentimentos de comunidade e mutualidade, existe também espaço para a privacidade e solidão. Muitos bairros tem cozinhas comunais e salas de jantar, porém as pessoas podem cozinhar e comer por si mesmas, quando lhes der vontade – e elas normalmente o fazem. Algumas sociedades tem muitos chuveiros públicos, e outras não, dependendo das diferenças culturais. A comunização forçada em experimentos passados de utopias socialistas não existem nesse mundo. A propriedade privada foi abolida no sentido clássico dos meios de produção que as pessoas necessitam para sua sobrevivência, porém, qualquer um pode ter quantos objetos pessoais elas conseguirem – roupas, brinquedos, reservas de doces e outras iguarias, uma bicicleta, etc.
Quanto menor a comunidade, maior a probabilidade dela operar com uma economia de dádiva – qualquer coisa que você não use pode dar como um presente, reafirmando seus laços sociais e aumentando a quantidade de objetos em circulação – a qual é talvez a economia mais comum e de mais larga trajetória na história do ser humano. Além do nível de bairro, ou quando se trata de objetos raros ou que não são produzidos localmente, as pessoas podem negociar. Os sindicatos de algumas cidades podem utilizar um sistema de cupons para a distribuição de coisas que escasseiam ou que são de produção limitada. Se você trabalha no sindicato de eletricidade, por exemplo, pode obter um número de cupons que podem ser usados para conseguir coisas da fábrica de bicicletas ou de alguma fazenda fora da cidade.
Os itens mais comumente produzidos nas fábricas são bicicletas, ferramentas de metal, roupa, papel, equipamentos médicos, biodiesel e vidro. Mais comum que a fábrica é a oficina, onde as pessoas fabricam quaisquer tipo de coisa, com uma qualidade maior e em um ritmo mais lento e digno e saudável. As oficinas usualmente usam materiais reciclados (afinal, há muitos centros comerciais antigos e cheios de lixo e sucata) para fabricar coisas como brinquedos, instrumentos musicais, roupas, livros, rádios, geradores de eletricidade, bicicletas e partes de automóveis.
O trabalho não é obrigatório, porém quase todo mundo trabalha. Quando não se tem chefes é possível fazer coisas que são úteis e que têm significado, as pessoas tendem a desfrutar do trabalho. Aqueles que não contribuem trabalhando de nenhuma forma são muitas vezes desprezados ou excluídos dos aspectos mais agradáveis de viver em sociedade, porém nunca é aceitável negar a alguém comida ou tratamento médico. Pelo motivo de não ajudarem a seus próximos, é pouco provável que consigam boas comidas, consultas médicas, massagens ou acupuntura a menos que tenham um problema específico que as impeçam de trabalhar. Porém nunca serão deixadas morrer de fome. É uma pequena gasto de recursos para a comunidade, porém nada com parado como parasitismo de chefes, políticos e forças policiais do passado.
Não há mais polícia. Geralmente, as pessoas estão armadas e treinadas em autodefesa, e a vida de todos inclui atividades que incentivam sentimentos coletivos ou comunais de interesse próprio. As pessoas dependem da cooperação e do apoio mútuo para sobreviver e serem felizes, deste modo aqueles que estragam seus laços sociais, acabam se isolando e prejudicam a si mesmos. As pessoas lutaram para derrotar seus opressores. Derrotaram a polícia e as forças armadas das classes dirigentes, e recordam essa vitória. O imperativo de nunca voltar a sermos governados forma uma grande parte da identidade hoje em dia. Não serão intimidados por ocasionais psicopatas ou quadrilhas de mafiosos.
Em suma, a cidade tem uma insignificante pegada ambiental. Uma grande concentração de pessoas vive em uma área determinada, que contudo contém uma grande biodiversidade, com muitas espécies de plantas e animais vivendo juntas. Não produzem poluição que não sanem elas mesmas. Usam água de fontes, porém muito menos que uma cidade capitalista, e em acordo com outras comunidades que usam as mesmas fontes. Produzem gases estufa através da queima de combustível, porém a quantidade é menor do que a absorvida da atmosfera pela sua própria agricultura (pois todos os combustíveis são de origem agrária, e o carbono que produzem é o mesmo que essas plantas removeram da atmosfera enquanto cresciam). Quase toda a comida local é produzida de forma sustentável. Existe uma pequena quantidade de produção industrial, porém a grande parte dela usa materiais reciclados.
Fora da cidade, o mundo está ainda mais transformado. Desertos, selvas, montanhas, pântanos, tundras e outras áreas que não podem sustentavelmente suportar altas populações humanas regressaram a seu estado natural. Nenhum tipo de programa governamental foi necessário para criar reservas naturais, simplesmente não valia a pena permanecer nestes lugares quando a produção de combustíveis fósseis parou. Em muitas destas, as pessoas vivem como caçadores-coletores, levando a cabo a mais inteligente forma de economia possível nesta biorregião e tornando a noção convencional do que é futurístico de cabeça.
Algumas comunidades rurais são autossuficientes, sustentadas com a agricultura e a pecuária, ou mais intencionalmente com a permacultura. Muitas pessoas que deixaram as cidades durante o colapso formaram estas comunas e são mais felizes e saudáveis do que durante o capitalismo. Algumas das comunidades permaculturais são compostas de unidades familiares mais tradicionais, com cada família ocupando uma dois acres de terra, estendido sem uma distribuição homogênea sobre um vasto território. Outras compreendem um núcleo densamente povoado, com centenas de habitantes vivendo em doze acres de campos intensamente cultivados, rodeados por árvores frutíferas e campinas com frutas, nozes e gado, rodeados por sua vez por um anel de bosques naturais que servem como um cinturão ecológico, e com o espaço para um ocasional corte de árvores e caça de animais. Estas comunidades rurais são quase completamente autossuficientes, tem uma relação sustentável com a terra, fomentam uma alta biodiversidade, e sua emissão de gases de efeito estufa facilmente equivale a zero.
As comunidades rurais nos pequenos raios em torno das das cidades levam a cabo uma agricultura intensiva, ajudada por alguns produtos manufaturados, em uma relação simbiótica com seus vizinhos urbanos. Cada semana, utilizando carruagens ou caminhonetes a biodiesel, trazem comida e biocombustíveis até um bairro específico da cidade, e levam de volta compostagem (a maioria proveniente de banheiros, já que os restos de comida servem para alimentar as aves urbanas). Com este nutritivo composto, vidros para estufas, ferramentas de metal e o ocasional uso de tratores ou arados mecânicos compartilhados entre várias pequenas fazendas, é possível produzir altos rendimentos todo o ano sem destruir a terra nem depender de químicos ou combustíveis fósseis. Elas cultivos intercalados e outros métodos derivados da permacultura para preservar o estado saudável da terra e evitar pragas. As fazendas contam com árvores frutíferas e pequenos bosques, e por isso há uma grande biodiversidade, incluindo grande quantidade de aves que se alimentam de insetos. Já que não praticam a monocultura, as pestes e as doenças não se expandem tão incontrolavelmente como na agricultura industrial capitalista. O uso de plantas nativas, diferentes espécies, a proteção do solo, e a preservação de bosques também mitigam o impacto das secas e do clima extremo causado pelas mudanças climáticas.
Ainda existe uma quantidade aceitável de transporte entre biorregiões. As cidades estão conectadas por meio de trens a biodiesel e as pessoas cruzam regularmente os oceanos em barcos que funcionam com energia eólica. Uma quantidade de finida de comércio interregional funciona desta maneira, porém o transporte interregional serve, principalmente, para permitir o movimento das pessoas, ideias e identidades. As pessoas se locomovem menos do que nos últimos dias de capitalismo, porém, por outro lado, não tem que se preocupar por seguir os caprichos da economia que as obrigava a se mudar para longe em busca de trabalho. As biorregiões são quase completamente autossuficientes economicamente e as pessoas encontram o sustento necessário. Se querem partir é porque querem viajar para ver o mundo e são livres para fazê-lo porque as fronteiras deixaram de existir.
A comunicação de longa distância funciona principalmente através de rádio. A maioria das comunidades urbanas e semi-urbanas tem telefone e internet. A produção altamente tóxica de computadores quase acabou, porém algumas poucas cidades usam métodos inovadores e mais limpos para produzir computadores em uma escala mínima e mais lenta. No entanto, existem suficientes peças em circulação e a maioria dos bairros podem manter alguns computadores funcionando se assim desejam. Muitas pessoas da zona rural vivem o suficientemente perto de uma cidade para ter acesso a estas formas de comunicação de vez em quando. Ainda é possível receber notícias de todo o mundo e continuar a cultivar uma identidade parcialmente global.
A base econômica da sociedade se diversificou bastante dentro de cada comunidade linguística. Em outras palavras, uma pessoa pode viver em uma comuna agrícola com um nível de tecnologia muito similar ao da sociedade ocidental no século dezenove, mas na vizinhança existe um bosque habitado por caçadores-coletores. E, algumas vezes por ano, essa pessoa pode visitar uma cidade organizada por sindicatos e assembleias, onde há eletricidade, ônibus, uma estação de trem ou um porto, onde se pode ver filmes ou ler o blog de alguém que está no outro lado do planeta. Imagens e notícias ao redor do mundo passam por cada comuna regularmente. Se fala o mesmo idioma e se compartilha uma cultura e história similar com estas comunidades que são, no entanto, muito diferentes entre si. O resultado disso é que uma identidade exclusivamente separatista e isolada, que poderia trazer problemas como o renascimento de comportamentos dominadores e imperialistas, é constantemente balanceada pelo crescimento de uma identidade global e a mescla com membros tão diferentes de uma comunidade ampla. Na verdade, já que a maioria das comunidades linguísticas se estendem bem mais além de uma biorregião e já que as pessoas desfrutam de uma mobilidade social sem precedentes, cada indivíduo decide, quando chega a uma certa idade, se quer viver na cidade, no campo ou nos bosques. Não somente as fronteiras não existem entre nações artificialmente construídas; as fronteiras sociais tampouco detém o movimento entre diferentes categorias identitárias e culturais.
Para as pessoas mais velhas, esta forma de vida se assemelha ao paraíso, mesclado com os sombrios detalhes da realidade – conflitos, trabalho duro, desamores e pequenos dramas. Os jovens simplesmente pensam que este tipo de vida é resultado de um senso comum.
Ecada ano, o mundo se cura um pouco mais dos estragos causados pelo capitalismo industrial. Novas áreas retornam ao estado silvestre e a quantidade de bosques e zonas úmidas aumenta, enquanto que áreas altamente povoadas se tornam ecossistemas saudáveis graças a jardinagem, a permacultura e a eliminação dos carros. Os níveis de gases de efeito estufa se reduzem lentamente, pela primeira vez em décadas, o carbono retorna aos solos, aos bosques e zonas úmidas, a novas áreas urbanas verdes; e a queima de combustíveis fósseis é erradicada. Mais de um terço das espécies no planeta se extinguiram antes das pessoas mudarem a maneira de viver, porém agora que a perda de habitat foi invertida, muitas espécies voltam a se proliferar. Enquanto a humanidade não esquece a lição mais difícil que já aprendeu, em alguns milhões de anos e a biodiversidade do planeta será tão grande como sempre foi.
Uma vida digna substituiu o lucro como o novo termômetro social e, em um golpe a todos os engenheiros do planejamento social, todo mundo pode fazer suas próprias metas e determinar por si mesmos como alcançá-las. As pessoas recuperaram a habilidade de se alimentar e de fazer suas próprias casas, e as comunidades individuais mostraram que elas são as que se encontram melhor situadas para projetar um modo de sustentabilidade adaptado as condições locais e as várias mudanças resultantes do aquecimento global. Era algo tão óbvio. A única solução que todos os que se beneficiavam com uma economia que gerava mudanças climáticas nunca discutiram era as que poderiam realmente funcionar.
Durante a maior parte do tempo, as pessoas não acreditavam em quem tentava alertar sobre as mudanças climáticas, sobre o colapso ecológico, e outros problemas criados pelo governo e pelo capital – os mesmos que clamavam soluções radicais. Ao final, viram que a melhor decisão que tomaram em suas vidas foi a de parar de confiar naqueles que estão no poder, os responsáveis por todos esses problemas, e ao invés disso começar a confiar em si mesmas e se partirem para a ação.
A esses leitores que duvidam da possibilidade desta visão, podem dar uma olhada em “Campos, Fábricas e Oficinas”, de Peter Kropotkin, onde cientificamente se mostra uma proposta similar já há mais de cem anos. Também podem prestar atenção em como a terra nativa onde vivem foi organizada antes da colonização. De onde eu venho a Confederação Powhatan manteve a paz e coordenou o comércio entre várias nações no sul da Bahia de Chesapeake, na costa atlântica dos Estados Unidos. Ao norte, os Haudensaunne mantiveram a paz entre cinco, e logo seis nações, por cem anos. Ambos grupos suportaram uma alta densidade populacional mediante a horticultura intensiva e pescando sem degradar o meio ambiente.
Onde agora vivo, em Barcelona, os trabalhadores tomaram a cidade e as fábricas e geriram tudo por si mesmos em 1936. E onde estou escrevendo este artigo, em Seattle, houve uma greve geral de um mês em 1919 e os trabalhadores também se provaram capazes de se organizar e manter a paz. Não é um sonho. É uma possibilidade iminente, porém somente se tivermos a coragem de acreditar nela!
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