Copa do Mundo: autoritarismo, nacionalismo e negócios

Cartaz na Alemanha convocando para o boicote à Copa do Mundo de Futebol no Catar.

A Copa do Mundo FIFA no Catar acabou, mas, infelizmente, outras virão. A próxima, em 2026, será dividida entre México, Canadá e EUA e já podemos prever os impactos para os pobres e minorias desses locais tão marcados pela segregação e ataques à comunidades indígenas e negras. Mas por agora, convidamos todo o mundo a relembrar a trajetória da Copa do Mundo desde sua estreia em 1930 no Uruguai, passando pela sua relação com a Itália de Mussolini e as ditaduras civis-militares na América Latina, como na Argentina e no Brasil, fazendo a ponte entre esporte, identidade nacional, racismo, polícias e, é claro, negócios.

Como abordamos em uma publicação de 2014, para a máfia internacional do esporte conhecida como FIFA, o torneio é o seu maior negócio, transmitido para metade da população do globo e gerando um faturamento de cerca de 40 bilhões de reais. Na sua última edição, a primeira em um país árabe, a Copa do Mundo ganhou manchetes e até documentários dedicados a expor os impactos sociais e os altos custos para trabalhadores e trabalhadoras em condições sub-humanas que ergueram e operaram as estruturas do maior megaevento do planeta no Catar.

O pequeno país do Sudoeste Asiático, de apenas 2,8 milhões de habitantes é considerado o mais rico do mundo devido à abundância de petróleo e gás natural, o que colabora para as suspeitas de suborno para que membros da FIFA votassem para que país árabe sediasse o evento. Governado pela monarquia absolutista (Emirado) hereditária, imperam a censura à imprensa, a supressão aos direitos da mulheres e a criminalização da homossexualidade e toda comunidade LGBTQIA+ pelo Direito Islâmico.

Mesmo sendo tão rico, Catar não contava com toda a mão de obra necessária para erguer uma cidade praticamente do zero e 7 estádios em menos de uma década. Com apenas 380 mil cidadãos nascidos no Qatar e 90% da população total composta por imigrantes, o governo impulsionou a contratação de mais de 5 milhões de imigrantes, principalmente da Índia, Paquistão, Nepal e Bangladesh para trabalhar na construção dessas megaestruturas, incluindo estradas, aeroportos, hotéis e muito mais sob o calor assassino de 52ºC, que matou ao menos 571 trabalhadores nepaleses, chegando à soma total de quase 7 mil trabalhadores mortos – muitos, devolvidos às suas famílias em uma caixa com o nome do falecido do lado de fora.

Trabalhadores em obras da Copa do Catar.

Esses milhares de trabalhadores imigrantes foram submetidos a um regime de trabalho conhecido como Kafala, uma forma escravidão moderna, muito semelhante com o que vemos no agronegócio brasileiro, onde trabalhadores já chegam endividados para pagar pelo transporte que os levou até o local de trabalho e têm seus documentos confiscados enquanto estiverem trabalhando. A maioria estava alojada em instalações imundas sem água ou esgoto apropriados, defecando em buracos no chão e tomando banho em baldes.

Apesar de parecer que apenas agora direitos humanos básicos e as comunidades pobres e minorias estejam sob ataque para uma Copa do Mundo, lembramos as absurdas consequências das Copas realizadas no Brasil e na África do Sul, em 2014 e 2010 respectivamente. No primeiro, serviu para vender uma falsa imagem de integração racial e superação do sistema de Apartheid, enquanto removia favelas, sem-tetos e prostitutas dos centros urbanos. No segundo, removeu cerca de 250 mil pessoas de suas casas nos governos Lula-Dilma do PT, de abrir caminho para operações de pacificação e as UPPs no Rio de Janeiro.

Em todos os megaeventos esportivos há oportunidade para governos e capitalistas reorganizarem suas atividades e a estrutura das cidades. No caminho, vemos a falta de consideração com os interesses da população e a resistência popular. A situação piora conforme as condições sociais e econômica do país. Em 2006, a Suécia se recusou a receber a Copa do Mundo FIFA por preferir investir os altos custos públicos necessários para construir moradias. Nas recentes Olimpíadas de Tóquio em 2020, protestos também foram abafados quando denunciavam os riscos de um torneio em meio à pandemia. Como alegou o Secretário-Geral da FIFA em 2013, governos autocráticos e menos transparentes são os mais ideais para a realização de uma copa do mundo, o que explica o desvio das democracias centrais do capitalismo na última década, como Japão e Alemanha, para desembocar em países marcados pela desigualdade como Brasil e África do Sul, passando por regimes autocráticos como Rússia e Catar. Mesmo assim, além da oportunidade de reorganização do espaço e das relações de trabalho no capitalismo global, é possível ver e aprender com as lutas populares e anticapitalistas em diferentes partes do planeta resistindo e denunciando os efeitos dos megaeventos.

Vou falar uma coisa que é loucura, mas menos democracia às vezes é melhor para organizar uma Copa do Mundo[…]. Quando você tem um chefe de Estado muito forte que pode decidir, como talvez Putin possa fazer em 2018… isso é mais fácil para nós organizadores do que um país como a Alemanha… onde você tem que negociar em diferentes níveis.”

Jerome Valcke, Secretário-geral da FIFA, 2013.

MEGAEVENTOS COMO DINAMIZADOR ECONÔMICO E POLÍTICO

Numa economia neoliberal cada vez mais globalizada e urbana, as cidades são os principais palcos da acumulação de capital. Para atrair investimentos para um país, é necessário tornar suas cidades polos atrativos para investidores. Isso inclui ter uma vasta mão de obra disponível, um mercado consumidor voraz inserido na linguagem publicitária global e, principalmente, dispor das estruturas de serviços e produtos necessários para ser competitiva a nível global: polos industriais e de pesquisa, aeroportos internacionais, hotéis de luxo, centros de convenção, complexos portuários, centros comerciais, etc. O país que quer competir por investimentos e uma posição de destaque na economia mundial deve usar suas cidades como instrumentos para tal competição.

A visibilidade é crucial nesse processo: os eventos da Copa são transmitidos para mais de 3 bilhões de pessoas em 204 países, abrindo caminho para a venda e a exploração de imagens e publicidade em escala global. Uma influência que as grandes corporações e governos não querem abrir mão. Por isso, em conjunto, eles vão trabalhar para aprimorar a estrutura urbana com o objetivo de concentrar mais poder e capitais. Essa dinâmica integra um novo processo pós-colonial de unificação e uniformização urbana e mercadológica da economia mundial, voltada para o benefício dos ricos e mascarada sob o discurso de “legado dos megaeventos”. Como se tais obras fossem para o uso e o benefício da população como um todo. Pelo contrário, vemos o aumento de uma infraestrutura voltada para a circulação de automóveis e privatização do uso do espaço público ao invés de melhorias no transporte coletivo e nas políticas de mobilidade e acesso à cidade. Vemos a expansão de um mercado imobiliário “financeirizado” e especulativo ao invés da garantia de moradia digna e o fim da concentração fundiária urbana e rural. Além de importar um modelo de urbanização elitista para cidades já marcadas pela desigualdade social, a imposição dessas políticas demanda uma implementação policial e legal para lidar com a instabilidade e os conflitos inerentes a esse sistema, e conter a resistência política dos setores sociais mais afetados que vão combater a tirania por trás dos eventos.

Uma Breve História da Copa do Mundo

Para entender um aparato ou instituição, é preciso olhar para trás, para sua origem, para identificar a que fins ele foi criado. Em nossos esforços para entender a Copa do Mundo, voltamos a 1930, quando a primeira Copa foi realizada no Uruguai. Aquele pequeno país, que completou 100 anos de nacionalidade naquele ano, fez de tudo para sediar a Copa do Mundo e usá-la como ferramenta para consolidar uma identidade nacional.

Esses esforços incluíram a construção de novas estradas, estruturas urbanas e o maior estádio do mundo, além de pagar as despesas de viagem e hospedagem de todas as equipes que iriam competir – algo que nunca mais ocorreu a nenhum país-sede. Através de um esquema de fraudes e ameaças, o Uruguai foi premiado com o campeonato mundial e colheu a recompensa desejada de um renovado espírito nacionalista. Em três anos, o presidente deu um golpe de estado apoiado pela polícia, pelo exército e pelo partido político nacionalista.

Quatro anos depois, o bicampeonato aconteceu na Itália de Mussolini. Com saudações fascistas antes das partidas e a ameaça de morte pairando sobre toda a seleção italiana, o campeonato voltou a ser concedido ao país-sede. A comodidade de ser anfitriã e campeã em uma ditadura, quando o clamor nacionalista é sempre bem-vindo, pôde ser percebida em 1978, quando a Argentina sediou e conquistou a Copa no auge de uma sangrenta ditadura que “desapareceu” cerca de 30 mil pessoas. Também marcou a primeira vez que os eventos foram transmitidos daquele país para televisões de todo o mundo, destacando a ligação entre Copas do Mundo, ditaduras (seja com ou sem eleições), publicidade e melhorias na infraestrutura empresarial e de consumo. Com o tempo não foi mais necessário que países-sede comprassem suas vitórias para conseguir mobilizar sentimentos nacionalistas e proporcionar mais controle sobre os fluxos de riqueza e a criação de novos mercados para as elites locais e multinacionais.

Cartazes promovendo o boicote à Copa na Argentina, em meio à ditadura militar que matava e torturava milhares de pessoas.

Mais tarde, na década de 1980, tanto a Copa do Mundo quanto os Jogos Olímpicos passaram a servir de motores para a expansão do neoliberalismo global. Os eventos esportivos internacionais começaram a refletir a presença e a influência de corporações multinacionais que queriam que suas marcas fossem vistas por bilhões de pessoas e vendidas em todo o mundo.

Há também uma relação mais direta com a transformação urbana no discurso que justifica a construção de uma estrutura a ser deixada como “legado urbano”, como forma de ingressar na lista global de cidades capazes de atrair investimentos, turismo e publicidade em uma economia cada vez mais globalizada. Isso coincide com a diminuição do papel do Estado na gestão das demandas urbanas e o surgimento de um superávit financeiro internacional em busca de novos terrenos para se materializar como expansão comercial.

As políticas habitacionais perdem espaço para um mercado especulativo em que estradas, conjuntos arquitetônicos, shopping centers, portos e aeroportos são financiados com dinheiro público, mas apenas para que empreiteiras, imobiliárias e outros cartéis possam lucrar. Consequentemente, os aluguéis e o valor financeiro das propriedades disparam, forçando os moradores de bairros inteiros a se mudarem – se já não tiverem sido deslocados por despejos forçados, que podem assumir a forma de operações militares de boa-fé quando os moradores estão ocupando sem o devido status legal .

No Brasil, como na maioria dos países subdesenvolvidos ou em desenvolvimento, as políticas de gentrificação e renovação urbana assumem uma forma particularmente violenta porque atingem regiões e populações em situação precária abaixo dos padrões mínimos de vida encontrados nos países ricos. Esses bairros e favelas geralmente compreendem a maior parte das áreas suburbanas das grandes cidades, crescendo sem infraestrutura estatal ou planejamento urbano, pois as pessoas constroem suas casas da maneira que podem – sem recursos básicos, como serviços de água ou esgoto, e em solo vulnerável a chuvas, inundações , e deslizamentos de terra. As únicas instituições estatais sempre presentes são as forças policiais e militares.

Quando um megaevento se aproxima, essas favelas, prédios de ocupação autônoma ou terrenos improdutivos ocupados por movimentos rurais serão desmatados por todos os meios necessários. No Rio de Janeiro, as portas dos prédios a serem despejados foram pintadas com um número de identificação por funcionários da prefeitura, assim como os nazistas faziam com as vítimas do Holocausto; os moradores tiveram um prazo para deixar suas casas e não puderam recorrer aos meios legais para buscar uma indenização justa.

Foi assim que o Brasil violou sistematicamente as leis internacionais de direito à moradia, das quais é signatário, negando às comunidades afetadas a oportunidade de discutir os projetos que as desalojaram. Se um megaevento como a Copa do Mundo traz ganhos para um país, a questão é quem vai se beneficiar. Certamente não serão populações pobres e desprivilegiadas. João Havelange, ex-presidente brasileiro da FIFA (1974-1998), afirmou “vender um produto chamado futebol”, argumentando que “política e futebol não se misturam”. Sabemos que há muita política e poder por trás desse “produto”.

Um agente do estado escrevendo na parede de uma casa marcada para ser despejada na Favela Vila Autódromo, no Rio de Janeiro.

O PT de Lula e a Copa do Mundo

Um mega-evento não acontece no vazio ou sem um contexto amplo. Desde sua origem carrega as intenções de grupos corporativos e das máfias no comando da máquina estatal que vão se aprimorando a cada edição, seja para implementar novas políticas e mudanças urbanísticas que, sem um bom pretexto, jamais se tornariam prioridade, seja para acelerar ou otimizar um processo de globalização econômica ou tecnológica ou mesmo para renovar e integrar uma protocolo global de policiamento e militarização. O fato de o Brasil ter se candidatado para sediar os três maiores megaeventos do planeta em menos de uma década nos alerta para o que está por trás de tamanha ambição. O país recebeu a Copa do Mundo em 2014 e as Olimpíadas em 2016 e foi um forte candidato a sediar a Expo 2020, perdendo para Dubai: respectivamente o primeiro, o segundo e o terceiro maior evento do mundo.

Quais as intenções e os verdadeiros beneficiados desses empreendimentos? Qual o contexto de tamanha disputa por visibilidade mundial? A FIFA e o COI (Comitê Olímpico Internacional) há muito tempo perceberam que seus eventos tem o potencial de atrair para um país grande visibilidade e investimentos de toda parte do mundo. Portanto, têm a cobiça de governantes locais que querem fazer história dispondo de popularidade e de pretextos para usar massivos recursos públicos para “modernizar” cidades e mercados imobiliários e alavancar empreendimentos privados, enquanto necessidades urbanísticas populares, como educação, saúde e qualidade de vida em geral são negligenciados. O Brasil foi eleito em 2007 para sediar a Copa do Mundo de 2014. Era o primeiro ano do segundo mandato do PT, com Lula como presidente. E seu governo, desde o início, desenhou projeções a longo prazo para se estabelecer como potência mundial, tanto econômica quanto militar.

Em 2004 Lula enviou 1200 soldados para o Haiti numa intervenção com o objetivo de “estabilizar” o país em crise desde a queda do presidente Aristide. Foi a primeira vez que o Brasil liderou uma intervenção militar internacional e se deu através dos pedidos dos EUA e da França. Lula esperava com isso obter apoio dos dois países para se candidatar a uma cadeira permanente no Conselho de Segurança da ONU quando esse passasse por uma reforma. Até hoje não aconteceu reforma e o Brasil não conseguiu a cadeira, mas se manteve presente em 9 das 16 operações de manutenções da paz da ONU ao redor do mundo. Mas o governo petista foi com sua missão no Haiti até o limite e levou a seleção brasileira de futebol para uma partida com a seleção haitiana na capital Porto Príncipe, num amistoso conhecido como “Jogo da Paz”, que comemorava o “sucesso” da ocupação e marcava o início de uma campanha de desarmamento da população. O evento contou com um desfile dos jogadores brasileiros em tanques de guerra enquanto eram ovacionados pela multidão.

A ambição e a megalomania de Lula eram tanta, que não se importou em dizer que a Copa seria do capital privado e em seguida abrir os cofres público para realizar o torneio mais caro de todos os tempos, que custou mais, inclusive, que as últimas três Copas juntas: Japão e Coreia do Sul em 2002, Alemanha em 2006 e África do Sul em 2010 custaram 30 bilhões de dólares. A Copa no Brasil em 2014 custou mais de 40 bilhões. A reforma de sete grande estádios e a construção de pelo menos cinco novos que não serão usados após o torneio (Brasília, Cuiabá, Manaus, Natal e Recife) foi quase inteiramente feita com dinheiro público. No total, foram disponibilizados 12 estádios de alto padrão, sendo que a própria FIFA exigia somente oito. Os planos de Lula e do Partido dos Trabalhadores eram muito grandiosos para caber em apenas dois mandatos, por isso houveram ainda desdobramentos de seus projetos no segundo mandato de Dilma, o quarto com o PT na Presidência da República.

Dilma foi ministra nos oito anos em que Lula foi presidente: primeiro como ministra das Minas e Energia e depois na Casa Civil. Foi também a mãe do PAC (Programa de Aceleração do Crescimento) que retomou investimentos dos capitais da especulação urbana. Agora, vai precisar lidar com a tremenda dívida pública deixada como parte do verdadeiro legado da Copa do Mundo enquanto se prepara para as Olimpíadas já em 2016, também conquistadas durante a gestão de Lula. Só para a Copa no Brasil, a FIFA fechou mais de 900 contratos comerciais com empresas parceiras e patrocinadoras que tiveram monopólios na venda de produtos ligados ao torneio na região dos estádios e Fan Fests, além de alimentos, bebidas e serviços. Mesmo assim, o governo isentou a FIFA de pagar mais de 1 bilhão em impostos para realizar a Copa mais cara da história, mas também a mais lucrativa: 9 bilhões de reais foram arrecadados pela entidade que diz não ter fins lucrativos. Para os governantes ligados à realização dos megaeventos, o maior lucro é político e eleitoral. Para a FIFA, as empresas que ela mesma indica para planejar as obras de infraestrutura e para as empresas e empreiteiras que, não por acaso, são parte dos grupos que financiam campanhas eleitorais do Partido dos Trabalhadores, há um lucro financeiro de cifras bilionárias garantido pelo investimento de recursos públicos locais e pela força da repressão policial.

Ou seja, é importante perceber que o PT não esteve nem poderia estar sozinho em seus projetos. Ele foi o partido que mais recebeu doações privadas nos últimos anos, chegando a 79 milhões de reais em 2013, enquanto o PSDB, PMDB e PSB juntos conseguiram apenas 46 milhões de reais. Em 2014, ano da reeleição de Dilma Rousseff, o PT recebeu 47 milhões de reais das empreiteiras investigadas pela Lava Jato antes do primeiro turno, enquanto PMDB obteve 38 milhões e o PSDB 28 milhões. Havia, obviamente, uma simbiose de poderes econômicos e políticos entre o Partido dos Trabalhadores e aqueles que controlam grandes capitais no país – a despeito do que esbravejam a direita partidária e organizada ou a classe média conservadora quando acusam o partido da presidente de querer instaurar uma “ditadura soviética” no país.

O verdadeiro legado da Copa: um estado de emergência para manter a desigualdade social.

Os maiores resultados e o real legado da Copa já foram contabilizados muito antes do primeiro jogo: 250 mil pessoas desalojadas para realização de obras de infraestrutura sem serem realocadas devidamente; inúmeras obras que já estão subutilizadas depois do evento à custos bilionários de mais corrupção e desvios de verbas públicas que podiam ir para outras áreas precarizadas, como saúde, moradia e educação; ao menos dez operários morreram nas obras e suas famílias seguem sem as devidas indenizações. Outras das consequências tomaram a cena durante as semanas antes e durante o evento, e provavelmente vão perdurar por muito tempo: como trabalhadoras ambulantes impedidas de trabalhar durante a Copa nas regiões próximas das zonas de exclusão da FIFA tiveram suas licenças canceladas indefinidamente, exploração sexual de menores, e a repressão intensa a quem se organiza e protesta para denunciar tudo isso – afinal, nenhuma dessas medidas poderiam ser aplicadas sem a força bruta policial. Com as revoltantes condições impostas pela FIFA, vimos o Estado brasileiro testando e implementando novas políticas e aparatos para controlar o inimigo interno, o questionamento e o protesto. Momentos como esse, um megaevento mundial que abala a economia e as paixões forjadas no espetáculo, no ufanismo e no nacionalismo de um país inteiro, servem de pretexto e experimento para a articulação de uma nova ordem de controle estatal e corporativo dentro de um Estado de Exceção permanente.

“Não vai ter Copa do Mundo!”

A Lei Geral da Copa (n. 12.663/2012) firmada em 2012 com o Governo Federal e a FIFA, uma instituição privada, foi a maior ofensiva legal contra o povo brasileiro com o objetivo de garantir que os “padrões FIFA” de organização de eventos viabilizassem a realização da Copa das Confederações 2013 e a Copa do Mundo 2014. Essa lei custou ao povo a suspensão de direitos e normas constitucionais que já são tão precárias para a maioria. Um tribunal de plantão foi armado para julgar em menos de 48 horas greves ocorridas durante a Copa. Enquanto trabalhadores perdiam o direito de denunciar suas condições e lutar por melhorias, a FIFA podia evadir riquezas e não pagar impostos por fazer seus negócios dentro do território brasileiro. Uma Secretaria Extraordinária de Segurança Pública para Grandes Eventos foi criada ferindo princípios federativos e democráticos. A privatização do espaço público também foi institucionalizada com a determinação do uso de “ruas exclusivas” para a FIFA e seus parceiros, onde até mesmo o comércio local seria obrigado a manter as portas fechadas dentro do perímetro de exclusão em torno dos estádios.

A autorregulação, também inconstitucional, permitiu que a própria FIFA atuasse no mercado sem qualquer intervenção estatal, estipulando o preço que quisesse para ingressos, suspendendo quase totalmente o direito à meia-entrada e qualquer aplicação do Código de Defesa do Consumidor. Além disso, foi permitido o trabalho voluntário de mais de 20 mil pessoas durante a Copa, que se sujeitaram a trabalhar sem a proteção de direitos trabalhistas básicos e fora das normas constitucionais, em situação análoga à escravidão. Sendo que o trabalho voluntário só é previsto por lei para instituições não-lucrativas que tenham fins “cívicos, culturais, educativos, recreativos ou de assistência social” – o que sabemos não ser nenhum dos casos da FIFA. Também foi permitido o uso do trabalho infantil em atividades ligadas ao jogos, como a de gandula, o que é proibido no Brasil desde 2004.

Polícia de choque no Brasil, junho de 2013.

Policiamento Global

Os megaeventos mundiais que forjam paixões no calor do espetáculo oferecem a oportunidade de experimentar levar o controle estatal e corporativo a um estado de exceção permanente, quando as leis e a Constituição podem ser quebradas em nome de mais segurança, mesmo quando violam os direitos dos cidadãos que dizem proteger.

O Estado montou um amplo aparato jurídico para criminalizar os movimentos sociais pautado em definições inteiramente subjetivas. Os movimentos sociais foram caracterizados como “forças opostas”; os protestos foram definidos como algo que “causaria pânico” ou “provocaria ou instigaria ações radicais e violentas”. Contra estes, o governo autorizou a atuação das Forças Armadas. O estado também estabeleceu tribunais especiais para lidar com casos relacionados à Copa do Mundo e aprovou novos regulamentos que permitem que os tribunais respondam a ações de protesto, como bloqueios de estradas, com leis antiterrorismo especialmente severas. Além disso, o governo brasileiro gastou bilhões de dólares em tanques com canhões de água, drones e outros robôs controlados à distância, e armas “menos letais” – ainda capazes de incapacitar e matar seus alvos – para conter a chamada “agitação civil” e proteger contra o “terrorismo”. Enquanto mísseis riscavam o céu em Gaza, depois que tiros e bombas israelenses mataram duas mil pessoas durante a ofensiva em território palestino em 2014, drones vendidos por Israel monitoravam os estádios da Copa do Mundo no Brasil.

Em 13 de julho, 1.500 policiais cercaram um protesto próximo ao Estádio do Maracanã, no Rio de Janeiro, atacando-o com bombas e balas de borracha; prenderam 30 manifestantes. Tanques cercaram as favelas. Caminhões do Exército estavam estacionados próximos aos estádios e às Fan Fests da FIFA, proporcionando um clima de repressão ostensiva. É claro que o Estado brasileiro vê seus pobres e movimentos sociais como seus próprios palestinos ou haitianos; as favelas são sua Faixa de Gaza ou Porto Príncipe.

No entanto, pode-se ver cartazes de apoio à resistência palestina exibidos juntamente com cartazes condenando a Copa do Mundo de 2014. Isso comunicou que a solidariedade, assim como a repressão, é “tão global quanto o capital”.

Armas fabricadas no Brasil foram usadas para reprimir a revolta do Parque Gezi na Turquia em 2013.

Durante a revolta do Parque Gezi, na Turquia, vimos imagens de pessoas exibindo cartuchos de gás lacrimogêneo e balas de borracha marcadas com a bandeira brasileira. Especulamos que fossem fabricados pela empresa Condor, uma das maiores produtoras mundiais de armas menos letais, localizada no estado do Rio de Janeiro. Em 2014, vimos 34 tanques alemães empregados na segurança da Copa do Mundo. Esses tanques blindados, com artilharia capaz de abater aeronaves, custaram ao Brasil 40 milhões de dólares. Enquanto isso, a empresa austríaca de armas de fogo Glock chegou a um acordo exclusivo para fornecer à polícia do Rio de Janeiro armas de fogo para as Olimpíadas de 2016. Segundo relatos de jornais,2a própria empresa financiou uma viagem da polícia brasileira a Viena. A FIFA atuou como assessor militar das Forças Armadas brasileiras, determinando quais equipamentos e armas deveriam ser adquiridos; foi a FIFA quem recomendou a compra de viaturas armadas.

A International Security and Defense Systems (ISDS) também forneceu equipamentos para vigilância e defesa durante as Olimpíadas. A ISDS é uma empresa israelense estabelecida em 1982; tem uma vasta experiência em massacrar e reprimir palestinos. Vários relatórios e documentos também apontam para o envolvimento do ISDS nos golpes e ditaduras na Guatemala, Honduras e El Salvador. Sua atuação no Brasil nas Olimpíadas de 2016 serviu como vitrine para seus produtos e serviços, além de um campo de testes de novas tecnologias e procedimentos de segurança em torno de megaeventos. Nas palavras do vice-presidente da ISDS, as Olimpíadas no Brasil seriam “uma incubadora de tecnologias israelenses nessas áreas”.

A utilização da Lei de Segurança Nacional (criada pela ditadura passada), a possível introdução de leis antiterrorismo, o Decreto de Lei e Ordem e a intensificação de outras leis mostram como os megaeventos servem para fortalecer as técnicas de controle do Estado. Ao impor essas regras, as corporações podem lucrar cada vez mais livremente. Tudo isso pode ser entendido como mais uma ofensiva do projeto neoliberal, centrado em uma grande cidade, mas com implicações globais. Serve como um meio de administrar a produção, o consumo e a circulação de bens e trabalho necessários para sua realização.

Ao herdar o projeto de Lula, o governo de Dilma Rousseff preparou o terreno para um policiamento militarizado e integrado que garantiria o sucesso da Copa. Os Centros Integrados de Comando e Controle (CICC), por exemplo, supervisionam 1.700 policiais: federais, militares, civis e rodoviários, além de equipes de trânsito e resgate, atuando em quatorze núcleos espalhados pelas doze cidades-sede dos jogos. O Ministério da Justiça de Dilma investiu cerca de US$ 100 milhões em tecnologia para operar esses centros; eles monitoram aeroportos, estágios, estações de metrô e outros pontos estratégicos em tempo real, e enviam reforços e apoios necessários a cada oito minutos. O plano de ação define uma resposta específica para cada tipo de ação; a polícia militar responde ao black bloc, a polícia federal responde a ocorrências no aeroporto, e assim por diante. O treinamento de habilidades para as forças armadas foi fornecido pelo FBI.

A tecnologia policial e militar criada para este evento permanecerá como legado permanente desses megaeventos. O Brasil, já militarizado e permeado por conflitos intermináveis, tornou-se agora ainda mais sofisticado em sua capacidade de conduzir a guerra interna. O intercâmbio de segurança entre os países tem sido fundamental para solidificar o papel do Brasil na economia global, trazendo treinamento, equipamentos e estratégias das forças policiais e militares mais violentas do mundo. Além da polícia e dos militares israelenses, eles incluíam a polícia francesa, o FBI e também empresas privadas como a Blackwater. A parceria Brasil-Israel continua trabalhando em conjunto contra o “terrorismo” e o narcotráfico. Acima de tudo, porém, eles se concentram no principal inimigo das economias e governos globalizados: seu próprio povo.

E a Copa Segue

Sim, porque é vergonhoso que os manifestantes contra a farra da FIFA sejam condenados, quando hoje grande parte dos próprios organizadores da Copa estão presos! Quando o ex-governador que nos reprimiu com selvageria está preso! Quando o país é levado à beira da fome e da devastação social pelos mesmos vampiros que tremeram de ódio quando a juventude tomou as ruas! Quando a Rede Globo, que nos perseguiu, ainda não explicou as suas negociatas em torno dos megaeventos!

Nota dos 23 ativistas condenados por conta das manifestações de 2013/2014

Esperávamos atingir um pico de atividade e mobilização durante a Copa do Mundo de 2014 comparável ao que havíamos alcançado em 2013. Mas descobrimos que as expectativas não contam muito no decorrer da história. Embora muitos gritassem “Não vai ter Copa!” e se organizassem para tomar  as ruas com as pessoas por ela impactadas, a Copa ocorreu sem grandes transtornos para os beneficiados.

Sabemos que as leis, os direitos legais e a constituição só atendem às nossas necessidades quando isso produz ganhos ainda maiores para o governo e os patrões. Entendemos que a soberania nacional como gestão das leis e da segurança de um país concentra nas mãos dos poderosos o monopólio da tomada de decisões que afeta a todos nós. Além disso, ficamos sabendo que até esse teatro democrático que promete direitos humanos e direitos trabalhistas aos precários é uma fraude: quase tudo que dizem ser inalienável está sujeito a suspensão arbitrária a qualquer momento. E com essa suspensão entramos nos estados de emergência e guerra preventiva, muitas vezes regidos por instituições transnacionais nada democráticas – como a FIFA, cujos dirigentes não foram eleitos.

Não são apenas os presos por participar de um protesto ou supostamente organizar manifestações; toda a população sofre as consequências de um estado de exceção cada vez mais permanente. As populações negras e periféricas, assim como pobres, rurais e sem-teto, sentirão o peso dessas mudanças.

A FIFA saiu do Brasil com o maior lucro de sua história. Em 2018, seguiu para a Rússia, um dos países mais repressores da atualidade em termos de liberdade de expressão e direitos civis. Em 2022, a Copa foi para o Catar, conhecido por utilizar a mão de obra escrava de imigrantes;  Desde a última década, quando a Copa do Mundo de 2002 aconteceu no Japão e na Coreia do Sul, vimos a FIFA voltar sua atenção para os países emergentes, democracias recentes (se é que são democracias) caracterizadas por profunda corrupção em seus governos e dispostas a se curvar a pressões externas para aprovar leis de emergência.

Se os meios legais e constitucionais de que dispomos para nos defendermos de nossos próprios políticos já são tão ineficientes, nosso poder de defesa contra instituições que sequer estão em nosso território é ainda mais tênue. Nesta situação, assim como as ocupações de florestas, parques e territórios para impedir a construção de aeroportos, barragens, complexos portuários, mineração, apenas a organização de base e radical pode oferecer alguma esperança na luta contra megaeventos e a constante reestruturação capitalista.

CONTRA A COPA E SEU MUNDO!

Protesto no Rio de Janeiro em 13 de julho de 2014.

Para saber mais:

LUTANDO NO BRASIL – Sobre grandes mobilizações e o que fazer quando a fumaça se dissipa: Em português | Em inglês

LUTANDO NO BRASIL – Parte II: RECIFE, SÃO ROQUE E RIO DE JANEIRO: Em português

Com Vandalismo – Documentário, Coletivo Nigéria, Fortaleza, 2013

NÃO EXISTE OPOSIÇÃO INSTITUCIONAL AO FASCISMO: Análises sobre a escalada da violência da extrema-direita no Brasil

Na noite de 12 de dezembro, a violência da base bolsonarista de rua avançou mais um passo em sua radicalização. Uma Delegacia e a sede da Polícia Federal foram atacadas, cinco ônibus e três carros foram incendiados em Brasília como resposta à prisão de um indígena pastor evangélico e bolsonarista acusado de organizar os atos golpistas, praticar ameaças e promover ataques ao Estado Democrático de Direito. O homem que se intitula “líder indígena” mesmo sem o reconhecimento dos povos da sua etnia, teve a prisão decretada pelo ministro do Supremo Tribunal Federal, Alexandre de Moraes.
Quando esses grupos neofascistas começam a adotar táticas de luta radicalizada sem qualquer oposição das polícias, é preciso refletir sobre o futuro dos conflitos políticos por vir. E repensar – mais uma vez – o papel da esquerda radical diante dos avanços do fascismo de rua.

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No início, a maioria dos atos dos autoproclamados “cidadãos de bem” contestando o resultado das eleições para presidente foram diurnos e compostos por homens, mulheres, idosos e, muitas vezes, crianças para dar um ar de “família” e justificar a falta de ação violenta da polícia que ataca protestos e bloqueios de movimentos de esquerda com ou sem crianças. Já nessa época, alertamos sobre o risco de atribuir falsa legitimidade a certas ações ao tratar como “insurreição popular” os atos bolsonaristas por intervenção militar e anulação das eleições patrocinados por empresários do agronegócio e das indústrias.

Agora, quando ações violentas como linchamentos e até sequestros e torturas se tornam parte do seu repertório de ação, um novo perfil majoritariamente masculino, radicalizado, noturno e disposto ao confronto aberto está se consolidando, segue sem oposição dos movimentos de esquerda e com o apoio quase integral das forças de segurança. É preciso compreender que o fascismo sem oposição nas ruas crescerá como um motim cada vez mais violento.

A esquerda petista, a mídia e alguns juristas acreditam que basta chamar o que está acontecendo de terrorismo e tratar com prisões e penas duras seus participantes. Tal iniciativa é parte do processo pacificador que professa a fé nas leis e nas instituições que nada fizeram até agora para barrar de fato tais ações e deixaram as ruas livres para o fascismo. Como resultado, a imagem de ônibus em chamas, antes o símbolo da luta contra a repressão do estado e a exploração capitalista, vista nos atos contra aumento da tarifa, contra a Copa da FIFA ou contra ações da polícia nas periferias, agora está prestes a se tornar o retrato do “terrorismo de direita”. E o papel de “defensor da lei e da ordem” passa a ser adotado pela esquerda legalista e institucional que em breve estará sob a tutela de um novo governo petista.

De fato, os confrontos do dia 12 mostram que essa direita está disposta a “não deixar ninguém” pra trás e lutar pela libertação de um dos seus integrantes. A Secretaria de Segurança do DF (governo alinhado ao Bolsonaro) alegou não ter efetuado nenhuma prisão para assim “reduzir danos e evitar uma escalada ainda maior nos ânimos”, atestando a eficiência da organização do protesto radicalizado. Dá a impressão até de que seu sucesso confirmaria a tese insurrecional de que “a força de uma insurreição é social, não militar“. Mas é bom lembrar que a motivação e os interesses dessa base radicalizada do bolsonarismo não são populares, isto é, originada dos debaixo: são os mesmos do presidente derrotado, sua família e sua rede de políticos eleitos para cargos no legislativo; além, é claro, do “partido militar” informal responsável pela eleição do representante do seu projeto de poder em 2018.

Uma imagem do futuro?

Assim sendo, não causa surpresa o fato das polícias militares e federais não efetuarem nenhuma prisão na noite de ataques pela libertação do pastor indígena bolsonarista. O que permite ao filho do milionário praticar feminicídio, dirigir bêbado e matar, ou ao aliado de político encomendar a morte de inimigos e seguir a vida sem importurnação é a mesma lógica que permite grupos fascistas cometerem atos de violência contra pessoas ou de destruição da propriedade sem a menor consequência: a justiça é burguesa e a polícia é sua empregada. Ambos têm lado, partido e ideologia. O fascismo está inscrito na forma-Estado, por isso nenhum governo suprime totalmente o fascismo, pois, quando necessário, recorre a ele para garantir seus privilégios e de sua classe dirigente.

Qualquer um de nós de grupos pobres, pretos, periféricos ou mulheres que praticarem tais atos colocarão suas vidas em risco. Pois serão imediatamente alvo de violência letal e prisões arbitrárias, provas plantadas e inquéritos forjados, como Rafael Braga ou os 23 do Rio de Janeiro, presos nos protestos de 2013/14. Naquela época, após uma década de gestão petista, os protestos de 2013 apresentaram os black blocs e táticas populares combativas contra a repressão policial e intelectuais de esquerda não pouparam críticas desonestas. Marilena Chauí, por exemplo, em fala para cadetes da PM do Rio, disse que anarquistas e adeptos da tácita black bloc “agiam com inspiração fascista”.

Dessa vez, o futuro governo de Lula e Alckmin, herdeiro das leis antiterrorismo de Dilma para criminalizar movimentos sociais, já se inicia com promessa de tolerância zero para protestos de rua – o que sempre vai bater mais forte nos movimentos populares e anistiar os fascistas aliados da polícia e do empresariado. O novo pacto de classes será ainda mais à direita do que aquele firmado há exatos 20 anos. Quando Flávio Dino, futuro ministro da Justiça de Lula, afirma que protestos com vandalismo serão tratados com rigor e como sinônimo de terrorismo, e um ex-ministro petista, Gilberto Carvalho, aponta que os ataques bolsonaristas são “o retorno dos black blocs”, podemos ter certeza de que qualquer ruptura nesse novo consenso petista será esmagado pela polícia e pela lei. Mas, por agora é conveniente deixar os fascistas na rua e retroalimentar a posição santificada da esquerda institucional, da fé nas estruturas de poder e gestão.

Mesmo que o STF detone uma diligencia policial para prender uma centena de apoiadores de protestos golpistas, isso não passa do que parece: um espetáculo na ordem. Passada a turbulência da transição, a pacificação já estará consolidada. Ele junta o aparato jurídico e policial à chantagem do “antes era pior” e o fascismo pode voltar para produzir sua fórmula mágica da paz com algumas migalhas de políticas públicas para os miseráveis.

O avanço eleitoral e como força social mobilizada da extrema-direita no Brasil, que sob o nome bolsonarismo e sob a liderança de militares congrega desde profissionais da violência (policiais e similares legais e ilegais) até amplos setores das classes médias e altas, coloca de maneira inequívoca quais os termos da atual falência funcional das democracias atuais: ou uma insurreição abole as regras do jogo para a construção de algo novo ou morreremos de inanição sob o julgo do aparato securitário do Estado e com medo perene de que a violência fascista irá nos atingir.


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“Chama a Polícia!” – Sobre a criminalização da ação direta e a legitimação das instituições.

A ocorrência de atos golpistas desde as eleições, com barricadas, bloqueios, muitas vezes descambando para a violência, levou muita gente e organizações de esquerda a pedir pela ação da polícia e da Justiça. Para muitas pessoas, Alexandre de Moraes virou um símbolo da resistência ao fascismo bolsonarista. Mas será que não ficou claro ainda que a polícia que prontamente dispersa e reprime manifestações de esquerda, vai relutar e procrastinar na hora de combater fascistas? Que um judiciário que agiu rapidamente para prender Lula, mesmo sem provas concretas, de forma a impedir que concorresse nas eleições de 2018 é o mesmo que permite que Jair Bolsonaro continue impune até hoje, apesar de todos crimes que claramente cometeu? Ainda não percebemos que legitimar e fortalecer essas instituições é um erro, pois elas sempre baterão mais forte em nós?

Para abordar essas questões, ajudamos (modestamente) o coletivo Antimidia a produzir um vídeo sobre polícia e a criminalização dos recentes protestos golpistas e passividade da esquerda hegemônica.

Historicamente, movimentos sociais de esquerda radical sempre criticaram as instituições que sustentam o regime que explora e oprime os povos deste território. Surgiram movimentos pedindo desmilitarização e mesmo o fim de polícias, denunciando que tribunais e prisões foram criados e sempre serviram aos interesses da elite política e financeira.

Mas durante o governo Jair Bolsonaro esse debate foi deixado um pouco de lago. Com as sucessivas ameaças fascistas às chamadas “instituições democráticas”, golpismo e autoritarismo, boa parte da esquerda parou de criticar as instituições repressivas do Estado e passou a defendê-las com unhas e dentes.

Se por um lado, a aliança de Lula com seus antigos opositores, levou a esquerda institucional e toda a política partidária ainda mais ao centro e à direita, do outro,  ativistas, movimentos sociais e mídias de esquerda reproduzem e fortalecem um discurso reacionário que reforça a legitimidade do Estado.

Quem até então pedia por repressão e respeito às leis eram as forças reacionárias e elites, que se beneficiam da ordem atual das coisas.
É preciso deixar claro que o aquilo que combatemos é o projeto fascista, que busca a manutenção e avanço de um projeto conservador e autoritário, que extermina e explora os povos deste território para o benefício de uma elite branca, rica e patriarcal.

Alguém nos chamou?

Barricadas, bloqueios, destruição de propriedade privada e confronto com a  polícia não são um problema em si. São táticas valiosas, historicamente usadas por movimentos sociais para resistir aos avanços do capital e do Estado e para lutar por uma vida digna. Não podemos negar que a forma como os fascistas utilizam essas táticas é diferente. Afinal, são fascistas. Não se importam com a vida humana e não hesitam em bloquear ambulâncias e pessoas que buscam atendimento médico ou outros serviços essenciais. E, ao contrário dos movimentos sociais, que buscam atacar estruturas de opressão, os apoiadores de Bolsonaro atacam violentamente qualquer pessoa que não demonstre apoio explícito a seu projeto autoritário e conservador. Chegando ao ponto de torturar, linchar e, em casos extremos, matar pessoas que discordam de sua visão política.

Dar carta branca para a polícia reprimir bloqueios, barricadas e outras formas de ação direta, mesmo que barre os movimentos fascistas é reforçar e legitimar instrumentos que baterão ainda mais forte sobre nós. Por mais duras que sejam as leis, a polícia e os tribunais sempre hesitarão e serão mais comedidas na hora de reprimir e punir fascistas do que ao reprimir as pessoas pobres, pretas, indígenas, periféricas, dissidentes de gênero. Basta olhar para exemplos de como a polícia reluta e têm dificuldade para remover os bloqueios, levando semanas para cumprir ordens judiciais. Em como o judiciário, mesmo quando tenta impor limites a Bolsonaro, ainda não agiu em relação aos diversos crimes cometidos por ele.

É bom lembrar que Alexandre de Moraes, hoje ministro do STF, símbolo das instituições democráticas frente ao fascismo de Bolsonaro, foi secretário de segurança pública durante o governo de Geraldo Alckmin no estado de São Paulo, e sua gestão foi marcada por brutal repressão a movimentos sociais e protestos em 2013 e 2014. Ele nunca esteve do nosso lado.

Quem são esses seus amigos?

Pior que uma ilusão, é uma armadilha entregarmos nossa segurança e nosso futuro a instituições que foram criadas para nos controlar e reprimir, enquanto protegem aqueles que nos massacram. A polícia pode até desfazer momentaneamente os bloqueios, punir alguns dos empresários que financiam a tentativa de golpe de Estado. Mas ela nunca vai acabar com o movimento fascista, pois já deixou bem claro que é parte dele. É óbvio que não devemos ficar imóveis, assistindo o fascismo ocupar as ruas e ameaçar nossa existência. Precisamos criar e fortalecer nossas próprias organizações para garantir nossa segurança. Pois ninguém fará isso por nós.

O bolsonarismo deu vida nova à violência de extrema-direita contra pessoas e serviços essenciais, algo que não víamos de forma organizada desde o período da Ditadura Militar. Nos últimos cinco anos a esquerda tem deixado para as instituições resolverem o problema, mas ele só se tornou mais violento e radical. Entregar nosso poder de ação nas mãos de políticos profissionais e tribunais é recuar. É permitir que a direita avance nas ruas e nas instituições. É urgente reocupar as ruas. Defender nossos territórios. E colocar as forças reacionárias na defensiva.

Nossa única opção.

Esquerda Eleitoral, Ações Diretas Fascistas e Resistência Antifascista As Eleições Brasileiras de 2022

As eleições de 2022 no Brasil colocaram em confronto o nacionalismo autoritário de Jair Bolsonaro ao esquerdismo institucional, Luiz Inácio Lula da Silva do PT. Cada uma dessas estratégias rivais de governança se apresentava como a única salvação possível para a democracia. Toda a campanha foi marcada por atos de violência fascista, e não apenas de eleitores: nas semanas finais, parlamentares aliados a Bolsonaro trocaram tiros com policiais e perseguiram adversários nas ruas com armas na mão.

Para dar um panorama sobre o fosso em que estamos e os possíveis desdobramentos futuros, apresentamos essa breve análise escrita em conjunto com camaradas do coletivo CrimethInc. sobre os protestos ao fim das eleições de 2022.

As eleições de 2022 colocaram em confronto o nacionalismo autoritário de Jair Bolsonaro ao esquerdismo institucional, Luiz Inácio Lula da Silva do PT. Cada uma dessas estratégias rivais de governança se apresentava como a única salvação possível para a democracia. Toda a campanha foi marcada por atos de violência fascista, e não apenas de eleitores: nas semanas finais, parlamentares aliados a Bolsonaro trocaram tiros com policiais e perseguiram adversários nas ruas com armas na mão.

Dia 30 de outubro, aconteceu o segundo turno da eleição para determinar o presidente e os governadores, e Bolsonaro perdeu para o ex-presidente Lula. Mas Lula venceu por apenas 1,8%, preparando o terreno para o conflito que continuará dividindo o Brasil, assim como as eleições de 2020 nos Estados Unidos não marcaram o fim da polarização política.

Após o resultado ser divulgado na noite de domingo, protestos de apoiadores do atual presidente de extrema-direita começaram pelas ruas nas cidades e bloqueando estradas do país. A esquerda institucional e seus movimentos de base se mantiveram recuados e, mais uma vez, coube a antifascistas, torcidas organizadas e moradores das periferias partir para a ação e começar ações de desbloqueio das vias. Essa pode ser uma amostra dos impasses e conflitos que veremos nos próximos anos de governo petista e de reorganização da extrema-direita.

Um problema global.

Não se Derrotada o Fascismo nas Urnas

As primeiras horas após a eleição deixaram claro que, longe de ser uma “derrota do fascismo”, o resultado nas urnas mostra que o projeto bolsonarista, abertamente autoritário, misógino, racista e que trabalhou para agravar a pandemia que matou mais de 700 mil pessoas, ainda tem apoio de metade do eleitorado – quase 60 milhões de pessoas. Parte considerável desse grupo está disposta a lutar por ele, nunca parando de se mobilizar e ocupar as ruas. Além disso, os aliados de Bolsonaro que conquistaram o governo de 13 estados e uma grande bancada nos parlamento darão continuidade à sua agenda criada pelos militares que o colocaram no poder junto de setores conservadores da burguesia, do cristianismo fundamentalista e dentro das forças de segurança.

Naquela noite, momentos após o resultado da eleição ser divulgado, um bolsonarista armado matou duas pessoas e baleou várias de uma mesma família que celebrava a vitória de Lula em Belo Horizonte. Na madrugada de segunda-feira, já haviam bloqueios em 221 pontos em estradas na metade dos estados do país, e em dois dias, 26 dos 27 estados contavam com estradas bloqueadas por bolsonaristas, chegando a um ápice de quase 900 pontos com bloqueios ou manifestações pelo país.

Os bloqueios no Brasil não surgiram do nada. Eles atendem à uma mobilização e radicalização reproduzida pelo presidente e seus apoiadores desde a vitória em 2018. Nos últimos anos, houveram outras paralizações os bloqueios de caminhões desempenharam um papel significativo na agitação da extrema-direita nas Américas. No Chile, caminhoneiros de direita organizaram bloqueios nas rodovias, colocando-os como uma resposta ao ativismo indígena mapuche. No México, os trabalhadores dos transportes são frequentemente usados ​​como tropas de choque para exercer pressão em nome do PRI (Partido Revolucionário Institucional). No inverno passado, no Canadá, caminhoneiros de extrema-direita montaram bloqueios em protesto contra as leis obrigando a vacinação. Provavelmente veremos mais bloqueios de caminhões no futuro.

Bolsonaro repetiu diversas vezes que temia ter o mesmo “destino que Jeanine Añez”, que assumiu o governo da Bolívia após um golpe de estado promovido pelas forças policiais enquanto os militares apenas observavam, e acabou condenada à prisão. O fato de que a direção da PRF decidiu atrasar eleitores no domingo e apoiar ativamente os bloqueios dos bolsonarista mostra que o caso boliviano serviu de inspiração para seus planos.

Derrotado, Bolsonaro levou quase 48 horas para se pronunciar. Em seu discurso de 2 minutos, não reconheceu abertamente o resultado, criticou o movimento que bloqueia estradas e recomendou que fizessem outras forma de “protesto pacífico”, mas fez o típico discurso ambíguo da extrema-direita que mantém inflamadas as suas bases militantes ao mesmo tempo em que tenta evitar implicações legais .

Longe de ser uma “derrota do fascismo”, o resultado nas urnas mostra que o projeto bolsonarista, abertamente autoritário, misógino, racista e que trabalhou para agravar a pandemia que matou mais de 700 mil pessoas, ainda tem apoio de metade do eleitorado – quase 60 milhões de pessoas. Parte considerável desse grupo está disposta a lutar por ele, nunca parando de se mobilizar e ocupar as ruas. Além disso, os aliados de Bolsonaro conquistaram a maioria dos cargos nos estados e nos parlamentos e darão continuidade à sua agenda criada pelos militares que o colocaram no poder junto de setores conservadores da burguesia, do cristianismo fundamentalista e dentro das forças de segurança.

Para além dos aliados de Bolsonaro que se perpetuarão no poder, é importante lembrar que seus milhões de eleitores e, especialmente, sua base radicalizada não vão mudar de ideia de um dia para o outro. Como os recentes atos e bloqueios mostram, eles estarão dispostos a levar suas ideias adiante mesmo sem Bolsonaro. O silêncio do presidente após a derrota trouxe à superfície uma articulação radical que se articulou sem um chamado central do líder, de seus filhos ou apoiadores diretos e figuras públicas conhecidas. Os chamados se deram nos grupos de Whatsapp e Telegram responsáveis por criar e difundir notícias falsas, discursos de ódio e conspiracionistas.

Diferente das greves de caminhoneiros durante o governo Temer e as de 2018, essa não é uma paralisação da categoria como um todo, mas de alguns setores patronais e relativamente poucos militantes radicalizados. E não é preciso muito para fechar as estradas. Apenas um veículo e algumas pessoas.

Manifestantes clamando por um golpe de estado militar.

Durante o domingo de eleição a PRF (Polícia Rodoviária Federal) fez uma megaoperação ilegal de blitz e apreensões de veículos que impediram milhares de eleitores de chegar nos postos de votação, especialmente nas regiões onde Lula era mais popular. No entanto, quando começaram as ações de apoiadores de bolsonaro revoltados com sua derrota, a PRF nada fez para impedir ou acabar com os bloqueios bolsonaristas.

No dia 1 de novembro, o acesso ao aeroporto internacional de Guarulhos, o principal da cidade de São Paulo, contou com ajuda direta de agentes da PRF que foram filmados rompendo as grades de acesso ao aeroporto.

Em algumas cidades, como no estado de Santa Catarina, manifestantes adotaram um tom abertamente nazi-fascista, com saudações nazistas e frases racistas.

Ao longo de quatro anos de resistência popular, incluindo a revolta por George Floyd, Donald Trump manteve o apoio inabalável da polícia e do Departamento de Segurança Interna (Department of Homeland Security), mas perdeuo apoio de grande parte da hierarquia militar dos EUA. Em contrapartida, Bolsonaro ainda pode contar com a fidelidade de parte considerável dos militares brasileiros. Após o pronunciamento de Bolsonaro em 2 de novembro, muitos dos manifestantes pró-Bolsonaro dirigiram suas demandas aos militares, exigindo “intervenção federal” – em outras palavras, um golpe militar. Nos Estados Unidos de Trump e no Brasil de Bolsonaro, as eleições não terminam com o anúncio dos resultados nas urnas; eles são, em última análise, determinados pelo equilíbrio de poder dentro do Estado.

Essa “base bolsonarista sem Bolsonaro” pode estar agora à deriva e esperando um novo líder. E sua primeira aposta está sendo nos militares que, ao longo de 4 anos, infiltraram mais de 6 mil oficiais no governo, sendo 2.600 indicados diretamente para cargos de confiança.

Essa foi a recompensa paga por Bolsonaro por ter sido colocado como representante desse “partido militar” informal que é anterior e pode sobreviver ao fim do bolsonarismo. Outro representante dessa classe é o recém-eleito governador do estado de São Paulo, Tarcísio de Freitas. O mais populoso estado do país, com maior orçamento público, estará agora sob a gestão de um ex-militar presente nas operações de ocupação do Haiti, comandadas pelos governos Lula-Dilma nas oeprações da MINUSTAH, da ONU. Agentes das forças de segurança ganharam eleições para muitos cargos no congresso, avançando uma “politização das polícias”, usando, inclusive, candidaturas coletivas aos moldes daquelas criadas por ativistas que vieram de movimentos de rua dispostos a “renovar a democracia”.

Ações autônomas e antifascistas

Durante pandemia torcidas organizadas, antifascistas e anarquistas e moradores de favelas organizaram redes de apoio mútuo e, ao mesmo tempo, promoveram atos para demandar direito à moradia, saúde, suprimentos e vacinas. Além disso, as torcidas de esquerda foram as primeiras a convocar contramanifestações para barrar carreatas e ações de apoiadores do presidente em São Paulo, Porto Alegre e Belo Horizonte.

Por outro lado, a esquerda tornou o “fique em casa” como um mandamento para sua prática política e preferiu recuar e desmobilizar as ações de rua com receio de que isso desse “pretextos para mais repressão”, alegando que era “isso o que Bolsonaro queria” e precisava para um golpe. Antes das eleições, a estratégia era esperar o governo se queimar para eleger Lula mais uma vez – o único capaz de fazer oposição ao projeto bolsonarista. No entanto, ficou claro que essa política recuada e passiva é uma estratégia permanente, pois mesmo com Lula eleito e o presidente acuado, a esquerda institucional e os movimento sob a influência petista se negaram a convocar atos e contramanifestações. Por exemplo, quando o MSTS (Movimento dos Trabalhadores Sem Teto) convocou seus militantes a abrir as estradas, o MST (Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra) contestou, argumentando que a desobstrução das rodovias era papel do Estado.

Vale ressaltar aqui que até o New York Times, um dos mais veementes defensores da passividade nos Estados Unidos antes das eleições de 2020, apontou que o levante de George Floyd de fato contribuiu para mobilizar uma parcela significativa dos eleitores que permitiram a Joe Biden vencer as eleições de 2020. A verdadeira razão pela qual o editorial do New York Times, a liderança do Partido dos Trabalhadores e outras autoridades liberais e de esquerda desencorajam as mobilizações de rua não é porque acreditam que isso lhes custará eleições, mas porque desejam manter o controle total da situação em todos os níveis da sociedade e estão preparados para correr o risco de perder o poder por causa disso.

Se para eleger Lula a esquerda preferiu ficar em casa, agora com o petista eleito é que parece que vão ficar lá para sempre, aguardando a gestão estatal e policial resolver problemas como o fascismo na ruas. O problema é que os mesmos fascistas estão se mobilizando dentro da polícia e do próprio Estado.

Felizmente, nem todos estavam comprometidos com a passividade.

Logo no dia 1 de novembro, torcedores da Galoucura, do Atlético Mineiro, passaram pela BR-318 que liga Belo Horizonte a São Paulo para ver uma partida e romperam sozinhos os bloqueios bolsonaristas, desmobilizando manifestantes. No dia 2, torcedores da Gaviões, do Corinthians, fizeram o mesmo na Marginal Tietê, importante via de São Paulo, ainda jogaram fogos e perseguiram carros dos golpistas. Ainda em São Paulo, antifascistas perseguiram militantes bolsonaristas saindo dos atos de rua.

No feriado do dia 2 de novembro, militantes antifascistas do Rio de Janeiro fizeram um chamado para uma contramanifestação com 50 pessoas para enfrentar mais de 50 mil manifestantes pedindo golpe militar no centro da cidade, sem qualquer apoio dos maiores movimentos ou partidos. Ao chegarem, foram revistados pela Polícia Militar mais preocupada com a segurança da extrema-direita.

A ação direta e radical nunca deveria ter sido o plano B, uma vez que a rua ainda é fundamental ponto de encontro e articulação e as autoridades não tem o menor interesse em barrar o ressurgimento de hordas pro-fascistas. Quando anarquistas e antifascistas perdem batalha pela a narrativa e aceitam a estratégia da esquerda hegemônica, aceitamos que as ruas se tornem palco para ação e recrutar membros. Qualquer resistência à extrema-direita e a um novo governo petista deve levar em conta o papel central das ruas e da organização popular.

Antifascistas no Rio de Janeiro desafiando manifestação golpista: 50 contra 50.000.

Brilha a luz de uma estrela morta

Ao invés de uma derrota do fascismo pela esquerda, a eleição de 2022 significou a reconstituição do centro – um retorno a um 2013 sem esperança de mudança positiva, em que toda oposição radical será tratada como se estivesse ajudando a extrema direita. Resta saber se alguém ficará satisfeito com essa nova gestão, cujo aspecto mais radical é a nostalgia dos avanços moderados ocorridos há mais de uma década.

A campanha eleitoral de 2022 ressaltou algo que já estava evidente na eleição de 2018 que deu a vitória para Bolsonaro: a esquerda petista e sua base militante e eleitoral só conseguem prometer uma imagem do passado, de 2003 a 2012, quando Lula e Dilma governaram uma nova fase extrativista do capitalismo latino, compensando os impactos da extração violenta de recursos como minério, celulose, carne, grãos e petróleo com benefícios sociais. Essa política foi necessária para incluir as novas classes despossuídas, removidas de seus territórios para dar lugar ao agronegócio, barragens e usinas, e empobrecidas pela urbanização forçada e pela marginalização do trabalho. A escolha para os gestores era bem fácil: era isso ou esperar que mais gente fosse recrutada para o crime organizado ou aderisse à revolta popular.

Agora que o ciclo se fechou, uma extrema direita mais encorajada observa uma nova coalizão de centro-esquerda pacificando sua base eleitoral para ela saia das ruas e desista de lutar por uma sociedade igualitária, alegando que movimentos sociais como o levante de 2013 só ajudarão os “extremistas” distantes do centro.

Enquanto isso, Bolsonaro e sua seita ousam prometer um futuro pretensamente revolucionário, de “ruptura com o sistema”, “contra tudo” e contra a “velha política” – de ele mesmo que foi parte por 3 décadas como deputado. A imagem de futuro do bolsonarismo e do partido militar é uma reedição de diversos projetos da extrema-direita que vemos pelo mundo, que busca num passado distante uma revisão para seus sonhos autoritários, racistas e misóginos. A bandeira do império brasileiro, carregada por alguns setores da direita brasileira, tem o mesmo efeito que a bandeira dos confederados nos Estados Unidos, resgatando uma narrativa bandeirante de conquista do oeste, quando não existiam leis nem poderes que, em tese, regulam o mandatário, como seria no estado democrático de direito. Para ambos, o cenário perfeito é o da lei do seu monopólio da força armada usada contra o negro, o indígena, a mulher, as florestas e todo o território.

Torcida corinthiana a caminho do Rio de Janeiro exibem faixas que capturaram de bolsonaristas.

Em 2008, a América Latina via uma chamada “Onda Rosa” de governos progressistas que canalizaram décadas de levantes populares – iniciados com o Caracazo de 1989 e a redemocratização brasileira – para vencer nas urnas com o discurso de “mudar o mundo de cima para baixo”. Mas se tornaram apenas gestores humanizados do neoliberalismo. A opção pela conciliação de classe do PT não conseguiu incluir os pobres e satisfazer os ricos por muito tempo. E muito menos lidar com as classes médias, brancas, especialmente masculinas, que se sentiram pela primeira vez sendo alcançados por pobres, negros e mulheres no acesso a estudo e mercado de trabalho. O resultado foi a revolta popular estourar ao mesmo tempo em que o ressentimento reacionário, que conseguiu capturar melhor a energia das ruas, derrubar um governo petista e colocar um ex-militar no poder.

Ao contrário dos liberais e da direita tradicional, Bolsonaro e seus aliados não buscam realmente governar ou administrar o Brasil, apenas tomar o poder e gerir para poucos aliados e para suas bases radicalizadas. Em vez de comprar vacinas, exigir passaportes de sanitários e controlar o movimento das pessoas em nome da saúde pública, por exemplo, ele simplesmente deixou as pessoas morrerem para manter a economia funcionando.

Tanto Trump quanto Bolsonaro não conseguiram se reeleger como a maioria de seus predecessores. E agora o pêndulo da democracia volta para o lado progressista. É uma questão de tempo até que os novos governos da social-democracia decepcionem mais uma vez as bases exploradas e excluídas e a revolta exploda, como já vemos se desenhar no Chile e nos Estados Unidos. E o fascismo estará a espreita mais uma vez para reunir seu exército.

Uma oposição à esquerda que quer esperar pelas instituições, pelos direitos humanos e internacionais, por um julgamento no Tribunal de Haia, que se compromete com a paz e os ritos democráticos, está naturalmente desarmada e despreparada para enfrentar um inimigo disposto a matar ou morrer enquanto delira pelo seu líder, por deus e sua imagem de futuro glorioso. Assim como esperar que o Estado acabe com os protestos e puna militantes golpistas, ou demandar que faça isso com discursos que criminalizam o protesto, os bloqueios e a ação nas ruas apenas vão dar mais armas e legitimidade às polícias e aos justiceiros que vão nos enfrentar quando formos nós nas ruas protestando por motivos reais, como moradia, comida e dos territórios que sustentam nossa vida.

Também e notório que o uso das fake news e do sensacionalismo podem ter ajudado a desestabilizar a propaganda bolsonarista na reta final, mas alimentar a máquina de desinformação, confusão e a mediação da realidade por corporações como Meta e Google é preparar um terreno para uma luta que estamos condenados a perder. A extrema direita tem uma vantagem fundamental no sensacionalismo da mídia, pois não tem nenhum escrúpulo em mentir e a confusão geralmente serve à sua agenda.

Como fizeram nos anos que antecederam a revolta de 2013, a esquerda institucional voltou a optar por um governo aliado ao centro e à direita. Desta vez, podemos esperar resultados ainda piores em um contexto muito menos favorável. Ou retomamos as ruas e nos organizamos com base em bairros, ocupações, cooperativas, quilombos, aldeias, assentamentos e centros sociais, ou acabaremos descobrindo que somos obrigados a lutar em terreno inimigo, seja virtual ou institucional, quando for tarde demais.

Nenhuma mudança virá de cima. Ninguém está vindo para nos salvar. Tudo depende de nós.