Grandes Fazendas produzem Grandes Gripes – Trecho em Zine + Entrevista com Rob Wallace

[ Baixar PDF ]
Apresentamos uma versão em zine para leitura e impressão do primeiro capítulo do livro “Grandes Fazendas Produzem Grandes Gripes: Expedições Sobre a Influenza, Agronegócio e Ciência da Natureza“. Atualmente em processo de tradução para o português, é um livro de 2016, escrito pelo cientista e socialista Rob Wallace, que analisa as terríveis relações entre expansão do agronegócio no capitalismo e o surgimento de epidemias como SARS, Zika, Ebola, H1N1, H5N1 e muitas outras doenças infecciosas.

Robert Wallace é biólogo evolucionista, filogeógrafo e uma das principais fontes citadas pelo já célebre artigo Contágio Social – Coronavírus, China, Capitalismo Tardio e o ‘Mundo Natural’, dos comunistas chineses do Coletivo Chuang, que apresentam críticas contundentes ao capitalismo de estado e extremamente autoritário da China, ao capitalismo ocidental e as narrativas racistas e superficiais sobre a pandemia — na nossa opinião, uma das melhores análises até o presente momento sobre a pandemia em curso.

A seguir, trazemos também uma tradução da entrevista com Rob Wallace publicada em março na revista alemã em Marx21, sobre o Covid-19 e sua relação com o capitalismo.


O coronavírus  mantém o mundo num estado de choque. Mas, em vez de combater as causas estruturais da pandemia, os Governos estão se concentrando  em medidas de emergência. Uma conversa com Robert Wallace (Biólogo Evolucionista) sobre os perigos do Covid-19, a responsabilidade do agronegócio e as soluções sustentáveis para combater as doenças infecciosas


Pergunta: Qual é o perigo do novo coronavírus?

Robert Wallace: Depende em que momento  se encontra o surto local de Covid-19: no inicio, no momento de pico, no final? Qual é a resposta da sua região em matéria de saúde pública? Quais são os seus dados demográficos? Qual é a sua idade? Está imunossuprimido? como é a sua saúde geral? Para perguntar sobre uma possibilidade não diagnosticável, a sua imunogenética, a genética intrínseca à sua resposta imunitária, se ajusta ou não ao vírus?

Então todo este barulho  sobre o vírus é apenas tática para gerar medo?

Não, certamente que não. A nível da populacional, o Covid-19 registrava, no início do surto de Wuhan, uma taxa de mortalidade de 2 a 4%. Fora de Wuhan, a taxa de mortalidade parece cair  para mais ou menos 1% ou ainda menos, mas também parece disparar em pontos aqui e ali, incluindo em locais na Itália e nos Estados Unidos. O seu alcance não parece grande em comparação com, digamos, a 10% da SARS , a gripe de 1918 com  5-20%, a “gripe aviária” H5N1 com 60%, ou em alguns pontos o Ebola com 90%. Mas excede certamente os 0,1% de taxa de mortalidade da gripe sazonal. O perigo, porém, não é apenas uma questão de taxa de mortalidade. Temos de lidar com aquilo a que se chama taxa de penetração ou de ataque comunitário: quanto da população global é atingida pelo surto.

Pode ser mais específico?

A rede global de viagens está em uma conectividade recorde. Sem vacinas ou antivirais específicos para o coronavírus, nem, neste momento, qualquer imunidade grupal ao vírus, mesmo uma cepa com uma mortalidade de apenas 1% pode representar um perigo considerável. Com um período de incubação de até duas semanas e provas crescentes de alguma transmissão antes da doença – antes de sabermos que as pessoas estão infectadas – poucos locais estariam livres de infecção. Se, por exemplo, o Covid-19 registrar 1% de mortalidade no decurso da infecção de quatro mil milhões de pessoas, são 40 milhões de mortos. Uma pequena parte de um grande número pode ser também um grande número.

Estes são números assustadores para um patógeno ostensivamente menos que virulento.

Definitivamente, e estamos apenas no início do surto. É importante compreender que muitas novas infecções mudam ao longo do curso das epidemias. A infecciosidade, a virulência, ou ambas, podem atenuar. Por outro lado, outros surtos aumentam em termos de virulência. A primeira onda da pandemia de gripe, na Primavera de 1918, foram uma infecção relativamente leve. Foi a segunda e terceira ondas, no Inverno e em 1919, que mataram milhões de pessoas.

Mas os céticos da pandemia argumentam que muito menos doentes   foram infectados e mortos pelo coronavírus do que pela gripe sazonal típica. O que pensa sobre isso?

Seria o primeiro a celebrar se este surto se revelasse um fracasso. Mas estes esforços para considerar o Covid-19 como um possível perigo, citando outras doenças mortais, especialmente a gripe, é um dispositivo retórico para apontar  a preocupação com coronavírus como algo desproporcional.

Então, a comparação com a gripe sazonal é capenga…

Faz pouco sentido comparar dois agentes patogênicos em diferentes partes das suas curvas epidemiológicas. Sim, a gripe sazonal infecta muitos milhões em todo o mundo, matando, segundo estimativas da OMS, até 650.000 pessoas por ano. A Covid-19, porém, está apenas iniciando a sua viagem epidemiológica. E, ao contrário da gripe, não dispomos nem de vacinas, nem de imunidade de grupo para retardar a infecção e proteger as populações mais vulneráveis.

Mesmo que a comparação seja enganadora, ambas as doenças são causadas por vírus de um grupo específico, os vírus RNA. Ambas podem causar doenças. Ambas afetam a região da boca e da garganta e, por vezes, também os pulmões. Ambas são bastante contagiosas.

Estas são semelhanças superficiais que ignoram uma parte crítica da comparação entre dois agentes patogênicos. Sabemos muito sobre as dinâmicas da gripe. Sabemos muito pouco sobre a Covid-19. Estão impregnadas de incógnitas. Na verdade, há muito sobre a Covid-19 que era mesmo indecifrável até o surto se manifestar plenamente. Ao mesmo tempo, é importante compreender que não se trata de Covid-19 versus gripe. Trata-se do Covid-19 e da gripe. O surgimento de infecções múltiplas capazes de se tornarem pandêmicas, atacando populações em combos, deve ser a preocupação principal e central.

Há vários anos você  pesquisa as epidemias e as suas causas. O seu livro “Big Farms Make Big Flu” tenta estabelecer essas ligações entre as práticas agrícolas industriais, a agricultura biológica e a epidemiologia viral. Quais são seus insights ?

O perigo real de cada novo surto é o fracasso – ou melhor dizendo, a recusa conveniente de compreender que cada novo Covid-19 não é um incidente isolado. O aumento da ocorrência de vírus está intimamente ligado à produção alimentar e à rentabilidade das empresas multinacionais. Quem pretender compreender por que razão os vírus se estão a tornar mais perigosos deve investigar o modelo industrial da agricultura e, mais especificamente, a produção animal. Neste momento, poucos governos, e poucos cientistas, estão dispostos a fazê-lo. Muito pelo contrário.

Quando surgem os novos surtos, os governos, a mídia e mesmo a maioria dos estabelecimentos médicos estão tão concentrados em cada emergência em separado que descartam as causas estruturais que estão conduzindo múltiplos agentes patogênicos marginalizados para uma súbita celebridade global, um após o outro.

De quem é a culpa?

Eu disse agricultura industrial, mas há um âmbito mais vasto. O capital é a ponta de lança da invasão de terras das florestas primárias e das terras agrícolas de pequenos proprietários em todo o mundo. Estes investimentos impulsionam o desmatamento e o desenvolvimento que conduzem ao aparecimento de doenças. A diversidade funcional e a complexidade que estas enormes extensões de terra representam estão  sendo racionalizadas de tal forma que agentes patogênicos anteriormente encaixotados estão a alastrar ao gado local e às comunidades humanas. Em suma, os centros capitais, locais como Londres, Nova York e Hong Kong, devem ser considerados os nossos principais focos de doença.

Para que doenças é este o caso?

Neste momento, não existem agentes patogênicos isentos de capital. Mesmo os mais remotos são afetados, se bem que de forma distante. O Ebola, a Zika, os coronavírus, a febre amarela, uma variedade de influências aviárias e a peste suína africana  contam-se entre os muitos agentes patogênicos que saem das zonas mais remotas do interior para os circuitos peri-urbanos, as capitais regionais e, por fim, para a rede global de viagens. Desde morcegos frugívoros no Congo até a morte de banhistas de Miami, dentro de algumas semanas.

Qual é o papel das empresas multinacionais neste processo?

Neste momento, o Planeta Terra é, em grande parte, o Planeta Fazenda, tanto na biomassa como nas terras utilizadas. O agronegócio tem como objetivo monopolizar o mercado de alimentos. A quase totalidade do projeto neoliberal está organizada em torno do apoio aos esforços das empresas sediadas nos países industrializados mais avançados para roubar a terra e os recursos dos países mais fracos. Como resultado, muitos desses novos agentes patogênicos, anteriormente controlados por ecologias florestais há muito evoluídas, estão sendo libertados, ameaçando o mundo inteiro.

Que efeitos têm os métodos de produção do agronegócio sobre este aspecto?

A agricultura direcionada  pelo capital, que substitui mais ecologias naturais, oferece o meio exato pelo qual os agentes patogênicos podem evoluir os fenótipos mais virulentos e infecciosos. Não se conseguiria conceber um sistema melhor para criar doenças mortais.

Como assim?

 O cultivo de monoculturas genéticas de animais domésticos retira a proteção imunológica  que poderia estar disponível para retardar a transmissão. As dimensões e densidades maiores da população facilitam taxas maiores de transmissão. Estas condições de aglomeração diminuem a resposta imunitária. O elevado rendimento, uma parte de qualquer produção industrial, proporciona um fornecimento continuamente renovado de produtos sensíveis, o combustível para a evolução da virulência. Em outras palavras, o agronegócio está tão concentrado nos lucros que a seleção de  um vírus que pode matar mil milhões de pessoas é tratada como um risco aceitável.

O quê!?

Estas empresas podem simplesmente externalizar os custos das suas operações epidemiologicamente perigosas sobre todos os outros. Desde os próprios animais até aos consumidores, trabalhadores agrícolas, ambientes locais e governos em todas as jurisdições. Os prejuízos são tão elevados que, se devolvêssemos esses custos aos balanços das empresas, o agronegócio, tal como o conhecemos, acabaria para sempre. Nenhuma empresa poderia suportar os custos dos danos que impõe.

Em muitos meios de comunicação social afirma-se que o ponto de partida do coronavírus foi um “mercado de alimentos exóticos” em Wuhan. Esta descrição é verdadeira?

Sim e não. Existem pistas espaciais a favor desta noção. O rastreio de contatos relacionados com infecções remonta ao Hunan Wholesale Sea Food Market, em Wuhan, onde animais selvagens eram vendidos. A amostragem ambiental parece indicar a extremidade oeste do mercado onde os animais selvagens eram mantidos.

Mas a que distância e até que ponto devemos investigar? Quando é que a emergência começou realmente? O enfoque sobre o mercado não leva em conta as origens da agricultura selvagem no interior e a sua crescente capitalização. A nível global, e na China, os alimentos selvagens estão a tornar-se mais formalizados como um setor econômico. Mas a sua relação com a agricultura industrial vai além da mera partilha dos mesmos sacos de dinheiro. À medida que a produção industrial – ovo, aves e similares – se expande para a floresta primária, exerce pressão sobre os operadores de alimentos selvagens para que estes se alimentem ainda mais na floresta, aumentando a interface com novos agentes patogênicos, incluindo o Covid-19.

O Covid-19 não é o primeiro vírus a desenvolver-se na China que o governo tentou encobrir.

Sim, mas não se trata, porém, de um excepcionalismo chinês. Os EUA e a Europa também serviram de pontos zero para novas gripes, recentemente o H5N2 e o H5Nx, e as suas multinacionais e aliados neocoloniais impulsionaram o surgimento do Ebola na África Ocidental e do Zika no Brasil. Funcionários de saúde pública dos EUA protegeram  o agronegócio durante os surtos de H1N1 (2009) e H5N2.

A Organização Mundial de Saúde (OMS) declarou uma “emergência sanitária de interesse internacional”. Será esta medida correta?

Sim. O perigo de um agente patogênico deste tipo é o de as autoridades sanitárias não controlarem a distribuição estatística dos riscos. Não temos ideia de como o agente patogênico pode reagir. Passamos de um surto num mercado para infecções espalhadas pelo mundo numa questão de semanas. O agente patogênico pode simplesmente esgotar-se. Isso seria ótimo. Mas nós não sabemos. Uma preparação melhor melhoraria as chances de reduzir a velocidade de difusão do agente patogênico.

A declaração da OMS também faz parte daquilo a que eu chamo teatro da pandemia. As organizações internacionais morreram face à inação. Vem-me à mente a Liga das Nações. O grupo de organizações da ONU está sempre preocupado com a sua relevância, poder e financiamento. Mas este tipo de atuação também pode convergir para a preparação e prevenção de que o mundo precisa para romper a cadeia de transmissão do Covid-19.

A reestruturação neoliberal do sistema de saúde agravou tanto a investigação como o tratamento geral dos doentes, por exemplo, nos hospitais. Que diferença poderia fazer um sistema de saúde mais bem financiado para combater o vírus?

Há a terrível mas contagiosa história do empregado da empresa de aparelhos médicos de Miami que, ao regressar da China com sintomas semelhantes aos da gripe, fez a coisa certa pela sua família e comunidade e exigiu um exame hospitalar local para o Covid-19. Ele temia que a sua opção mínima no Obamacare não cobrisse os testes. Ele estava certo. De repente, ele estava com uma conta de  3270 dólares . Uma opção americana poderia ser uma ordem de emergência que estipula que, durante um surto pandêmico, todas as contas médicas pendentes relacionadas com os testes de infecção e de tratamento após um teste positivo seriam pagas pelo governo federal. Queremos encorajar as pessoas a procurar ajuda, afinal de contas, em vez de se esconderem e infectarem outras pessoas – porque não podem pagar o tratamento. A solução óbvia é um serviço nacional de saúde – dotado de pessoal e equipamento adequados para fazer face a emergências de dimensão comunitária – para que um problema tão ridículo como o de desencorajar a cooperação comunitária nunca surja.

Assim que o vírus é descoberto num país, os governos de todos os países reagem com medidas autoritárias e punitivas, tais como a quarentena obrigatória de áreas inteiras de terra e cidades. Justificam-se medidas tão drásticas?

A utilização de um surto para testar o mais recente controle autocrático após o surto é um capitalismo de catástrofe que descarrilou. Em termos de saúde pública, eu erraria do lado da confiança e da compaixão, que são importantes variáveis epidemiológicas. Sem qualquer delas, as autoridades perdem o apoio das suas populações. O sentido de solidariedade e de respeito comum é uma parte essencial da cooperação de que necessitamos para, em conjunto, sobrevivermos a tais ameaças. As autoquarentenas com o devido apoio de brigadas de bairro treinadas, caminhões de abastecimento de alimentos que vão de porta em porta, libertação do trabalho e seguro desemprego – podem suscitar esse tipo de cooperação, de que estamos todos juntos nisto.

Como devem saber, na Alemanha, com a AfD, temos um partido nazista de fato com 94 cadeiras no parlamento. A extrema-direita nazista e outros grupos associados aos políticos da AfD utilizam a crise do coronavírus para a sua mobilização. Espalharam relatos (falsos) sobre o vírus e exigem mais medidas autoritárias por parte do governo: Restrição dos voos e à entrada de imigrantes, fechamento de fronteiras e quarentena forçada…

A proibição de viagens e o fechamento de fronteiras são exigências com as quais a direita radical quer racializar o que são hoje doenças globais. Isto é, evidentemente, um absurdo. Neste momento, dado que o vírus já está a caminho de se espalhar por todo o lado, o mais sensato é trabalhar no desenvolvimento do tipo de resiliência de saúde pública em que não importa quem apareça com uma infecção, temos os meios para as tratar e curar. Evidentemente, deixar de roubar as terras das pessoas no estrangeiro e de provocar os êxodos, em primeiro lugar, e podemos evitar que os agentes patogênicos surjam em primeiro lugar.

O que seria uma mudança sustentável?

A fim de reduzir o aparecimento de novos surtos de vírus, a produção alimentar tem de mudar radicalmente. A autonomia dos agricultores e um setor público forte podem refrear as ratazanas ambientais e as infecções descontroladas Introduzir variedades de efetivos e de culturas – e uma renovação estratégica – tanto a nível da exploração como a nível regional. Permitir que os animais destinados à alimentação se reproduzam no local para transmitir as imunidades testadas. Ligar apenas a produção à circulação. Subsidiar preços e programas de compras que apoiem a produção agroecológica. Defender estas experiências tanto das compulsões que a economia neoliberal impõe aos indivíduos e às comunidades como da ameaça da repressão do Estado liderada pelo capital.

O que os socialistas devem exigir perante a dinâmica crescente dos surtos de doenças?

O agronegócio como modo de reprodução social tem de acabar definitivamente, mesmo que não seja por uma questão de saúde pública. A produção altamente capitalizada de alimentos depende de práticas que põem em perigo toda a humanidade, neste caso ajudando a desencadear uma nova pandemia mortal. Devemos exigir que os sistemas alimentares sejam socializados de forma a impedir que surjam agentes patogênicos tão perigosos. Isso exigirá a reintegração da produção alimentar nas necessidades das comunidades rurais, em primeiro lugar. Isso exigirá práticas agroecológicas que protejam o ambiente e os agricultores à medida que cultivam os nossos alimentos. Em termos gerais, temos de curar as fissuras metabólicas que separam as nossas ecologias das nossas economias. Em suma, temos um planeta a ganhar.

A Luta é Pela Vida – parte II

[Baixar em PDF]
Esta é a segunda parte da coleção de textos anarquistas sobre pandemia, capitalismo e a luta pela vida. Assim como no primeiro tomo, os textos aqui reunidos foram escritos por grupos, associações e pessoas presentes em diferentes territórios. Contudo, como a pandemia teve maior expansão inicial nas terras conhecidas como China, Europa e América do Norte, o tomo UM focou nos estudos produzidos nessas localidades. Com o avanço do novo coronavírus para o sul, anarquistas dessas regiões escreveram análises, narraram acontecimentos e experimentaram propor ações coletivas a serem levadas a cabo por diferentes grupos libertários, “não como um programa, mas como uma conspiração”.

Os textos aqui compilados tratam dos efeitos da pandemia a partir de diferentes pontos. Entre eles estão o modo pelo qual os Estados e as sociedades nacionais lançam mão mais uma vez da ideia de inimigo comum para se fortalecer e validar suas ações, independentemente de quanto sangue escorre pelas mãos de seus policiais, militares e políticos. A metáfora militar de guerra ao vírus induz a noção de que as principais forças que devem ser mobilizadas são as de segurança, polícias e exércitos, para combater tal inimigo. Inimigo este que é invisível, disseminado por corpos de pessoas. Logo, com a mobilização estatal de combater o vírus, todas as pessoas se tornam um potencial inimigo, passíveis de serem presas, espancadas e assassinadas em nome da salvação da espécie, da vida biológica. Mas sabemos: nem todo sabão e água do planeta conseguirão limpar o sangue que escorre das fardas.

Com o argumento de combater a pandemia, os Estados buscam defender a vida biológica, a humanidade, que ao universalizar nossas existências, cria uma abstração sobre nossos corpos e, com isso, expandem o controle em meios abertos e fechados. Aplicam leis e decretos, empregam a polícia e as forças armadas para restringir a circulação das pessoas. Junto ao capitalismo, que é indissociável do Estado, tentam manter a sensação de uma exceção temporária, de que este mundo não está caindo sobre suas cabeças, que tudo voltará ao normal, que tudo vai passar. Contudo, o que é esse “normal”? Uma vida de miséria, de exploração, de submissão, de extermínio. Os governantes, estatais e privados, mostram com isso o quanto temem a revolta das pessoas exploradas, insubmissas e alvos de seu extermínio.

Por isso, anarquistas em diferentes partes do planeta, sobretudo ao sul, explicitam que “não queremos voltar ao normal, pois o problema é a normalidade!”. Nos governam pelo medo e por meio de ameaças. Eles nos temem e sabem que somos uma ameaça a sua normalidade. Medo da morte, medo de que este mundo de produção capitalista, onde vamos da casa para o emprego e do emprego para casa (quando se tem um emprego e uma casa, obviamente). Num fluxo interminável de exploração, de mortificação de nossas vidas. Entendemos que nós não vivemos para servir a ninguém, nem ao Estado, nem às empresas, nem a Deus, nem ao patrão, nem ao marido; a ninguém! Não queremos mais uma vida de miséria, onde nossa existência se restrinja ao biológico, não queremos mais sermos governadas pelo medo, porque não queremos mais ser governados! Não aceitamos suas ameaças!

Compas da região uruguaia explicitam como o isolamento obrigatório acaba também por silenciar uma série de violências por sobre o corpo de mulheres e crianças feitas principalmente por pais e maridos, e o efeito do fato de existirem poucas iniciativas de (auto)defesa dessas pessoas expostas a este tipo de situação. O pouco estímulo às práticas de apoio mútuo ou, em muitos casos, o desconhecimento de tais iniciativas, acaba por levar algumas dessas pessoas que foram violentadas a recorrerem a uma segunda violação: a polícia, exames de corpo de delito (que muitas vezes funcionam como um segundo estupro), inquérito, delações etc., alimentando o Estado e o seu braço armado.

Além disso, nesta publicação, são retomados momentos históricos para repensarmos as práticas de resistência frente à atual situação, como as greves de aluguéis, fortalecimento de laços de interação, grupos de afinidade, expropriações, ocupações, entre outros.

Por fim, saudamos as iniciativas individuais e coletivas de autocuidado para enfrentarmos a pandemia, para nos fortalecermos, não porque tememos o fim deste mundo, mas para acelerar sua queda, sua ruína. Quando as iniciativas têm como base a ação direta, o antiautoritarismo, o Estado perde, pouco a pouco. Seu monopólio rui nas mãos de cada pessoa, que junto de companheiras, toma sua vida nas próprias mãos.

Que esse momento nos sirva para começarmos a pensar em questões pouco debatidas entre anarquistas, como práticas de saúde antiautoritária e autocuidado, vinculadas diretamente ao apoio mútuo. Como afirma um texto anônimo publicado em Buenos Aires, “que a quarentena fortaleça nossa ânsia de liberdade e reafirme nossa negação de toda autoridade!”

Saúde e liberdade!


Coronavírus: A Dimensão Social dum Vírus – uma perspectiva xenofeminista e anarquista solarpunk

“Todo o indivíduo humano é o produto involuntário de um meio natural e social no seio do qual nasceu, desenvolveu-se e do qual continua a sofrer influência. As três causas de toda a imoralidade humana são: a desigualdade tanto política quanto econômica e social; a ignorância que é seu resultado natural e sua consequência necessária: a escravidão.”

– Bakunin, Programa e objetivo da organização secreta revolucionária dos irmãos internacionais

Dizer que uma doença é socialmente construída não significa que as ciências naturais são inválidas, e sim, que a forma que esta assume numa sociedade será moldada por preconcepções ou concepções prontas. Consequentemente, a forma que ela terá socialmente implicará na maneira como lidaremos com ela.

O caso do coronavírus exemplifica bem isso. Sabe-se que o novo coronavírus teve seu surgimento em Wuhan. Surgimento esse cuja possibilidade já havia sido de alguma maneira prevista por cientistas chineses do Instituto de Virologia de Wuhan e da Universidade da Academia Chinesa de Ciências[1], que não sabiam dizer onde nem quando surgiria. O que sabiam dizer é que “é altamente provável que futuros surtos de coronavírus tipo SARS ou MERS se originem de morcegos, e há uma probabilidade maior de que isso ocorra na China. Portanto, a investigação de coronavírus de morcego se torna uma questão urgente para a detecção de sinais de alerta precoce, o que minimiza o impacto de futuros surtos na China”. Ocorreu que o surgimento foi mais rápido do que o esperado. O que se afirmava grosseiramente nas sociedades ocidentalizadas, era que a contaminação do vírus em seres humanos teve sua causa no consumo de sopa de carne de morcego. Se houvesse de fato uma preocupação com o consumo da carne de morcego e de outros animais não-humanos mais, teríamos o advento de um questionamento sobre a nossa narrativa alimentar, o que talvez implicasse uma diminuição no consumo de carne, ou mesmo uma alimentação vegana. Mas o que de fato implicou essa afirmação, foi uma constatação de que “o hábito alimentar chinês é bizarro”, uma constatação, cabe dizer, fundamentada em racismo. Para muitos hindus e alguns indianos, nós provavelmente somos “bizarros” por comermos carne de vaca, assim como para a maioria dos judeus – religiosos ou culturais -, seríamos “bizarros” por consumirmos carne de porco. Aliás, a gripe suína foi considerada pandemia em 2009 pela OMS, mas aparentemente esquecemos dela[2] e seguimos consumindo carne suína despreocupadamente. De igual forma, muitos grupos sociais humanos poderiam ver a nossa recusa à antropofagia , ou mesmo a nossa recusa de comer alimentos crus e em estado de putrefação, como algo absurdo, como é o caso de aghori – aqueles devotos acetas de Shiva, cuja imagem com “o corpo coberto de cinzas de defunto e cabelos de dreadlock” muita gente compartilha pra falar do uso de maconha como sendo algo “místico e sagrado”. Ainda sobre hábitos alimentares, podemos lembrar que o caramujo-gigante-africano, um molusco oriundo de África, causou um frenesi em muita gente há alguns anos, mais de uma década atrás. O que não se comenta, é que ele foi introduzido ilegalmente no território brasileiro, mais especificamente no Paraná, na década de 80, como substituto do escargot, já que o caramujo-gigante-africano possui uma massa maior que a do escargot, além de os custos serem menores. Hoje ele pode ser encontrado em 25 estados e no Distrito Federal (DF). Em 2014 a Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) noticiou que casos de meningite transmitida pelo caramujo se espalhavam pelo país[3].

O caso é que o coronavírus chegou ao Brasil. Como? Alguém que veio de avião da Itália. Bom, sabemos que viagens de avião não custam barato. Já é caro ir daqui do centro do Rio de Janeiro para o município, que dirá viajar de avião! Daí se constata que não foi uma pessoa pertencente à classe pobre brasileira, mas alguém com um certo poder aquisitivo financeiro. Onde que caberia o socialmente construído mencionado no início do texto aqui? Se essa pessoa fosse pobre ou de qualquer grupo minoritário e estivesse na posição de migrante, sem sombra de dúvidas teríamos jornais noticiando enorme na capa “migração é a principal causa da transmissão de doenças”, o que é possível verificar em notícias anteriores do jornalismo brasileiro. Lembro de uma notícia dessas em que o cachorro de um migrante do nordeste para o sudeste estava com uma doença que não interfere em nada a vida do ser humano, e a capa dizia que a “migração causa transmissão de doenças de uma região a outra”. A não ser que você lesse a notícia – e para isso é necessário comprar o jornal, cujo preço pode ser o mesmo de um quilo de feijão, e eu nem preciso dizer que um quilo de feijão garante a força pro dia de trabalho -, a única coisa que você saberia é que “migração causa transmissão de doenças de uma região a outra”. Ponto. É preciso dizer as implicações sociais desse tipo de notícia? Algo semelhante ocorreu com o sarampo que teria sido trazido por migrantes venezuelanos ao Brasil. Bom, temos um programa de vacinação contra o sarampo eficaz. As pessoas que pegaram sarampo no Brasil não se vacinaram. Sabe-se que no Brasil tem crescido o movimento antivacina, um movimento irresponsável e ideologicamente orientado, que põe a população brasileira em risco, mas quem toma a responsabilidade são os migrantes venezuelanos.

O que torna o coronavírus algo que deva ser imediatamente combatido – a repercussão que teve foi muito rápida -, que deva mobilizar ostensivamente a saúde pública, é o fato de que pela primeira vez – de maneira clara, ao menos – o rico se torna um vetor de transmissão de doenças. Os turistas bonitinhos com seus óculos de sol e seus cruzeiros se tornam vetores de doença. Família com poder aquisitivo financeiro viaja, se infecta, traz o coronavírus para o Brasil, e não sendo suficiente, obriga a empregada doméstica a trabalhar para ela, a expondo ao ao contágio. Essa mesma empregada provavelmente pegará uma ou duas conduções lotadas. Provavelmente no seu bairro não há saneamento básico, talvez má e porcamente funcionam os postos médicos. Não há álcool gel que dissolva a divisão de classes. Em 2019 no Brasil foi registrado o segundo maior número de mortes por dengue em 21 anos. Até o início de dezembro havia sido confirmadas 754 mortes, ficando atrás apenas de 2015, considerado o pior ano. Passa de 1,5 milhão o número de casos prováveis da doença[4]. Neste ano de 2020 já são 182 mil casos com 32 mortes[5], um número muito, mas muito maior mesmo, do que o de coronavírus. Aproveito para lembrar aqui de uma matéria na Folha de São Paulo de novembro do ano passado que dizia que os brasileiros nascidos hoje terão dificuldade para respirar durante o seu crescimento, assim como terão que enfrentar mosquitos transmissores de doenças como a dengue, secas, inundações, queimadas, em maiores quantidades[6].

Ontem conversando com uma diarista que trabalha no apartamento ao lado, eu e ela ficamos comentando sobre como essa paranoia toda era incompreensível para nós, pois a gente já tem que lidar com outros tanto problemas mais cotidianamente. Tem um meme que diz que a Polícia Militar do Rio de janeiro mata mais do que coronavírus. De fato, mata. Inclusive a PMERJ bateu seu recorde ano passado, somando 1546 pessoas até o mês de outubro[7]. Racismo no Brasil mata mais do que coronavírus. Sexismo e transfobia no Brasil matam mais do que coronavírus [8]. Homofobia mata mais do que coronavírus no Brasil. Xenofobia mata mais do que coronavírus no Brasil. Especismo mata mais do que coronavírus no Brasil. O vírus da dengue transmitido pelo mosquito Aedes aegypti mata mais do que o coronavírus no Brasil. Quando não mata, deixa graves sequelas e traumas profundos. Em resumo, o regime de organização social brasileiro mata mais do que o coronavírus. O regime de organização social brasileiro é o capitalismo. Capitalismo esse que hoje é globalizado, que atinge micrologicamente nossas relações interpessoais, que devora o planeta inteiro. Capitalismo esse que concebe uma ideia de “natureza” que opera como um depósito de matéria-prima, nos distanciando do planeta, nos apartando de qualquer relação com este planeta.

Dizer isso não é o mesmo que dizer que o vírus não vai nos alcançar. Talvez alcance. Espero sinceramente que não. Os malthusianos contentes com essa situação, que chegam a chamar o vírus de incompetente por não ter matado a humanidade inteira, eu quero realmente que se fodam. Não tenho paciência para liberais com sua narrativa de fim do mundo. Previna-se, mas com uma certa frieza, cuidando para que a paranoia não lhe tome. Evite informações que não provenham de autoridades científicas. O Ministério da Saúde disponibiliza as informações necessárias para a prevenção e casos de suspeita.

Eu tenho medo de andar na rua. Tenho medo de ter novamente o corpo debilitado temporariamente e adquirir novos traumas ou aprofundar outros. Hoje abraço as pessoas com força, mas já houve um tempo em que o simples contato com outras pessoas me causava calafrios e tremor. Assim que passar a pandemia do coronavírus, eu provavelmente continuarei com esse medo, pois ele é anterior ao coronavírus. Perdi um amigo na quinta-feira dia 12 por negligência hospitalar, uma das poucas pessoas que permaneceram minhas amigas depois que iniciei a transição. Se eu pegar o coronavírus provavelmente vou morrer num hospital – é uma realidade que nós, pessoas trans, conhecemos bem -, se eu não pegar, talvez eu possa morrer na rua. Quê é o coronavírus nessa merda de sobrevivência?

por Inaê Diana Ashokasundari Shravya.


[1] MELLIS, Fernando. Cientistas chineses previram há um ano nova epidemia de coronavírus, R7, Rio de Janeiro, 06 de fev. de 2020. Saúde. Disponível em: <https://noticias.r7.com/saude/cientistas-chineses-previram-ha-um-ano-nova-epidemia-de-coronavirus-06022020>. Acesso em: 12 de mar. de 2020.

[2] CHAN, Margaret. World now at the start of 2009 influenza pandemic, World Health Organization, 11 de jun. de 2009. Disponível em: <https://www.who.int/mediacentre/news/statements/2009/h1n1_pandemic_phase6_20090611/en/>. Acesso em: 12 de mar. de 2020.

[3] MENEZES, Maíra. Casos de meningite transmitida por caramujo se espalham pelo país, Fundação Oswaldo Cruz, 17 de jul. de 2014. Disponível em: <https://portal.fiocruz.br/noticia/casos-de-meningite-transmitida-por-caramujo-se-espalham-pelo-pais>. Acesso em: 12 de mar. de 2020.

[4] CANCIAN, Natália. Brasil registra em 2019 segundo maior número de mortes por dengue em 21 anos, Folha de São Paulo, 8 de jan. de 2020. Cotidiano. Disponível em: <https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2020/01/brasil-registra-em-2019-segundo-maior-numero-de-mortes-por-dengue-em-21-anos.shtml>. ACesso em: 12 de mar. de 2020. (reparem que a data da notícia é anterior à da declaração de pandemia do coronavírus pela OMS. O contexto era o da geosmina presente na água que chega aos domicílios do Rio de Janeiro. A geosmina, para quem não sabem, atrai e auxilia na proliferação do mosquito Aedes aegypti, mosquito responsável pela transmissão do vírus da dengue)

[5] CANCIA, Natália. Casos de dengue avançam 72% em um ano, e ministério cria comitê para monitorar crescimento, Folha de São Paulo, 6 de mar. de 2020. Cotidiano. Disponível em: <https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2020/03/casos-de-dengue-avancam-72-em-um-ano-e-ministerio-cria-comite-para-monitorar-avanco.shtml?utm_source=folha&utm_medium=site&utm_campaign=topicos?cmpid=topicos>. Acesso em: 12 de mar. de 2020.

[6] WATANABE, Phillippe. Brasileiros nascidos hoje terão dificuldade para respirar no futuro, diz estudo climático, Folha de São Paulo, 13 de nov. de 2019. Ambiente. Disponível em: <https://www1.folha.uol.com.br/ambiente/2019/11/brasileiros-nascidas-hoje-terao-dificuldade-para-respirar-no-futuro-diz-estudo-climatico.shtml?utm_source=folha&utm_medium=site&utm_campaign=topicos?cmpid=topicos>. Acesso em: 12 de mar. de 2020.

[7] ALBUQUERQUE, Ana Luiza. Mortes pela polícia em 2019 batem recorde no Rio, Folha de São Paulo, Rio de Janeiro, 25 de nov. de 2019. Cotidiano. Disponível em: <https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2019/11/mortes-pela-policia-em-2019-batem-recorde-no-rio.shtml>. Acesso em: 12 de mar. de 2020.

[8] Lembremos que o Brasil permanece sendo o país que mais mata mulheres trans e travestis no mundo. Em 2019, 124 pessoas trans foram assassinadas no Brasil , conforme nos diz Lu Sudré em <https://www.brasildefato.com.br/2020/01/29/em-2019-124-pessoas-trans-foram-assassinadas-no-brasil>. Para mais informações, ler este PDF sobre assassinatos de pessoas trans no Brasil elaborado pela Associação Nacional de Travesstis e Transexuais (ANTRA): <https://antrabrasil.files.wordpress.com/2020/01/dossic3aa-dos-assassinatos-e-da-violc3aancia-contra-pessoas-trans-em-2019.pdf>.

Apontamentos Sobre a Epidemia em Curso

Traduzimos e divulgamos aqui o texto feito no calor do momento pelos companheiros anarquistas de Torino, Itália.

 Publicado originalmente no site Macerie


Apontamentos Sobre a Epidemia em Curso

O texto que segue foi escrito por alguns companheiros, em parte redatores do blog e em parte não, na tentativa de entender como se orientar no meio desta tempestade.

Estes dias, forçadamente fechados em casa, parece-nos uma ótima ocasião para tentar refletir e deixar registradas algumas considerações sobre o que está acontecendo, sobre os possíveis cenários que se abrirão e, enquanto companheiros, em que sentido será o caso de dirigir a nossa atenção.

Os apontamentos que seguem são algumas considerações imediatas sobre as quais tentaremos retornar e continuar a refletir nos próximos tempos, e não têm nenhuma pretensão de exaustividade.

Um esclarecimento inicial sobre as muitas vozes que tendem a minimizar esta epidemia nos parece devido. Não somos médicos nem enfermeiros, mas, na nossa visão, o absurdo de tal posição pode ser contestado no âmbito da teoria revolucionária. Quem se propõe, como objetivo de vida, a mudar radicalmente o presente deveria ser o primeiro a saber que da relação entre Capital e Natureza nascem inevitavelmente tragédias e catástrofes que, ao contrário do que diz a narrativa dominante, não têm nada de “natural”, que não são eventos improváveis, mas que, dependendo do período, eles têm certa frequência, como as crises econômicas. Terremotos em zonas populosas, desertificação, poluição dos lençóis freáticos, alagamentos e epidemias são fenômenos filhos dessa mesma lógica. A epidemia com a qual nos deparamos, com todas as suas especificidades, não nos parece que seja de natureza diferente desta série de catástrofes produzidas pelo regime capitalista. Especificidades que, naturalmente, não são negligenciáveis e sobre as quais valerá a pena debruçar-se no decorrer destas linhas.

AS ORIGENS

A doença se desenvolveu no mercado de Wuhan, capital de Hubei, uma das regiões mais populosas da China. Região que se tornou a fornalha do país: aqui está o coração pulsante feito de reatores químicos e fábricas de cimento que sustentaram o crescimento industrial do gigante asiático. A grande quantidade de material de construção e a formação de engenheiros qualificados de que a região é o berço ampararam todo o período pós-crise de 2008: o Estado chinês, de fato, lançou naqueles anos imponentes projetos infra estruturais e imobiliários.

A assistência médica em toda a China é praticamente inexistente, uma grandíssima quantidade de operários provenientes de outras regiões são ilegais no lugar onde trabalham (pelo diabólico sistema do hukou) e vivem em uma condição de semiclandestinidade e sem nenhuma tutela. É importante sublinhar que esta situação é estrutural e não devida a dureza específica dos governantes em um momento ou outro. Como já evidenciamos em outros escritos, o fim das políticas keynesianas tem, como uma de suas explicações, a diminuição dos ganhos globais, fenômeno acentuado com a recessão que começou em 2008. Um estudo publicado em um interessante artigo do blog Chuang – cuja leitura aconselhamos – evidencia que, na região de Dongguan, caso as empresas tivessem que se responsabilizar pela cobertura médica da própria força de trabalho, perderiam a metade dos lucros e deveriam transferir a produção para outro lugar.

A concentração da população em lugares pouco saudáveis e lotados assim como a impossibilidade de ter acesso a um sistema de saúde decente contribuíram ao famoso salto de espécie do Covid-19. Vários estudos afirmam que as passagens de formas virais de animais para humanos serão, no futuro, sempre mais prováveis e, podemos acrescentar, sempre mais letais.

O CHOQUE

A China, seguida da Itália e agora de vários países, respondeu a esta pandemia colocando em quarentena toda a população. Os efeitos e o impacto sobre as economias nacionais e mundial destas medidas são ainda matéria de debate. Os jornais publicaram imagens impressionantes de satélite com as emissões de CO2, tiradas antes e depois da paralisação da maior parte das atividades na China, das quais é possível obter o dado de que mesmo por “apenas” um mês o gigante asiático ficou quase completamente parado. O que significa o bloqueio da economia que, de fato, tirou o mundo da areia movediça da recessão não está claro.

Com certeza, os bancos centrais chegam a este choque, que muitas pessoas comparam à explosão da bolha dos empréstimos subprime, sem fôlego. Dez anos de liquidez introduzida forçadamente nos mercados nacionais e taxas de juros mantidas constantemente baixas para manter em vida o moribundo sistema financeiro deixam poucas margens de manobras adicionais. Uma confirmação é a reação dos mercados, um tombo histórico para a bolsa de valores de Milão (Piazza Affari) após as palavras que deveriam ter sido asseguradoras e reconfortantes da nova presidente do Banco Central Europeu, Lagarde, em 12 de março.

Certamente é necessário tomar cuidado com à interpretação dos sobressaltos do mundo financeiro que, na maioria dos casos, são resultados de manobras especulativas; mas não nos parece descabido prever que muitas economias nacionais sairão de joelhos destes meses de quarentena: muitas empresas poderão ter que fechar e muitas das quais sobreviverão deverão enfrentar uma profunda reestruturação em vários níveis. Tudo leva a crer que esta crise será a causa, e também a oportunidade, com os tempos devidos, para uma reestruturação da economia no sentido de uma ainda maior automação, e com tudo o que isso implica em termos de emprego, condições de trabalho e concentração de capital.

NA ITÁLIA

Desde o dia 10 de março aqui na Itália vigora uma espécie de toque de recolher. Todas as lojas estão fechadas, funcionando apenas supermercados, tabacarias, lojas de ferramentas, fábricas, serviços essenciais (exemplo: coleta do lixo e transporte público) e pouco mais.

O governo Conte, sustentado pela Europa que está concedendo muito em termos de déficit, vem legislando de modo irrefreado para remendar esta situação de paralisação forçada: o plano é recuperar mais liquidez possível e fazê-la chegar do alto, em cascata, sobre as empresas. Financiamentos especiais, fundo para empréstimos especiais e amortizações parecem ser uma parte da solução. Quase todos concordam que os fundos serão insuficientes. A realidade produtiva italiana é constelada de muitas empresas pequenas e médias cuja baixa rentabilidade desde há, pelo menos, uma década e cujo alto endividamento sugere, como dizíamos, que a consequência à pandemia, em termos de empresas fechadas e vagas de trabalho perdidas, poderia ser violentíssima.

No que diz respeito aos trabalhadores, estão disponibilizando uma série de auxílios sociais: seguro-desemprego por três meses, a suspensão do pagamento de empréstimos e boletos para as pessoas que foram demitidas e suspensão de alguns impostos municipais. Medidas que parecem insuficientes sob múltiplos pontos de vista.

O contexto do trabalho italiano é constituído, em grande parte, por contratos chamados atípicos: para as chamadas “pessoas jurídicas” e os “falsos trabalhadores autônomos”, o governo está trabalhando em um reembolso de apenas quinhentos euros por três meses; qual será o destino de quem tem um contrato de trabalho intermitente ou de quem trabalha completamente sem contrato não é possível saber. Fala-se genericamente de incentivos para aluguéis, mas também neste caso vinculados a quem possa demonstrar ter ficado em casa por conta da crise sanitária. Milhares de trabalhadores estão parados desde o mês de março, sem receber dinheiro, e com despesas que em breve serão insustentáveis.

Um discurso a parte mereceriam aqueles que, por outro lado, são obrigados a trabalhar apesar da emergência sanitária.

Enfermeiros e agentes sanitários são submetidos a grande pressão: uma parte é coagida a cumprir turnos massacrantes enquanto outra, que originariamente trabalhou em alas fechadas de hospitais devido à emergência, agora é posta em licença forçada. Sem contar que, do ponto de vista do controle de gastos, hospitais e cooperativas dispõem de poucas reservas de luvas e máscaras e, muitas vezes, o uso do material é desincentivado ou totalmente proibido.

Os trabalhadores de fábricas ou de setores estratégicos são enviados em campo sem a proteção mínima necessária ou direito a uma indenização contratual. Em um clima particularmente sombrio devido à proibição de aglomeração e, portanto, de greves “ativas”, existem, no entanto, muitos locais de produção onde os trabalhadores decidiram cruzar os braços, de tal modo que os sindicatos foram forçados a pressionar o governo para que haja uma conversa com as partes envolvidas. Após esta reunião, o encerramento das fábricas foi formalizado por alguns dias para permitir a reorganização dos espaços de acordo com o decreto e a compra de proteções individuais para os trabalhadores.

O quadro delineado para o futuro parece particularmente obscuro em um horizonte que vai muito além da contingência do coronavírus. Nos discursos feitos continuamente pelo primeiro ministro Conte, há referências contínuas à unidade nacional, à Itália, que unida, superará este momento. Nada mais falso. É verdade que o vírus está afetando a todos, mas as consequências, tanto de saúde quanto econômicas, serão vividas de maneira diferente: quem acumulou reservas nos últimos anos poderá seguir em frente e quem viveu apenas do seu salário será forçado a fazer enormes sacrifícios. As mortes por Covid-19 poderiam ter uma conotação não só de idade, mas também de classe: a feroz privatização do setor de saúde realizada durante vários anos levou à perda de muitas camas de terapia intensiva e imaginamos que aqueles que podem pagar já estão recorrendo a clínicas privadas e quarentenas mais ou menos douradas, sem falar de todas as outras doenças que, atualmente, não recebem nenhum tratamento, porque a atenção é toda voltada ao coronavírus, a menos que se possa ter acesso a instalações privadas.

Um jogo fundamental o Estado deverá jogar a um nível ideológico. O executivo liderado por Conte, após os erros iniciais, parece ter recuperado a bússola da governabilidade e estas medidas extremas de quarentena, sob modelo chinês, parecem encontrar consenso na população. As medidas econômicas, por mais insuficientes que sejam, serão provavelmente bem-vindas por aqueles que acreditam ter um pouco mais de espaço para respirar. Mas esta ajuda custará caro, difícil, deste ponto de vista, delinear cenários precisos: se a Europa exigirá tudo de volta com juros e uma série de políticas de feroz austeridade e um memorando de lágrimas e sangue, ao estilo grego, por assim dizer, tudo isso recairá sobre a Itália; ou se, por outro lado, esta crise fará com que a Europa vacile definitivamente ao ponto de redesenhar, de modo substancial, seus contornos e equilíbrios.

FACHADAS E ESTEIRAS

Se agora voltamos nossa atenção àqueles companheiros e companheiras que, há tempos, decidiram lutar contra o Estado e o sistema capitalista em que vivemos, não podemos senão que iniciar com uma dura autocrítica: esta crise nos pega despreparados.

Despreparados sob múltiplos pontos de vista, e partiremos, portanto, deles para compreender como tentar remediar a situação ou, quanto menos, recuperar o terreno perdido e entender se teremos capacidade de intervenção quando o descontentamento generalizado se transformar em raiva e depois em ação. Despreparados não apenas por conta dos nossos limites e da nossa incapacidade, mas também devido a um escasso nível de conflito social difundido entre as camadas exploradas da população, que certamente influenciou a possibilidade de intervenção dos companheiros de luta. Dificuldades causadas também pelo trabalho ideológico operado pelo Estado na década seguinte à crise de 2008, da sua capacidade de fazer aceitar condições de exploração sempre mais duras e das medidas repressivas colocadas em ação de tempos em tempos. Tais dificuldades criaram poucas ocasiões de debate e conflito, além de limitarem a osmose entre revolucionários e parte do proletariado disposta a lutar.

Mas, como acontece com frequência, cada crise gera processos de aceleração, tanto nas condições materiais de vida quanto na percepção das pessoas que estão a nosso redor, de modo que somos levados a pensar que nem tudo está perdido… ao contrário. E que devemos arregaçar as mangas antes que seja tarde demais. Primeiro passo e objetivo mínimo a ser perseguido é sair da fase emergencial (se é que podemos falar propriamente de saída) com uma boa compreensão do fenômeno que está se desenrolando e dos desafios que se interpõem.

Também para nós, especificamente em nossa cidade, não foi fácil entender rapidamente o que estava acontecendo. Quão perigoso é este vírus? Como este perigo é ligado às características estruturais do sistema sanitário e do sistema socioeconômico que o sustenta? Como se desenvolverá o fenômeno ao redor? Que medidas tomará o Estado?

Não escondemos que, nas duas primeiras semanas, seguimos os eventos, forçados a rever nossas ideias e a esboçar propostas todos os dias, sem conseguir muito. A reação que depois teve nas prisões perturbou todos os planos, mostrando talvez, em seu ponto mais profundo, nossa inadequação à situação, à capacidade de responder aos eventos e a apoiar o que estava acontecendo.

É indiscutível que os efeitos da epidemia estão estreitamente ligados a uma vida em cidades sempre mais lotadas e a um sistema de saúde voltado cada vez mais a outros objetivos que não ao cuidado das classes exploradas. Que a epidemia exista também é indiscutível. É, no mínimo, ingênuo, ou melhor, irresponsável, realizar um plano de confronto, um discurso ou propostas de luta que não levem em conta o perigo real do contágio. Pensar que podemos dar um panfleto a um senhor de 70 anos que vive ao lado sem as devidas precauções, arriscando contagiá-lo, não é aceitável. Do mesmo modo, pensar em propor uma assembleia no bairro para discutir formas de lidar com os problemas econômicos, sem pensar na especificidade, não apenas jurídica, do momento, seria imprudente.

Obviamente, é também tarefa dos companheiros não ceder à paranoia generalizada e se empenhar em uma análise ponderada e específica dos eventos para transmitir àqueles que estão a nosso redor. Análise que tem suas dificuldades intrínsecas devido à complexidade do fenômeno, que certamente não é assimilável, por exemplo, ao estudo sobre as políticas de habitação popular de uma cidade, ao nível de militarização de uma nação ou aos efeitos danosos de uma grande obra a determinado território. Análise que se torna ainda mais difícil pelo fato de que o detentor de dados e de informações, assim como o proponente das decisões que orientam os critérios (pense, por exemplo, no critério de quantos testes realizar e em quem) é o Estado com seus institutos de pesquisa.

Permitam-nos agora uma breve digressão para tentarmos focalizar o problema. Talvez possamos dizer que no âmbito do debate “de movimento” as leituras e posições são esmagadas em dois polos discursivos. Por um lado, uma tentativa de minimizar, quando não negar, a gravidade da situação, por outro, uma tentativa que opera na lógica da razão do Estado, com sua retórica sobre a emergência a que tudo deve estar subordinado. Uma polarização que vem de longe e, certamente, não é produto da atual epidemia, embora essa só a torne mais óbvia. Uma polarização que diz respeito a uma grande parte da atividade e da produção teórica revolucionária, pelo menos nesta época, e que oscila entre 1) a possibilidade de vislumbrar e tentar enveredar por um caminho autônomo em relação ao sistema capitalista e 2) a exigência de fazer frente a uma série de necessidades pelas quais, enquanto não se realize um processo revolucionário, não é possível prescindir deste sistema. Um contraste, portanto, entre a necessidade de lutar para obter e arrancar, ainda que dentro desta ordem de coisas, aquilo que nos serve para viver da melhor maneira possível e aquilo de tentar compreender, no entanto, quais percursos de autonomia são “construíveis” à medida que as lutas crescem e se difundem. Caminhos de autonomia em que os aspectos materiais e teórico-imaginativos deveriam se entrelaçar e se autoalimentar.

Em geral, ou se tende a ser esmagado pelo polo da necessidade, tornando-se mais realista do rei, e na melhor das hipóteses invocando um “retorno ao passado” em que o welfare state “funcionava melhor”, ou se fala irrefletidamente de autonomia e do desconhecido sem levar minimamente em consideração a esfera da necessidade que, pequeno problema, é aquela graças a qual se pode viver. Assim nos esquecemos que a condição para que possamos chegar a viver em um mundo de livres e iguais é aquela, trivialmente, de poder viver. Uma questão que vem à tona com extrema clareza em uma situação como a atual, em que os problemas tendem a emergir nus e crus, sem o habitual verniz que os revertem, pelo menos neste canto do mundo. A menos que se negue a gravidade sanitária atual ou se hipotetize que, fatalmente, dadas as condições atuais, não há mais nada a fazer senão aceitar morrer de capitalismo – porque é disso que se trataria –, deveríamos nos esforçar para elaborar e sustentar, na prática, um discurso que vise salvaguardar nossa saúde e a de outros, levando em conta as necessidades sanitárias, sem nos deixarmos dominar pela razão do Estado. Compreendemos que esta afirmação parece pouco mais que um slogan, seguramente mais simples de dizer que de fazer, ou mesmo ser refletida em modo adequado. Mas não há nada de simples nesta ordem de problemas, e as dificuldades estruturais que estamos enfrentando devem ser explicitadas e nos acompanhar a cada passo em nossas ações e reflexões. A questão não é, evidentemente, aceitar de alguma forma a razão do Estado com sua lógica emergencial, útil para regular a população, criar obstáculos e se preparar preventivamente ao surgimento de descontentamentos e conflitos, além de ser um importante experimento do qual as autoridades, certamente, tentarão extrair ensinamentos no futuro. Não é necessário prever uma situação distópica, de total normalização das atuais medidas de contenção a partir de depois de amanhã, para entender a gravidade da questão. Por outro lado, é de anteontem, ou melhor, há décadas, que os Estados se esforçam para estudar técnicas de contra insurgência e de gestão militar das crises de vários tipos. Por exemplo, é possível que a contraparte aproveitará esta situação para relançar o 5G (apelando e legitimando-se, ainda que apenas como imaginário, para uma gestão da epidemia ao estilo coreano) ou para aplicar um toque de recolher atenuado em outras situações críticas.

Tal lógica emergencial responde, porém, a uma inegável exigência de conter os contágios e é esta a profunda diferença entre a situação atual e outras situações de emergência social ou de catástrofes ligadas a fenômenos, por assim dizer, naturais. Negligenciar ou minimizar este dado, ou fingir esquecê-lo, certamente não reforçará nossa capacidade de criticar e combater os dispositivos e o processo de autolegitimação realizado pelas autoridades. Seria interessante, por exemplo, ver que crítica podemos fazer a uma estratégia como a do Reino Unido para criar a chamada imunidade de rebanho

A crítica e a oposição ao, assim dito, estado de emergência devem ser, pelo menos, complementares a um discurso e a lutas que consigam colocar no centro do problema as vergonhosas políticas sanitárias, guiadas pela lógica feroz do lucro que, cada vez mais ao longo dos anos e sobretudo agora, tornam a possibilidade de tratamento para aqueles que não dispõem de certos recursos econômicos um luxo extremamente seletivo. Isto certamente não significa reivindicar o papel e a lógica da saúde pública como objetivo final pelo qual se deve lutar, mas a luta para viver livre, repetimos, passa pela possibilidade de viver e as reestruturações no campo da saúde têm sido, e continuam a ser, verdadeiros atos de guerra contra tantas e tantos explorados. Uma carência na possibilidade de tratamento que, em um mundo como o capitalista, estruturalmente hostil a qualquer forma de autonomia, equivale a verdadeiras sentenças de morte, para além do Covid-19. Lutar para expandir estas possibilidades, em paralelo com a construção de um conhecimento e de lógicas diferentes em relação ao sistema de saúde público, representa uma peça fundamental para a perspectiva revolucionária que não quer opor ideologicamente liberdade e necessidade de vida. Como articular propostas concretas é um problema que, seguramente, vai além deste breve texto e, pelo menos no momento, das habilidades e experiências de seus autores. Aprenderemos a fazê-lo, se é que aprenderemos, fazendo-o e pensando criticamente nas lutas que seremos capazes de construir.

Buscar, na medida do possível, analisar corretamente o fenômeno tem repercussões tanto éticas quanto estratégicas: por um lado, não podemos arriscar colocar em perigo outras pessoas e possíveis cúmplices diante do risco de contágio. Nós, companheiros, que já somos poucos e com energia escassa, não podemos adoecer. Não podem adoecer e morrer os nossos possíveis cúmplices… que adoeçam os ricos, os governantes e os patrões, pelo menos. Por outro lado, devemos compreender como a situação irá evoluir e os cenários prováveis.

Seguramente não podemos nos permitir esperar, porque, apesar do mais aproximativo determinismo ou mesmo querendo imaginar uma garantida catástrofe que se posiciona diante de nós, o ponto é como transformar a catástrofe em revolução.

LUTAR… COMO

Retomando o assunto das faltas, não podemos deixar de notar uma lacuna na nossa relação com as e os explorados que vivem ao nosso redor. Algumas coisas que deveriam ser nossa base de intervenção resultam, de antemão, difíceis: criar relações de solidariedade com as pessoas mais afetadas pelos impactos sociais e materiais, evitando algumas imposições idiotas do governo e a dependência em relação ao aparelho de controle estatal; contrastar a narrativa dominante e revelar os efeitos futuros na qualidade de vida; tentar partilhar com os e os proletários imigrantes ferramentas para compreender o fenômeno do vírus e as jogadas do Estado; ajudar a compreender o tipo de repressão executado e como combatê-lo (considerar a extensa aplicação do artigo 650 do código penal italiano). Que as medidas sociais postas em prática serão dirigidas apenas à parte mais remediável da população é certo, mas também a narrativa praticada até o momento denota uma certa seleção diante do próprio contágio: grande parte das e dos imigrantes explorados, que não conhecem bem a língua italiana, têm sérias dificuldades a entender qualquer coisa, nem que seja como usar bem a máscara ou as luvas.

Também aqui, é preciso aproveitar os sinais que uma situação de crise traz consigo e enveredar por este processo de aceleração, tentando encontrar, em breve, com muitas mais pessoas que nossas lutas específicas tenham sido capazes de fazer nos últimos tempos. Deficiências que, talvez, não poderão ser preenchidas inteiramente. Ao mesmo tempo, entender se e como reencontrar aquelas pessoas com as quais dividimos um momento de luta, ou com quem ainda a dividimos. Por exemplo, se as lutas nos centros de detenção para imigrantes não tivessem recuado e se não tivessem tomado os celulares dos “encarcerados”, talvez aquele tivesse sido um outro campo de batalha semelhante às prisões, mas com mais possibilidades de interação.

Se quiséssemos olhar para os desafios que enfrentamos, mesmo com um foco temporal, deveríamos começar a imaginar o que fazer na fase de saída desta emergência sanitária (se e quando haverá), e os impactos sociais que ela trará… ainda mais com a possibilidade de voltar às ruas. Não se moverá uma folha e todos estarão felizes pelo retorno à normalidade ao grito de “RinascItalia” (Renascitália)? Haverá pelo contrário uma catástrofe tal que canalizará uma furiosa raiva coletiva? Iniciarão uma série de conflitos em áreas específicas da sociedade (trabalhadores de restaurantes, da saúde, desempregados, pessoas com doenças agravadas pelo coronavírus, a luta para não pagar os gastos, etc.)? Aqui também recomeçamos pelas falhas.

De forma geral, nas várias zonas da Itália, desenvolvemos, ao longo dos anos, estudos e pesquisas em vários âmbitos que compõem esta sociedade, dedicados à produção e reprodução do sistema capitalista. Muitas vezes com a ideia de extrair qualquer análise que orientasse e iluminasse as propostas de luta e ação. E, no entanto, pelo menos para quem escreve, se a emergência terminasse agora e se criasse, por exemplo, uma concentração de pedidos de exames médicos suspensos, durante a emergência, com o risco de que as pessoas em situações mais urgentes precisem recorrer ao dispendioso sistema de saúde privado, saberíamos frente a qual oficina ir para protestar? Indicar detalhadamente os responsáveis, de décadas e séculos, por esta condição? É necessário preencher estas questões com estudo e observação, mas também com uma troca com os possíveis companheiros que conheceremos. Nós mesmos, de qualquer forma, estamos imersos na sociedade e sofremos a exploração que ela traz consigo. No trabalho, entre os vizinhos do condomínio, amigas e amigos estudantes, familiares fechados nas zonas vermelhas e com lugares na UTI esgotados. Talvez já conheçamos os possíveis companheiros.

Alguns problemas imediatos afetarão in primis a saúde das pessoas e revelarão imediatamente uma questão de classe: o que acontecerá com todas as doenças crônicas que, nesta situação de crise e carência de tratamento, terão se agravado? Que benefícios desfrutará o sistema de saúde privado devido ao desvio de uma parte das visitas atrasadas para suas clínicas a pagamento? Como os trabalhadores da saúde, há tempos obrigados a condições contratuais degradantes e a turnos de trabalho massacrantes, e cuja saída das circunstâncias atuais será muito mais longa, sairão efetivamente dessa crise sanitária?

Acostumados, ao longo dos anos, às pancadas repressivas, às dificuldades do conflito social, ao lado parcial da luta, corremos o risco de perder o impulso imaginativo e utópico. Um impulso que deve ser capaz de desenhar mundos ideais livres do capitalismo, mas lançar o coração além do obstáculo da resignação. E pensar grande.

Um olhar que, para atravessar diretamente o problema, oscila entre a capacidade de ataque e a autogestão das reservas na reprodução da vida em um processo insurrecional, além de suas modalidades organizativas. Porque se consideramos que, na base da crise coronavirus, está o mundo capitalista enquanto tal, se reafirmamos que possibilidades estão surgindo, para muitas pessoas, de conquistar essa consciência através de uma luta dura, então a dimensão é radical.

Nos limitaremos a “incitar” ou apoiar as manifestações de rua e seu nível de conflito, ou vamos, ao mesmo tempo, colocar-nos a questão de como nos virar, de como continuar a cuidar de nós mesmos sem reproduzir o modelo orientado ao lucro, de como usar os terrenos e os espaços agrícolas para produzir alimento? Como poderemos nos defender dos ataques da outra parte contra um território, ainda que parcial, em tumulto? Como dialogar com outros territórios distantes do nosso? Além disso, se cortam a água e a eletricidade de um setor da prisão em rebelião, por que não deveriam fazer o mesmo com todo um bairro?

Aqui a vertigem se insinua com força, melhor refletir mais. Esperamos apenas que estes argumentos parciais possam orientar o debate que está por vir.

Torino, 16 de março de 2020.