Pare a Guerra em Chiapas! – por Radio Zapatista

Duas autoridades indígenas zapatistas foram sequestradas por paramilitares a serviço do estado Mexicano em Chiapas. Após mobilizações internacionais, ambos foram libertos após 8 dias de cativeiro. O sequestro aconteceu dia 11 de setembro e foi organizado pelo grupo Organización Regional de Cafeticultores de Ocosingo (ORCAO) que defente os interesses de latifundiários na região e contam com a proteção estatal. Episódios semelhantes ocorreram em 2020 e em abril de 2021.

O levante e a organização popular autônoma segue sendo uma das maiores experiências revolucionárias de nosso tempo. Todo apoio e solidariedade a sua luta.

O texto abaixo traz uma análise da Radio Zapatista sobre o contexto e possíveis desdobramentos da escalada de tensão no território zapatista.

Viva EZLN! Viva Chiapas!

Movimentos sociais protestam frente ao Consulado Mexicano em São Paulo, 24 de setembro.

“PARE DE BRINCAR AGORA COM A VIDA, A LIBERDADE E OS BENS DOS CHIAPANECOS.”

Trecho do Comunicado do CCRI-CG do EZLN  de 19 de setembro de 2021.

 

Viena, 22 de setembro. A situação de violência em Chiapas continua e o EZLN alerta hoje para um estado “à beira da guerra civil”. Para entender o que está acontecendo em Chiapas, é preciso olhar as raízes e a sistematização da violência de vários ângulos. Este texto, não exaustivo, tenta dar uma visão geral do que está acontecendo no estado do sudeste mexicano, especificando algumas questões e conflitos.

Na última sexta-feira, 17 de setembro de 2021, em Viena, Áustria, cerca de 20 mulheres zapatistas e 30 homens da delegação aérea “La Extemporánea”, recém-chegados à cidade, reforçaram o contingente que se reuniu em frente à embaixada do México.

Forças de autodefesa do povo El Machete

Este ato de protesto inaugurou uma grande campanha para denunciar o paramilitarismo e a violência em Chiapas e exigir a aparição com vida de José Antonio Sánchez Juárez e Sebastián Núñez Pérez, membros zapatistas da Junta de Buen Gobierno (JBG) “Nuevo Amanecer en Resistencia y Rebeldía por la Vida y la Humanidad”da Caracol 10 “Floreciendo la Semilla Rebelde” localizada em Patria Nueva, perto de Ocosingo, Chiapas.

Os dois camaradas foram sequestrados em 11 de setembro por membros da Organização Regional de Cafeicultores de Ocosingo (ORCAO) – que tem uma longa história de violência paramilitar e impunidade na região – enquanto a delegação zapatista aerotransportada iniciava sua jornada. Segundo o comunicado do Comitê Indígena Revolucionário Clandestino-Comando Geral (CCRI-CG) do EZLN, foram liberados no dia 19 de setembro, graças à intervenção dos párocos de San Cristóbal de Las Casas e Oxchuc, pertencentes à Diocese de San Cristóbal.

Em frente ao prédio da diplomacia mexicana em Viena, a solidariedade internacional se manifestou com dezenas de ativistas de toda a Europa que denunciaram o governo do México por meio de microfone, faixas e faixas por sua resposta à reativação da violência contra-insurgente. A palavra em espanhol, alemão, grego, francês, português e galego, bem como o recente comunicado assinado por numerosas organizações, grupos e indivíduos na Europa culpam tanto o governo federal de Andrés Manuel López Obrador (AMLO) quanto o estado governo de Rutilio Escandón Cadenas, por sua cumplicidade com os ataques paramilitares perpetrados não só contra os camponeses maias zapatistas, mas também contra defensores dos direitos humanos e comunidades de Chiapas.

De acordo com a denúncia da Rede AJMAQ , assinada por organizações e grupos sociais de todo o mundo, neste mês de setembro os paramilitares de Chiapas se intensificam em ações criminais.

 “Esta escala de violência orquestrada a partir dos altos poderes do governo federal faz parte da iniciativa EZLN ‘Cruzando pela Vida, Capítulo Europa’. Iniciativa organizacional que busca expandir, de forma pacífica e criativa, a semente da resistência-rebelião para a humanidade e a Mãe Terra, ou seja; pela vida.”

Lembramos que a primeira delegação zapatista, o Esquadrão 421, partiu do México para a Europa de barco no dia 2 de maio. No dia 14 de setembro, é o Extemporâneo, uma delegação aérea do EZLN, que desembarcou nas terras da Slumil K’ajxemk’op / Tierra Insumisa (antiga Europa) e foi alcançado em 22 de setembro por uma delegação do Congresso Nacional Indígena (CNI).) E Frente dos Povos em Defesa da Terra e da Água-Morelos, Puebla, Tlaxcala (FPDTA-MPT) para ouvir e dialogar com as lutas de baixo e de esquerda. Desde 1º de janeiro de 2021, o EZLN divulgou sua Declaração pela Vida , assinada por centenas de grupos da outra Europa.

“Aqui estamos, e continuaremos aqui, até a apresentação dos companheiros vivos. Essa viagem já começou e ninguém vai impedi-la ”, disse um colega ativista em alemão e espanhol em frente ao prédio da diplomacia mexicana.

Quem é o grupo paramilitar que o EZLN denuncia?

A Rádio Zapatista, em ¨ A longa história de violência paramilitar e impunidade da ORCAO ¨, lembra que a Organização Regional dos Cafeicultores de Ocosingo, repetidamente denunciada pelas Juntas de Bom Governo como organização paramilitar, há mais de que ataca as comunidades zapatistas 20 anos com violência crescente e impunidade total.

Foi fundada em 1988 por 12 comunidades do município de Ocosingo, Chiapas, como uma organização legítima de luta que exigia melhores preços para o café e uma solução para o atraso agrário. Em pouco tempo, muitas outras comunidades aderiram. Durante anos, o ORCAO manteve laços com o Zapatismo. No entanto, eles foram rompidos no final da década de 1990, quando a organização, como tantas outras, cedeu à tentação de disputar o apoio do governo e cargos públicos em troca de favores. A ruptura se agravou com a chegada de Pablo Salazar ao governo de Chiapas em 2000. A ORCAO então abandonou a luta e se juntou ao governo, rompendo com o EZLN para ter acesso ao dinheiro público. A partir desse momento, os ataques ao EZLN tornaram-se cada vez mais frequentes e violentos.

Até agora, em 2020 e 2021, os ataques às bases de apoio zapatista, seus centros de autonomia e aos que apóiam o EZLN se multiplicaram:

  • Sequestro e violência contra membros do Congresso Nacional Indígena (CNI) (em cumplicidade com membros do grupo paramilitar Los Chinchulines, bem como membros do partido MORENA) após sua participação na Conferência em Defesa do Território e da Mãe Terra “Samir Somos Todos y Todos ”, convocado pelo EZLN no âmbito do Combo for Life em fevereiro de 2020.
  • Destruição de dois armazéns de milho e café pertencentes a bases de apoio zapatista, em agosto de 2020;
  • Sequestro do camarada Félix López Hernández, base de apoio zapatista, em novembro do mesmo ano;
  • Seqüestro de dois membros do Centro de Direitos Humanos Fray Bartolomé de Las Casas em abril deste ano, após denunciarem os ataques armados à comunidade Moisés Gandhi em janeiro do mesmo ano.

Em novembro de 2020, a Junta de Buen Gobierno Patria Nueva denunciou que a ORCAO recebeu apoio do governo para construir uma escola, mas o utilizou para comprar armas de alto calibre, com a presumível cumplicidade do atual governo federal. AMLO chamou sua estratégia de Quarta Transformação (4T), referindo-se à Independência do México (1810), as Leis da Reforma (1858-1861) e a Revolução Mexicana (1910-1917), como os três antecedentes da transformação no México.

ORCAO queima vinícola pertencente a bases de apoio zapatista em Cuxuljá

Qual é a situação em Chiapas?

Se o México é o “quintal” dos Estados Unidos, Chiapas é uma de suas entradas. A desestabilização voluntária da área, o crescimento da violência, a impunidade sistêmica, fornecem todos os argumentos necessários para que o governo federal continue militarizando o estado e desenvolvendo a contrainsurgência, protegendo a fronteira sul e entregando as terras tão necessárias para a implantação do megaprojetos.

Desde o seu lançamento em dezembro de 2000, Chiapas está na mira de um projeto mais amplo, originalmente conhecido como Plano Puebla-Pánama. Hoje, o governo AMLO e sua “Quarta Transformação” lançaram vários projetos planejados desde então: o corredor transoceânico e o erroneamente denominado Trem Maia.

No entanto, em sua última declaração “Chiapas à beira da guerra civil“, o CCRI-CG culpou Rutilio Escandón, governador de Chiapas, e Victoria Cecilia Flores Pérez, secretária de Estado de Chiapas. Para mais informações sobre alianças estratégicas e nós de poder, consulte o artigo de Luis Hernández Navarro, “ El infierno chiapaneco “.

Por que os zapatistas culpam os três níveis de governo?

Uma das estratégias do governo do quarto trimestre, em Chiapas como em todo o México, é recorrer a programas sociais que o que acabam fazendo é dividir e desestabilizar a comunidade. “Dividir para conquistar” foi, é e sempre será uma estratégia eficiente do Estado para acabar com a organização e a comunidade.

“Semeando Vida” é o nome ironicamente dado pelo governo a um desses programas federais de bem-estar. Propõe ao campesinato do país receber dinheiro para trabalhar suas terras e plantar monoculturas de milho, manga, palma africana, entre outras culturas que estão disponíveis para exportação para o exterior ou para as grandes cidades do território mexicano. Para entrar no programa estadual, deve-se verificar a propriedade individual da terra em uma área de pelo menos 2,5 hectares. Essa é a base do problema. Em um país onde os ejidos (isto é, as terras comunais) ainda são coletivizados, comumente sendo as terras de plantio, isso gera divisões no tecido social.

Nas terras zapatistas recuperadas, as Juntas de Bom Governo concordam em emprestar terras para o trabalho coletivo, mas não para interesses individuais manipulados pelo Estado mexicano. É então que a desavença, divisão e perseguição de grupos paramilitares (armados e financiados no passado e atualmente pelos governos federal, estadual e municipal) penetra nas comunidades zapatistas, povos indígenas e aqueles que cruzam seus planos de controle e controle.

No Planalto de Chiapas, região composta por 17 municípios com população indígena, principalmente tseltal e tsotsil, existe mais de um conflito entre povos que o governo alimentou e justificou com disputas territoriais.

Qual é a situação nas cidades de Los Altos de Chiapas?

 Aldama

 Muitos laços familiares, culturais, econômicos e espirituais foram estabelecidos entre Santa Magdalena (Aldama) e Santa Martha (Chenalhó). Nas principais festas das comunidades, dentro das tradições dos povos indígenas de Los Altos de Chiapas, costuma-se acompanhar o santo ou santo do povoado vizinho, neste caso: San Andrés Larráinzar, Santa Martha (Chenalhó) e Santa María Magdalena (Aldama) comemorou juntos pela proximidade e intercâmbio cultural.

Aqueles que agora fazem parte da organização dos 115 Comunardos Deslocados de Aldama, herdaram o cuidado, o trabalho e a proteção de suas terras e suas famílias de suas mães e pais, ouviram seus avós falarem sobre como conheceram suas avós lá em Santa Martha, ou o contrário.

Entre 1975 e 2000, os governos por sua vez realizaram uma importante reestruturação do setor agrário com base em reformas institucionais e políticas, o artigo 27 da Constituição Política foi modificado com a suposta ideia de melhorar as condições dos camponeses, os preços de mercado. para seus produtos, etc. O conflito “territorial” entre Aldama e Chenalhó remonta à reforma agrária dos anos 1970, quando o governo cedeu 60 hectares de terras dos ancestrais proprietários de Aldama (Magdalena) para o Santa Martha (Chenalhó). Acordos foram feitos ao longo dos anos para definir a propriedade sem resultados. Ao longo dos anos, isso levou à destruição das árvores frutíferas do terreno, à expulsão de famílias e ao incêndio de suas casas, além de constantes ataques.

“Agora, não só com palavras mas com balas, com munições, os paramilitares de Santa Martha querem tirar-nos a vida como povo de Aldama. Como prova, está o vídeo que os paramilitares publicaram nas redes sociais.”

– Fragmento de uma declaração das autoridades de Xuxche’n, Aldama dirigida à comunidade nacional e internacional.

 

 

Esse discurso se repete entre os moradores das duas comunidades, mas o inimigo permanece invisível aos olhos do Estado. Durante uma conferência matinal, o presidente do México descreveu o conflito como uma diferença entre pobres e pobres e pediu que se acalmassem.

A partir de 2017, o conflito territorial tornou-se uma guerra de gotejamento com um inimigo que todos vêem de longe e não se sabe quem ou o que tem como alvo; grupos de pessoas armadas vestidas de preto com provável treinamento paramilitar começaram a atirar em ambas as comunidades. Até o momento, esses grupos mataram pelo menos 20 moradores de Santa Marta e Aldama, além de um número crescente de feridos.

Em ambos os casos, mulheres e homens que vivem neste território exigem que o governo faça algo para parar estes ataques através dos meios de comunicação locais, nacionais e internacionais, divulgando os ataques constantes de que são vítimas diariamente, e mantendo contacto com organizações de direitos humanos. Enquanto o medo só aumenta à medida que não conseguem ir às suas parcelas de terra para trabalhar o milho, o feijão, a abóbora ou o café, as suas colheitas são perdidas. Ir trabalhar torna-se cada dia mais perigoso, a comida acaba e no entanto os programas sociais para o material de habitação ou o campo, assim como as t-shirts com as cores dos partidos políticos em campanha, continuam a chegar no meio de balas e sangue.

Há poucos dias, em setembro, Domingo Sántiz Jiménez, da cidade de Xuxch’en, foi assassinado por membros de um grupo armado paramilitar de Santa Martha, Chenalhó, com uma arma de alto calibre. Ele e sua família voltaram para a aldeia de caminhão. Eles tiveram que parar no caminho para esperar que o tiroteio parasse. Domingo, 33, recebeu um tiro no rosto.

Em fevereiro de 2019, o Oventik Good Governance Board havia decidido sobre os ataques contínuos.

Pantelhó

“Nossa luta não é política, mas pela vida, porque os narcotraficantes mataram mais de 200 pessoas e as autoridades os protegeram”.

– Depoimento de um dos moradores de Pantelhó durante a apresentação dos “Grupos de Autodefesa do Povo Machete”.

Mais de 3.500 pessoas de 86 comunidades se reuniram em San José Buenavista Tercero, uma das comunidades do território Pantelhó, no dia 18 de julho, para anunciar publicamente o nascimento das “Forças de Autodefesa do Povo El Machete”. Em seu depoimento, eles explicam a necessidade de pegar em armas ao chegar ao ponto de exaustão devido ao assédio que sofrem nas mãos de grupos armados protegidos pelas autoridades municipais. Antes de pegar em armas e se apresentar ao povo mexicano, os habitantes do município denunciaram as agressões sofridas e pediram reiteradamente ao Estado que aja para prender esses grupos. Por não ver ações concretas e após o assassinato de Simón Pedro Pérez, integrante das Abelhas Acteal e morador da região do Pantelhó, de acordo,Eles decidiram fazer justiça com suas próprias mãos e governar seu povo sob os usos e costumes dos povos nativos.

Ao decidir assumir a presidência municipal, a cidade de Pantelhó testemunhou confrontos armados entre o Exército mexicano, Guarda Nacional, Polícia Municipal, grupos armados e moradores. Por um tempo, o cenário foi de casas queimadas, carros destruídos e impactos de pedaços de metal de bombas do tipo molotov nas paredes das casas próximas à sede do município. Na estrada era possível ver centenas de invólucros de alto calibre, marcas de explosões de bombas e dezenas de soldados armados com submetralhadoras carregando quilos de munição nos ombros, além de um helicóptero militar sobrevoando a área.

Após a recuperação da ordem, os moradores pediram diálogo com o governo estadual para exigir o direito de se autogovernar sob seus usos e costumes. No município de Pantelhó, hoje governado pelo povo, ocorreu um diálogo entre o estado e a voz de milhares de habitantes da região fartos da violência.

Hoje Pantelhó é regido por costumes e tradições e, embora a violência tenha diminuído desde então, o assédio continua, pois apenas no dia 18 de setembro de 2021, um homem foi entregue às autoridades após moradores perceberem que ele portava arma de fogo e tinha um bomba com ele.

Resumo oficial do funcionamento da Lei de Usos e Costumes dos povos originários do México. 

Huixtán

Em outro ato violento, no dia 13 de julho deste ano, um grupo de cerca de 30 homens vestidos de preto, encapuzados e fortemente armados, entrou na prefeitura do município indígena de Huixtán , para levar três trabalhadores do município e três veículos do próprio conselho para obrigar o presidente do município a cumprir a pavimentação das ruas da citada comunidade.

Oxchuc

Em 8 de julho, Eduardo Santiz Gómez, 21, filho do presidente municipal de Oxchuc, foi sequestrado por homens armados na periferia do município e foi libertado 25 dias depois.

Altamirano

Na noite de 15 de setembro, incendiaram o palácio municipal de Altamirano. Neste município, foi denunciado que o presidente do município e sua esposa governarão por 4 períodos, em nome do Partido Ecologista Verde, incluindo o que começa em 1º de outubro.

Que outra consequência esses conflitos têm?

Todos esses conflitos, impregnados de violência e impunidade, levaram ao deslocamento forçado ocasional , intermitente ou permanente de milhares de pessoas no estado de Chiapas. As famílias forçadas a deixar suas casas muitas vezes não têm mais acesso às suas terras, resultando na perda de suas safras e na impossibilidade de plantar novamente no ano seguinte. Os deslocados, além da violência sistêmica e da discriminação perpétua, devem enfrentar o frio, a fome, a doença e a morte, vivendo com medo e sem vislumbrar uma saída dos conflitos ou retornando logo para suas casas, causando desespero, danos psicológicos e emocionais e o agravamento do tecido social da comunidade.

De 1994 a junho de 2020, Chiapas teve 37 deslocamentos forçados, ou seja, mais de 115 mil pessoas deslocadas, sendo a principal causa o conflito armado e as violações dos direitos humanos.

3.205 pessoas, principalmente meninas, meninos e adolescentes, fugiram de Pantelhó e de algumas cidades de Chenalhó em 8 de julho, tornando-se o deslocamento em massa com o maior número de pessoas desde outubro de 2017 , quando mais de 5.000 pessoas foram forçadas a fugir. De várias comunidades de Chalchihuitán e Chenalhó.

Chalchihuitán, Chenalhó e Aldama são os municípios onde mais pessoas foram deslocadas à força em Chiapas.

E a migração?

Desde 28 de agosto, foram registradas 4 caravanas de mulheres e homens, meninas e meninos de Cuba, Nicarágua, Guatemala, Honduras, Venezuela, Senegal e Haiti. A resposta do Estado por meio do Instituto Nacional de Migração (INM) foi realizar operações de detenção com violência excessiva e uso desproporcional da força para impedir o trajeto de pessoas que buscavam sair de Chiapas devido à demora na resposta e resolução de sua imigração e refugiado procedimentos de regularização.

Em seu comunicado, publicado em 4 de setembro de 2021, “ Contra a xenofobia e o racismo, a luta pela vida, as Juntas Zapatistas de Bom Governo, a CCRI-CG do EZLN e as comunidades indígenas zapatistas declaram que:

Mesmo entre os elementos da chamada Guarda Nacional existe descontentamento. Porque eles foram informados de que sua missão seria combater o crime organizado, e agora eles os têm como cães de caça perseguindo pessoas de pele escura. Porque essa é a instrução: para caçar qualquer pessoa de pele escura: “Pare com a porra de qualquer negro que encontrar”, é a ordem. É uma declaração e tanto de política externa.

As condições pioraram como resultado da pandemia COVID-19. O fechamento de fronteiras, abrigos para migrantes, escritórios do COMAR, a perda de empregos e a recessão econômica, bem como a maior dificuldade de acesso a cuidados médicos, pioraram ainda mais a qualidade de vida de mulheres e homens. .

Qual é a situação da saúde em Chiapas?

Desde o início da pandemia, nenhuma estratégia de atendimento foi desenhada para as populações rurais e indígenas, muito menos para as comunidades aposentadas do sudeste mexicano. As campanhas de prevenção e informação sobre a pandemia foram confusas; por exemplo: nas pequenas unidades de saúde das comunidades, foram observadas faixas confeccionadas pelo Ministério da Saúde com a legenda: “Quem pode pegar Covid-19? Pessoas que viajaram para a China ou que estiveram em contato com alguém da China ”. A situação da aplicação da vacina contra a Covid-19 é semelhante porque, por falta de acesso à informação, desconfiança e uma cultura e conhecimento muito distantes do sistema de saúde ocidental, muitas pessoas não vão à aplicação do antídoto, agora imposta pelo sistema capitalista.Os números de contágio e morte foram e são controlados por um governo hermético, por isso é difícil ter dados conclusivos; os registros de óbitos em pequenas comunidades nunca fizeram parte dos registros da secretaria estadual de saúde, menos na soma dos óbitos nos dados do governo federal. Hoje as vacinas chegam voluntariamente aos municípios lentamente, embora a publicidade oficial do IMSS opere para demonstrar o trabalho de distribuição e aplicação de sua atual diretora Zoe Robledo, provável candidata ao governo do estado de Chiapas. Em um contexto onde a saúde comunitária é administrada de forma diferente das cidades e onde a população se irrita com as mentiras da classe dominante, a desconfiança no sistema está causando mortes.

Em resposta a isso, as comunidades concordaram em como lidariam com a doença. Por exemplo: os caramujos zapatistas estiveram entre os primeiros, tanto local quanto nacionalmente, a alertar para a gravidade da situação mundial ; Com base em estudos científicos, eles tomaram as medidas pertinentes (campanhas internas de informação, medidas sanitárias, fechamento dos caramujos) que vigoram até hoje.

Nas últimas semanas, houve um aumento dos casos de contágio em várias comunidades, ainda maior do que no mesmo período do ano passado. Em Aldama, por exemplo, que não relatou a presença da doença por meses, um grande aumento foi identificado nas últimas semanas.

O que se exige de Chiapas e do exterior?

A situação em Chiapas é complexa e nada uniforme. No entanto, a violência é generalizada em todo o estado e se intensificou nos últimos meses, quando a campanha eleitoral começou no início de abril de 2021.

Desde 1994, o EZLN luta pela paz e pela justiça. Hoje suas demandas permanecem. É hora de exigir, tanto do México quanto do exterior, o fim da guerra de Chiapas. Trata-se de manifestar não só para gritar ataques suficientes ao território zapatista, mas também pelo direito de todo um povo viver em paz.

O EZLN convoca a rebelde Europa, Slumil K’ajxemk’op, e as redes do Sexto Nacional e Internacional a “se manifestarem em frente às embaixadas e consulados, e nas casas do governo do estado de Chiapas”, a seguir Sexta-feira, 24 de setembro, exigindo o fim das provocações e o abandono do “culto à morte” professado tanto por governos como por grupos paramilitares e criminosos.

 

Somos Todos Antifa? Sobre a Necessidade de não Dialogar com o Fascismo

O texto a seguir é um dos artigos que integra a coletânea “ANTIFA: Modo de Usar“, livro lançado em 2020 pela editora Circuito, no qual o coletivo Facção Fictícia contribui com um artigo, traduções e uma entrevista com Mark Bray.

No momento em que as ruas voltam a ser espaço de disputa e atuação política e a radicalidade é sabotada amplamente pela esquerda, surgem manifestações de liberais e da direita que apoiou Bolsonaro a chegar ao poder depois que o mesmo fez seu maior ensaio golpista no último 7 de Setembro. Assim, parte da esquerda – que não usa tudo ao seu alcance para apoiar as lutas indígenas contra o Combo da Morte e a PL 490 – debate energicamente se deve se juntar ou não aos protestos dessa gente, ou se deve oferecer a eles uma oposição tão firme quanto ao fascismo escancarado.

É preciso ter claro que os liberais não são (nem nunca foram) aliados para barrar o avanço do fascismo, seja na base ou no topo das instituições. Os partidos e grupos liberais são os que toleram e abrem as portas para fascistas no governo – muitas vezes com apoio da centro-esquerda. Portanto, a luta contra antifascista deve ser uma luta anticapitalista que enfrente todos os possíveis aliados do fascismo.

Boa leitura.

Bloqueio do elevado Helena Greco em Belo Horizonte, 3 de julho de 2021.

Recentemente a onda de protestos nos EUA, que se espalhou por vários lugares do mundo, deflagrados pelo assassinato de George Floyd pela polícia, colocou novamente em cena o tema do antifascismo, levando uma quantidade enorme de coletivos e indivíduos a se declararem antifas. Essa popularização através da propaganda pelo ato pode ser de fato formadora, mas também pode ser um esvaziamento de sentido dos movimentos antifascistas, que os apaga enquanto alternativa diferenciada de luta. Dizer “somos todos antifas” é importante porque, como em outras insígnias semelhantes, aponta na direção contrária à criminalização: não há um grupo específico de pessoas que possa ser qualificado em tribunais como associação criminosa, que se possa denominar “os antifascistas”, trata-se, antes de tudo, de uma certa orientação geral prática que vários coletivos e indivíduos reivindicam. Mas dizer “somos todos antifascistas” também pode significar uma tentativa de assimilação em curso, de domesticação, de cooptação. Tal como avaliamos, a popularização do termo antifa não deve significar o apagamento dessa prática política e de sua diversidade de táticas, caso contrário essa propagação se tornaria uma diluição. O presente texto pretende contribuir para evitar tal processo, retomando o sentido da oposição fascismo/antifascismo na contemporaneidade e reforçando, particularmente, uma de suas características mais marcantes, a saber: com o fascismo não se discute, se combate.

Em tempos de governos que defendem abertamente valores fascistas, nos quais a luta antifascista chegou à consciência do público geral e a mídia corporativa se dedica a tentar explicar o que é o fascismo e o antifascismo — para muitas vezes igualar os dois ou criminalizar os antifascistas enquandrando-os como um grupo de caráter homogêneo, externo e invasor —, é preciso retomar alguns pontos importantes que sempre estiveram presentes na luta antifascista contemporânea e que podem ajudar aqueles que estão aderindo agora às lutas antifascistas.

Na contemporaneidade, a designação antifa diz respeito a uma orientação reivindicada por certos coletivos e movimentos quanto a não tolerância do fascismo de maneira alguma. Não diz respeito a um grupo específico, que pudesse ser uma organização terrorista, mas também não diz respeito a ser simplesmente contra o fascismo. Trata-se de uma orientação geral e prática preconizada por certos grupos, em sua maioria anarquistas, mas não apenas. Organizados em grupos de afinidade, são coletivos que legitimam a ação direta e que afirmam: com o fascismo não se discute, se combate diretamente. É importante notar que estes grupos têm raízes na contracultura punk dos anos 1980 e também, em alguns casos, nas torcidas organizadas de futebol, acostumadas a enfrentar a força policial diretamente. Não legitimam a luta jurídica, eleitoral ou institucional no combate ao fascismo, mas se organizam para impedir o fascismo de crescer, seja ao impedir uma manifestação fascista, seja ao impedir o fascismo no micro da sociedade. Os movimentos antifas defendem a autodefesa, a ação direta e a resistência não institucional ao fascismo. O antifascismo é uma reação à ameaça fascista e à ação violenta das forças policiais, na medida em que estas encarnam de forma evidente elementos fascistas. A violência policial racista e seus assassinatos são deflagradores recorrentes da resistência antifascista. E é interessante notar que o nascimento contemporâneo da antifa nos EUA se deu justamente em Minneapolis, onde o assassinato de George Floyd deu início à insurreição atual.[1]

O que significa a ação direta que estes coletivos reivindicam como arma primordial no combate ao fascismo? E por que, em se tratando do fascismo, ela parece ser a única possível? Em último grau, o que estamos dizendo que é intolerável quando dizemos que não dialogamos por quaisquer meios, que não negociamos o fascismo?

Primeiramente é preciso sempre desconstruir a ideia segundo a qual ação direta significa ação violenta. Uma ação é direta por não ser indireta, ou seja, por rejeitar representantes ou mediações para atingir seus objetivos. Mas não se trata aqui apenas de rejeitar a política institucional, e sim de encarnar na própria ação o objetivo buscado, rompendo com dualismos e com a separação entre meios e fins buscados. Neste sentido, organizar educação popular é ação direta; ocupar um imóvel abandonado também; tanto quanto promover eventos de contracultura e contrainformação. Adicionalmente, toda a luta na micropolítica onde o fascismo se encontra enraizado é uma luta por meio da ação direta, e aqui é preciso dizer ainda que as transformações reais, profundas, se dão de baixo para cima, no âmbito dos valores, no âmbito das práticas. Se atualmente a fascistização da nossa sociedade aparece de modo tão evidente, isso se deve em grande medida ao fato de que nunca houve uma modificação de baixo para cima naqueles valores que constituem o cerne do fascismo. E sobre isso nunca será demais lembrar as palavras de Foucault:

E não somente o fascismo histórico de Hitler e de Mussolini — que tão bem souberam mobilizar e utilizar o desejo das massas —, mas o fascismo que está em nós todos, que martela nossos espíritos e nossas condutas cotidianas, o fascismo que nos faz amar o poder, desejar esta coisa que nos domina e nos explora.[2]

Como liberar nosso discurso e nossos atos, nossos corações e nossos prazeres do fascismo? Como expulsar o fascismo que está incrustado em nosso comportamento?[3]

Os grupos antifas na contemporaneidade defendem que é um equívoco interpretar o fascismo apenas no seu sentido histórico ou como uma característica nacional específica de algum povo, como os alemães ou os italianos. O fascismo nunca desapareceu para ser revivido novamente. Ele sempre esteve entre nós em silêncio, para voltar de tempos em tempos quando as classes dominantes, amedrontadas diante de uma sociedade em completa falência política, social e econômica, como na qual vivemos, recorrem ao fascismo para salvá-la da revolução social. Para eles, o fascismo não é apenas um tipo de regime, nem uma ideologia para um regime em potencial. Ele pode ser entendido também como uma prática, um método, baseado no desejo fascista de dominar, oprimir, obliterar o outro. O fascismo também não seria uma perversão ou desvio dos valores da nossa sociedade, mas uma consequência deles. Assim o psicanalista Wilhelm Reich definiu a mentalidade fascista como aquela do homenzinho subjugado que anseia por autoridade e se rebela contra ela ao mesmo tempo. Reich afirmou que não é por acaso que todos os ditadores fascistas surgem do ambiente do homenzinho reacionário.[4] E de modo ainda mais enfático:

As minhas experiências em análise do caráter convenceram-me de que não existe um único indivíduo que não seja portador, na sua estrutura, de elementos do pensamento e dos sentimentos fascistas. O fascismo como um movimento político distingue-se de outros partidos reacionários pelo fato de ser sustentado e defendido por massas humanas.[5]

Antifascistas exibem cartazes e bandeiras tomados de Bolsonaristas durante o 7 de setembro de 2021. Local desconhecido.

O problema dos fascismos cotidianos, dos microfascismos com os quais vivemos, acaba por complicar a dicotomia fascista/antifascista. Se todos nós possuímos elementos de fascismo de alguma forma, como podemos falar de antifascismo, diferenciar e dar nome aos fascistas? “Mate o policial dentro da sua cabeça” — diz um ditado anarquista. Para os antifas, o fascismo não é uma doença ou uma patologia inata, e sim algo normalizado no nosso cotidiano, uma perversão do desejo produzida pelas formas de vida capitalista e moderna: práticas de dominação, autoritarismo e exploração que nos integram de tal jeito que não podemos simplesmente decidir sair delas. Mas nem todo mundo se torna um neonazista. Isso também demanda uma prática fascista, uma reafirmação constante do desejo fascista de oprimir e viver em um mundo opressivo. E, com certeza, o mundo contemporâneo fornece essa reafirmação. Neste sentido, nos tempos como os que vivemos, precisamos praticar o antifascismo, trabalhando para criar formas de vida não hierárquicas, construindo espaços seguros para os grupos oprimidos, redes de solidariedade contra a violência policial e de grupos fascistas, agindo diretamente para combater o avanço do fascismo nos locais em que convivemos. É importante destacar aqui que não existe um comitê central que determina as regras e as diretrizes sobre como atuar ou sobre quem deve ser considerado fascista o suficiente para ser combatido; cada grupo que escolhe se engajar numa ação antifascista deve decidir sobre as estratégias e táticas apropriadas para a situação na qual se encontra. O antifascismo é, antes de tudo, uma prática ética e coletiva de resistência, não é um código moral.

A identidade é fundamentalmente sobre distinguir-se dos outros. O antifascismo, no entanto, é para todos. Devemos tomar cuidado para não isolá-lo dentro de uma demografia específica com um código de vestimenta e linguagem específicos. Isso é primordial, porque a extrema direita está se esforçando para descrever a antifa como uma organização alienígena monolítica, hostil. Nossa tarefa não é apenas construir uma rede de grupos, mas criar um momentum antifascista que se espalhe contagiosamente por toda a sociedade, junto a as críticas e táticas necessárias para essa luta.[6]

Por meio das ações diretas, os grupos antifas têm mobilizado exatamente os elementos que podem guiar o combate cotidiano ao fascismo, como presentes no texto “Introdução à vida não fascista”. Os grupos são múltiplos e por isso libertos da paranoia da organização totalizante; são não hierárquicos e agenciados entre si também de modo não burocrático; não separam teoria e prática e não se engajam em disputas institucionais e jurídicas por poder.

Ousaríamos mesmo dizer aqui que, na medida em que se colocam fora do âmbito da representação, se afastam da mobilização de afetos tristes.[7] E é por isso que podemos dizer que suas práticas não se separam do fim almejado. E também no caso da resistência ao fascismo histórico, foram fundamentais as ações diretas, descentralizadas e as redes clandestinas.[8]

São Paulo, 3 de junho de 2021.

O avanço da chamada nova direita no mundo pode ser entendido como um reviver dos valores fascistas, que sempre estiveram aí e se espalham hoje sem muita vergonha. Quais valores e práticas são essas? Basicamente, podemos resumi-la nas seguintes características: o culto ao militarismo e ao autoritarismo; o nacionalismo, ainda que meramente discursivo, dentro de economias privatistas periféricas abertas ao capital internacional, como a nossa; um certo fundamentalismo religioso; o racismo; a misoginia; a homofobia; e uma política de segurança que estabelece a morte como modo de governo, criando inimigos internos que se configuram discursivamente de modo distinto em cada território, seja como combate ao terrorismo, ao imigrante ilegal ou ao tráfico de drogas. Por meio dessas ideias, o fascismo continuou existindo no Estado moderno. É também por meio delas que podemos entender o caráter fascista do avanço conservador na política recente. Não é correto dizer, sobretudo na realidade latino-americana, que o fascismo ficou um tempo fora de cena para retornar no seio da democracia. De fato, os elementos fascistas sempre estiveram presentes no poder por aqui, acompanharam nossa história da colonização[9] ao estado novo, passando pela ditadura militar. O que talvez nos falte seja justamente uma resistência antifascista organizada, que se entenda como tal, que identifique diretamente estes elementos como constitutivos das políticas de segurança hoje e que se insurja contra eles em todos os âmbitos das nossas vidas. Apesar de não se identificarem expressamente como fascistas, a família Bolsonaro, o bolsonarismo e tudo o que a chamada nova direita representa, na prática, se encaixam perfeitamente nesses elementos. E aqui é sempre útil lembrar o que afirmou Durruti sobre o tema:

Nenhum governo do mundo combate o fascismo até suprimi-lo. Quando a burguesia vê que o poder lhe escapa das mãos recorre ao fascismo para manter o poder de seus privilégios, e isso é o que ocorre na Espanha. Se o governo republicano tivesse desejado eliminar os elementos fascistas, podia tê-lo feito a muito tempo. Em vez disso, contemporizou, transigiu e gastou seu tempo buscando compromissos e acordos com eles. [10]

Buenaventura Durruti, 1936.

Há mais de meio século, grupos anarquistas ou autonomistas denominados antifas chamam a atenção para o fato de que o fascismo não acabou com o fim da ii Guerra Mundial, até porque, como já analisava Maria Lacerda de Moura na década de 1920, é o filho predileto do Estado e do Capital. Em Fascismo – Filho dileto da igreja e do capital, a pensadora anarquista defendeu que o sistema capitalista sempre é potencialmente fascista, e demonstrou a sua relação interna com a instituição religiosa, a igreja e o clero.[11] O fascismo seria a consequência do Estado capitalista. Esta análise é extremamente atual e nos ajuda a entender como muitas das características do fascismo histórico se perpetuaram no seio das chamadas democracias representativas liberais. A história mostra, em vários momentos, que o antifascismo não deve dar os braços aos liberais, porque, quando o risco de uma revolução popular é real, estes últimos ajudarão a abrir passagem para os fascistas contra os revoltosos. Sem que a ameaça de sublevação seja real, as elites abrem as portas para líderes conservadores e aceitam a ascensão do fascismo, que mantêm sempre em seu cerne como um mal menor. [12] A impressão é de que sempre haverá um liberal ou social-democrata abrindo caminho para a extrema direita massacrar uma possível rebelião. Certamente a história não se repete, mas nos deixa lições: não se pode confiar nos meios eleitorais ou nas instituições ditas democráticas para derrotar o fascismo. E isso não apenas porque os fascistas chegam ao poder legalmente,[13] mas porque reside no cerne da representação espetacular do antissistêmico. Neste sentido, o princípio do fascismo é o extremo oposto da ação direta enquanto fim sem nenhum meio, já que nestas os meios são os fins. O fascismo é o sistema da representação tomando vida própria, se tornando absoluta, é o exercício do poder soberano em ato puro, sem necessidade de legitimação por parte do poder constituinte. Essa instituição que toma vida própria, com poderes absolutos, se apresenta falsamente como um antissistêmico, quando é de fato a encarnação do sistema. O estado de exceção que esteve sempre no cerne das democracias modernas. A ação policial com carta branca para matar é sem dúvida a sua experiência mais concreta. Neste sentido, os confrontos entre grupos fascistas e antifascistas nunca foram e não podem ser tratados como meros confrontos entre gangues rivais, tratam-se antes de confrontos com o fascismo, que é, e sempre foi, tolerado no cerne das sociedades ditas democráticas, e que é particularmente propagado hoje por setores religiosos e presente diretamente na prática das forças policiais. Talvez entender como a noção de Estado Policial é atual envolva compreender como a instituição policial encarna elementos fascistas, ainda que dentro da democracia liberal.[14] No Brasil e no mundo, a luta contra a polícia está interligada com a luta contra o fascismo. Todos os dias, nas periferias e favelas desse país, a polícia atua como um exército em guerra que ocupa territórios inimigos. O genocídio do povo negro e pobre é um projeto político de Estado. É o fascismo sendo exercido através das forças policias, dos aparatos de repressão e controle de populações.

Dos estádios às manifestações, as antifas no Brasil, desde seu surgimento, têm apontado para características fascistas das forças de segurança do Estado, sendo a luta contra a violência policial uma de suas principais bandeiras. “Não acabou, tem que acabar, eu quero o fim da polícia militar” é talvez a palavra de ordem mais repetida nas linhas de frente das manifestações compostas por antifas. Não é coincidência que o crescimento da violência policial na última década anda em conjunto com o avanço da extrema direita no mundo, além disso, é notório as fortes relações entre esses dois grupos pelo mundo todo. São diversos exemplos aos logo da história, mas não precisamos ir tão longe, basta notar como um policial trata um neonazista e como ele trata um favelado numa abordagem cotidiana.

A cada ano batemos novos recordes de mortes por policiais, enquanto as instituições ditas democráticas se tornam cada vez mais fascistizadas. Os antifas entendem que agora vivemos sob duas epidemias: a da brutalidade policial e a de Covid-19. Por isso muitos coletivos têm trabalhado desenvolvendo diversas ações diretas de solidariedade entre as comunidades e combatendo o fascismo por todos os meios necessários. Muitas dessas ações pelo Brasil estão sendo interrompidas pela brutalidade policial e pela violência do Estado que não dão trégua nem em tempos de pandemia. No Complexo da Maré e na Favela da Providência, no Rio de Janeiro, por exemplo, ações de solidariedade desse tipo foram violentamente interrompidas por operações policias que resultaram na morte de participantes das ações e de pessoas atendidas por elas.[15]

Nem todos estão do mesmo lado das barricadas.

Vivemos no país mais violento do mundo. Com uma taxa de homicídio de mais de 60 mil, a violência no Brasil atinge níveis maiores do que em vários países em guerra. Temos a polícia mais letal do mundo.[16] A cada 23 minutos, um jovem negro é assassinado nesse país, sendo a maioria pela polícia.[17] Durante a pandemia, mortes por policias aumentaram 43% no Rio de Janeiro. [18] Um aparato de repressão militar, herança da ditadura, em uma instituição que já é uma herança colonial escravocrata criou essa máquina de moer carne humana que é a polícia militar. Como se já não bastasse, também somos o país que mais mata LGBTQIA+ no mundo, os maiores assassinos de indígenas das Américas e estamos caminhando para liderar o ranking mundial de violência contra a mulher. Mas quando o assunto é a violência dos grupos antifas parece que esse pano de fundo descrito não existe. A opinião pública tende a igualar fascistas e antifascistas como extremistas equivalentes, algo muito grave, que impulsionou, em mais de uma ocasião, o crescimento do fascismo. A mídia e o governo sempre fazem o possível para deslegitimar a ação antifa. A sociedade brasileira é violenta e sanguinária, o projeto colonial genocida se estende até os dias atuais, porém nos acostumamos a ele. Praticar o o antifascismo é, em grande medida, nunca se acostumar. O antifascismo é autodefesa contra tudo isso e, assim, a tão propagada “violência antifa” é, de fato, uma contraviolência. Portanto, é de suma importância entender o antifascismo como elemento de um objetivo abolicionista e anticapitalista maior, que busca dar fim à polícia, às prisões e às hierarquias opressivas. Não ter tolerância com a intolerância não é equivalente a ser intolerante. O que não é aceito de modo algum neste caso é justamente a defesa da morte do outro, o que é um detalhe lógico, como veremos adiante.

A experiência histórica nos mostrou como certos discursos são perigosos e não devem ser tolerados porque eles se vinculam muito diretamente ao genocídio e à naturalização da barbárie. Quando grupos antifas se esforçam para impedir que eventos fascistas possam ocorrer, por exemplo, eles estão se baseando nessa experiência que nos foi legada. A mensagem dessas ações é: se algo similar começa a surgir deve ser imediatamente impedido antes que cresça. As vias normais de negociação e diálogo não só se mostraram historicamente incapazes de barrar o fascismo como, em princípio, nem poderiam fazê-lo, já que o fascismo constitui precisamente uma ruptura com essas vias. E de tal forma que tentar defender a liberdade de expressão do próprio fascismo só pode constituir-se como uma evidente contradição em termos. Não há o que argumentar quando o efeito prático é a eliminação literal de um lado da interlocução. O fascismo não pode se expressar porque se ele se expressa ninguém mais se expressa. Sua própria possibilidade discursiva precisa ser banida como absurda. Para explicar melhor este ponto, é útil uma breve análise linguística. Tomemos as seguintes afirmações:

1. Todos têm direito a expressar sua opinião;

2. Mas a opinião de alguns é justamente que: não é o caso 1;

3. Então, nem todos têm direito a expressar sua opinião.

O conjunto de proposições acima tem a forma de um paradoxo por autorreferência. O paradoxo se desfaz quando observamos que 1 não é uma mera opinião dentro do sistema de opiniões, mas é uma proposição metalinguística, ou melhor, tem um valor normativo em relação ao sistema. Isso significa dizer que ela é condição de possibilidade de haver opiniões dentro do sistema e, por isso, é uma necessidade que não pode ser negada ou colocada em questão. O fascismo funciona exatamente assim, ele não é uma opinião entre outras em um sistema, é a dissolução da possibilidade mesma de continuar havendo opiniões. Por isso não deve ser tolerado. Toda argumentação cai por terra contra o fascismo, pois não se pode argumentar com quem nega o pano de fundo sobre o qual se desenrolam argumentações. Você não pode dizer que o fascismo é simplesmente falso, você deve combater a sua própria possibilidade como dotada de significação. Pois uma vez que você tolera o fascismo, você tolera o absurdo como possível, ou seja, você destitui aquilo que deveria ser necessário deste estatuto de necessidade. E é precisamente por isso que dialogar com o fascismo já é deixá-lo vencer.


Notas:

  1. “Podemos localizar a gênese antifa na América do Norte em um pizzaria de Minneapolis, onde um grupo de skinheads antirracistas e multirraciais chamados Baldies estava reunido durante as férias de Natal em dezembro de 1987.” Bray, Mark. Antifa: o manual antifascista. Tradução Guilherme Ziggy. São Paulo: Autonomia Literário, 2019, p. 146.
  2. Foucault, Michel. “Introdução à vida não fascista”. Preface in: Gilles Deleuze e Félix Guattari. Anti-Oedipus: Capitalism and Schizophrenia. New York: Viking Press, 1977, pp. xi–xiv. Traduzido por Wanderson Flor do Nascimento.
  3. Ibidem, p. 03.
  4. Reich, Wilhelm. Psicologia de massas do fascismo (1946). Tradução Mary Boyd
    Higgins. São Paulo: Martins Fontes, 1972, p. 13
  5.  Ibidem, p. 12.
  6. Not Your Grandfather’s Antifascism. Coletivo CrimethInc., 29/08/2017. Tradu-
    zido por Erick Rosa.
  7. Ver: foucault, Michel, op. cit., pp. xi–xiv.
  8. Ver: bray, Mark, op. cit., pp. 99–100.
  9. Aqui é também interessante lembar a análise desenvolvida por Achille
    Mbembe, segunda a qual o fascismo histórico de fato aplicou à Europa os prin-
    cípios de ação que já eram utilizadas no processo colonizatório. O nazismo teria como premissas fundamentais o imperialismo colonial racista e os mecanismos desenvolvidos pela própria revolução industrial. Ver, por exemplo: mbembe, Achille. Necropolítica. Tradução Renata Santini. São Paulo: n-1, 2019, pp. 22–23.
  10. Entrevista de Buenaventura Durruti ao jornalista Van Passen, 1936.
  11. moura, Maria Lacerda de. Fascismo – Filho dileto da igreja e do capital. São
    Paulo: Paulista, 1934.
  12. Ver: bray, Mark, op. cit., pp. 54–56; pp. 61–63 e p. 70.
  13. Ver: Ibidem, pp. 247–252.
  14. Essa ideia foi desenvolvida pela autora em: jourdan, Camila. “Estado Policial
    e Estado de Exceção: notas sobre a sociedade contemporânea.” Em: Abolicionismos – Vozes antipunitivistas no Brasil e contribuições libertárias. Org. Guilherme Moreira Pires. Santa Catarina: Editora Habitus, 2020, pp. 57–68.
  15. Sobre isso, conferir: “Jovem é morto durante entrega de cestas básicas no rj;
    vizinhos criticam pm”, Uol Cotidiano, 21/05/2020. E: “Operação policial interrompe doação de cestas e deixa mais um jovem morto no rj”, Brasil de Fato, 23/05/2020.
  16. Sobre isso, conferir: “Polícia brasileira é a que mais mata no mundo, diz
    relatório”, Exame, 08/09/2015. E: “Com 62,5 mil homicídios, Brasil bate recorde de mortes violentas”, Uol Cotidiano, 05/06/2018.
  17. . Dados disponíveis em: “A cada 23 minutos, um jovem negro é assassinado no
    Brasil, diz cpi”, Flacso Brasil, 06/06/2016.
  18. Sobre isso, conferir: “Mortes por policiais crescem 43% no rj durante quaren-
    tena, na contramão de crimes”, Folha de S. Paulo, 26/05/2020.

O Relógio Sempre Atrasado de Quem Teme a Revolta – ou Como os Protestos de 2021 Foram Enterrados

Presenciamos a maior pandemia que o mundo viu em um século. No Brasil, com quase 600 mil mortos, uma crise econômica, desemprego, aumento da população em situação de rua, a fome crescente e uma crise institucional com ameaças de “ruptura” e golpe militar toda semana. O governo e os ricos parecem querer zombar de nós com lucros recordes para bancos e novos bilionários surgindo no país em meio a uma crise sanitária que acabou com mais de 4 milhões de vidas em todo o planeta – e segue matando – enquanto filas se formam em açougues onde pessoas esperam comprar ossos e outros restos para ter o que comer.

Ainda há pouco, países vizinhos na América Latina são tomados por revoltas e pressão popular nas ruas contra os custos de vida e a perda de direitos pelo modo de gestão neoliberal, enquanto por aqui prevalece um grande esforço dentro da própria esquerda para manter a ordem social e a paz nas ruas.

Motivos para revoltar-se nunca faltaram, mas agora eles transbordam! E muitos ainda se perguntam: por que a rebelião não tomou as ruas de todas as cidades, trancando vias, queimando carros, destruindo lojas e delegacias, incendiando carros e viaturas como fizeram companheiras e companheiros em Santiago, Bogotá e Minneapolis? Temos os mesmos ingredientes básicos: reformas econômicas sufocantes, ataques a direitos básicos, uma pandemia tornada plano de extermínio e violência policial racista com números de guerra.

Ainda assim, é possível que tenhamos jogado no lixo a única chance desde o início desse governo de massificar uma radicalização em escala nacional. Os únicos capazes de romper o cerco e demonstrar força e articulação são os povos indígenas ocupando Brasília de forma inédita e exemplar para defender seus territórios à espoliação capitalista. Mas estão lutando praticamente sozinhos.

A janela de oportunidade parece ter se fechado e pode ser que levará muito tempo para se abrir novamente. Porém, para além de colocar a culpa e a responsabilidade em um outro, ou apenas no que de fato está sendo feito por nossos inimigos, devemos pensar o que nós temos feito — ou deixado de fazer.

“Ao contrario do que alguns pensam, a gente não tem medo da morte. Se tivéssemos, não estaríamos aqui, armados de arco e flecha e sem colete à prova de balas… não estaríamos aqui de peito aberto em meio a esta cidade”

— Indígena em ato em São Paulo, quando STF ia julgar o Marco Temporal.

Inimigos da autonomia

Nas lutas contra o aumento das tarifas de transporte público em 2013 e contra a Copa em 2014, a organização autônoma de movimentos veteranos das lutas antiglobalização, como MPL e inúmeras assembleias horizontais, foram capazes de mobilizar pessoas em dezenas de cidades de forma inédita, passando longe do controle dos partidos e centrais sindicais pacificadas pelo governo do PT. As ocupações de escolas por secundaristas em 2015/16, mostrou que uma geração muito mais jovem se organizando pela primeira vez também pode adicionar elementos novos e uma diversidade de táticas (ocupações, marchas, eventos) em uma mesma luta e obter grande sucesso. Desde então, não conseguimos arrancar grandes vitórias dentro da perspectiva de uma luta autônoma.

Nas atuais lutas contra o governo Bolsonaro e a catástrofe da Covid-19, a centro-esquerda têm mantido sua hegemonia reformista e garantido seus interesses eleitorais nos chamados e na organização dos atos pelo Brasil.

Movimentos que se organizam por fora da agenda dos partidos ou das grandes centrais sindicais – especialmente sob o guarda-chuva petista como a CUT– são ainda minoritários e até grandes e importantes movimentos sociais como o MST se submeteram ao mesmo imobilismo reformista. Mesmo assim, os movimentos autônomos e independentes foram pioneiros e protagonizaram várias tentativas de radicalizar as lutas com diversos coletivos, movimentos e blocos autônomos tomando a iniciativa em diferentes cidades.

No início da pandemia em 2020, de Porto Alegre a Belo Horizonte, torcidas organizadas antifascistas foram as primeiras organizações a chamar atos para barrar e confrontar carreatas e eventos bolsonaristas enquanto todo resto da esquerda ainda só sabia repetir um “fique em casa” acrítico, fazendo de tudo para evitar o enfrentamento com a extrema-direita. Em 2021, de Londrina a Salvador, blocos de luta organizando anarquistas, comunistas e indígenas compuseram os atos chamados pelas centrais sindicais e suas coalizões.

Tais mobilizações tiveram mérito em levar pessoas para as ruas, divulgar as pautas e imagem da luta antifascista, além de reforçar o potencial de articulação e ação política das torcidas organizadas. Eles romperam o silêncio para dizer que a onda fascistóide é tão ou mais perigosa que o vírus. Muitas pessoas obrigadas a se aglomerar todo dia nos transportes públicos e no trabalho, ficar em casa para assistir fascistas tomarem as ruas para legitimar esse governo e sua crise parecia uma péssima ideia. Mas ainda é preciso avaliar os motivos que impediram tais mobilizações de manter o fôlego para se manter nas ruas e ampliar a adesão.

“Lutamos contra eles escrevendo cartas para que não tenhamos que enfrentá-los com os punhos. Lutamos com os punhos para que não tenhamos que enfrentá-los com facas. Lutamos com facas para que não precisemos enfrentá-los com armas. Lutamos com armas para que não tenhamos que enfrentá-los com tanques.”

— “Murray” de Baltimore, citado no  livro Manual Antifa de Mark Bray.

Após apontar os caminhos para uma autocrítica autonomista ainda a ser desenvolvida, não podemos deixar de avaliar o contexto político e as organizações para além dos nossos círculos autônomos ou radicais. Nesses quesitos, as frentes amplas partidárias reformistas foram mais eficientes em mobilizar simultaneamente atos por todo o país. Muito disso é devido à sua enorme estrutura, tempo de atuação e recursos – os custos para divulgação, aluguel de carros de som, combustível, drones para filmagem, etc. chegaram à cifra dos 40 mil reais em Belo Horizonte e mais de 100 mil reais em São Paulo, segundo os próprios organizadores em assembleias. Recursos que, além de impossíveis de serem empregados por movimentos autônomos em uma única cidade, são também uma prova do imenso desperdício inerente às formas tradicionais de protesto organizado de cima para baixo, pensados de forma quantitativa onde uma estrutura com veicular e sonora cerca, dita o passo e abafa as vozes de corpos que poderiam ser ouvidos e enfrentar seus inimigos de classe com muito quase zero investimento do próprio bolso – e causando muito mais prejuízo aos patrões.

É importante analisar o papel das frentes amplas que foram formadas desde a luta contra o impeachment de Dilma Roussef e como esse tipo de organização tem funcionado como um grande entrave na luta. O Fora Bolsonaro™(reforçamos aqui ironicamente a exclusividade da marca) reuniu a Frente Povo Sem Medo(composta majoritariamente por MST, PSOL, UP, PCB, dentre outros), Frente Brasil Popular(PT, MST, CUT, dentre outros) e a Povo Na Rua, Fora Bolsonaro (uma tentativa de partidos como UP e PCB de darem novos rumos aos protestos), além dos poucos independentes e autonomistas.

Nas discussões e assembleias ficou claro que a ala Brasil Popular fez de tudo para arrefecer o que já não parecia caminhar para a radicalidade. A decisão de adiar os protestos para um a cada mês depois e seu boicote claro as datas tiradas para além do seu controle reforçam esse diagnóstico. As reuniões das Fora Bolsonaro Nacional™ demonstravam claramente que grande parte dos que compunham o movimento oficial não queriam que os protestos se massificassem e saíssem do seu controle.

Qual foi o papel da CUT, a maior central sindical da América Latina, nos últimos atos que foram construídos no Brasil, se não a sabotagem de alto nível, desarticulação profissional e desmobilização esforçada? Enquanto diversos setores como os Correios são privatizados, professores e funcionários públicos passam por uma precarização cada vez maior, a CUT permanece extremamente recuada.

Não havia motivos ou desculpas para que uma grande greve geral não fosse convocada desde o início da pandemia. Porém, sabemos por qual razão isso não foi nem será feito: optou-se esperar até que Lula eventualmente possa ser eleito em outubro de 2022. Quem pode esperar até lá? Quando a revolta estourar nas ruas e nem mesmo essa esquerda cúmplice dos patrões e da lei puder controlá-la, seremos nós que estaremos nas ruas.

Na luta contra esse governo, sua base fascista, o neoliberalismo e a vida no capitalismo em si, aqueles que, como fizeram membros MTST e PCB, desfazem barricadas e agridem quem as ergue, são inimigos de classe. Também o são aqueles que se sentaram com a polícia e os partidos de direita em São Paulo para negociar e combinar o que é permitido e legítimo fazer em um protesto, jogando na fogueira qualquer movimento organizado ou revoltas espontâneas que possam surgir. São falsos críticos do capitalismo pois não fazem sua crítica com ações concretas quando é a hora, apenas aguardam, tramam e agem quando convém à sua agenda por entrar na máquina estatal. E pior: se colocam no caminho de quem tem disposição para agir, declarando-os inimigos. Nossa leitura apenas aceita e reforça tal declaração.

Revolta, revolução e muita confusão

Do nosso lado das barricadas, é preciso reconhecer que perdemos também tempo e oportunidades em debates e confusões sobre a “conjuntura ideal para luta” ou as “condições para radicalização”. Muito se questionou sobre “o que a revolta constrói a longo prazo”, de “que adianta uma greve geral ou radicalizar agora” enquanto a população está “sem trabalho ou na total informalidade e precarização” — como se essa não fosse a realidade permanente da população. Os argumentos mais desonestos afirmam que “a ação direta combativa nas ruas daria o pretexto ideal para Bolsonaro dar um golpe” ou instaurar um estado de exceção — como se a elite precisasse de pretextos para explorar, escravizar reprimir ou agir na exceção e não o fizessem diariamente.

Muitas dessas avaliações derivam de uma análise dogmática ou ideológica das lutas, mais preocupadas em encontrar sinais de etapas revolucionárias em revoltas pontuais. Algo disso vem das narrativas que movimentos radicais compartilham, onde as mobilizações e levantes ocorrerão de forma crescente até que a ordem social venha abaixo por uma revolução. No primeiro caso, deixamos de enxergar o que as ruas dizem, as oportunidades imprevistas que se abrem para as pequenas vitórias. No segundo, ignoramos uma tendência em que as lutas avançam e sofrem refluxos, momentos de mobilizações e vitórias, momentos de repressão e também de reação – quando inimigos avançam sua agenda reacionária ou fascista. Algo que nossa geração conhece por experiência.

Quando falamos de revolta popular e vitórias pontuais, temos como exemplo as vitórias em 2013 contra a tarifa no Brasil e, mais recentemente, no Chile, quando em 2019 uma luta dos estudantes e trabalhadoras também contra aumento nas tarifas abriu caminho para uma onda de protestos contra o modelo neoliberal que culminou numa vitória histórica que derrubou a constituição da era Pinochet. Sejam nesses exemplos, ou nas lutas por George Floyd nos EUA ou contra a Lei de Extradição em Hong Kong, as ondas de revolta são exemplares e inspiradoras, mas muito distante de um verdadeiro processo revolucionário que pode promover uma mudança profunda nas estruturas de comando da sociedade.

Revolta, por mais que necessária, não é o mesmo que revolução — nem necessariamente conduz imediatamente a uma revolução. Não há motivos para gastarmos horas em análises de conjuntura se não for para nos engajar e apoiar uma luta dos de baixo, mesmo que pontual, por ela não corresponder ao “previsível” desenvolvimento das “etapas” para uma radicalização.

Sabemos muito bem que para levantes como de 2013 no Brasil ou 2020 no Chile e nos EUA abrirem caminho para uma revolução, será preciso um longo caminho de construção de estruturas comunais, articulando muito mais gente, recursos e territórios. Algo que, como ensinam os povos de Rojava a Chiapas, é custoso, contraditório, incompleto e atrai permanente embate com nossos inimigos.

Mas avaliar tendências históricas ou recentes e nos preparar para assumir posturas coerentes aos nossos princípios não significa nos limitar a uma rígida análise dogmática sobre as lutas e transformações sociais. Deixar de enxergar padrões e tendências na história, para acreditar em leis pretensamente científicas é um erro imobilizador.

Aqueles que esperam “a conjuntura ideal”, não reconhecem o papel da revolta e esperam pelas “leis naturais da revolução”, querem compreender as “leis” que regem a sociedade como quem avalia as propriedades dos astros ou dos minerais. Preferem não agir para não ter que apostar no desconhecido, imensurável ou previsível – aquilo que não podem controlar. Por isso, ao preferir as previsíveis “leis da revolução”, acabam do lado das previsíveis leis da polícia e da burguesia: vão atacar, sabotar, denunciar e entregar elementos que desafiam ambas.

“A ironia da história universal põe tudo de cabeça para baixo. Nós, os ‘revolucionários’, os ‘subversivos’, prosperamos muito melhor com os meios legais do que com os ilegais e a subversão.”

– Frederich Engels, Prefácio de ‘As Lutas de Classes em França’

É preciso abertura aos sinais de nossos tempos e apostar no que não conhecemos ou podemos controlar. Quem só quer encontrar uma “legalidade científica” para agir por transformação social, nunca luta de fato e apenas espera pela autorrealização da “dialética histórica”. Assim como os marxistas ortodoxos apenas esperam pelo resultado da contradição capitalista, abrindo mão da subversão e da ideia de revolução para respeitar a lei do estado e disputar seus cargos democraticamente, os novos sacerdotes “apreendendo” e “revelando” as regras dos movimentos sociais e dos protestos de rua nunca acreditam ser “a hora certa de radicalizar”. E quando o fascismo marcha com cada vez mais novos membros nas ruas e mais poder nas instituições, é porque, como já dissemos, seu relógio está mais do que atrasado.

Muito mais tragédias e muito mais oportunidades foram perdidas por quem teme o imprevisível do que por aqueles que acham que leis claras como as da termodinâmica poderiam ser aplicadas na sociedade, para prever e antecipar eventos. Talvez por isso que, de 1917 a 2020, radicais são quase sempre pegos de surpresa pelos levantes sociais.

Para momentos de efervescência nas ruas, precisamos de ideias e ferramentas práticas que deem suporte àquelas pessoas que, por sofrerem a perda e as sequelas de uma tragédia como a pandemia, a fome e a exclusão sistemáticas, se erguem e tomam iniciativa sem nada mais do que a disposição para negar e atacar materialmente essa ordem.

Se nenhuma conjuntura é favorável, ataque!

Se não ficou claro, diremos: uma das únicas “regras” que reconhecemos é que governos não recuam sem a pressão das ruas em chamas, das barricadas, dos bloqueios, das lojas saqueadas, palácios vandalizados e sem uma resposta proporcional à violência policial de forma generalizada. O maior protesto antiguerra da história, nos EUA em 2003, não surtiu efeito algum contra a invasão do Iraque pois se comportou e respeitou a lei e a ordem. Mas quando 200 cidades viram delegacias e prédios inteiros em chamas em 2020, as mídias e os políticos adicionaram até mesmo o fim da polícia na sua lista de debates — debate até então restrito aos movimentos mais radicais.

A única vez que a pauta única e imediata contra o aumento das tarifas dos transportes obteve uma vitória em escala nacional no Brasil nas últimas décadas foi quando, em 2013, movimentos autônomos chamaram o povo para as ruas sem pretensão de controlar ninguém, e confrontos e vandalismo tomaram centenas de cidades pelo país sem se submeter ao legalismo sindical e partidário.

O trabalho de base, a militância cotidiana que constrói laços e supre as necessidades imediatas da população não necessariamente são ameaçados quando há um levante em curso. Aliás, podem ser fundamentais para prover solidariedade, apoio material e convocar mais gente para manter as mobilizações por mais tempo. Mas não devem ser pretexto para algum movimento escolher o lado da lei, da polícia, da ordem e dos 1% no controle, assassinando com fome e bala os de baixo. Ninguém precisa estar em todas as formas de luta, ação e organização. Mas quando um black bloc, uma barricada, uma primera línea surge para revidar à agressão policial e atacar as estruturas de poder, cabe aos que se organizam previamente e se dizem revolucionárias apoiar e, no mínimo, prestar total solidariedade com a revolta dos de baixo.

Guy Debord ressaltou as revoltas no bairro negro de Watts, Los Angeles, em 1965, quando um incidente de trânsito culminou em dez dias de confrontos, saques e vandalismo. Segundo o autor, aquela foi “uma revolta contra a mercadoria, contra o mundo da mercadoria e do trabalhador-consumidor hierarquicamente submisso aos padrões da mercadoria. Os negros de Los Angeles […] tomam ao pé da letra a propaganda do capitalismo moderno […]. Querem possuir imediatamente todos os objetos expostos e abstratamente disponíveis porque querem usá-los. Desta maneira, recusam o valor de troca, a realidade mercantil que é seu molde […]. O homem que destrói as mercadorias demonstra sua superioridade humana sobre aquelas.” E continua: “a produção mercantil, assim que deixa de ser comprada, transforma-se em criticável e modificável em todas as suas formas particulares.”

Debord nos lembra que a revolta popular contra a opressão é, sem dúvida, a forma de crítica mais sofisticada possível. Onde ela surgir, devemos apoiar. Se não fisicamente, reforçando sua legitimidade e sua necessidade para uma transformação social.

Ainda assim, nem tudo é uma questão de quanta depredação ou quantas pessoas organizadas temos para lutar e arriscar suas vidas e sua liberdade para chegarmos a alguma mudança social. Da mesma forma, nem tudo que “vem do povo” também deve ser imediatamente aceito como desejável. O machismo e o fascismo podem vir do povo e podem ser o resultado de séculos de uma construção social e cultural. A revolta prática contra medidas impostas de cima para baixo, treina a organização e a ação de quem já se organiza, mas também convida novas pessoas a tomarem posição e avança debates: seja pelo fim da polícia, pelo acesso à cidade, seja sobre machismo dentro da esquerda ou os limites do reformismo.

Como disse Mark Bray sobre os protestos nos EUA em 2020, “não há nem longe membros suficientes ou grupos Antifa nos Estados Unidos para promover o que estamos vendo”. Essa é uma constatação básica que nos lembra que a revolta nos EUA foi uma revolta generalizada e do povo. Mas especialmente, da população negra e pobre. Por mais que gostemos de ver anarquistas, antifascistas e demais radicais marcando presença como uma força social potente, ela ainda é hoje uma força marginal capaz, quando muito, de influenciar e auxiliar as revoltas. Mas as pessoas que vão para as ruas em momentos como esse não são militantes experientes deliberando formalmente o que é “mais responsável” a se fazer.

Portanto, não existe “conjuntura favorável” para a luta dos oprimidos e todos os momentos oferecerão vantagens e desafios. Não existe momento em que a revolta pode acontecer sem “o risco de um golpe”, “de mais repressão” ou de “dar lugar a uma onda fascista”. Todos esses elementos estão sempre presente em maior ou menor grau. Não agir de forma combativa por “não ser essa a vontade da maioria” é esquecer que levantes e revoluções são trabalho de minorias da população. Nem 3% dos habitantes foram as ruas do Brasil em 2013 ou dos vários países durante a Primavera Árabe – e conhecemos bem o efeito devastador desse “pequeno número”. Não é por acaso que, da França em 1848 ao Chile de 2021, eleições e plebiscitos são uma ótima ferramenta para frear insurreições e transformar movimentações revolucionárias em reformas pacificadoras.

Nesse tema, ficamos com as palavras de camaradas da Teia dos Povos em agosto de 2021:

 Nossos povos fizeram Palmares, os Redutos do Contestado, Canudos, Calderão de Santa Cruz do Deserto, a Balaiada, a Cabanagem… nossos povos são rebeldes e não esperam conjuntura boa para lutar. Zumbi, Antônio Conselheiro, Manuel Balaio não poderiam esperar a mudança de governantes para agirem. Isto é muito sério, minha gente. Se queremos que o derradeiro dia de luta chegue, precisamos hoje amolar as foices, hastear as bandeiras e fazer uma boa roça que nos dê sustança para a batalha. A palavra da hora é autodefesa! O derradeiro dia não chegará se não mostrarmos desde já que é possível, que já soubemos e ainda sabemos fazer. E para isto, não tenham dúvidas, é fundamental a aliança de povos. Nenhum partido, organização ou povo pode unificar tantos povos heterogêneos com sua forma de agir. Então, que tenhamos uma aliança heterogênea, desde baixo, à esquerda e por terra e território.

Esta não é uma carta, é um convite à resistência, um convite a se aprumar para a guerra!”

—Teia dos Povos, “Só nos resta a GUERRA

Conclusão: 3 lados de um conflito global

A direita no poder dá aos movimentos radicais e anticapitalistas a chance de mostrarem formas de luta e objetivos que não dependem de relação com o estado. Rompendo o laço (ou a cooptação) que os movimentos sociais mantinham com a esquerda no governo e dificulta, mesmo que por um tempo, a identificação que os movimentos e muitas pessoas podem ainda ter com o aparato estatal e suas narrativas democráticas e institucionais.

No fim das contas, sabemos que nem a esquerda, nem muito menos a direita no comando do Estado serão capazes de minimizar os impactos de uma economia neoliberal globalizada, cada vez mais brutal e excludente. Se a luta indígena é a única a não recuar no Brasil hoje, é porque sabe que não adianta esperar por outro governo, o estado é sempre inimigo dos povos e das florestas e um aliado do capital. Não surpreende que nos governos petistas não houve demarcações que garantissem o acesso às terras indígenas hoje ameaçadas com a proposta do Marco Temporal, além de ter sido o governo de Dilma Rousseff que promoveu enormes ataques à Amazônia e seus povos com a construção de Belo Monte e um dos menores números de terras reconhecidas.

Não podemos deixar que a frustração com o governo Bolsonaro reabilite o projeto petista e pacifique as ruas novamente. Precisamos evitar esse pêndulo de atração e insatisfação que reúne a simpatia das massas hora à direita, hora à esquerda em períodos eleitoras.

Em momentos de crise neoliberal, pode ser útil para a elite assumir reformas apresentadas pela esquerda institucional para incluir os pobres nas linhas de crédito e consumo ou a um relativo bem-estar. Mas quando é o momento de retomar as rédeas e os lucros, neoliberais se aliam a fascistas para a retomada do controle total do estado.

Por isso é fundamental lembrar de lutamos e resistimos contra todos os que disputam pelo controle do Estado e do Capital, e que irão sempre usar seu aparato policial contra nós da base da pirâmide. Não esquecemos que foi no governo do PT que vimos um aparelho repressivo contra movimentos sociais e a ocupação das favelas serem levadas adiante como nunca. Tudo isso feito de forma a dar legitimidade para tais ações e instituições militarizadas que agora Bolsonaro herdou para usar contra movimentos sociais e toda a população.

O cenário dos conflitos sociais em escala global não se reduz apenas ao embate binário entre direita/esquerda, conservadores/progressistas, bolsonaristas/petistas. Existem ao menos três grande lados nos conflitos globais se delineando hoje, dentre os quais podemos nos situar de acordo com a perspectiva de ação e proposta para futuro:

1. Neoliberais de todos os tipos, dos Democratas nos EUA a partidos supostamente esquerdistas como o SYRIZA na Grécia, Podemos na Espanha e o Partido dos Trabalhadores no Brasil. Embora discordem dos detalhes, todos compartilham um objetivo comum de usar a governança estatal global em rede para estabilizar o mundo em prol do Capitalismo.

2. Nacionalistas como Trump, Erdogan, Bolsonaro e extremistas como o grupo Estado Islâmico ou o Talibã, que deixaram claro que não se incomodam com a construção de estados genocidas e a eliminação de povos – sejam indígenas, negros, LGBTTTQI, imigrantes, mexicanos, curdos ou palestinos. Essa categoria também inclui Assad, Putin e outros demagogos que – como os neoliberais – costumam estar em desacordo uns com os outros, mas todos buscam a mesma visão de um mundo pós-neoliberal de etnoestados concorrentes entre si.

3. Movimentos sociais radicais de libertação que buscam promover a autodeterminação pluralista e igualitária, com base na autonomia e na solidariedade. Anarquistas, Zapatistas e a revolução em Rojava são exemplos que se encaixam nessa categoria, mesmo que grande parte também tenha um caráter nacionalista.

Nesse cenário, onde o conflito social não é mais binário, mas se divide em três, movimentos sociais anticapitalistas precisam reunir forças e desenvolver suas próprias narrativas e estratégias para difundir conhecimento, apoio, solidariedade e coordenação. É nessa perspectiva que buscaremos manter e ampliar nosso campo de trabalho.

Movimentos autônomos, anarquistas, indígenas, antifascistas e outros fora da asa e da agenda eleitoral da centro-esquerda, devem romper o cerco, construir suas bases e estruturas para luta ou serão sempre usados como linha de frente quando for conveniente fazer oposição e rifados na hora de disputar a legitimidade necessária para ocupar cargos no estado.

Se compomos frentes amplas ou “unificadas” em luta contra Bolsonaro ou qualquer fascista no presente, não devemos nos iludir achando que nossa diferença de objetivos finais não trará contradições e conflitos agora. Se as bases do PCB ou MTST vão agredir manifestantes radicais nas ruas, Lula e seus iguais tampouco são aliados. São parte dos que querem amaciar as relações no capitalismo para perpetuá-lo ao máximo, tornando a sua queda ainda mais dura – seja com um golpe fascista, catástrofes climáticas ou, provavelmente, uma combinação de ambos.

Lula, que percorre o Brasil num clima de pré-campanha não oficial, não pronunciou nenhuma palavra em apoio a luta indígena contra a PL 490, o Marco Temporal e todos chamado Combo da Morte contra os povos e florestas. Seu compromisso, como já sabemos, é com a gestão “humanizada” do capital. Em declarações públicas e na internet, está mais preocupado em elogiar e fazer referências ao legado de Getúlio Vargas, ditador golpista que colaborou com a Alemanha de Hitler e fez de tudo para esmagar o movimento operário. O lado de Lula e do PT é o lado do estado e da polícia, das UPP’s, de Belo Monte, ocupação do Haiti, paralisação da reforma agrária, lucro recorde dos bancos e dos empresários.

Não podemos esperar por um partido ou um único salvador para fazer recuar esse governo e sua base fascista e militarizada. Lula pode até vencer em 2022, mas a minoria de apoiadores de Bolsonaro, repleta de milicianos e neonazistas, não vão baixar a guarda nem se desfazer das milhares de novas armas em circulação graças às políticas e propaganda do presidente. Mas sem uma oposição de base, organizada nas ruas e em toda a sociedade, o fascismo nunca recua. E, como aponta Mark Bray, uma minoria fascista já é risco suficiente.

A linha está traçada nesse conflito de 3 lados. Apenas um quer liberdade dos povos, as florestas de pé e os rios limpos. Não há outra palavra: estamos em guerra pela vida.

Post Scriptum:

Enquanto escrevíamos esse breve texto, nos deparamos com mais uma reunião da esquerda de São Paulo, a direita e as forças policiais. As forças bolsonaristas e o próprio presidente vem encarando o 7 de Setembro como uma data central para demonstrar suas forças na rua, inclusive ventilando por muitos meios a possibilidade de um golpe, a esquerda novamente se finge de morta e decide organizar um ato imóvel no Vale do Anhagabau  em São Paulo (colocando a culpa novamente na tática black bloc), em Belo Horizonte o Grito de Excluídos após reunião com a PM mudou o local de concentração para evitar conflitos com a direita, por todo o país a esquerda tem recuado em seus locais tradicionais de protesto para que a direita marche tranquilamente.

Dias atrás o conhecido deputado federal e ícone de esquerda Marcelo Freixo, disse que a esquerda não deveria dar mais motivos para que o Bolsonaro agisse com violência.

O próprio ex-presidente Lula afirmou que não iria nas manifestações de 7 de setembro, já que a cúpula do PT decidiu que é mais importante deixar Bolsonaro “derretendo” (e levando com ele o país) do que fazer uma real oposição.

De tanto fingir-se de morta, talvez essa esquerda já esteja!


Ilustrações por Francisco Papas Fritas — não deixe que a revolta seja apenas uma bela imagem como essas, ou apenas um retrato nos livros de história.


Mais informações:

 

A Construção do Presente e o Anarquismo Construtivo – por Tomás Ibanez

Este texto a seguir, extraído do livro “Anarquismo é Movimento“, de Tomás Ibanez, coloca em questão a distinção, propagada por Murray Bookchin e ainda muito influente nos meios anarquistas atuais, entre anarquismo social e anarquismo como estilo de vida. Tomas Ibañez explora os limites dessa distinção no que se refere ao próprio sentido histórico do anarquismo, que sempre operou na destituição das dualidades próprias à política da representação. De fato, chamar algo de ‘mero estilo de vida’ significa na maioria das vezes um qualitativo depreciativo, quase um xingamento, que procura situar por oposição aqueles assim adjetivados na esfera do não-sério; não-organizado ou não-comprometido. Ibañez, por outro lado, problematiza a própria noção de organização assim definida como uma idealização, mostrando que de fato não existe jamais um grupo, seja de afinidade, seja voltado à realização de uma atividade qualquer pontual, que esteja totalmente desorganizado, pois existem níveis de organização determinados por aquilo a que se deseja ou necessita. O desejo da organização ideal, única, totalizante é muitas vezes um fetiche oriundo de nossa educação institucional e estatal, que não nos permite ver a organização estabelecida pela prática concreta. Adicionalmente, a separação entre ‘social’ e ‘estilo de vida’ é filha da separação entre público e privado; político e pessoal; vida e gestão da vida, entre outras… separações estas que se estabelecem sempre já desqualificando um dos seus termos, até que a vida concreta mesma seja colocada na esfera do ‘nenhum valor em si’, pois o seu valor estaria sempre no âmbito abstrato das suas representações, seja política ou econômica, organizadas. Mas é justamente contra estas separações rígidas, no capitalismo; no Estado e na representação, que nós anarquistas nos insurgimos. É justamente a distinção entre o viver e o organizar a vida que nós recusamos. Sendo assim, Ibañez nos ajuda a ver que refundar essas distinções danosas no seio da luta libertária só pode nos levar à confusão ou à criação de microestados em nossos meios. A multiplicidade das práticas anarquistas e suas potências estão em não separar a luta da vida, que é talvez o que constitui sua maior força. Em máximo grau, nós anarquistas queremos uma sociedade na qual não estejam separados o modo de viver do próprio viver, e é por isso que em nossa prática não precisamos opor rigidamente o social ao ‘estilo de vida’. Muito por outro lado, desejamos uma política que vem, e que não se separa da vida, que é antes de tudo uma forma de viver.

Trecho do artigo A Construção do Presente e o Anarquismo Construtivo, no livro Anarquismo é Movimento (Intermezzo, 2015)

A importância de revisar as práticas de dessubjetivação hoje coloca diretamente em questão a famosa dicotomia que Murray Bookchin estabeleceu, em meados da década de 1990, entre anarquismo social e anarquismo de estilo de vida, pois os dois tipos de anarquismo, longe de serem opostos, estão de fato intimamente ligados. Com efeito, a necessária construção de uma subjetividade diferente através das lutas, sejam elas de uma perspectiva global ou local, implica que não existe um anarquismo social que não carregue componentes existenciais fortes e que não existe um anarquismo de estilo de vida que não esteja impregnado de componentes sociais. Apesar disso, costuma-se dizer que, ao contrário do que acontece com as revoltas ancoradas na questão social, as revoltas classificadas como existenciais são totalmente inócuas para o sistema porque, embora ultrapassem a esfera estritamente privada, não deixam de ficar presas a espaços confinados que não podem perturbar o bom funcionamento do sistema.

No entanto, este não é exatamente o caso. Se o anarquismo – que também é, acima de tudo, diriam alguns, um modo de ser, um modo de viver e sentir, uma forma de sensibilidade e, portanto, uma opção claramente existencial – representa um problema para o sistema, é, em parte, porque ele opõe uma forte resistência, não só contra sua intimidação repressiva, mas, acima de tudo, contra suas manobras de sedução e integração. Na verdade, apesar das exceções óbvias, acontece com bastante frequência que aqueles que foram profundamente marcados por uma experiência anarquista permanecem irrecuperáveis ​​para sempre.

Ao manter viva sua alteridade irredutível em relação ao sistema, eles obviamente representam um perigo para ele. Não é apenas que eles o desafiam permanentemente com sua mera existência, mas também servem como um retransmissor para o nascimento de novas sensibilidades rebeldes. Isso guarda alguma relação com o que Christian Ferrer, um bom amigo e filósofo anarquista que vive na Argentina, costumava me dizer: “O anarquismo não se ensina e não se aprende nos livros – embora possam ajudar – mas se espalha por contágio; e quando alguém está infectado, na maioria das vezes, é para sempre.

Então eu entendo que o anarquismo social, também chamado de anarquismo organizado, e o anarquismo de estilo de vida estão mutuamente implicados. Com efeito, é esse o caso na medida em que, por um lado, o desafio que representa a adoção de um estilo de vida diferente daquele preconizado pelo sistema instituído e a recusa em participar nas suas normas e valores constituem uma forma de luta que corrói sua pretensão de hegemonia ideológica e que gera conflito social, quando o sistema toma medidas normalizadoras ou quando dissidentes realizam atividades hostis. Em qualquer caso, o anarquismo de estilo de vida produz efeitos de mudança social que, às vezes, podem ser notáveis. Por outro lado, é óbvio que ninguém pode lutar pela emancipação coletiva e se engajar em lutas sociais sem afetar profundamente seu estilo de vida e modo de ser. Acontece também que as duas formas de anarquismo frequentemente coincidem no terreno das lutas concretas.

Isso não impede que certos setores do movimento anarquista se esforcem para erguer barreiras entre essas duas formas de praticar o anarquismo. É porque estou convencido de que essas barreiras enfraquecem o anarquismo que gostaria de argumentar aqui brevemente contra aqueles que se esforçam para consolidá-las: em geral, aqueles que são classificados, na maioria das vezes contra sua vontade, como partidários do anarquismo estilo de vida – que incluiria a maioria dos neo-anarquistas – mostra pouca beligerância com a diferenciação das correntes ideológicas libertárias e se sente pouco interessada nas lutas internas dentro do movimento. Em vez disso, são os defensores do anarquismo social ou anarquismo organizado – que se sobrepõe, em grande medida, às orientações comunistas libertárias – que se esforçam para estender seu raio de influência dentro do movimento e confinar os anarquistas estilo de vida às suas margens. São, portanto, os seus argumentos que gostaria de discutir aqui, mas não sem antes especificar alguns pontos para evitar mal-entendidos. É óbvio que o anarquismo “sem adjetivos”, só é sustentável como tal se estiver comprometido com a justiça social e a liberdade entre iguais. O anarquismo não só deve denunciar a exploração e as desigualdades sociais, mas também combatê-las com a maior eficácia possível; deve estar presente entre aqueles que se envolvem nessas lutas e deve tentar expandir sua influência entre aqueles mais diretamente afetados pelas injustiças do sistema. Nada a dizer, portanto, contra os esforços feitos por certos anarquistas para se organizarem especificamente a fim de ajudar a desenvolver melhor essas lutas, muito pelo contrário. No entanto, também é óbvio que o anarquismo social ou organizado muitas vezes transmite suposições e práticas políticas que o distanciam sub-repticiamente de suas raízes libertárias, seja porque adota estruturas insuficientemente horizontais – senão no papel, pelo menos na prática -, seja porque se deixa tentar por uma certa vanguarda, seja também porque é propenso a desenvolver práticas sectárias, entre outras coisas.

O capitalismo é, por hipótese, nosso inimigo mais direto e não temos que lhe dar trégua. A luta contra ele constitui um requisito inalienável para o anarquismo. No entanto, considerando a diversidade de natureza cultural ou outra que caracteriza os mais de sete bilhões de seres humanos que povoam a Terra, não é razoável pensar que nossos valores e nossos modelos sociais possam refletir as preferências das pessoas. Perspectivas totalizantes não nos sustentam, portanto, nem dentro da estrutura do vasto “mundo mundial”, é claro, nem dentro da estrutura de uma sociedade particular.

Se não quisermos ressuscitar as ilusões escatológicas, devemos admitir que aqueles entre nós que se engajam nas batalhas pela emancipação nunca conhecerão o sucesso final dessas batalhas, nem o advento do tipo de sociedade com que sonhamos. O que conheceremos será apenas a experiência dessas lutas e seus resultados nunca definitivos. Consequentemente, o anarquismo, social ou não, organizado ou não, está, em última instância, modificando o presente – uma modificação necessariamente local e parcial – na qual devemos apostar, fazendo ouvidos moucos aos cantos das sereias totalizantes, e abandonando as ilusões escatológicas: se o comunismo libertário generalizado não pode ser estabelecido, nem toda a humanidade, nem uma sociedade particular, ser anarquista, o que pode o anarquismo reivindicar e o que nos resta?

Bem, mesmo assim, ainda temos a luta contra a dominação em suas múltiplas facetas, e isso inclui, é claro, o domínio da esfera econômica, embora vá além desta amplamente. Ficamos também com a transformação do presente, sempre localizada e parcial, mas radical, e isso inclui também a nossa própria transformação. E nos resta, enfim, a saída de nosso confinamento, de nosso gueto, para atuar junto com os outros, não para convencê-los, mas para aceitá-los; não por uma preocupação estratégica, mas por princípios.

Agir com outras pessoas? Pois é, camaradas que lutam no seio do anarquismo que se proclama “organizado”, agir com os outros, como vocês costumam fazer, e isso os honra, também significa agir com anarquistas que não se inscrevem sob a bandeira de organizações que afirmam ser “anarquismo social”, mas que, longe de se refugiarem na esfera privada, são também comprometido com lutas radicais. Na verdade, como quase sempre acontece com as dualidades, a dicotomia sugerida por Bookchin distorce a realidade porque não existem duas categorias de anarquismo, mas um continuum. Encontramos, em um extremo, um anarquismo de estilo de vida retraído em si mesmo e totalmente indiferente às lutas sociais, enquanto, no outro extremo, existe um anarquismo social impenetrável à qualquer coisa que não seja a luta social contra o capital. Entre esses dois extremos, se desenrola uma extensão onde estão representadas todas as dosagens entre os dois tipos de anarquismo.

O que cria a dicotomia, pela simples razão de que só deixa em aberto duas possibilidades, é a possibilidade de pertencer ou não a uma determinada organização. Mas se a dicotomia se origina desse fato, obviamente não pode funcionar dizer que o “anarquismo social” se encontra de um lado, e que o que se encontra do outro não é social.

O mesmo ponto pode ser aplicado à expressão “anarquismo organizado”. Não existe anarquismo organizado, por um lado, e um que não é, por outro lado. É claro que você tem que se organizar e que o desenvolvimento de qualquer tipo de atividade coletiva exige sempre alguma forma de organização, bem como o desdobramento de determinada atividade organizacional, mesmo que seja apenas para editar algumas folhas ou para debater um tema. Portanto, a questão não é organizar ou não, mas como organizar? E a resposta é que, para sabermos nos organizar, é preciso sabermos a razão pela qual queremos nos organizar. Isso condiciona a forma da organização.

O modelo tradicional pressupõe a criação de uma estrutura permanente, estável e abrangente, articulada em torno de bases programáticas e objetivos comuns de caráter suficientemente geral para que a estrutura tenha uma perspectiva temporal ampla. É um modelo pouco condizente com as condições sociais atuais, e que perdeu muito de sua eficácia, em tempos que correm sob o signo da velocidade, caracterizados pela rapidez das mudanças. A realidade atual exige modelos muito mais flexíveis, mais fluídos, orientados por objetivos simples de coordenação para realizar tarefas concretas e específicas. Na medida em que, para ser eficaz, a forma da organização deve ser adaptada à natureza das tarefas e aos objetivos para os quais é criada, e na medida em que estes são diversos e, por vezes, variáveis ​​e transitórios, é uma multiplicidade de formas organizacionais que devem coexistir da maneira mais complementar possível, não hesitando em desaparecer ou transformar-se ao ritmo das mudanças e acontecimentos sociais.

A questão da organização provavelmente deve ser repensada e ressignificada, no estilo do que aconteceu com o conceito de ‘revolução’, não para proclamar a ausência ou inutilidade da organização, mas para renovar seu conceito, suas formas e suas práticas. É claro que o fascínio atualmente exercido, em certos setores militantes, pelo antigo modelo de organização – criado como uma panaceia para aumentar a eficácia e difusão do anarquismo – não facilita em nada essa tarefa. Os esforços dedicados à construção de uma organização anarquista e a prioridade dada a essa tarefa se desviam de outras tarefas focadas mais diretamente nas lutas, e alimentam a ilusão de que as dificuldades que afligem as lutas atuais se devem principalmente à ausência de uma grande organização libertária e que irão desaparecer assim que esta vier à luz.

A preocupação com a organização e a atividade organizacional deve ser constante para que as atividades coletivas possam ser desenvolvidas. No entanto, isso é muito diferente de tentar construir uma organização. É por isso que o uso da expressão “anarquismo organizado” é enganoso. Esta expressão se refere, na realidade, ao anarquismo enquadrado em uma organização clássica, ou ao anarquismo focado no esforço de construir tal organização,e sugere que, não importa quão altamente organizados certos grupos ou coletivos anarquistas sejam para realizar tarefas concretas e específicas, eles não fazem parte do anarquismo organizado.

Expressão enganosa, mas também perigosa, porque introduz, como quase todas as dicotomias, uma dissimetria de valores e uma hierarquia entre os dois polos da dualidade criada. Assim, uma vez que organizar é obviamente um valor positivo, o anarquismo válido é o anarquismo organizado e o outro tipo de anarquismo é desprezível. Obviamente, a diferença entre eles não se deve ao fato de serem organizados ou não, ambos o são, mas porque um faz parte de determinada organização ou busca construí-la, e o outro não. Mas, é claro, se as coisas fossem ditas dessa forma, o efeito avaliativo e hierárquico que emana da expressão “anarquismo organizado” se perderia e o chamado para construir “a organização” seria enfraquecido. Minha maneira de tratar essa questão não deveria ser interpretada como um apelo por um anarquismo travado na esfera individual e relutante a qualquer ação organizada. Com efeito, questionar a dicotomia criada pela referência ao anarquismo social e ao anarquismo organizado não significa dizer que o anarquismo não deva atingir uma projeção social e, mais precisamente, uma projeção nos movimentos sociais. Se o anarquismo ressurgiu hoje, é justamente porque esteve presente nas grandes mobilizações populares deste início de século; e é óbvio que, se o anarquismo quer ter algum tipo de validade, deve permear o mais amplo movimento social possível – como, por exemplo, o anarquismo espanhol fez até o final dos anos 1930. Isso implica, é claro, que esses movimentos não podem ser compostos principalmente por anarquistas, nem devem ser especificamente anarquistas. Essa impregnação libertária, pela presença de militantes anarquistas, bem como de pessoas e grupos que atuam de forma libertária, mesmo que não se definam como tal, pode ser observada mais recentemente nas mobilizações massivas que não param de crescer e se radicalizar na França, de 2008 até hoje; contra a construção de um aeroporto em Notre-Dame-de-Landes, na Bretanha; ou nas mobilizações contra despejos na Espanha. Se o anarquismo contemporâneo muda, é precisamente porque está envolvido, com outros grupos, nas lutas atuais e porque incorpora ao seu próprio passado as principais características dessas lutas. Em sintonia com essas lutas, o neo-anarquismo participa de seu imaginário e incorpora alguns de seus aspectos a um imaginário anarquista que não pode deixar de ser modificado. Em última análise, o anarquismo que muda é o anarquismo que luta e que luta no presente.

 


Para Ler Mais:

O Anarquismo como Catapulta: Entrevista com Tomás Ibáñez

“Anarquismo es Movimiento” – livro completo em espanhol