Revista Tormenta #2 – 2021

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Esta é segunda edição da Revista Tormenta, que compila alguns dos principais artigos de análise, entrevistas e traduções que fizemos sobre as lutas sociais radicais no Brasil e outros países em 2021. Escrevemos ainda sob os efeitos da maior pandemia do século agravada por um dos governos mais desastrosos que já dominaram este território. Gostaríamos de estar aqui comentando os avanços das lutas antifascistas em 2021, mas os eventos nos limitam buscar ânimo e recuperar o fôlego depois que o potencial das mobilizações de rua se chocaram com os medos e de desejos legalistas de partidos e movimentos alinhados com a lei burguesa. Esses sim lutaram como nunca para pacificar as ruas. Entre sonhos de trazer uma imagem do passado de governos petistas e a falta de senso crítico, preferiram se juntar à direita e negociar a paz com a polícia. Vimos os atos antibolsonaristas serem rifados pelas frentes amplas de partidos e centrais sindicais. A criminalização, a agressão física e até a fabricação de “infiltrados” serviu para isolar qualquer forma de ação combativa, linhas de frente e blocos autônomos capazes de defender manifestantes e atacar as estruturas de poder capitalista e estatal.

Enquanto no oeste da Europa, ou países como Índia, Tunísia e Grécia, a ciência e o combate à pandemia são usados como pretexto para a repressão policial, por aqui a mentalidade obscurantista do governo faz uso de discursos anticientíficos (ou de uma metódica ciência eugenista) para deixar morrer centenas de milhares de pessoas de uma infecção evitável – que em seu segundo ano, não conta sequer com dados sobre infecções e hospitalizações transparentes. Como previmos, o governo de Jair Bolsonaro e seus militares segue inabalado apesar da CPI da Covid enumerar seus inúmeros crimes contra a vida e a deliberada propagação do vírus. Ainda que os governos de extrema-direita estejam perdendo tração e sendo derrotados nas urnas nos últimos dois anos, não podemos ter a esperança de que eleições eliminem o bolsonarismo e o fascismo da política, da polícia ou das ruas. Construir a luta radical, de base, direta e autônoma será necessário para provar mais uma vez que a institucionalidade e a democracia representativa nunca foram atalhos para uma transformação social real.

Esperar que um novo governo PT reproduza, no atual contexto de resseção e retração dos investimentos externos, a política econômica que aliviou a miséria de milhões no início dos anos 2000 é tão absurdo quanto esquecer o aumento de 620% do encarceramento, as UPPs, os desalojos de milhares de pessoas para obras da Copa e Olimpíadas, lei antiterrorismo, o uso do exército como polícia e toda a estrutura repressiva que o atual governo herdou – se alguém se espanta com o a atuação do General Heleno, atual ministro-chefe do GSI, deve lembrar dos massacres que ele comandou no Haiti em nome do governo Lula. A volta do PT ao governo pode afrouxar a corda nos nossos pescoços, mas a forca estará sempre montada para ser usada, especialmente quando a extrema-direita tomar o poder novamente.

Após o fracasso de Trump em se reeleger, da vitória de Boric no Chile e as pesquisas eleitorais apontarem Lula como favorito em 2022, é possível que vejamos os limites dos governos de aspiração fascista e estilo populista. O extremismo dos que se dizem “sem viés ideológico” carrega tanta ideologia que os torna capazes até de ignorar dados científicos primários – em vez de utilizá-los em prol da gestão neoliberal e se apresentarem como heróis com a solução para a pandemia. As mortes e prejuízos econômicos e diplomáticos dessa equação podem não ser capazes de manter o poder em suas mãos por muito tempo. No entanto, apesar da perícia petista em gestão, conhecemos bem os limites dos governos progressistas que falharam em sanar os efeitos catastróficos do neoliberalismo nas Américas nas últimas décadas. Enquanto buscam respeitar as leis e a etiqueta dos ritos democráticos, não conseguem competir com as paixões mobilizadas pela direita que declara abertamente seu ódio às minorias, afirma que opositores são inimigos e devem ser eliminados, que seus apoiadores devem se armar e que somente uma “guerra civil resolverá os problemas do país”.

O moralismo de esquerda ainda não é páreo para a radicalidade do pânico moral fascista. Muito menos para eliminar sozinho a estrutura mafiosa dos militares se mantiveram no poder ao fim da ditadura e construíram uma base miliciana, com grupos de extermínio e toda sorte de crime organizado que hoje celebra e se beneficia do governo Bolsonaro. Sabemos, também, que apesar das forças de centro-esquerda se colocarem como oposição ao bolsonarismo, sua possível volta ao governo servirá mais uma vez como recomposição das forças com a manutenção do pacto de pacificação e amansamento das possibilidades de insurreição. O plano deles é que “tudo mude” para que permaneça exatamente igual.

Podemos esperar um dos mais conflituosos anos eleitorais. A promessa de violência nas ruas para contestar qualquer resultado negativo nas urnas já está feita. E a demonstração de que há números e disposição para ocupar as ruas foi feita no último 7 de setembro. Subestimar o potencial de seus militantes mais fanáticos é ignorar a influência que a invasão do Capitólio em janeiro de 2021 pode ter sobre o bolsonarismo por aqui.

A eleição vai colocar como nunca esse embate à prova, às custas da pacificação de qualquer oposição radical nas ruas contra esse governo. Além de espalhar mais uma vez uma outra campanha para mostrar que existe ação política além do voto, devemos combater tanto a ordem que a esquerda neoliberal quer impor quanto o caos dentro da ordem que esse governo fascista quer fazer crescer. Não importa quem for eleito, seremos ingovernáveis!!


VÍDEO: FIM DE ANO / FIM DO MUNDO

Para enterrar esse ano e abrir um novo ciclo de lutas, aqui uma mensagem de ano novo do coletivo Antimídia, com quem tivemos a honra de colaborar em diversos vídeos em 2021:

Comunicado Desde as Prisões Chilenas Sobre as Eleições

As recentes eleições para presidência no Chile chamaram a atenção em todo o mundo, especialmente na América do Sul, onde governos eleitos na onda direitista ao longo da última década parecem dar sinal de perda de tração nas urnas. Depois do retorno do partido de Evo Morales na Bolívia em 2020 e da derrota de Donald Trump nos EUA, a esquerda retomou o poder do Estado na Argentina, no Peru e, em dezembro de 2021, Gabriel Boric venceu (com pouca diferença) o representante da extrema direita chilena, José Kast. Muitos esperam que esses ventos retirem, através das urnas, Bolsonaro do governo brasileiro e seus aliados da direita à frente da Colômbia, Uruguai, Equador e Paraguai.

Mas não nos enganemos: uma vitória do PT ou qualquer governo com uma trajetória à esquerda nas chamadas Américas não será capaz de eliminar o fascismo que se estabeleceu nas ruas, nas forças de segurança e nas instituições políticas e no controle das corporações. E, assim como o que aconteceu com Syriza na Grécia e Podemos na Espanha, sabemos que reabilitar a democracia representativa é reabilitar as armas que serão usadas por liberais e fascistas contra nós, buscando construir de baixo, uma sociedade para derrubar o Estado e o capitalismo. Seu compromisso com a gestão da crise capitalista os obrigará a ceder sempre em favor do lucro dos ricos, com mais austeridade e repressão. Não existe atalho para o fim da desigualdade e da dominação que passe pela gestão estatal. A autonomia e autodeterminação dos povos é a única força social que não pode desaparecer facilmente com um golpe ou uma nova eleição.

No caso chileno, Boric já disse a que veio antes mesmo de ser eleito: em novembro de 2019 se sentou com a direita para firmar “Acordo para a Paz e uma Nova Constituição” em reação aos gigantescos protestos do estallido social de outubro daquele ano. Em seguida, votou pela lei “anti-barricada, anti-saque, anti-máscara e anti-ocupação de terras”, que aumentou as penas para as ações diretas fundamentais para a revolta chilena. Se despender de governos eleitos, não teremos ocupações, protestos, anonimato nem nenhuma das armas de construção das lutas populares nas ruas.

Sendo assim, seguimos divulgando as palavras e as ações de quem não pretende sair das ruas nem fazer acordos com a classe dominante.

***

Abaixo, segue mais um de uma série de textos e materiais de camaradas que escrevem de dentro das prisões chilena sobre as recentes eleições. O comunicado foi publicado originalmente no portal Buscandolakalle e traduzido pela Edições Insurrectas.


NEM BOTAS E NEM VOTOS, SOMENTE LUTA! –

PALAVRAS ANÁRQUICAS E SUBVERSIVAS DESDE AS PRISÕES CHILENAS DIANTE DA REACOMODAÇÃO DO DOMÍNIO E SUA PERPETUAÇÃO CAPITALISTA

Segundo o que a cidadania proclama, parece que somos testemunhas de um momento chave na história deste território, que nos encurralada de costas para o precipício e, ao menos que façamos algo, nossa queda será iminente. Parece que presenciamos uma guerra aberta, encarniçada, entre dois polos políticos inimigos a tal nível que, tal como a guerra fria, coloca em perigo a subsistência e o futuro de todos os seres no território dominado pelo Estado Chileno.

Por um lado, o grito de guerra versa: “Comunismo ou Liberdade!”. Por outro: “Democracia ou Fascismo!”. Diante de um cenário tão dramático, nos apresentam o que seria a ferramenta chave para enfrentar este contexto, capaz de deter de uma vez por todas esse banho de sangue: a participação nos processos eleitorais, o sufrágio como a arma libertadora.

Não somos nem cegxs e nem surdxs, caminhamos com plena consciência sobre este e muitos outros acontecimentos do território. Não apenas nos distanciamos, mas também declaramos a guerra à toda instância institucional que busque qualquer perpetuação do Status Quo.

Desconhecemos cabalmente o falso enfrentamento de dois sistemas supostamente distintos, o eixo no qual se disputa a batalha seguirá sendo o da Democracia e da administração do Capital. A existência de um “embate” entre distintas políticas somente tenta justificar a suposta amplitude do sistema democrático-capitalista, a essência “diversa” deste e o suposto espaço onde caberia todo tipo de pensamento. De nenhuma forma queremos ser aceitxs por um sistema ou sociedade que rechaçamos, não queremos que nossa política seja mais uma dentro das opções deste sistema; queremos destruir toda opção e a estrutura que as sustenta. Nada temos a ver com o show eleitoral e sua cena de eleições, plebiscitos, votos e outros, consideramos isso nada mais do que um reajuste, a reacomodação burguesa de classe para a manutenção maquiada e de acordo aos tempos de uma ordem imposta e existente.

Temos a certeza que independentemente de qual seja o resultado eleitoral deste pleito, nada mudará essencialmente. Para além da conjuntura de quem esteja disputando a administração e a gestão da opressão, o mundo institucional, ou seja, o das eleições, nunca foi o nosso. Nesse sentido, quem vota, quem opta livremente por investir outra pessoa de autoridade, é tão responsável como o governante que dará as ordens de assassinar, militarizar e encarcerar. Quem vota é quem, mediante o ato de sufrágio, decide delegar parte de sua autonomia para fortalecer a cadeia de opressão e, portanto, do Estado.

Não seremos cúmplices de nenhum governo da vez, não fizemos ao final dos anos 1980, quando, assim como agora, o velho poder político instaurou o medo para tirar o fôlego e posição da luta confrontacional da época (como a luta armada), desdobrando um cenário cívico eleitoral que pretendia aniquilar com um Sim ou Não qualquer possibilidade de ruptura real.

Aqui já havíamos nos mantido nossa posição subversiva e desde aqueles tempos nada mudou.

A verdade o objetivo deste texto não é, nem deveria ser, de forma alguma convencer ou sequer teorizar sobre a participação da cidadania nos processos eleitorais, não seria correto demandar nem medir essa massa obediente segundo nossos critérios. O ponto de interesse surge quando vemos um grande leque de personagens que se reivindicam como atores “antagônicxs” ou inclusive se denominam subversivxs, revolucionárixs, rebeldes ou anarquistas, realizando chamados abertos para participar da via eleitoral e inclusive para votar em um candidato específico.

Alguns dos argumentos empunhados para justificar essa forma de ação têm a ver com a potencial perda de direitos civis – sempre garantidos pelo Estado – principalmente no plano das minorias “vulneráveis” ou das dissidências.

Não desconhecemos a suposta mudança na validação então arraigada de um discurso institucionalmente conservador na dinâmica de grande parte da sociedade alienada – o que tampouco se difere do contexto atual –, mas acreditamos que as lutas reais (de todo tipo), desde um posicionamento anárquico, subversivo ou revolucionário, nunca devem buscar validação ou integração por parte da institucionalidade ou mesmo da sociedade. Nos entregarmos, com nossas diferenças e particularidades, à “integração” institucional supõe diluir nossa individualidade antagônica em um espaço que não nos pertence e que tem como único fim ampliar o leque de participação democrática sem realmente questionar suas dinâmicas de fundo.

Não é de mais assinalar que, apesar do vai e vem em que se movem, se estendendo ou diminuindo os direitos civis em conjunturas específicas, não nos cabe esperar que os administradores da opressão sejam quem outorguem tais “direitos” (termos já suficientemente repudiável per se), alcançaremos nossa liberdade por nossos próprios meios e em plena autonomia. Nem a institucionalização nem a socialização das ideias ou políticas divergentes supõem uma mudança real nas práticas individuais ou coletivas. As dinâmicas que restringem nossa liberdade são combatidas no conflito, mas sobretudo com um desenvolvimento íntegro individual e uma crítica constante, não mediante o sufrágio ou a participação cidadã.

Se faz necessário ter em vista o fato de nos referirmos a um tema que parecia absolutamente resolvido dentro dos espaços e individualidades que dizem optar pela confrontação contra o Poder. Não nos cabe dizer quem é ou não subversivx, não somos nós as pessoas encarregadas disso, é a simbiose entre a palavra e a ação a única capaz de dar conta desta realidade. Se por um lado se defende a quebra total com o mundo existente, são feitos constantes chamados para acabar com o capitalismo ou com todo ápice de autoridade. Isso resulta ao menos patético que se defenda avaliar todos esses aspectos mediante a utilização do voto como “ferramenta” política, ação que é, além de tudo, um enorme empurrão e reforço da institucionalidade democrática do capital; mesmo quando ela parecia cambalear há pouco mais de dois anos.

Nossa aposta? Pois é a de sempre e com a porfia inquebrantável que nos acompanha: estender e a aprofundar o conflito permanente e irrefreável, sabendo que não somos salvadorxs nem representantes de nada e de ninguém, apenas de nós mesmxs. Nossa opção pelo enfrentamento é feita em primeira pessoa porque entendemos que ao golpear vamos nos liberando. E se outras pessoas também assumem esse caminho, excelente, mas caso contrário, isso não será motivo para nos desencorajarmos e muito menos cedermos em nossas convicções, caindo e validando a via institucional. Não somos iluminadxs e muito menos decidiremos o que virá, mas seremos entendidxs pelo que somos, pela prática, pelo que fazemos, sempre em concordância com nossas ideias, pela causa que brota e pela cumplicidade anárquica, subversiva e insurrecta que propaga rebeldia; nosso caminhar em guerra se converte, assim, na possibilidade palpável se sermos livres.

-LIBERDADE PARA XS PRISIONEIRXS SUBVERSIVXS, ANARQUISTAS E MAPUCHE PARA FORA DAS PRISÕES!!
-AGUDIZAR O CONFLITO, INTENSIFICAR A OFENSIVA!
-JUVENTUDE COMBATENTE, INSURREIÇÃO PERMANENTE!
-MORTE AO ESTADO, VIVA A ANARQUIA!
-NOSSA É A CONVICÇÃO!
-ENQUANTO EXISTIR MISÉRIA HAVERÁ REBELIÃO!

 

Mónica Caballero Sepúlveda
cárcere feminina de San Miguel

Pablo Bahamondes Ortiz
C.D.P. Santiago 1

Francisco Solar Domínguez
Marcelo Villaroel Sepúlveda
Juan Aliste Vega
Joaquín García Chancks
C.P. Rancágua “La Gonzalina”

Dezembro de 2021,
território dominado pelo estado chileno.


Para saber mais:

Chile: A Batata Quente Muda de Mãos – Que a Vitória Eleitoral da Esquerda Significa Para os Movimentos Autônomos? 

Solidariedade à Greve de Fome nas Prisões Chilenas – vídeo por Antimídia e Insurrectas

Os Mais de 40 Dias de Greve de Fome dxs presxs Anarquistas e Subversivxs em Santiago

CONTRA A RESIGNAÇÃO — Entrevista Sobre a Situação de Mónica Caballero e Francisco Solar

Pare a Guerra em Chiapas! – por Radio Zapatista

Duas autoridades indígenas zapatistas foram sequestradas por paramilitares a serviço do estado Mexicano em Chiapas. Após mobilizações internacionais, ambos foram libertos após 8 dias de cativeiro. O sequestro aconteceu dia 11 de setembro e foi organizado pelo grupo Organización Regional de Cafeticultores de Ocosingo (ORCAO) que defente os interesses de latifundiários na região e contam com a proteção estatal. Episódios semelhantes ocorreram em 2020 e em abril de 2021.

O levante e a organização popular autônoma segue sendo uma das maiores experiências revolucionárias de nosso tempo. Todo apoio e solidariedade a sua luta.

O texto abaixo traz uma análise da Radio Zapatista sobre o contexto e possíveis desdobramentos da escalada de tensão no território zapatista.

Viva EZLN! Viva Chiapas!

Movimentos sociais protestam frente ao Consulado Mexicano em São Paulo, 24 de setembro.

“PARE DE BRINCAR AGORA COM A VIDA, A LIBERDADE E OS BENS DOS CHIAPANECOS.”

Trecho do Comunicado do CCRI-CG do EZLN  de 19 de setembro de 2021.

 

Viena, 22 de setembro. A situação de violência em Chiapas continua e o EZLN alerta hoje para um estado “à beira da guerra civil”. Para entender o que está acontecendo em Chiapas, é preciso olhar as raízes e a sistematização da violência de vários ângulos. Este texto, não exaustivo, tenta dar uma visão geral do que está acontecendo no estado do sudeste mexicano, especificando algumas questões e conflitos.

Na última sexta-feira, 17 de setembro de 2021, em Viena, Áustria, cerca de 20 mulheres zapatistas e 30 homens da delegação aérea “La Extemporánea”, recém-chegados à cidade, reforçaram o contingente que se reuniu em frente à embaixada do México.

Forças de autodefesa do povo El Machete

Este ato de protesto inaugurou uma grande campanha para denunciar o paramilitarismo e a violência em Chiapas e exigir a aparição com vida de José Antonio Sánchez Juárez e Sebastián Núñez Pérez, membros zapatistas da Junta de Buen Gobierno (JBG) “Nuevo Amanecer en Resistencia y Rebeldía por la Vida y la Humanidad”da Caracol 10 “Floreciendo la Semilla Rebelde” localizada em Patria Nueva, perto de Ocosingo, Chiapas.

Os dois camaradas foram sequestrados em 11 de setembro por membros da Organização Regional de Cafeicultores de Ocosingo (ORCAO) – que tem uma longa história de violência paramilitar e impunidade na região – enquanto a delegação zapatista aerotransportada iniciava sua jornada. Segundo o comunicado do Comitê Indígena Revolucionário Clandestino-Comando Geral (CCRI-CG) do EZLN, foram liberados no dia 19 de setembro, graças à intervenção dos párocos de San Cristóbal de Las Casas e Oxchuc, pertencentes à Diocese de San Cristóbal.

Em frente ao prédio da diplomacia mexicana em Viena, a solidariedade internacional se manifestou com dezenas de ativistas de toda a Europa que denunciaram o governo do México por meio de microfone, faixas e faixas por sua resposta à reativação da violência contra-insurgente. A palavra em espanhol, alemão, grego, francês, português e galego, bem como o recente comunicado assinado por numerosas organizações, grupos e indivíduos na Europa culpam tanto o governo federal de Andrés Manuel López Obrador (AMLO) quanto o estado governo de Rutilio Escandón Cadenas, por sua cumplicidade com os ataques paramilitares perpetrados não só contra os camponeses maias zapatistas, mas também contra defensores dos direitos humanos e comunidades de Chiapas.

De acordo com a denúncia da Rede AJMAQ , assinada por organizações e grupos sociais de todo o mundo, neste mês de setembro os paramilitares de Chiapas se intensificam em ações criminais.

 “Esta escala de violência orquestrada a partir dos altos poderes do governo federal faz parte da iniciativa EZLN ‘Cruzando pela Vida, Capítulo Europa’. Iniciativa organizacional que busca expandir, de forma pacífica e criativa, a semente da resistência-rebelião para a humanidade e a Mãe Terra, ou seja; pela vida.”

Lembramos que a primeira delegação zapatista, o Esquadrão 421, partiu do México para a Europa de barco no dia 2 de maio. No dia 14 de setembro, é o Extemporâneo, uma delegação aérea do EZLN, que desembarcou nas terras da Slumil K’ajxemk’op / Tierra Insumisa (antiga Europa) e foi alcançado em 22 de setembro por uma delegação do Congresso Nacional Indígena (CNI).) E Frente dos Povos em Defesa da Terra e da Água-Morelos, Puebla, Tlaxcala (FPDTA-MPT) para ouvir e dialogar com as lutas de baixo e de esquerda. Desde 1º de janeiro de 2021, o EZLN divulgou sua Declaração pela Vida , assinada por centenas de grupos da outra Europa.

“Aqui estamos, e continuaremos aqui, até a apresentação dos companheiros vivos. Essa viagem já começou e ninguém vai impedi-la ”, disse um colega ativista em alemão e espanhol em frente ao prédio da diplomacia mexicana.

Quem é o grupo paramilitar que o EZLN denuncia?

A Rádio Zapatista, em ¨ A longa história de violência paramilitar e impunidade da ORCAO ¨, lembra que a Organização Regional dos Cafeicultores de Ocosingo, repetidamente denunciada pelas Juntas de Bom Governo como organização paramilitar, há mais de que ataca as comunidades zapatistas 20 anos com violência crescente e impunidade total.

Foi fundada em 1988 por 12 comunidades do município de Ocosingo, Chiapas, como uma organização legítima de luta que exigia melhores preços para o café e uma solução para o atraso agrário. Em pouco tempo, muitas outras comunidades aderiram. Durante anos, o ORCAO manteve laços com o Zapatismo. No entanto, eles foram rompidos no final da década de 1990, quando a organização, como tantas outras, cedeu à tentação de disputar o apoio do governo e cargos públicos em troca de favores. A ruptura se agravou com a chegada de Pablo Salazar ao governo de Chiapas em 2000. A ORCAO então abandonou a luta e se juntou ao governo, rompendo com o EZLN para ter acesso ao dinheiro público. A partir desse momento, os ataques ao EZLN tornaram-se cada vez mais frequentes e violentos.

Até agora, em 2020 e 2021, os ataques às bases de apoio zapatista, seus centros de autonomia e aos que apóiam o EZLN se multiplicaram:

  • Sequestro e violência contra membros do Congresso Nacional Indígena (CNI) (em cumplicidade com membros do grupo paramilitar Los Chinchulines, bem como membros do partido MORENA) após sua participação na Conferência em Defesa do Território e da Mãe Terra “Samir Somos Todos y Todos ”, convocado pelo EZLN no âmbito do Combo for Life em fevereiro de 2020.
  • Destruição de dois armazéns de milho e café pertencentes a bases de apoio zapatista, em agosto de 2020;
  • Sequestro do camarada Félix López Hernández, base de apoio zapatista, em novembro do mesmo ano;
  • Seqüestro de dois membros do Centro de Direitos Humanos Fray Bartolomé de Las Casas em abril deste ano, após denunciarem os ataques armados à comunidade Moisés Gandhi em janeiro do mesmo ano.

Em novembro de 2020, a Junta de Buen Gobierno Patria Nueva denunciou que a ORCAO recebeu apoio do governo para construir uma escola, mas o utilizou para comprar armas de alto calibre, com a presumível cumplicidade do atual governo federal. AMLO chamou sua estratégia de Quarta Transformação (4T), referindo-se à Independência do México (1810), as Leis da Reforma (1858-1861) e a Revolução Mexicana (1910-1917), como os três antecedentes da transformação no México.

ORCAO queima vinícola pertencente a bases de apoio zapatista em Cuxuljá

Qual é a situação em Chiapas?

Se o México é o “quintal” dos Estados Unidos, Chiapas é uma de suas entradas. A desestabilização voluntária da área, o crescimento da violência, a impunidade sistêmica, fornecem todos os argumentos necessários para que o governo federal continue militarizando o estado e desenvolvendo a contrainsurgência, protegendo a fronteira sul e entregando as terras tão necessárias para a implantação do megaprojetos.

Desde o seu lançamento em dezembro de 2000, Chiapas está na mira de um projeto mais amplo, originalmente conhecido como Plano Puebla-Pánama. Hoje, o governo AMLO e sua “Quarta Transformação” lançaram vários projetos planejados desde então: o corredor transoceânico e o erroneamente denominado Trem Maia.

No entanto, em sua última declaração “Chiapas à beira da guerra civil“, o CCRI-CG culpou Rutilio Escandón, governador de Chiapas, e Victoria Cecilia Flores Pérez, secretária de Estado de Chiapas. Para mais informações sobre alianças estratégicas e nós de poder, consulte o artigo de Luis Hernández Navarro, “ El infierno chiapaneco “.

Por que os zapatistas culpam os três níveis de governo?

Uma das estratégias do governo do quarto trimestre, em Chiapas como em todo o México, é recorrer a programas sociais que o que acabam fazendo é dividir e desestabilizar a comunidade. “Dividir para conquistar” foi, é e sempre será uma estratégia eficiente do Estado para acabar com a organização e a comunidade.

“Semeando Vida” é o nome ironicamente dado pelo governo a um desses programas federais de bem-estar. Propõe ao campesinato do país receber dinheiro para trabalhar suas terras e plantar monoculturas de milho, manga, palma africana, entre outras culturas que estão disponíveis para exportação para o exterior ou para as grandes cidades do território mexicano. Para entrar no programa estadual, deve-se verificar a propriedade individual da terra em uma área de pelo menos 2,5 hectares. Essa é a base do problema. Em um país onde os ejidos (isto é, as terras comunais) ainda são coletivizados, comumente sendo as terras de plantio, isso gera divisões no tecido social.

Nas terras zapatistas recuperadas, as Juntas de Bom Governo concordam em emprestar terras para o trabalho coletivo, mas não para interesses individuais manipulados pelo Estado mexicano. É então que a desavença, divisão e perseguição de grupos paramilitares (armados e financiados no passado e atualmente pelos governos federal, estadual e municipal) penetra nas comunidades zapatistas, povos indígenas e aqueles que cruzam seus planos de controle e controle.

No Planalto de Chiapas, região composta por 17 municípios com população indígena, principalmente tseltal e tsotsil, existe mais de um conflito entre povos que o governo alimentou e justificou com disputas territoriais.

Qual é a situação nas cidades de Los Altos de Chiapas?

 Aldama

 Muitos laços familiares, culturais, econômicos e espirituais foram estabelecidos entre Santa Magdalena (Aldama) e Santa Martha (Chenalhó). Nas principais festas das comunidades, dentro das tradições dos povos indígenas de Los Altos de Chiapas, costuma-se acompanhar o santo ou santo do povoado vizinho, neste caso: San Andrés Larráinzar, Santa Martha (Chenalhó) e Santa María Magdalena (Aldama) comemorou juntos pela proximidade e intercâmbio cultural.

Aqueles que agora fazem parte da organização dos 115 Comunardos Deslocados de Aldama, herdaram o cuidado, o trabalho e a proteção de suas terras e suas famílias de suas mães e pais, ouviram seus avós falarem sobre como conheceram suas avós lá em Santa Martha, ou o contrário.

Entre 1975 e 2000, os governos por sua vez realizaram uma importante reestruturação do setor agrário com base em reformas institucionais e políticas, o artigo 27 da Constituição Política foi modificado com a suposta ideia de melhorar as condições dos camponeses, os preços de mercado. para seus produtos, etc. O conflito “territorial” entre Aldama e Chenalhó remonta à reforma agrária dos anos 1970, quando o governo cedeu 60 hectares de terras dos ancestrais proprietários de Aldama (Magdalena) para o Santa Martha (Chenalhó). Acordos foram feitos ao longo dos anos para definir a propriedade sem resultados. Ao longo dos anos, isso levou à destruição das árvores frutíferas do terreno, à expulsão de famílias e ao incêndio de suas casas, além de constantes ataques.

“Agora, não só com palavras mas com balas, com munições, os paramilitares de Santa Martha querem tirar-nos a vida como povo de Aldama. Como prova, está o vídeo que os paramilitares publicaram nas redes sociais.”

– Fragmento de uma declaração das autoridades de Xuxche’n, Aldama dirigida à comunidade nacional e internacional.

 

 

Esse discurso se repete entre os moradores das duas comunidades, mas o inimigo permanece invisível aos olhos do Estado. Durante uma conferência matinal, o presidente do México descreveu o conflito como uma diferença entre pobres e pobres e pediu que se acalmassem.

A partir de 2017, o conflito territorial tornou-se uma guerra de gotejamento com um inimigo que todos vêem de longe e não se sabe quem ou o que tem como alvo; grupos de pessoas armadas vestidas de preto com provável treinamento paramilitar começaram a atirar em ambas as comunidades. Até o momento, esses grupos mataram pelo menos 20 moradores de Santa Marta e Aldama, além de um número crescente de feridos.

Em ambos os casos, mulheres e homens que vivem neste território exigem que o governo faça algo para parar estes ataques através dos meios de comunicação locais, nacionais e internacionais, divulgando os ataques constantes de que são vítimas diariamente, e mantendo contacto com organizações de direitos humanos. Enquanto o medo só aumenta à medida que não conseguem ir às suas parcelas de terra para trabalhar o milho, o feijão, a abóbora ou o café, as suas colheitas são perdidas. Ir trabalhar torna-se cada dia mais perigoso, a comida acaba e no entanto os programas sociais para o material de habitação ou o campo, assim como as t-shirts com as cores dos partidos políticos em campanha, continuam a chegar no meio de balas e sangue.

Há poucos dias, em setembro, Domingo Sántiz Jiménez, da cidade de Xuxch’en, foi assassinado por membros de um grupo armado paramilitar de Santa Martha, Chenalhó, com uma arma de alto calibre. Ele e sua família voltaram para a aldeia de caminhão. Eles tiveram que parar no caminho para esperar que o tiroteio parasse. Domingo, 33, recebeu um tiro no rosto.

Em fevereiro de 2019, o Oventik Good Governance Board havia decidido sobre os ataques contínuos.

Pantelhó

“Nossa luta não é política, mas pela vida, porque os narcotraficantes mataram mais de 200 pessoas e as autoridades os protegeram”.

– Depoimento de um dos moradores de Pantelhó durante a apresentação dos “Grupos de Autodefesa do Povo Machete”.

Mais de 3.500 pessoas de 86 comunidades se reuniram em San José Buenavista Tercero, uma das comunidades do território Pantelhó, no dia 18 de julho, para anunciar publicamente o nascimento das “Forças de Autodefesa do Povo El Machete”. Em seu depoimento, eles explicam a necessidade de pegar em armas ao chegar ao ponto de exaustão devido ao assédio que sofrem nas mãos de grupos armados protegidos pelas autoridades municipais. Antes de pegar em armas e se apresentar ao povo mexicano, os habitantes do município denunciaram as agressões sofridas e pediram reiteradamente ao Estado que aja para prender esses grupos. Por não ver ações concretas e após o assassinato de Simón Pedro Pérez, integrante das Abelhas Acteal e morador da região do Pantelhó, de acordo,Eles decidiram fazer justiça com suas próprias mãos e governar seu povo sob os usos e costumes dos povos nativos.

Ao decidir assumir a presidência municipal, a cidade de Pantelhó testemunhou confrontos armados entre o Exército mexicano, Guarda Nacional, Polícia Municipal, grupos armados e moradores. Por um tempo, o cenário foi de casas queimadas, carros destruídos e impactos de pedaços de metal de bombas do tipo molotov nas paredes das casas próximas à sede do município. Na estrada era possível ver centenas de invólucros de alto calibre, marcas de explosões de bombas e dezenas de soldados armados com submetralhadoras carregando quilos de munição nos ombros, além de um helicóptero militar sobrevoando a área.

Após a recuperação da ordem, os moradores pediram diálogo com o governo estadual para exigir o direito de se autogovernar sob seus usos e costumes. No município de Pantelhó, hoje governado pelo povo, ocorreu um diálogo entre o estado e a voz de milhares de habitantes da região fartos da violência.

Hoje Pantelhó é regido por costumes e tradições e, embora a violência tenha diminuído desde então, o assédio continua, pois apenas no dia 18 de setembro de 2021, um homem foi entregue às autoridades após moradores perceberem que ele portava arma de fogo e tinha um bomba com ele.

Resumo oficial do funcionamento da Lei de Usos e Costumes dos povos originários do México. 

Huixtán

Em outro ato violento, no dia 13 de julho deste ano, um grupo de cerca de 30 homens vestidos de preto, encapuzados e fortemente armados, entrou na prefeitura do município indígena de Huixtán , para levar três trabalhadores do município e três veículos do próprio conselho para obrigar o presidente do município a cumprir a pavimentação das ruas da citada comunidade.

Oxchuc

Em 8 de julho, Eduardo Santiz Gómez, 21, filho do presidente municipal de Oxchuc, foi sequestrado por homens armados na periferia do município e foi libertado 25 dias depois.

Altamirano

Na noite de 15 de setembro, incendiaram o palácio municipal de Altamirano. Neste município, foi denunciado que o presidente do município e sua esposa governarão por 4 períodos, em nome do Partido Ecologista Verde, incluindo o que começa em 1º de outubro.

Que outra consequência esses conflitos têm?

Todos esses conflitos, impregnados de violência e impunidade, levaram ao deslocamento forçado ocasional , intermitente ou permanente de milhares de pessoas no estado de Chiapas. As famílias forçadas a deixar suas casas muitas vezes não têm mais acesso às suas terras, resultando na perda de suas safras e na impossibilidade de plantar novamente no ano seguinte. Os deslocados, além da violência sistêmica e da discriminação perpétua, devem enfrentar o frio, a fome, a doença e a morte, vivendo com medo e sem vislumbrar uma saída dos conflitos ou retornando logo para suas casas, causando desespero, danos psicológicos e emocionais e o agravamento do tecido social da comunidade.

De 1994 a junho de 2020, Chiapas teve 37 deslocamentos forçados, ou seja, mais de 115 mil pessoas deslocadas, sendo a principal causa o conflito armado e as violações dos direitos humanos.

3.205 pessoas, principalmente meninas, meninos e adolescentes, fugiram de Pantelhó e de algumas cidades de Chenalhó em 8 de julho, tornando-se o deslocamento em massa com o maior número de pessoas desde outubro de 2017 , quando mais de 5.000 pessoas foram forçadas a fugir. De várias comunidades de Chalchihuitán e Chenalhó.

Chalchihuitán, Chenalhó e Aldama são os municípios onde mais pessoas foram deslocadas à força em Chiapas.

E a migração?

Desde 28 de agosto, foram registradas 4 caravanas de mulheres e homens, meninas e meninos de Cuba, Nicarágua, Guatemala, Honduras, Venezuela, Senegal e Haiti. A resposta do Estado por meio do Instituto Nacional de Migração (INM) foi realizar operações de detenção com violência excessiva e uso desproporcional da força para impedir o trajeto de pessoas que buscavam sair de Chiapas devido à demora na resposta e resolução de sua imigração e refugiado procedimentos de regularização.

Em seu comunicado, publicado em 4 de setembro de 2021, “ Contra a xenofobia e o racismo, a luta pela vida, as Juntas Zapatistas de Bom Governo, a CCRI-CG do EZLN e as comunidades indígenas zapatistas declaram que:

Mesmo entre os elementos da chamada Guarda Nacional existe descontentamento. Porque eles foram informados de que sua missão seria combater o crime organizado, e agora eles os têm como cães de caça perseguindo pessoas de pele escura. Porque essa é a instrução: para caçar qualquer pessoa de pele escura: “Pare com a porra de qualquer negro que encontrar”, é a ordem. É uma declaração e tanto de política externa.

As condições pioraram como resultado da pandemia COVID-19. O fechamento de fronteiras, abrigos para migrantes, escritórios do COMAR, a perda de empregos e a recessão econômica, bem como a maior dificuldade de acesso a cuidados médicos, pioraram ainda mais a qualidade de vida de mulheres e homens. .

Qual é a situação da saúde em Chiapas?

Desde o início da pandemia, nenhuma estratégia de atendimento foi desenhada para as populações rurais e indígenas, muito menos para as comunidades aposentadas do sudeste mexicano. As campanhas de prevenção e informação sobre a pandemia foram confusas; por exemplo: nas pequenas unidades de saúde das comunidades, foram observadas faixas confeccionadas pelo Ministério da Saúde com a legenda: “Quem pode pegar Covid-19? Pessoas que viajaram para a China ou que estiveram em contato com alguém da China ”. A situação da aplicação da vacina contra a Covid-19 é semelhante porque, por falta de acesso à informação, desconfiança e uma cultura e conhecimento muito distantes do sistema de saúde ocidental, muitas pessoas não vão à aplicação do antídoto, agora imposta pelo sistema capitalista.Os números de contágio e morte foram e são controlados por um governo hermético, por isso é difícil ter dados conclusivos; os registros de óbitos em pequenas comunidades nunca fizeram parte dos registros da secretaria estadual de saúde, menos na soma dos óbitos nos dados do governo federal. Hoje as vacinas chegam voluntariamente aos municípios lentamente, embora a publicidade oficial do IMSS opere para demonstrar o trabalho de distribuição e aplicação de sua atual diretora Zoe Robledo, provável candidata ao governo do estado de Chiapas. Em um contexto onde a saúde comunitária é administrada de forma diferente das cidades e onde a população se irrita com as mentiras da classe dominante, a desconfiança no sistema está causando mortes.

Em resposta a isso, as comunidades concordaram em como lidariam com a doença. Por exemplo: os caramujos zapatistas estiveram entre os primeiros, tanto local quanto nacionalmente, a alertar para a gravidade da situação mundial ; Com base em estudos científicos, eles tomaram as medidas pertinentes (campanhas internas de informação, medidas sanitárias, fechamento dos caramujos) que vigoram até hoje.

Nas últimas semanas, houve um aumento dos casos de contágio em várias comunidades, ainda maior do que no mesmo período do ano passado. Em Aldama, por exemplo, que não relatou a presença da doença por meses, um grande aumento foi identificado nas últimas semanas.

O que se exige de Chiapas e do exterior?

A situação em Chiapas é complexa e nada uniforme. No entanto, a violência é generalizada em todo o estado e se intensificou nos últimos meses, quando a campanha eleitoral começou no início de abril de 2021.

Desde 1994, o EZLN luta pela paz e pela justiça. Hoje suas demandas permanecem. É hora de exigir, tanto do México quanto do exterior, o fim da guerra de Chiapas. Trata-se de manifestar não só para gritar ataques suficientes ao território zapatista, mas também pelo direito de todo um povo viver em paz.

O EZLN convoca a rebelde Europa, Slumil K’ajxemk’op, e as redes do Sexto Nacional e Internacional a “se manifestarem em frente às embaixadas e consulados, e nas casas do governo do estado de Chiapas”, a seguir Sexta-feira, 24 de setembro, exigindo o fim das provocações e o abandono do “culto à morte” professado tanto por governos como por grupos paramilitares e criminosos.

 

Somos Todos Antifa? Sobre a Necessidade de não Dialogar com o Fascismo

O texto a seguir é um dos artigos que integra a coletânea “ANTIFA: Modo de Usar“, livro lançado em 2020 pela editora Circuito, no qual o coletivo Facção Fictícia contribui com um artigo, traduções e uma entrevista com Mark Bray.

No momento em que as ruas voltam a ser espaço de disputa e atuação política e a radicalidade é sabotada amplamente pela esquerda, surgem manifestações de liberais e da direita que apoiou Bolsonaro a chegar ao poder depois que o mesmo fez seu maior ensaio golpista no último 7 de Setembro. Assim, parte da esquerda – que não usa tudo ao seu alcance para apoiar as lutas indígenas contra o Combo da Morte e a PL 490 – debate energicamente se deve se juntar ou não aos protestos dessa gente, ou se deve oferecer a eles uma oposição tão firme quanto ao fascismo escancarado.

É preciso ter claro que os liberais não são (nem nunca foram) aliados para barrar o avanço do fascismo, seja na base ou no topo das instituições. Os partidos e grupos liberais são os que toleram e abrem as portas para fascistas no governo – muitas vezes com apoio da centro-esquerda. Portanto, a luta contra antifascista deve ser uma luta anticapitalista que enfrente todos os possíveis aliados do fascismo.

Boa leitura.

Bloqueio do elevado Helena Greco em Belo Horizonte, 3 de julho de 2021.

Recentemente a onda de protestos nos EUA, que se espalhou por vários lugares do mundo, deflagrados pelo assassinato de George Floyd pela polícia, colocou novamente em cena o tema do antifascismo, levando uma quantidade enorme de coletivos e indivíduos a se declararem antifas. Essa popularização através da propaganda pelo ato pode ser de fato formadora, mas também pode ser um esvaziamento de sentido dos movimentos antifascistas, que os apaga enquanto alternativa diferenciada de luta. Dizer “somos todos antifas” é importante porque, como em outras insígnias semelhantes, aponta na direção contrária à criminalização: não há um grupo específico de pessoas que possa ser qualificado em tribunais como associação criminosa, que se possa denominar “os antifascistas”, trata-se, antes de tudo, de uma certa orientação geral prática que vários coletivos e indivíduos reivindicam. Mas dizer “somos todos antifascistas” também pode significar uma tentativa de assimilação em curso, de domesticação, de cooptação. Tal como avaliamos, a popularização do termo antifa não deve significar o apagamento dessa prática política e de sua diversidade de táticas, caso contrário essa propagação se tornaria uma diluição. O presente texto pretende contribuir para evitar tal processo, retomando o sentido da oposição fascismo/antifascismo na contemporaneidade e reforçando, particularmente, uma de suas características mais marcantes, a saber: com o fascismo não se discute, se combate.

Em tempos de governos que defendem abertamente valores fascistas, nos quais a luta antifascista chegou à consciência do público geral e a mídia corporativa se dedica a tentar explicar o que é o fascismo e o antifascismo — para muitas vezes igualar os dois ou criminalizar os antifascistas enquandrando-os como um grupo de caráter homogêneo, externo e invasor —, é preciso retomar alguns pontos importantes que sempre estiveram presentes na luta antifascista contemporânea e que podem ajudar aqueles que estão aderindo agora às lutas antifascistas.

Na contemporaneidade, a designação antifa diz respeito a uma orientação reivindicada por certos coletivos e movimentos quanto a não tolerância do fascismo de maneira alguma. Não diz respeito a um grupo específico, que pudesse ser uma organização terrorista, mas também não diz respeito a ser simplesmente contra o fascismo. Trata-se de uma orientação geral e prática preconizada por certos grupos, em sua maioria anarquistas, mas não apenas. Organizados em grupos de afinidade, são coletivos que legitimam a ação direta e que afirmam: com o fascismo não se discute, se combate diretamente. É importante notar que estes grupos têm raízes na contracultura punk dos anos 1980 e também, em alguns casos, nas torcidas organizadas de futebol, acostumadas a enfrentar a força policial diretamente. Não legitimam a luta jurídica, eleitoral ou institucional no combate ao fascismo, mas se organizam para impedir o fascismo de crescer, seja ao impedir uma manifestação fascista, seja ao impedir o fascismo no micro da sociedade. Os movimentos antifas defendem a autodefesa, a ação direta e a resistência não institucional ao fascismo. O antifascismo é uma reação à ameaça fascista e à ação violenta das forças policiais, na medida em que estas encarnam de forma evidente elementos fascistas. A violência policial racista e seus assassinatos são deflagradores recorrentes da resistência antifascista. E é interessante notar que o nascimento contemporâneo da antifa nos EUA se deu justamente em Minneapolis, onde o assassinato de George Floyd deu início à insurreição atual.[1]

O que significa a ação direta que estes coletivos reivindicam como arma primordial no combate ao fascismo? E por que, em se tratando do fascismo, ela parece ser a única possível? Em último grau, o que estamos dizendo que é intolerável quando dizemos que não dialogamos por quaisquer meios, que não negociamos o fascismo?

Primeiramente é preciso sempre desconstruir a ideia segundo a qual ação direta significa ação violenta. Uma ação é direta por não ser indireta, ou seja, por rejeitar representantes ou mediações para atingir seus objetivos. Mas não se trata aqui apenas de rejeitar a política institucional, e sim de encarnar na própria ação o objetivo buscado, rompendo com dualismos e com a separação entre meios e fins buscados. Neste sentido, organizar educação popular é ação direta; ocupar um imóvel abandonado também; tanto quanto promover eventos de contracultura e contrainformação. Adicionalmente, toda a luta na micropolítica onde o fascismo se encontra enraizado é uma luta por meio da ação direta, e aqui é preciso dizer ainda que as transformações reais, profundas, se dão de baixo para cima, no âmbito dos valores, no âmbito das práticas. Se atualmente a fascistização da nossa sociedade aparece de modo tão evidente, isso se deve em grande medida ao fato de que nunca houve uma modificação de baixo para cima naqueles valores que constituem o cerne do fascismo. E sobre isso nunca será demais lembrar as palavras de Foucault:

E não somente o fascismo histórico de Hitler e de Mussolini — que tão bem souberam mobilizar e utilizar o desejo das massas —, mas o fascismo que está em nós todos, que martela nossos espíritos e nossas condutas cotidianas, o fascismo que nos faz amar o poder, desejar esta coisa que nos domina e nos explora.[2]

Como liberar nosso discurso e nossos atos, nossos corações e nossos prazeres do fascismo? Como expulsar o fascismo que está incrustado em nosso comportamento?[3]

Os grupos antifas na contemporaneidade defendem que é um equívoco interpretar o fascismo apenas no seu sentido histórico ou como uma característica nacional específica de algum povo, como os alemães ou os italianos. O fascismo nunca desapareceu para ser revivido novamente. Ele sempre esteve entre nós em silêncio, para voltar de tempos em tempos quando as classes dominantes, amedrontadas diante de uma sociedade em completa falência política, social e econômica, como na qual vivemos, recorrem ao fascismo para salvá-la da revolução social. Para eles, o fascismo não é apenas um tipo de regime, nem uma ideologia para um regime em potencial. Ele pode ser entendido também como uma prática, um método, baseado no desejo fascista de dominar, oprimir, obliterar o outro. O fascismo também não seria uma perversão ou desvio dos valores da nossa sociedade, mas uma consequência deles. Assim o psicanalista Wilhelm Reich definiu a mentalidade fascista como aquela do homenzinho subjugado que anseia por autoridade e se rebela contra ela ao mesmo tempo. Reich afirmou que não é por acaso que todos os ditadores fascistas surgem do ambiente do homenzinho reacionário.[4] E de modo ainda mais enfático:

As minhas experiências em análise do caráter convenceram-me de que não existe um único indivíduo que não seja portador, na sua estrutura, de elementos do pensamento e dos sentimentos fascistas. O fascismo como um movimento político distingue-se de outros partidos reacionários pelo fato de ser sustentado e defendido por massas humanas.[5]

Antifascistas exibem cartazes e bandeiras tomados de Bolsonaristas durante o 7 de setembro de 2021. Local desconhecido.

O problema dos fascismos cotidianos, dos microfascismos com os quais vivemos, acaba por complicar a dicotomia fascista/antifascista. Se todos nós possuímos elementos de fascismo de alguma forma, como podemos falar de antifascismo, diferenciar e dar nome aos fascistas? “Mate o policial dentro da sua cabeça” — diz um ditado anarquista. Para os antifas, o fascismo não é uma doença ou uma patologia inata, e sim algo normalizado no nosso cotidiano, uma perversão do desejo produzida pelas formas de vida capitalista e moderna: práticas de dominação, autoritarismo e exploração que nos integram de tal jeito que não podemos simplesmente decidir sair delas. Mas nem todo mundo se torna um neonazista. Isso também demanda uma prática fascista, uma reafirmação constante do desejo fascista de oprimir e viver em um mundo opressivo. E, com certeza, o mundo contemporâneo fornece essa reafirmação. Neste sentido, nos tempos como os que vivemos, precisamos praticar o antifascismo, trabalhando para criar formas de vida não hierárquicas, construindo espaços seguros para os grupos oprimidos, redes de solidariedade contra a violência policial e de grupos fascistas, agindo diretamente para combater o avanço do fascismo nos locais em que convivemos. É importante destacar aqui que não existe um comitê central que determina as regras e as diretrizes sobre como atuar ou sobre quem deve ser considerado fascista o suficiente para ser combatido; cada grupo que escolhe se engajar numa ação antifascista deve decidir sobre as estratégias e táticas apropriadas para a situação na qual se encontra. O antifascismo é, antes de tudo, uma prática ética e coletiva de resistência, não é um código moral.

A identidade é fundamentalmente sobre distinguir-se dos outros. O antifascismo, no entanto, é para todos. Devemos tomar cuidado para não isolá-lo dentro de uma demografia específica com um código de vestimenta e linguagem específicos. Isso é primordial, porque a extrema direita está se esforçando para descrever a antifa como uma organização alienígena monolítica, hostil. Nossa tarefa não é apenas construir uma rede de grupos, mas criar um momentum antifascista que se espalhe contagiosamente por toda a sociedade, junto a as críticas e táticas necessárias para essa luta.[6]

Por meio das ações diretas, os grupos antifas têm mobilizado exatamente os elementos que podem guiar o combate cotidiano ao fascismo, como presentes no texto “Introdução à vida não fascista”. Os grupos são múltiplos e por isso libertos da paranoia da organização totalizante; são não hierárquicos e agenciados entre si também de modo não burocrático; não separam teoria e prática e não se engajam em disputas institucionais e jurídicas por poder.

Ousaríamos mesmo dizer aqui que, na medida em que se colocam fora do âmbito da representação, se afastam da mobilização de afetos tristes.[7] E é por isso que podemos dizer que suas práticas não se separam do fim almejado. E também no caso da resistência ao fascismo histórico, foram fundamentais as ações diretas, descentralizadas e as redes clandestinas.[8]

São Paulo, 3 de junho de 2021.

O avanço da chamada nova direita no mundo pode ser entendido como um reviver dos valores fascistas, que sempre estiveram aí e se espalham hoje sem muita vergonha. Quais valores e práticas são essas? Basicamente, podemos resumi-la nas seguintes características: o culto ao militarismo e ao autoritarismo; o nacionalismo, ainda que meramente discursivo, dentro de economias privatistas periféricas abertas ao capital internacional, como a nossa; um certo fundamentalismo religioso; o racismo; a misoginia; a homofobia; e uma política de segurança que estabelece a morte como modo de governo, criando inimigos internos que se configuram discursivamente de modo distinto em cada território, seja como combate ao terrorismo, ao imigrante ilegal ou ao tráfico de drogas. Por meio dessas ideias, o fascismo continuou existindo no Estado moderno. É também por meio delas que podemos entender o caráter fascista do avanço conservador na política recente. Não é correto dizer, sobretudo na realidade latino-americana, que o fascismo ficou um tempo fora de cena para retornar no seio da democracia. De fato, os elementos fascistas sempre estiveram presentes no poder por aqui, acompanharam nossa história da colonização[9] ao estado novo, passando pela ditadura militar. O que talvez nos falte seja justamente uma resistência antifascista organizada, que se entenda como tal, que identifique diretamente estes elementos como constitutivos das políticas de segurança hoje e que se insurja contra eles em todos os âmbitos das nossas vidas. Apesar de não se identificarem expressamente como fascistas, a família Bolsonaro, o bolsonarismo e tudo o que a chamada nova direita representa, na prática, se encaixam perfeitamente nesses elementos. E aqui é sempre útil lembrar o que afirmou Durruti sobre o tema:

Nenhum governo do mundo combate o fascismo até suprimi-lo. Quando a burguesia vê que o poder lhe escapa das mãos recorre ao fascismo para manter o poder de seus privilégios, e isso é o que ocorre na Espanha. Se o governo republicano tivesse desejado eliminar os elementos fascistas, podia tê-lo feito a muito tempo. Em vez disso, contemporizou, transigiu e gastou seu tempo buscando compromissos e acordos com eles. [10]

Buenaventura Durruti, 1936.

Há mais de meio século, grupos anarquistas ou autonomistas denominados antifas chamam a atenção para o fato de que o fascismo não acabou com o fim da ii Guerra Mundial, até porque, como já analisava Maria Lacerda de Moura na década de 1920, é o filho predileto do Estado e do Capital. Em Fascismo – Filho dileto da igreja e do capital, a pensadora anarquista defendeu que o sistema capitalista sempre é potencialmente fascista, e demonstrou a sua relação interna com a instituição religiosa, a igreja e o clero.[11] O fascismo seria a consequência do Estado capitalista. Esta análise é extremamente atual e nos ajuda a entender como muitas das características do fascismo histórico se perpetuaram no seio das chamadas democracias representativas liberais. A história mostra, em vários momentos, que o antifascismo não deve dar os braços aos liberais, porque, quando o risco de uma revolução popular é real, estes últimos ajudarão a abrir passagem para os fascistas contra os revoltosos. Sem que a ameaça de sublevação seja real, as elites abrem as portas para líderes conservadores e aceitam a ascensão do fascismo, que mantêm sempre em seu cerne como um mal menor. [12] A impressão é de que sempre haverá um liberal ou social-democrata abrindo caminho para a extrema direita massacrar uma possível rebelião. Certamente a história não se repete, mas nos deixa lições: não se pode confiar nos meios eleitorais ou nas instituições ditas democráticas para derrotar o fascismo. E isso não apenas porque os fascistas chegam ao poder legalmente,[13] mas porque reside no cerne da representação espetacular do antissistêmico. Neste sentido, o princípio do fascismo é o extremo oposto da ação direta enquanto fim sem nenhum meio, já que nestas os meios são os fins. O fascismo é o sistema da representação tomando vida própria, se tornando absoluta, é o exercício do poder soberano em ato puro, sem necessidade de legitimação por parte do poder constituinte. Essa instituição que toma vida própria, com poderes absolutos, se apresenta falsamente como um antissistêmico, quando é de fato a encarnação do sistema. O estado de exceção que esteve sempre no cerne das democracias modernas. A ação policial com carta branca para matar é sem dúvida a sua experiência mais concreta. Neste sentido, os confrontos entre grupos fascistas e antifascistas nunca foram e não podem ser tratados como meros confrontos entre gangues rivais, tratam-se antes de confrontos com o fascismo, que é, e sempre foi, tolerado no cerne das sociedades ditas democráticas, e que é particularmente propagado hoje por setores religiosos e presente diretamente na prática das forças policiais. Talvez entender como a noção de Estado Policial é atual envolva compreender como a instituição policial encarna elementos fascistas, ainda que dentro da democracia liberal.[14] No Brasil e no mundo, a luta contra a polícia está interligada com a luta contra o fascismo. Todos os dias, nas periferias e favelas desse país, a polícia atua como um exército em guerra que ocupa territórios inimigos. O genocídio do povo negro e pobre é um projeto político de Estado. É o fascismo sendo exercido através das forças policias, dos aparatos de repressão e controle de populações.

Dos estádios às manifestações, as antifas no Brasil, desde seu surgimento, têm apontado para características fascistas das forças de segurança do Estado, sendo a luta contra a violência policial uma de suas principais bandeiras. “Não acabou, tem que acabar, eu quero o fim da polícia militar” é talvez a palavra de ordem mais repetida nas linhas de frente das manifestações compostas por antifas. Não é coincidência que o crescimento da violência policial na última década anda em conjunto com o avanço da extrema direita no mundo, além disso, é notório as fortes relações entre esses dois grupos pelo mundo todo. São diversos exemplos aos logo da história, mas não precisamos ir tão longe, basta notar como um policial trata um neonazista e como ele trata um favelado numa abordagem cotidiana.

A cada ano batemos novos recordes de mortes por policiais, enquanto as instituições ditas democráticas se tornam cada vez mais fascistizadas. Os antifas entendem que agora vivemos sob duas epidemias: a da brutalidade policial e a de Covid-19. Por isso muitos coletivos têm trabalhado desenvolvendo diversas ações diretas de solidariedade entre as comunidades e combatendo o fascismo por todos os meios necessários. Muitas dessas ações pelo Brasil estão sendo interrompidas pela brutalidade policial e pela violência do Estado que não dão trégua nem em tempos de pandemia. No Complexo da Maré e na Favela da Providência, no Rio de Janeiro, por exemplo, ações de solidariedade desse tipo foram violentamente interrompidas por operações policias que resultaram na morte de participantes das ações e de pessoas atendidas por elas.[15]

Nem todos estão do mesmo lado das barricadas.

Vivemos no país mais violento do mundo. Com uma taxa de homicídio de mais de 60 mil, a violência no Brasil atinge níveis maiores do que em vários países em guerra. Temos a polícia mais letal do mundo.[16] A cada 23 minutos, um jovem negro é assassinado nesse país, sendo a maioria pela polícia.[17] Durante a pandemia, mortes por policias aumentaram 43% no Rio de Janeiro. [18] Um aparato de repressão militar, herança da ditadura, em uma instituição que já é uma herança colonial escravocrata criou essa máquina de moer carne humana que é a polícia militar. Como se já não bastasse, também somos o país que mais mata LGBTQIA+ no mundo, os maiores assassinos de indígenas das Américas e estamos caminhando para liderar o ranking mundial de violência contra a mulher. Mas quando o assunto é a violência dos grupos antifas parece que esse pano de fundo descrito não existe. A opinião pública tende a igualar fascistas e antifascistas como extremistas equivalentes, algo muito grave, que impulsionou, em mais de uma ocasião, o crescimento do fascismo. A mídia e o governo sempre fazem o possível para deslegitimar a ação antifa. A sociedade brasileira é violenta e sanguinária, o projeto colonial genocida se estende até os dias atuais, porém nos acostumamos a ele. Praticar o o antifascismo é, em grande medida, nunca se acostumar. O antifascismo é autodefesa contra tudo isso e, assim, a tão propagada “violência antifa” é, de fato, uma contraviolência. Portanto, é de suma importância entender o antifascismo como elemento de um objetivo abolicionista e anticapitalista maior, que busca dar fim à polícia, às prisões e às hierarquias opressivas. Não ter tolerância com a intolerância não é equivalente a ser intolerante. O que não é aceito de modo algum neste caso é justamente a defesa da morte do outro, o que é um detalhe lógico, como veremos adiante.

A experiência histórica nos mostrou como certos discursos são perigosos e não devem ser tolerados porque eles se vinculam muito diretamente ao genocídio e à naturalização da barbárie. Quando grupos antifas se esforçam para impedir que eventos fascistas possam ocorrer, por exemplo, eles estão se baseando nessa experiência que nos foi legada. A mensagem dessas ações é: se algo similar começa a surgir deve ser imediatamente impedido antes que cresça. As vias normais de negociação e diálogo não só se mostraram historicamente incapazes de barrar o fascismo como, em princípio, nem poderiam fazê-lo, já que o fascismo constitui precisamente uma ruptura com essas vias. E de tal forma que tentar defender a liberdade de expressão do próprio fascismo só pode constituir-se como uma evidente contradição em termos. Não há o que argumentar quando o efeito prático é a eliminação literal de um lado da interlocução. O fascismo não pode se expressar porque se ele se expressa ninguém mais se expressa. Sua própria possibilidade discursiva precisa ser banida como absurda. Para explicar melhor este ponto, é útil uma breve análise linguística. Tomemos as seguintes afirmações:

1. Todos têm direito a expressar sua opinião;

2. Mas a opinião de alguns é justamente que: não é o caso 1;

3. Então, nem todos têm direito a expressar sua opinião.

O conjunto de proposições acima tem a forma de um paradoxo por autorreferência. O paradoxo se desfaz quando observamos que 1 não é uma mera opinião dentro do sistema de opiniões, mas é uma proposição metalinguística, ou melhor, tem um valor normativo em relação ao sistema. Isso significa dizer que ela é condição de possibilidade de haver opiniões dentro do sistema e, por isso, é uma necessidade que não pode ser negada ou colocada em questão. O fascismo funciona exatamente assim, ele não é uma opinião entre outras em um sistema, é a dissolução da possibilidade mesma de continuar havendo opiniões. Por isso não deve ser tolerado. Toda argumentação cai por terra contra o fascismo, pois não se pode argumentar com quem nega o pano de fundo sobre o qual se desenrolam argumentações. Você não pode dizer que o fascismo é simplesmente falso, você deve combater a sua própria possibilidade como dotada de significação. Pois uma vez que você tolera o fascismo, você tolera o absurdo como possível, ou seja, você destitui aquilo que deveria ser necessário deste estatuto de necessidade. E é precisamente por isso que dialogar com o fascismo já é deixá-lo vencer.


Notas:

  1. “Podemos localizar a gênese antifa na América do Norte em um pizzaria de Minneapolis, onde um grupo de skinheads antirracistas e multirraciais chamados Baldies estava reunido durante as férias de Natal em dezembro de 1987.” Bray, Mark. Antifa: o manual antifascista. Tradução Guilherme Ziggy. São Paulo: Autonomia Literário, 2019, p. 146.
  2. Foucault, Michel. “Introdução à vida não fascista”. Preface in: Gilles Deleuze e Félix Guattari. Anti-Oedipus: Capitalism and Schizophrenia. New York: Viking Press, 1977, pp. xi–xiv. Traduzido por Wanderson Flor do Nascimento.
  3. Ibidem, p. 03.
  4. Reich, Wilhelm. Psicologia de massas do fascismo (1946). Tradução Mary Boyd
    Higgins. São Paulo: Martins Fontes, 1972, p. 13
  5.  Ibidem, p. 12.
  6. Not Your Grandfather’s Antifascism. Coletivo CrimethInc., 29/08/2017. Tradu-
    zido por Erick Rosa.
  7. Ver: foucault, Michel, op. cit., pp. xi–xiv.
  8. Ver: bray, Mark, op. cit., pp. 99–100.
  9. Aqui é também interessante lembar a análise desenvolvida por Achille
    Mbembe, segunda a qual o fascismo histórico de fato aplicou à Europa os prin-
    cípios de ação que já eram utilizadas no processo colonizatório. O nazismo teria como premissas fundamentais o imperialismo colonial racista e os mecanismos desenvolvidos pela própria revolução industrial. Ver, por exemplo: mbembe, Achille. Necropolítica. Tradução Renata Santini. São Paulo: n-1, 2019, pp. 22–23.
  10. Entrevista de Buenaventura Durruti ao jornalista Van Passen, 1936.
  11. moura, Maria Lacerda de. Fascismo – Filho dileto da igreja e do capital. São
    Paulo: Paulista, 1934.
  12. Ver: bray, Mark, op. cit., pp. 54–56; pp. 61–63 e p. 70.
  13. Ver: Ibidem, pp. 247–252.
  14. Essa ideia foi desenvolvida pela autora em: jourdan, Camila. “Estado Policial
    e Estado de Exceção: notas sobre a sociedade contemporânea.” Em: Abolicionismos – Vozes antipunitivistas no Brasil e contribuições libertárias. Org. Guilherme Moreira Pires. Santa Catarina: Editora Habitus, 2020, pp. 57–68.
  15. Sobre isso, conferir: “Jovem é morto durante entrega de cestas básicas no rj;
    vizinhos criticam pm”, Uol Cotidiano, 21/05/2020. E: “Operação policial interrompe doação de cestas e deixa mais um jovem morto no rj”, Brasil de Fato, 23/05/2020.
  16. Sobre isso, conferir: “Polícia brasileira é a que mais mata no mundo, diz
    relatório”, Exame, 08/09/2015. E: “Com 62,5 mil homicídios, Brasil bate recorde de mortes violentas”, Uol Cotidiano, 05/06/2018.
  17. . Dados disponíveis em: “A cada 23 minutos, um jovem negro é assassinado no
    Brasil, diz cpi”, Flacso Brasil, 06/06/2016.
  18. Sobre isso, conferir: “Mortes por policiais crescem 43% no rj durante quaren-
    tena, na contramão de crimes”, Folha de S. Paulo, 26/05/2020.