ENTREVISTA COM TEKOŞÎNA ANARŞÎST– Coletivo Anarquista Combatendo em Rojava

Tekoşîna Anarşîst em 2019

Traduzimos para o português a entrevista que camaradas da federação Anarquista uruguaia (fAu) fizeram em julho com camaradas do coletivo Tekoşîna Anarşîst (Luta Anarquista em português ou TA) atuando em Rojava, norte da Síria desde 2019. Composto por internacionalistas de diferentes partes do mundo, TA busca aprender com a revolução dos povos Curdos e outros em Rojava, mas também fazer parte e apoiar o processo revolucionário em várias frente, incluindo a luta armada.

A revolução em Rojava é um dos maiores experimentos de luta anticapitalista do nosso século – se não for o mais emblemático. Após praticamente derrotar o Estado Islâmico sozinhos ao mesmo tempo em que promovem uma revolução social ecológica, multiétnica e feminista, o povo curdo no norte da Síria foi abandonado por aliados ocidentais, como os EUA, e sofreu uma ofensiva do estado Turco, parceiro antigo dos jihadistas do Estado Islâmico.

Veja o fim desse artigo uma lista de indicações textos, comunicados e vídeos sobre a revolução e as ameaças a Rojava.

Para saber mais do trabalho de internacionalistas em Rojava, visite:
internationalistcommune.com | riseup4rojava.org

Boa leitura,

Bijî Rojava!


1) Daqui da América Latina, seguimos com atenção e interesse especial o que acontecem em Rojava e na Síria. Em primeiro lugar, podem no explicar a configuração do batalhão de companheiros libertários e seus vínculos com a resistência curda?

Desde o início da revolução de Rojava, especialmente a partir de 2015, após a resistência de Kobane, os brigadistas internacionais têm ajudado a fazer frente diante de Daesh (ISIS) e defender a revolução. Nos primeiros anos a maioria de brigadistas internacionais chegaram em coordenação com o YPG e o YPJ, as milícias de autodefesa curdas. Dado o caractere antiestatista do projeto político de Rojava, anarquistas de distintos continentes nos somam à luta e a defesa da revolução, aos poucos chegando de forma dispersa e desorganizada. Em 2015, os internacionalistas do YPG e YPJ organizam o IFB (International Freedom Batallion), integrando brigadistas de organizações revolucionárias turcas junto a outros militantes internacionais. Dentro do IFB, conforma-se a uma primeira brigada anarquista do IRPGF (Forças Guerrilheiras Revolucionárias Internacionais), que opera durante aproximadamente um ano, durante as operações de Tabqa e Raqqa.

Têkoşîna Anarşîst (Luta Anarquista em português ou TA) nasce no final de 2017 depois da libertação de Raqqa. Buscamos não apenas participar da luta contra o Daesh, também aprender com movimento de libertação do Curdistão e construir pontes com movimentos libertadores de todo o mundo. Como anarquistas, vemos a importância de pegar em armas contra o despotismo teocrático do Estado Islâmico, mas também contra a opressão fascista do Estado Turco, o Estado Sírio, as diversas potências imperialistas e os inúmeros grupos fundamentalistas islâmicos que lutam na Síria. A realidade da guerra é muito complexa e as vezes nos afunda em um mar de contradições sobre o nosso papel aqui. Os conflitos inter-étnicos e inter-religiosos são convertidos em uma guerra de poder regional e geopolítico, em que influencia imperialistas e coloniais marcam o ritmo do Oriente Médio mediado por sangue e petróleo. Mas a resistência curda é um exemplo de organização revolucionária e o projeto social e político de Rojava é inspirador. Depois de alguns anos de alguns anos trabalhando aqui vimos os lados bons e também os lados ruins da revolução, e nosso compromisso com ela se baseia em um marco de internacionalismo e solidariedade crítica.

A implementação do confederalismo democrático, uma sociedade sem Estado baseada na libertação das mulheres, na ecologia e na democracia direta, é um exemplo para nós que acreditam em um mundo livre do capitalismo e do patriarcado. Foi isso que nos levou à Rojava. Mas e agora? Um grande número de internacionalistas que vêm à Rojava, participam na defesa da revolução por alguns meses e depois retornam às suas vidas anteriores. É isso que queremos? É esta a nossa ideia de solidariedade internacionalista? Não, nós queremos algo mais. Para entender melhor o que estamos procurando, estudamos a história do internacionalismo, mas em vez de olhar para a estrutura centralizada da Terceira Internacional, preferimos nos inspirar na luta anticolonial da Conferência Tricontinental. Revolucionários como Almícar Cabral da Guiné-Bissau, Ben Barka do Marrocos ou Che Guevara da Argentina se uniram para, nas palavras de Franz Fanon, “resistir ao lado dos miseráveis da terra para criar um mundo de seres humanos”. Suas perspectivas sobre a solidariedade internacional eram muito claras: “Não se trata de desejar sucesso ao agredido, mas de administrar seu próprio destino; acompanhá-lo à morte ou à vitória”. Depois eles falaram em criar 2, 3, muitos Vietnãs, agora falamos em criar 2, 3, muitos Rojavas, muitos Barbachas, muitos Chiapas.

Tekoşîna Anarşîst não é simplesmente um grupo anarquista na Síria ou no Curdistão, nossa existência está condicionada pela luta e pelo processo revolucionário de Rojava. A opressão sofrida pelo povo curdo é outro exemplo da dinâmica colonial sofrida pelos povos indígenas, povos com culturas e raízes ancestrais que são ameaçados pela hegemonia capitalista. Como internacionalistas, também é nosso dever estudar e compreender as formas como as potências imperialistas exercem opressão sobre os países do Sul global. Lutamos contra a opressão em nossas casas e agora continuamos a luta aqui. Viemos a Rojava em resposta ao apelo de solidariedade internacional e, portanto, nossa prioridade é compreender as necessidades do povo e a dinâmica do movimento revolucionário local. No passado tínhamos trabalhado em coordenação com a IFB (International Freedom Batalion), mas hoje somos uma organização autônoma integrada nas Forças Democráticas Sírias SDF, juntamente com curdos, árabes, assírios e outros internacionais que lutam por uma Síria democrática e ecológica, livre da opressão patriarcal.

Tekoşîna Anarşîst com sua ambulância para apoio médico em conflitos.

2) Quais são as principais diferenças entre TA e o PKK e seus grupos armados?

O PKK é um partido revolucionário criado em resposta à opressão sofrida pelo povo curdo. Tekoşina Anarşist é um coletivo criado para apoiar e aprender com a revolução da Rojava. Esta realidade implica um grande número de diferenças em relação ao tamanho da organização, objetivos, dinâmica interna, projeção futura, táticas, estratégias.

O PKK foi fundado há mais de 40 anos como um movimento de libertação nacional com uma visão internacionalista, moldando-se como um movimento anti-colonial no Oriente Médio. Sua luta pela libertação nacional permitiu a este partido, que nasceu com uma orientação marxista-leninista-maoísta, avaliar suas conquistas e erros e reconfigurar seus objetivos e seu paradigma político. O novo paradigma proposto por Abdullah Öcalan é alimentado por perspectivas libertárias, posicionando-se contra o modelo de Estado-nação, contra o patriarcado e contra o ecocídio produzido pelo capitalismo e o sistema tecno-industrial. Diante disso, o novo paradigma aposta em modelos de democracia direta, tendo as comunas e cooperativas como base social. Ela prioriza a libertação da mulher como base para a transformação social através da organização autônoma da mulher. Está comprometida com uma perspectiva ecológica e uma reconexão com a natureza, reconstruindo um modelo de vida de acordo com os outros seres vivos deste planeta.

Suas opiniões sobre a violência também são diferentes daquelas de suas origens maoístas, onde a violência revolucionária foi concebida como um objetivo em si mesma. A mudança de paradigma, motivada em grande parte pelo movimento curdo de mulheres, reorientou a análise em torno do conceito de autodefesa. A dinâmica patriarcal e colonial dos Estados, que baseiam sua existência na dominação através da guerra, genocídio e escravidão, sempre encontrou resistência por parte daqueles que eles procuravam subjugar. As sociedades que viveram uma vida livre não podem aceitar o domínio de sistemas centralizados e é por isso que cada sociedade, cada ser vivo, precisa assegurar seus sistemas de autodefesa.

Como anarquistas, como revolucionárias, concordamos com esta visão, com este horizonte político e social. Ecologismo, feminismo, comunalismo ou confederalismo não são desconhecidos do anarquismo, muito pelo contrário. Nem a luta armada, e em Rojava tivemos que nos defender com todos os meios à nossa disposição contra o fascismo teocrático do Estado islâmico e a invasão do Estado fascista turco. Em tempos de guerra, lutamos lado a lado com o YPG, o YPJ, com guerrilheiras e guerrilheiros do PKK, com membros de outros partidos revolucionários turcos, com outros internacionalistas de diferentes ideologias, com curdos, com árabes, com assírios. Quando o inimigo dispara, quando as bombas caem, o que está do nosso lado da trincheira é compa, é heval, e as diferenças ideológicas não pesam tanto quanto a paixão de defender a revolução, a paixão de construir uma sociedade livre. Mas certamente existem diferenças ideológicas que, quando não estão chovendo balas e morteiros, levam a debates e reflexões que influenciam nossa maneira de pensar sobre revolução e compreensão do anarquismo. As diferenças que Marx e Bakunin, entre muitas outras, discutiram nos congressos da primeira internacional de trabalhadores ainda hoje são uma fonte de conflito. Mas é precisamente este conflito que nos ajuda a refletir, a aprender, a continuar a crescer.

Em resposta à pergunta em questão, as principais diferenças que encontramos são, por um lado, organizacionais e, por outro, ideológicas. No nível organizacional, priorizamos a descentralização e a distribuição de tarefas, responsabilidades e liderança, evitando deliberadamente a criação de um comitê central ou de uma instituição autoritária. Sabemos que as estruturas militares são sempre condicionadas por uma organização hierárquica e uma cadeia de comando, e em alguns aspectos tivemos que adaptar nossa estrutura às necessidades militares. Mas ao contrário de outras forças, damos atenção especial à operação de forma inclusiva e horizontal, incentivando responsabilidades rotativas e liderança. O aprendizado coletivo, a confiança e o apoio mútuo, mas sobretudo o desejo de uma vida livre, são a base de nosso trabalho e de nosso projeto político.

No nível ideológico, as diferenças podem ser mais complexas. O mais relevante talvez seja nosso forte apoio às lutas LGBT+, que no movimento de libertação curdo não têm um apoio tão determinado. Há sem dúvida correntes que trabalham na mesma direção e as perspectivas do movimento feminino curdo no âmbito da jineolojî têm um horizonte político onde podemos coincidir. Elas mesmas estão questionando e refletindo sobre o aparente essencialismo deste movimento, abrindo a porta para uma compreensão mais ampla da mulher mais próximo das teorias queer, embora ainda em uma minoria. O pragmatismo deste movimento às vezes também leva a contradições ideológicas, especialmente em aspectos relacionados à propriedade. Em Rojava existem iniciativas comunitárias e perspectivas de propriedade coletiva, mas a realidade capitalista da propriedade privada ainda está presente na sociedade, sem muito esforço para mudar esta realidade. Dentro dos movimentos revolucionários, a propriedade é em grande parte coletiva e a vida comunitária que é fomentada tem uma clara orientação socialista, mas às vezes é difícil que estas ideias cheguem à maioria da população.

Olhando de uma perspectiva mais ampla, se pensarmos não apenas em nossa organização, mas no anarquismo em geral, vemos grandes contradições com a deriva individualista que o movimento anti-autoritário vem sofrendo nas últimas décadas. Têkoşîna Anarşîst está comprometido com uma luta coletiva que escapa à lógica individual e ao pensamento liberal, em sintonia com as tendências do anarquismo social, mas sem deixar de refletir sobre o papel do indivíduo na sociedade. Sabemos muito bem que quando as ordens são impostas de cima para baixo, sem respeitar as decisões coletivas ou sem ouvir as vozes minoritárias, a coerção é gerada no indivíduo. Por outro lado, quando o indivíduo não age de acordo com os objetivos comuns de um movimento, ele deslegitima a organização e a luta coletiva. Outro importante debate entre o anarquismo tradicional e as ideias do confederalismo democrático é a influência do positivismo e do racionalismo. O anarquismo tem visto frequentemente a ciência e a razão, que foram resignadas pelo chamado “esclarecimento”, como a única forma de se alcançar uma sociedade livre. Aqui esta premissa é posta em questão, procurando prestar especial atenção às formas de entender o mundo e a sociedade que escapam do pensamento colonial europeu, com particular atenção à mitologia e ao conhecimento ancestral. Estas perspectivas são importantes quando se trata de aprender com os movimentos indígenas, repensando nosso lugar e nossa relação com a natureza, com a civilização e com a própria vida.

3) Como você analisa o processo de construção do Confederalismo Democrático? Qual é a sua participação nesta construção?

A construção do confederalismo democrático é certamente mais visível em Rojava, mas não pode ser desconectada do resto do Curdistão. Nos últimos anos, as ideias deste paradigma político foram postas em prática em grande escala em Rojava, mas também devemos levar em conta outros territórios, como o campo Mexmur ou a também recente zona autônoma de Sengal, em Basur, nas fronteiras do Iraque. Há também desenvolvimentos políticos em Rohhilat, nas fronteiras do Estado do Irã, mas sobretudo em Bakur, nas fronteiras do Estado turco. É necessário levar em conta as quatro partes nas quais o Curdistão está dividido hoje para entender porque o movimento curdo está orientado para uma solução anti-estatal.

Ao analisar sua construção, é essencial fazer referência ao trabalho ideológico de Abdulah Öcalan e seu “Manifesto para uma Sociedade Democrática”. Ao contrário de outras propostas políticas, o confederalismo democrático não se limita a descrever uma sociedade utópica livre de opressão, mas abre um diálogo de perguntas e respostas sobre como transformar a sociedade atual e como realizar este modelo utópico ao qual aspiramos. Como queremos viver, como queremos nos relacionar, como queremos lutar, são questões importantes na construção de uma sociedade revolucionária. As respostas que Öcalan esboça não são facilmente resumidas em alguns parágrafos, mas é importante compreender alguns dos conceitos que ele nomeia para transmitir suas ideias, para propor a transição da modernidade capitalista para a modernidade democrática. Esta modernidade democrática, como comentamos, se baseia na libertação das mulheres, na ecologia e na democracia sem o Estado.

Esta progressão ideológica mostra semelhanças com outros processos revolucionários como o movimento zapatista, um movimento indígena insurgente nas montanhas do sul do México. Ambos os movimentos nascem com uma estrutura maoísta, mas são reorientados para um socialismo libertário, ambos crescem e encontram refúgio nas montanhas, ambos são herdeiros de um povo com origens ancestrais, ambos têm um forte movimento autônomo de mulheres, ambos são um exemplo para os movimentos anti-capitalistas em todo o mundo. O confederalismo democrático não é uma nova ideologia, é uma forma de entender a sociedade e a civilização que nos inspira a nos construirmos como movimentos revolucionários, a nos comprometermos com nossas ideias e a avançarmos com passos determinados em direção a uma sociedade mais justa.

Ao colocar estas ideias em prática na Rojava, o processo tem sido muito influenciado pela guerra na Síria. Por sua vez, foi a guerra que tornou possível a revolução, permitindo a transformação social radical necessária para lançar as bases deste modelo político. Em 2012, a YPG/YPJ, então milícias mal armadas, expulsou os soldados e burocratas do estado sírio com apenas algumas balas disparadas. Em seguida, lutaram amargamente contra grupos islâmicos como a al-Nusra e depois o Estado Islâmico. Após a libertação de Kobane do cerco ao Daesh em 2015, o YPG/YPJ se expande e lidera a coalizão militar das Forças Democráticas Sírias (SDF) e, quando Raqqqa é liberada em 2017, a SDF é praticamente uma força militar regular, treinada e equipada em nível semi-profissional.

Estes desenvolvimentos militares são acompanhados por um processo de transformação social baseado nas ideias do Confederalismo Democrático, com a criação de comunas, cooperativas, centros de mulheres, comitês de justiça, academias, programas escolares em curdos, centros culturais, etc. Instituições sociais como o TEVDEM (Tevgera Democratic – Movimento Democrático) juntamente com o trabalho político do PYD (Partiya Yekineyen Democratic – Partido da Unidade Democrática) e outros partidos políticos e movimentos sociais são coordenados para a criação da Administração Autônoma, organizada inicialmente em 3 cantões (Afrin, Kobane, Cizire). Assim, vemos a vontade de administrar o território com base na organização local, baseada em um modelo municipalista, sem buscar a centralização de um modelo estatal.

Nenhuma revolução é um processo fácil e apesar das críticas que possamos ter sobre a retidão ou a injustiça de certas decisões, não há dúvida de que o processo pelo qual a Rojava está passando nos 8 anos da revolução é admirável. Mais uma vez, é difícil resumir tudo o que está acontecendo em alguns parágrafos, mas vale a pena notar o incrível desenvolvimento da situação que as mulheres estão vivenciando e o papel que as YPJs estão desempenhando neste processo. As mulheres na Síria, como todas as mulheres do mundo, sofrem com a violência e a opressão dos sistemas patriarcais, mas a partir de 2014 são especialmente ameaçadas pelo fascismo teocrático do Estado islâmico. Daesh é sem dúvida um exemplo paradigmático do patriarcado mais brutal e sangrento, com milhares de mulheres capturadas e vendidas em escravidão sexual. Nas palavras da lutadora do YPJ Amara de Kobane, “Nossas visões filosóficas nos fizeram conscientes do fato de que só podemos viver resistindo”, dando uma visão do porquê de muitas mulheres escolherem pegar em armas para se libertarem de tal ameaça, porque escolhem a autodefesa e a ação direta contra o que ameaça suas vidas. Após as vitórias militares sobre Daesh, ninguém pode questionar a enorme coragem e sacrifício que as mulheres trouxeram para a revolução. O movimento curdo diz que nenhuma sociedade pode ser livre se as mulheres não forem livres e em Rojava este slogan se torna o coração do processo revolucionário.

Nosso envolvimento em todo este processo é relativamente modesto, pois temos apenas três anos de experiência em Rojava. No início o mais importante era compreender a realidade local, a língua e a cultura curda, o projeto político e o funcionamento das organizações e estruturas. Isto também trouxe algumas contradições ideológicas, juntamente com muitos aprendizados metodológicos. Apesar de nossas semelhanças ideológicas e das referências de Öcalan a diferentes pensadores anarquistas, tais como Bakunin, Kropotkin ou Foucault, o anarquismo continua sendo um grande desconhecido para o movimento curdo. No terceiro volume do “Manifesto para uma Civilização Democrática”, Öcalan reflete sobre a importância do anarquismo como um aliado chave no desenvolvimento da modernidade democrática, compartilhando suas críticas e perspectivas para os movimentos anarquistas. No campo ideológico, nosso trabalho se concentrou em refletir sobre essas ideias e contradições, traduzindo-as e tornando-as mais acessíveis a um amplo público. Também passamos tempo debatendo e compartilhando nossas ideias, pois somos um grupo internacional de anarquistas de vários países, muitas vezes com perspectivas e origens diferentes. Este trabalho nos deu uma melhor compreensão dos movimentos libertários em diferentes partes do mundo e de como situá-los no contexto do processo revolucionário pelo qual estamos passando.

No campo prático, nosso trabalho tem se concentrado na defesa da revolução. Depois de participar de diferentes campanhas militares contra o Estado islâmico, temos trabalhado para nos treinar como médicos de combate, uma vez que o atendimento à saúde nos primeiros minutos pode ser crucial para a sobrevivência. Tekoşîna Anarşîst trabalhou como uma equipe médica de combate na campanha de Baghouz, o último bastião do Estado Islâmico e, desde então tem sido nossa principal tarefa sempre que tem havido uma frente ativa na Rojava. Operar como uma equipe médica de combate também significa ser capaz de treinar novos membros nestas disciplinas, por isso nos esforçamos muito para compilar o que aprendemos a compartilhar com novos camaradas que estão vindo para se juntar à revolução.

Membros da TA expressando solidariedade aos protestos antirracistas do Black Lives Matter nos EUA.

4) Como analisam a conjuntura atual do conflito na Síria e quais perspectivas vocês preveem?

Hoje, em julho de 2020, a guerra na Síria continua. Recentemente celebramos o oitavo aniversário da revolução de Rojava, lembrando o dia 19 de julho de 2012, quando foi declarada a autonomia da cidade de Kobane. O Estado Islâmico (ISIS) foi derrotado na batalha de Baguz no final de 2019, mas ainda existem células e grupos operativos que seguem realizando atentados. Muitos de seus antigos membros também se juntou aos grupos islâmicos apoiados pela Turquia, que desde o início de 2018 ocupam o cantão de Afrin. Há menos de um ano da última ocupação militar da Turquia e de seus mercenários islâmicos em Rojava, quando atacaram as cidades e povos localizados entre as cidades de Serekaniye e Gire Spî (Tel Abyad em árabe) ao longo da fronteira.

A população que fugiu destes conflitos bélicos se encontra em campos de refugiados, como os campos de Sheba, para onde a população de Afrin teve de fugir, e o acampamento Waşokani, onde a população de Serekaniye buscou refúgio das bombas turcas. Também há o campo de al-Hol, que é difícil de administrar, onde estão dezenas de milhares de mulheres e crianças que viviam sob o califado islâmico. Em al-Hol se encontra a população civil que fugiu do califado, mas também mulheres que mantém suas ideias fundamentalistas islâmicas, frequentemente organizando motins e declarações de apoio ao ISIS, atacando as forças de segurança do campo assim como a outras mulheres, apunhalando, atirando ácido ou incendiando outras barracas. As cadeias especiais para os combatentes do Daesh também aumentam as dificuldades enfrentadas pela Administração Autônoma em estabilizar a região, esperando que um tribunal internacional julgue seus crimes e encontre soluções. Mas a comunidade internacional não parece muito interessada em apoiar esse tipo de processo judicial, e poucos países repatriaram combatentes internacionais que deixaram seus países para se juntar às fileiras do Estado Islâmico (ISIS). Também nessas prisões muitas vezes ocorrem tumultos e tentativas de fuga.

Os campos de refugiados também são focos de emergências sanitárias, com surtos de salmonela ou outras doenças, como leishmaniose nos campos de Sheba. Até agora, Rojava não teve nenhum surto de COVID-19, mas a Autoadministração está trabalhando nos preparativos para evitar riscos futuros. Nosso trabalho sobre questões de saúde também nos permitiu aprender e apoiar nesses campos e entender melhor a situação, além de colaborar no desenvolvimento de treinamento e preparação de medidas preventivas no caso da pandemia começar a se espalhar por aqui. O hospital Serekaniye, agora sob ocupação turca e seus mercenários islâmicos, era o único equipado para fazer testes de PCR, e sabemos que a Turquia está enviando um grande número de pessoas infectadas com COVID-19 para lá. Também em Afrin a epidemia está se espalhando, dada a conexão direta do exército turco com os grupos islâmicos que ocupam a área, possivelmente numa tentativa do executivo de Erdogan de espalhar o vírus para Rojava. O vírus também se espalhou para partes da Síria que permanecem sob controle estatal da Síria, então não sabemos até quando Rojava estará livre dos efeitos da pandemia.

Lorenzo Orsetti, membro da TA morto em combate em 2019. “Toda tempestade começa com uma única gota de chuva. Tenha a certeza de ser essa gota” – Şehid Tekoşer

A situação militar também não é fácil. Por um lado, o governo de Erdogan continua ameaçando ocupar a região, com riscos especiais para os campos de Tal Rifat e Sheba, bem como para Manbij e Kobane. Como vimos em outras operações, não se trata de saber se a Turquia atacará novamente ou não, mas de quando isso acontecerá. O Erdogan anunciou recentemente uma nova operação em Basur, no Curdistão, no território iraquiano, que começou com mais de 80 bombardeios realizados pelas forças aéreas do Estado turco. Entre os alvos estavam o campo Mexmur, um hospital em Sengal, posições de guerrilha e aldeias civis nas montanhas que cercam a Turquia e o Irã, onde o PKK tem suas bases. No final de junho um drone bombardeou uma vila nos arredores de Kobane, onde ocorria uma reunião de Kongreya Star (o movimento de mulheres em Rojava), matando quatro mulheres, incluindo a responsável pela área de Kobane. Todos esses ataques são realizados enquanto a Turquia mantém sua frente em Idlib, apoiando o HTS (coalizão islâmica liderada pelo ramo sírio da Al Qaeda), suas operações militares na Líbia, sua política internacional agressiva no Mediterrâneo contra a Grécia e brutal repressão interna contra a população curda nas próprias fronteiras da Turquia

A guinada autoritária do Estado turco nas últimas décadas é acompanhada por um expurgo nas lideranças militares, especialmente após a chamada tentativa de golpe de 2016, além de um investimento pesado em gastos militares. Recentemente Erdogan adquiriu um segundo carregamento dos sistemas antiaéreos s-400 da Rússia, além de fechar um acordo para comprar mísseis Patriot dos Estados Unidos. Vemos como ele está se armando até os dentes, procurando manter sua posição na OTAN enquanto se dirige para um eixo da Eurásia com a Rússia, tentando reorganizar o conselho geopolítico do Oriente Médio, evocando o passado do império otomano. Esses sonhos expansionistas, a narrativa usual do fascismo, sempre precisam de um inimigo interno para culpar. Em 1915, o mundo testemunhou o genocídio armênio no qual o Estado turco foi fundado, onde não apenas os armênios e outras minorias cristãs foram massacrados e forçadas a deixarem suas casas, mas também deram um exemplo que mais tarde seria referenciado na perpetuação do holocausto (“Afinal, você está falando hoje sobre a aniquilação dos armênios?”, Disse Hitler antes de invadir a Polônia). Agora é a população curda que sofre com essas políticas genocidas e Rojava está, sem dúvida, na mira deles.

A situação econômica em Rojava também está em um momento muito complexo, com enormes dificuldades pela frente. A libra síria caiu para níveis mínimos e nos últimos meses perdeu mais de 300% de seu valor no mercado doméstico. A isso, devem ser acrescentadas as novas sanções contra a Síria impostas pelo governo Trump, um movimento econômico de guerra que, apesar de ser dirigido contra o governo de al-Assad, tem um impacto profundo em toda a Síria. Trump prometeu que a autoadministração de Rojava estaria isenta dessas sanções, mas por enquanto essa promessa não se concretizou e elas devem ser adicionadas ao embargo que Rojava sofreu desde o início da revolução. Em termos de recursos, em Rojava há uma abundância de dois recursos principais, trigo e petróleo, mas esses também agora estão enfrentando dificuldades. A crise do COVID-19 causou uma queda no preço do petróleo, o que tem um enorme impacto sobre a receita da auto-administração. Além disso, as sanções que acabamos de mencionar contra o governo de Assad dificultam a venda do petróleo bruto, necessário para as refinarias em áreas sob controle estatal sírio para processá-lo. A colheita do trigo, um importante recurso coletado nesses meses, também está enfrentando dificuldades. Por um lado, a autoadministração decidiu avançar a colheita para evitar o que aconteceu no ano passado, onde grupos insurgentes causaram numerosos incêndios nos campos de trigo. O avanço da colheita reduziu os incêndios e garantiu que o trigo não fosse perdido, mas, ao mesmo tempo, foi colhido ainda verde e o preço pelo qual pode ser vendido é mais baixo. A isto deve ser adicionado o roubo de trigo que foi armazenado nos silos da área ocupada pela Turquia, como os importantes silos de Gîre Spî.

Um último aspecto que queremos mencionar também está relacionado com os efeitos globais da pandemia, que é o fechamento das fronteiras que limitou a movimentação de internacionalistas. Durante os últimos 4 meses nenhum internacionalista pode entrar ou sair de Rojava, isso limita o número de pessoas novas que querem viajar para Rojava, mas não tem como entrar.

Com toda essa situação, se torna difícil saber o que vai acontecer. A situação é altamente instável, existem tantas variáveis e tantos interesses em jogo que as coisas mudam rapidamente de um dia para o outro. Sem dúvida, a maior ameaça é uma nova invasão do Estado turco, provavelmente em Kobane, pois foi sua resistência ao que capturou a atenção internacional. O poder simbólico desta cidade é muito importante e é por isso que o Estado turco quer ocupá-la, porque sabe que será muito difícil manter a fé na revolução sem a cidade que conseguiu quebrar o avanço do ISIS. É provável que o exército turco e seus aliados islâmicos decidam atacar Ain Issa e Manbij primeiro, já que são cidades próximas e essenciais quando se trata de fornecer apoio logístico no caso de Kobane ser sitiado novamente. Diante de tal ataque, Erdogán sabe que precisa de uma autorização das potências internacionais e regionais. A guerra de influências entre a Rússia e os EUA no Oriente Médio pode desempenhar um papel relevante e, à medida que o equilíbrio de poder e os objetivos de ambas as potências imperialistas mudam, os efeitos serão sentidos, não apenas na Síria, mas em todo o Oriente Médio e no mundo inteiro. Nos últimos meses vemos uma retirada constante da presença de tropas americanas na Síria, embora nunca seja definitiva, pois entre suas prioridades ainda está a de impedir que outras potências ganhem influência, principalmente a Rússia e o Irã. Esses movimentos são seguidos por uma corrida não apenas do governo Bashar al-Assad, mas principalmente da Rússia, que busca preencher as lacunas de poder que essa retirada pode causar, reforçando sua hegemonia em solo sírio e garantindo seu acesso ao Mar Mediterrâneo.

As outras potência regionais também podem influenciar no futuro da Síria, como o Estado de Israel, que segue mantendo sua ocupação das montanhas de Golã, como ataques contínuos e bombardeados contra diferentes objetivos em solo sírio. A presença do Irã na Síria tampouco é segredo, de fato a maioria dos ataques de Israel são contra alvos do Hezbolah ou outras forças próximas ao regime teocrático do Irã. O governo sionista de Netanyahu aproveita a inimizade do Irã com os Estados Unidos para atacar impunemente e enfraquecer assim as potências que rodeiam o Estado de Israel. O Estado Egípcio também começa a mostrar agitação, com ameaças de intervir no conflito na Líbia para deter a expansão da influência turca. Até agora o Egito está fora do tabuleiro sírio, mas o governo de al-Sisi vê o desenvolvimento de Erdogán como uma ameaça, por conta de seu discurso neo-otomanista e sua forte relação com a Irmandade Muçulmana, principal oposição ao governo de al-Sisi.

Outro cenário possível em um futuro próximo é um ataque total por parte do Estado turco a Qandil, no Curdistão iraquiano, onde estão localizadas as bases do PKK. Erdogan passou anos cercando as montanhas onde o movimento insurgente curdo tem o seu coração, e espera contar com o apoio da OTAN e de sua mídia e rede tecnológica para realizar esta operação. Mas para cercar as montanhas, Erdogan precisa da colaboração não apenas do Estado iraquiano, mas também das forças do Estado do Irã, já que Qandil está nas fronteiras que separam os dois países. Seria também uma operação muito cara e, dada a volátil situação econômica da Turquia e suas múltiplas frentes abertas, não está claro se Erdogan será capaz de lançar uma campanha em larga escala. Sem dúvida, esse ataque condicionaria Rojava enormemente, já que as influências ideológicas de Abdullah Öcalan no desenvolvimento do confederalismo democrático são fundamentais, e a revolução não pode ficar à toa diante de um ataque de tal magnitude contra o povo curdo.

Como podemos ver, Rojava é um pequeno ator em um quadro de poderes cheio de rancores e conflitos. Sua breve história sempre foi ameaçada pelo contexto de guerra e conflito que a cerca e sua mera existência desafia os planos e as agendas dos poderes que intervêm na Síria. Apesar de breves alianças táticas, é claro que nenhum Estado tem interesse em permitir que esse projeto revolucionário prospere e se expanda. Agora que o Estado Islâmico foi derrotado, outras forças e potências continuam a atacar esse projeto revolucionário, principalmente através do Estado turco e de seus aliados. Rojava existe graças ao compromisso e esforço coletivo de milhares de militantes e devemos sempre ter em mente que, sem o sacrifício deles, nada que vivemos aqui hoje seria possível. Os ataques sofridos causaram perdas muito importantes e processos muito dolorosos, tendo que ir em frente e reconstruir as ruínas que a guerra deixou. Como militantes, essas experiências nos forçaram a apreciar a necessidade de autodefesa em níveis muito profundos e a apreciar a vida e os momentos de felicidade com mais gratidão do que jamais experimentamos antes.

Até agora, Rojava continua sendo um modelo inspirador para movimentos revolucionários ao redor do mundo, um espaço para debate e prática política demonstrando que outro mundo é possível. Rojava não é uma sociedade anarquista, mas é uma sociedade em que anarquistas de todo o mundo podem aprender e colocar nossas ideias em prática. Não podemos permitir que esse farol de esperança se apague e, embora continuem atacando, continuaremos a construir, defender e desenvolver o mundo em que sonhamos viver. Os ataques que virão continuarão causando dor e destruição, mas não tememos as ruínas, pois carregamos um novo mundo em nossos corações.

Tekoşina Anarşist

Julho 2020

Rojava

 

“Não temos medo de ruídas, trazemos um mundo novo em nossos corações.” – Buenaventura Durruti

Leituras Recomendadas:

A Saúde Como Processo: Carta de Uma Enfermeira Familiar e Comunitária

por: ACL, Enfermeira familiar e comunitária
Extraído do jornal anarquista Aquí y Ahora

Não. Nós, profissionais sanitários, não somos super-heróis nem super-heroínas. Para o Estado, somos nós quem mantemos os corpos produtivos do sistema capitalista o mais “saudável possível” para que sigam sendo força de trabalho e sigam produzindo capital.
O sistema sanitário não se saturou agora. O sistema sanitário já estava saturado antes do coronavírus e da pandemia do medo. Esta situação excepcional tem feito com que a saturação chegue em seu ápice. Os cortes de verba e a falta de valor que o Estado vem dando ao processo de saúde, à promoção de ambientes saudáveis, à saúde e a seus profissionais tem feito que a situação piore.

Não é legal que sigamos mantendo este sistema sem as condições necessárias para nos protegermos, sem os equipamentos de proteção adequados para evitar mais contágios. Se nós nos infectarmos, infectaremos as demais pessoas. E não é a caridade quem tem de nos abastecer com máscaras artesanais. Arriscamos nossas vidas, as de nossas famílias e das pessoas com as quais convivemos. A caridade é um remendo que acabará legitimando que os de cima sigam mantendo seu poder. Se aproveitam da solidariedade1 do povo para seguir mantendo o seu lixo de política.

Os meios de comunicação nos infectam com a doença do medo e, em troca, glorificam as pessoas que trabalham como voluntárias. Não pode ser a caridade que sustente o sistema, ainda que estejamos em uma situação excepcional ou em um “estado de alarme”. O capitalismo, o Estado e o coronavírus nos mantém exploradas e enganadas. Sobrevivem e enriquecem às nossas custas.

A saúde como processo: nos querem doentes

A saúde é um processo. Um processo que depende de ambientes saudáveis. Quando falo de ambientes saudáveis me refiro a qualidade dos cuidados que podemos dar às pessoas queridas, o que inclui o tempo e o espaço dedicado à alimentação e a escolha dos alimentos que comemos.

Cada anúncio publicitário nos incita a “consumir doenças” para obter prazeres. É tão fácil o acesso às doenças que nos vendem em máquinas de produtos comestíveis e refrigerantes nas instituições de saúde, educativas e de trabalho. Não faz sentido que uma Coca Cola ou qualquer chocolate seja mais barato do que dois pedaços de frutas com algum sabor. A crise do sabor que promove e legitima a indústria alimentar tem um grande impacto em nosso processo de saúde, na capacidade de tomarmos decisões sobre o que comemos e nos vícios que desenvolvemos em certos alimentos cujo principal ingrediente é o açúcar. Nos querem viciados desde bem pequenos. Basta ver que a publicidade e o marketing dos produtos comestíveis dirigidos às crianças, desde bolos até “iogurtes” e sucos que gerarão potenciais doentes que, antes ou depois, serão carne da indústria farmacêutica.

É sabido que ambas as indústrias andam de mãos dadas e têm uma ótima relação com o Estado e suas políticas “promotoras de saúde”. Cabe destacar aqui também os conflitos de interesse entre a indústria alimentar, universidades e associações médicas “científicas”, como a Associação Espanhola de Pediatria, a Fundação Espanhola do Coração (promovida pela Sociedade Espanhola de Cardiologia), a Sociedade Espanhola de Médicos de Atenção Primaria, a Fundação para a Diabetes e a Sociedade Espanhola de Endocrinologia e Nutrição, entre outras. A indústria injeta dinheiro e essas sociedades e/ou fundações realizam seus congressos em troca de legitimar seus produtos às custas de nossa saúde.

Ansiedade e depressão na sociedade do hiperrendimento. A violência neuronal é sistêmica, é uma violência imanente ao sistema

O tempo e o espaço para construir vínculos reais são também saúde. Uma saúde que se torna cada vez mais difícil de se alcançar. Os ritmos de vida tão acelerados que levamos, as multitarefas, chegar a tempo para tudo: ser uma super mãe, super trabalhadora, comer super saudável, fazer exercícios, cumprir com os ideais de beleza, trabalhar na maior parte do tempo e aguentar as pressões do seu trabalho e de seu chefe, supõe um estresse que também terá um impacto em nossos processos de saúde e nosso sistema imunológico.

Byung-Chu Han define isso muito bem em seu livro “A sociedade do cansaço”, no qual ele diferencia a interpretação imunológica da doença de alguns anos atrás – quando se declarava guerra a tudo que era estranho (vírus e bactérias) – da “doença neurológica” atual, que vem nos afetando pela superprodução, superrendimento (de trabalho, lúdico e sexual) ou pela supercomunicação.

A violência neuronal é sistêmica, é uma violência imanente ao sistema. Uma violência que tem como efeito o fato de a maior causa de morte externa seja o suicídio. No Estado espanhol, em 2019, uma média de 10 pessoas cometeram suicídio por dia, tendência que vem aumentando desde 2018. São suicídios ou assassinatos causados pelo próprio sistema no qual vivemos? Atualmente a ansiedade e a depressão não são problemas individuais e nem isolados, são uma autêntica pandemia que cresce de forma descontrolada no mundo todo.

A ansiedade e a depressão nos são causadas pela pressão da produtividade e do consumo. O capitalismo nos incita à produtividade constante, a aproveitar bem o tempo, a “não parar de fazer” e a “estarmos felizes sempre”. Se está triste, não será produtivo. Por outro lado, querer alcançar “tudo o que poderíamos fazer”, “tudo o que o capitalismo nos oferece” nos leva à ansiedade. Nos auto exploramos por uma necessidade de hiperrendimento que nos é imposta. Se não conseguimos fazer tudo – o que é obviamente impossível – nos frustramos e, com isso, nos deprimimos.

A ansiedade e a depressão, junto com demais patologias relacionadas com a alimentação e o estilo de vida, como a obesidade, hipertensão, diabetes e as comorbidades que elas geram, não são problemas individuais e nem isolados: são problemas coletivos que cada vez mais estão estendidos à nível mundial. São a verdadeira pandemia provocada pelo capitalismo. Como estes corpos, submetidos a tanta violência, poderão responder a um vírus?

Profissionais de saúde barram carreata pela reabertura do comércio em Denver, EUA, abril de 2020.

O isolamento não é saúde. Se relacionar por meio de telas também não.

Antes de o capitalismo impor a família como modelo organizativo, ele isolava os indivíduos para mecanizar seus corpos como forças de trabalho. A população morria por conta de tal escravidão e “possuíam” apenas os seus filhos. As forças produtivas de trabalho eram cada vez menores. Foi então que o capitalismo organizou os indivíduos isolados em famílias. O capitalismo criou o modelo de família para poder controlar mais facilmente a população, abolindo, assim, qualquer forma de associação comunitária que existia até então. Separou também os territórios comunais – da comunidade – em propriedades privadas onde cada família trabalharia em troca de dinheiro. Qualquer dissidência frente aos modelos impostos, como se negar a trabalhar e mercantilizar suas vidas, levou a nossas antepassadas a serem queimadas na fogueira, sobretudo as mulheres que foram consideradas bruxas. Esse modelo, que começou a se impor por volta do século XV se perpetua até hoje. Nesse momento, muitas pessoas estão agora forçadas pelo Estado a conviver com seus abusadores. Agora, quem tenha família, ficará isolado, confinado em sua casa (caso tenha), independentemente de que o entorno no qual nos obrigam a nos confinar seja mais ou menos violento.

Nos impõem o isolamento e o individualismo e impossibilitam qualquer tipo de sentimento comunitário. Não lhes interessa. Fazendo referência a Debord, na “Sociedade do Espetáculo”:

“O sistema econômico baseado no isolamento é uma produção circular de isolamento. O isolamento funda a técnica e, em consequência, o processo técnico isola. Desde o carro até a televisão, todos os bens selecionados pelo sistema espetacular constituem suas armas para o reforço constante das condições de isolamento das multidões solitárias.”

A saúde é um processo que vai muito além do que a guerra contra um vírus. O vírus do capitalismo é uma autêntica pandemia. Junto com o coronavírus nos injetam o vírus do medo, da separação: o vírus do rechaço ao humano, da individualidade e do individualismo. Querem que tenhamos uma distância maior de 1 metro para que coloquem uma tela entre as pessoas e, assim, seja mais difícil criar vínculos reais. Semeiam o medo para nos impor relações virtuais através de telas, fazendo que as relações sejam cada vez menos humanas. Temos ambientes que realmente promovem a saúde? Ou, pelo contrário, nos injetam a doença nas veias? Nos injetam a doença através do medo, da escravidão do trabalho e do consumo.

As condições nas quais nos obrigam a viver são insalubres. As necessidades básicas de grande parte da população não são atendidas e, para atendê-las, nos obrigam a escravizar nossas vidas. O acesso à moradia é a necessidade mais básica e mais difícil de ser atendida. Criar as vidas que queremos viver é algo impensável. Trabalhar para poder consumir nos pequenos tempos livres é o modelo que nos impõem. Criar vínculos reais é cada vez mais difícil, já que o tempo “livre” se converteu também em um espaço de consumo. Nada disso gerará nossa saúde, nunca.

Estado de bem-estar: escravidão e ócio de consumo

O Estado de bem-estar nos garante ter as necessidades mais básicas “supridas” e em troca temos de nos escravizar. Para nós não sai de graça mantê-lo, nossas vidas se vão com isso. O sistema capitalista nos impõe quando devemos ser produtivas e quando podemos disfrutar de um ócio de consumo. Isso não entra em nenhum parâmetro de liberdade que vá para além da liberdade para produzir e para manter esse modelo de sistema, que não nos favorece em nada. Que sistema é esse no qual vivemos que não é capaz de sobreviver uns dias de inatividade produtiva?

É momento de parar e pensar em que estamos fazendo. De sair da roda do hamster e de sermos criativas para inventar a vida que queremos viver, e não a que nos impõem. A vida que nos impõem é a que os mantém, é a que nos adoece mantendo o capital. Se trata de compartilhar a liberdade, ainda que estejamos em uma cela.

As pessoas organizadas são muito mais potentes que um Estado. As pessoas organizadas, quando tomarem tempo e espaço para se dar conta sobre a vida que lhes impõe, pode chegar a conhecer suas próprias necessidades e, se escolhemos o caminho da cooperação e organização, poderemos aprender como resolve-las sem a necessidade de um ente paternalista e protetor: o Estado de bem-estar. Nesses dias de confinamento, pensemos sobre qual vida estamos levando e pensemos em qual vida queremos criar para além dos limites que nos são impostos e que temos tão introjetados. Os lemas “trabalhar é saúde” e “o trabalho dignifica” já ficaram na história. O trabalho nos escraviza. A responsabilidade social, a cooperação e o apoio mútuo e a auto-organização serão o que deslegitimará o Estado e o sistema capitalista, criando um modelo de vida novo e desconhecido que, embora pareça assustador, se caminharmos juntas, estaremos cada dia um pouco mais próximas da liberdade.


1 N.T.: No texto original não há uma diferenciação explicita entre caridade e solidariedade. Contudo, pelo momento no qual estamos vivendo, cabe ressaltar que ambas as práticas não são a mesma coisa. Enquanto a caridade tem como base a moral cristã e mantém uma hierarquia (quem “ajuda” se mostra “superior” a quem é “ajudado”), a solidariedade só é possível quando nos colocamos em pé de igualdade, pois é inseparável do apoio mútuo. A caridade, com sua origem cristã, mantém as pessoas em condições miseráveis enquanto as igrejas continuam sendo instituições que movem bilhões de reais pelo mundo todo, o capitalismo e as religiões necessitam da miséria para se manter e dar continuidade às iniciativas filantrópicas e de caridade. As práticas de solidariedade e o apoio mútuo, são ações diretas anarquistas, abolem, mesmo que momentaneamente, as hierarquias e desigualdades produzidas pelo capitalismo e pelo princípio da autoridade.

Rojava: Chamado por Ações Solidárias em Junho

Turquia ataca – Grande Ofensiva no Curdistão Sul

Enquanto a guerra e os ataques a Rojava e ao Norte da Síria pela Turquia e pelos seus aliados jihadistas, com o apoio das forças imperialistas do mundo, continuam diariamente e enquanto a ameaça de um outro ataque significativo cresce, a guerra no Norte e no Sul do Curdistão/Iraque continua a avançar

Na madrugada de 15 de Junho 2020, o Estado fascista turco anunciou a operação “Claw- Eagle” (“Garra-Águia”), e levou a cabo bombardeamentos massivos em Qendîl – o coração e o cérebro do movimento pela libertação curda nas montanhas do Curdistão -, no campo de refugiados autogerido Mexmûr e em Şengal, que é predominantemente povoado por pessoas Yazidi.

As pessoas de Kobane estão nas ruas protestando contra o novo ataque do estado turco ao campo de refugiados e à comunidade de Makhmour e Yazidis nas montanhas de Sinjar.

Agora é a hora da resistência mundial! O movimento de resistência mundial tem de reconhecer a seriedade da situação atual. Hoje, chegou a hora do golpe final ao fascismo turco e aos seus aliados imperialistas, que são parte crucial desta guerra e dos ataques contra as forças revolucionárias e democráticas do mundo. Os movimentos de resistência pelo mundo inteiro também têm de desempenhar o seu papel nesta luta. Não é hora de esperar e ver. Se esperarmos pelo próximo ataque contra Rojava para tomarmos ação, será tarde demais. A guerra é agora, a guerra já começou, a guerra nunca parou. À superfície, vê-se um teatro sobre o armistício, mas a guerra continua sem interrupções no Norte da Síria tal como noutras partes do Curdistão, tal como estamos a tes- temunhar com a grande ofensiva no Sul do Curdistão que decorre agora! Não é hora de nos sentarmos em casa e esperarmos pela próxima grande invasão; já está na hora de nos levantarmos contra esta guerra de ocupação com todos os meios necessários.

Estamos a apelar a TODAS/OS à volta do mundo para irem às ruas HOJE!

Este apelo não é simplesmente à solidariedade. Este é um apelo para ações em todo o lado e a todos os níveis! É importante ver a defesa pela revolução como mais do que uma luta distante. Na resistência comum, vemos a defesa da nossa esperança e temos reconhecido a revolução como a nossa revolução. Vamos mostrar de forma criativa e diversa, mas com raiva e determinação, a nossa solidariedade internacional para com o Movimento pela Libertação Curda e o nosso apoio à radicalmente democrática e socioecológica Revolução das Mulheres no Curdistão!

A revolução do Médio Oriente vai ganhar – o fascismo vai ser destruído.

Todas/os juntas/os contra o fascismo!

Viva a Responsabilidade Internacional!

Viva a Luta pela Liberdade!

A Resistência é Vida!

riseup4rojava.org | facebook.com/riseup4rojava | @RISEUP4R0JAVA | riseup4rojava@riseup.net


Para Saber Mais:

A Ameaça à Rojava – zine para impressão

6 Críticas à Criminalização e ao Mito do “Manifestante Infiltrado”

Porto Alegre, maio de 2020.

Uma crescente onda de manifestações tomou as ruas em dezenas de cidades do Brasil nos últimos meses, rompendo o consenso e a hegemonia de manifestantes pró-governo nas ruas. No entanto, reacionários e até setores da esquerda — que decidiram somente agora se juntar a antifascistas, torcidas organizadas e outros movimentos organizando os protestos — estão propagando a velha ideia de que manifestantes que escolhem participar de atos de destruição de propriedade ou que respondem à violência policial devem ser considerados “infiltrados” fazendo o “jogo da direita” e seriam os “verdadeiros responsáveis” pela repressão.

Trazemos aqui 6 críticas relevantes para que movimentos sociais e seus protestos de rua possam se potencializar e se expandir sem criminalizar indivíduos ou táticas específicas que são relevantes para qualquer luta política (esse sim o verdadeiro jogo do Estado e da repressão).

Nenhuma pessoa explorada é infiltrada na luta contra o capitalismo e suas opressões! (Só se for polícia). São Paulo, 31 de maio de 2020.

6 Críticas à Criminalização e ao Mito do “Manifestante Infiltrado”

Definir antecipadamente que quem for para “quebra-quebra” ou “confusão” será tratado como “infiltrado” é um erro tático (imediato) e estratégico (de longo prazo) por vários motivos:

1. A violência da legalidade.

Definir o que é legítimo e o que é ilegítimo (aceitável ou não) em um protesto de rua com base nas mesmas definições legais que protegem a propriedade privada e o monopólio do uso da força pelo Estado, apenas reforça discursos que criminalizam quem se rebela ou se defende e reforça que a ideia de que a violência policial pode ser justificável e merecida.
Na prática, entregar para a polícia pessoas que usam táticas diferentes das suas, nada tem de não-violento. Fazer isso é colocar o valor da propriedade privada acima da liberdade e da integridade física das pessoas que podem ser presas e agredidas por meros danos a objetos.

2. Táticas únicas são uma fraqueza para os movimentos.

Escolher uma tática única e se fechar para qualquer outra anula toda possibilidade de entendimento e aplicação da diversidade de táticas, isto é, a colaboração e coordenação de táticas pacíficas e combativas, públicas e anônimas, legais e ilegais nos movimentos sociais que, historicamente, determinaram o sucesso da esmagadora maioria das grandes lutas e revoluções.

3. Especialistas em autopoliciamento.

Com o tempo, esse discurso pode estimular o surgimento um policiamento interno dentro dos movimentos, pois uma vez que certas táticas são “proibidas”, é necessário força ou outras formas de reprimir e/ou entregar para a polícia quem não segue a “cartilha única” do movimento. Com o tempo, tal atividade tende a se cristalizar e logo surgirão bate-paus¹, pessoas dispostas assumir o papel de polícia do movimento e “especialistas” em aplicar a violência em nome da não-violência.

Uma paulada de baixo e à esquerda. Belo Horizonte, 31 de maio de 2020.

4. A culpa nunca é de quem se rebela.

Colocar a culpa da violência policial e das arbitrariedades penais nos próprios manifestantes é um ato reacionário. Mesmo que a proposta do ato seja uma marcha sem confronto ou depredação, colaborar com narrativas de que a repressão policial ou prisões ocorrem por culpa de “minorias infiltradas” e “vândalos” é tirar a atenção da violência estatal para jogar nos indivíduos que são alvos dela.

5. Infiltrado é sempre polícia ou fascista (mas normalmente ambos).

Palavras como “infiltrados” são tão vagas quanto “terroristas” e outros termos que o Estado usa para nomear seus inimigos. Assim, não explicita a que se refere exatamente e insinua que quem não concorda em aceitar a violência policial sem reagir, são iguais a P2 (policiais disfarçados) e demais agentes de segurança de fato infiltrados nos movimentos para destruí-los. É preciso não esquecer quem é nosso inimigo e atuar para minimizar a atuação de fascistas e agentes da repressão, não de pessoas comuns que se rebelam contra suas estruturas e sua violência.

6. A uniformidade facilita processos de divisão, enquanto a diversidade das táticas promove flexibilidade e resistência.

Acreditar que supostos “infiltrados querendo depredação” vão desvirtuar, deslegitimar ou rachar o movimento, é dar abertura para que policiais, fascistas e outros inimigos usem esses pontos de discordância sensível para causar discórdia, conflitos internos, criminalização e rupturas de fato no movimento. Se um movimento não é capaz  de abrigar diferentes posturas e formas de ação, ele se torna puramente legalista, rígido, intolerante com a diversidade de ações e vulnerável a conflitos internos. Reconhecer que minorias precisam praticar ações vistas como violentas para se defender e até para sobreviver, é uma ato de solidariedade necessário a todo movimento. 

A longo prazo, deixar claro que manifestantes de esquerda, antifascistas, anticapitalistas, cometem SIM atos de depredação, autodefesa e contra ataque e que isso TEM SEMPRE LEGITIMIDADE, é muito melhor que condenar quem comete ações radicais como se estivesse “fazendo o jogo do inimigo”. Isso dá força para um movimento não se romper diante da diversidade de frentes e das críticas da mídia, da opinião pública ou das autoridades.

Quem não tem a disposição ou não sente segurança para praticar formas de resistência que atacam estruturas e se defendem de agentes da repressão, pode não se envolver nelas, mas tem o dever de não condená-las e de legitimá-las sempre que for possível. Cair na armadilha de condenar essas pessoas é, na maior parte dos casos, garantir que minorias étnicas, mulheres e não-heterossexuais continuem desempoderadas e sendo as maiores populações carcerárias em todo o mundo.

Imaginem se a revolta em Minneapolis, que se espalhou por todos os Estados Unidos, queimando prédios, viaturas e delegacias, promovendo saques e contra atacando a polícia, fosse pautada apenas pelo que é visto como legítimo aos olhos da lei e do senso comum. Nenhum policial teria sido indiciado² pela morte de George Floyd, a questão racial e de classe não teriam sido levantados com a potência que foi e a polícia, certamente, iria reprimir os protesto da mesma forma, ou com ainda mais violência, uma vez que teriam a certeza de que suas ações não têm consequências legais ou diretas nas ruas.

Nossa liberdade e nossa força coletiva só existem com a diversidade de táticas e a luta contra a criminalização das pessoas que já são alvos do extermínio feito pelo Estado.

Cuide umas das outras para sermos um perigo juntas.



Notas:

1.  “Bate-Paus” são, geralmente, seguranças informais de líderes sindicais e candidatos políticos.

2. Em uma perspectiva abolicionista penal, entendemos que existem consequenciais previstas na lei burguesa para o assassinato, mas ela não é aplicada regularmente contra agentes da lei porque eles precisam de impunidade para realizar seu trabalho repressivo e assassino.