A Saúde Como Processo: Carta de Uma Enfermeira Familiar e Comunitária

por: ACL, Enfermeira familiar e comunitária
Extraído do jornal anarquista Aquí y Ahora

Não. Nós, profissionais sanitários, não somos super-heróis nem super-heroínas. Para o Estado, somos nós quem mantemos os corpos produtivos do sistema capitalista o mais “saudável possível” para que sigam sendo força de trabalho e sigam produzindo capital.
O sistema sanitário não se saturou agora. O sistema sanitário já estava saturado antes do coronavírus e da pandemia do medo. Esta situação excepcional tem feito com que a saturação chegue em seu ápice. Os cortes de verba e a falta de valor que o Estado vem dando ao processo de saúde, à promoção de ambientes saudáveis, à saúde e a seus profissionais tem feito que a situação piore.

Não é legal que sigamos mantendo este sistema sem as condições necessárias para nos protegermos, sem os equipamentos de proteção adequados para evitar mais contágios. Se nós nos infectarmos, infectaremos as demais pessoas. E não é a caridade quem tem de nos abastecer com máscaras artesanais. Arriscamos nossas vidas, as de nossas famílias e das pessoas com as quais convivemos. A caridade é um remendo que acabará legitimando que os de cima sigam mantendo seu poder. Se aproveitam da solidariedade1 do povo para seguir mantendo o seu lixo de política.

Os meios de comunicação nos infectam com a doença do medo e, em troca, glorificam as pessoas que trabalham como voluntárias. Não pode ser a caridade que sustente o sistema, ainda que estejamos em uma situação excepcional ou em um “estado de alarme”. O capitalismo, o Estado e o coronavírus nos mantém exploradas e enganadas. Sobrevivem e enriquecem às nossas custas.

A saúde como processo: nos querem doentes

A saúde é um processo. Um processo que depende de ambientes saudáveis. Quando falo de ambientes saudáveis me refiro a qualidade dos cuidados que podemos dar às pessoas queridas, o que inclui o tempo e o espaço dedicado à alimentação e a escolha dos alimentos que comemos.

Cada anúncio publicitário nos incita a “consumir doenças” para obter prazeres. É tão fácil o acesso às doenças que nos vendem em máquinas de produtos comestíveis e refrigerantes nas instituições de saúde, educativas e de trabalho. Não faz sentido que uma Coca Cola ou qualquer chocolate seja mais barato do que dois pedaços de frutas com algum sabor. A crise do sabor que promove e legitima a indústria alimentar tem um grande impacto em nosso processo de saúde, na capacidade de tomarmos decisões sobre o que comemos e nos vícios que desenvolvemos em certos alimentos cujo principal ingrediente é o açúcar. Nos querem viciados desde bem pequenos. Basta ver que a publicidade e o marketing dos produtos comestíveis dirigidos às crianças, desde bolos até “iogurtes” e sucos que gerarão potenciais doentes que, antes ou depois, serão carne da indústria farmacêutica.

É sabido que ambas as indústrias andam de mãos dadas e têm uma ótima relação com o Estado e suas políticas “promotoras de saúde”. Cabe destacar aqui também os conflitos de interesse entre a indústria alimentar, universidades e associações médicas “científicas”, como a Associação Espanhola de Pediatria, a Fundação Espanhola do Coração (promovida pela Sociedade Espanhola de Cardiologia), a Sociedade Espanhola de Médicos de Atenção Primaria, a Fundação para a Diabetes e a Sociedade Espanhola de Endocrinologia e Nutrição, entre outras. A indústria injeta dinheiro e essas sociedades e/ou fundações realizam seus congressos em troca de legitimar seus produtos às custas de nossa saúde.

Ansiedade e depressão na sociedade do hiperrendimento. A violência neuronal é sistêmica, é uma violência imanente ao sistema

O tempo e o espaço para construir vínculos reais são também saúde. Uma saúde que se torna cada vez mais difícil de se alcançar. Os ritmos de vida tão acelerados que levamos, as multitarefas, chegar a tempo para tudo: ser uma super mãe, super trabalhadora, comer super saudável, fazer exercícios, cumprir com os ideais de beleza, trabalhar na maior parte do tempo e aguentar as pressões do seu trabalho e de seu chefe, supõe um estresse que também terá um impacto em nossos processos de saúde e nosso sistema imunológico.

Byung-Chu Han define isso muito bem em seu livro “A sociedade do cansaço”, no qual ele diferencia a interpretação imunológica da doença de alguns anos atrás – quando se declarava guerra a tudo que era estranho (vírus e bactérias) – da “doença neurológica” atual, que vem nos afetando pela superprodução, superrendimento (de trabalho, lúdico e sexual) ou pela supercomunicação.

A violência neuronal é sistêmica, é uma violência imanente ao sistema. Uma violência que tem como efeito o fato de a maior causa de morte externa seja o suicídio. No Estado espanhol, em 2019, uma média de 10 pessoas cometeram suicídio por dia, tendência que vem aumentando desde 2018. São suicídios ou assassinatos causados pelo próprio sistema no qual vivemos? Atualmente a ansiedade e a depressão não são problemas individuais e nem isolados, são uma autêntica pandemia que cresce de forma descontrolada no mundo todo.

A ansiedade e a depressão nos são causadas pela pressão da produtividade e do consumo. O capitalismo nos incita à produtividade constante, a aproveitar bem o tempo, a “não parar de fazer” e a “estarmos felizes sempre”. Se está triste, não será produtivo. Por outro lado, querer alcançar “tudo o que poderíamos fazer”, “tudo o que o capitalismo nos oferece” nos leva à ansiedade. Nos auto exploramos por uma necessidade de hiperrendimento que nos é imposta. Se não conseguimos fazer tudo – o que é obviamente impossível – nos frustramos e, com isso, nos deprimimos.

A ansiedade e a depressão, junto com demais patologias relacionadas com a alimentação e o estilo de vida, como a obesidade, hipertensão, diabetes e as comorbidades que elas geram, não são problemas individuais e nem isolados: são problemas coletivos que cada vez mais estão estendidos à nível mundial. São a verdadeira pandemia provocada pelo capitalismo. Como estes corpos, submetidos a tanta violência, poderão responder a um vírus?

Profissionais de saúde barram carreata pela reabertura do comércio em Denver, EUA, abril de 2020.

O isolamento não é saúde. Se relacionar por meio de telas também não.

Antes de o capitalismo impor a família como modelo organizativo, ele isolava os indivíduos para mecanizar seus corpos como forças de trabalho. A população morria por conta de tal escravidão e “possuíam” apenas os seus filhos. As forças produtivas de trabalho eram cada vez menores. Foi então que o capitalismo organizou os indivíduos isolados em famílias. O capitalismo criou o modelo de família para poder controlar mais facilmente a população, abolindo, assim, qualquer forma de associação comunitária que existia até então. Separou também os territórios comunais – da comunidade – em propriedades privadas onde cada família trabalharia em troca de dinheiro. Qualquer dissidência frente aos modelos impostos, como se negar a trabalhar e mercantilizar suas vidas, levou a nossas antepassadas a serem queimadas na fogueira, sobretudo as mulheres que foram consideradas bruxas. Esse modelo, que começou a se impor por volta do século XV se perpetua até hoje. Nesse momento, muitas pessoas estão agora forçadas pelo Estado a conviver com seus abusadores. Agora, quem tenha família, ficará isolado, confinado em sua casa (caso tenha), independentemente de que o entorno no qual nos obrigam a nos confinar seja mais ou menos violento.

Nos impõem o isolamento e o individualismo e impossibilitam qualquer tipo de sentimento comunitário. Não lhes interessa. Fazendo referência a Debord, na “Sociedade do Espetáculo”:

“O sistema econômico baseado no isolamento é uma produção circular de isolamento. O isolamento funda a técnica e, em consequência, o processo técnico isola. Desde o carro até a televisão, todos os bens selecionados pelo sistema espetacular constituem suas armas para o reforço constante das condições de isolamento das multidões solitárias.”

A saúde é um processo que vai muito além do que a guerra contra um vírus. O vírus do capitalismo é uma autêntica pandemia. Junto com o coronavírus nos injetam o vírus do medo, da separação: o vírus do rechaço ao humano, da individualidade e do individualismo. Querem que tenhamos uma distância maior de 1 metro para que coloquem uma tela entre as pessoas e, assim, seja mais difícil criar vínculos reais. Semeiam o medo para nos impor relações virtuais através de telas, fazendo que as relações sejam cada vez menos humanas. Temos ambientes que realmente promovem a saúde? Ou, pelo contrário, nos injetam a doença nas veias? Nos injetam a doença através do medo, da escravidão do trabalho e do consumo.

As condições nas quais nos obrigam a viver são insalubres. As necessidades básicas de grande parte da população não são atendidas e, para atendê-las, nos obrigam a escravizar nossas vidas. O acesso à moradia é a necessidade mais básica e mais difícil de ser atendida. Criar as vidas que queremos viver é algo impensável. Trabalhar para poder consumir nos pequenos tempos livres é o modelo que nos impõem. Criar vínculos reais é cada vez mais difícil, já que o tempo “livre” se converteu também em um espaço de consumo. Nada disso gerará nossa saúde, nunca.

Estado de bem-estar: escravidão e ócio de consumo

O Estado de bem-estar nos garante ter as necessidades mais básicas “supridas” e em troca temos de nos escravizar. Para nós não sai de graça mantê-lo, nossas vidas se vão com isso. O sistema capitalista nos impõe quando devemos ser produtivas e quando podemos disfrutar de um ócio de consumo. Isso não entra em nenhum parâmetro de liberdade que vá para além da liberdade para produzir e para manter esse modelo de sistema, que não nos favorece em nada. Que sistema é esse no qual vivemos que não é capaz de sobreviver uns dias de inatividade produtiva?

É momento de parar e pensar em que estamos fazendo. De sair da roda do hamster e de sermos criativas para inventar a vida que queremos viver, e não a que nos impõem. A vida que nos impõem é a que os mantém, é a que nos adoece mantendo o capital. Se trata de compartilhar a liberdade, ainda que estejamos em uma cela.

As pessoas organizadas são muito mais potentes que um Estado. As pessoas organizadas, quando tomarem tempo e espaço para se dar conta sobre a vida que lhes impõe, pode chegar a conhecer suas próprias necessidades e, se escolhemos o caminho da cooperação e organização, poderemos aprender como resolve-las sem a necessidade de um ente paternalista e protetor: o Estado de bem-estar. Nesses dias de confinamento, pensemos sobre qual vida estamos levando e pensemos em qual vida queremos criar para além dos limites que nos são impostos e que temos tão introjetados. Os lemas “trabalhar é saúde” e “o trabalho dignifica” já ficaram na história. O trabalho nos escraviza. A responsabilidade social, a cooperação e o apoio mútuo e a auto-organização serão o que deslegitimará o Estado e o sistema capitalista, criando um modelo de vida novo e desconhecido que, embora pareça assustador, se caminharmos juntas, estaremos cada dia um pouco mais próximas da liberdade.


1 N.T.: No texto original não há uma diferenciação explicita entre caridade e solidariedade. Contudo, pelo momento no qual estamos vivendo, cabe ressaltar que ambas as práticas não são a mesma coisa. Enquanto a caridade tem como base a moral cristã e mantém uma hierarquia (quem “ajuda” se mostra “superior” a quem é “ajudado”), a solidariedade só é possível quando nos colocamos em pé de igualdade, pois é inseparável do apoio mútuo. A caridade, com sua origem cristã, mantém as pessoas em condições miseráveis enquanto as igrejas continuam sendo instituições que movem bilhões de reais pelo mundo todo, o capitalismo e as religiões necessitam da miséria para se manter e dar continuidade às iniciativas filantrópicas e de caridade. As práticas de solidariedade e o apoio mútuo, são ações diretas anarquistas, abolem, mesmo que momentaneamente, as hierarquias e desigualdades produzidas pelo capitalismo e pelo princípio da autoridade.