Do 15M ao Podemos – A regeneração da democracia espanhola e a maldita promessa do caos

A regeneração da democracia espanhola e a maldita promessa do caos

Em maio de 2011, manifestações inspiradas pela Primavera Árabe ocuparam várias praças pela Espanha com protestos antigovernamentais organizados através da democracia direta e assembleias gerais. Essa foi a primeira onda desse tipo de movimento que se espalhou pela Europa e pelo mundo. Cinco anos depois, aquela energia que começou como uma pressão por políticas participativas acabou canalizada para a formação de novos partidos espanhóis. Isso seria uma corrupção do discurso do movimento das praças ocupadas ou a sua conclusão lógica?

Depois das revoltas em 2013 pelo trasnporte coletivo, e nos anos seguintes contra os mega-eventos, vimos no Brasil uma intensificação das disputas políticas que levaram a uma polarização entre esquerda e direita institucional. As vias da autonomia e da horizontalidade parecem terem sido ofuscadas por essa disputa. Enquanto a direita que cresceu e saiu vitoriosa com golpe institucional que tirou o PT do poder, vemos uma crescente tendência dos movimentos socias que participaram de lutas autônomas a considerarem as eleições como um espaço a ser “ocupado”. Se não soubermos pelo que estamos lutando quando lutamos por “mais democracia”, estaremos reconstruindo as relações e as ferramenta que falharam e ainda falham em nos garantir liberdade, igualdade e autonomia.

I. Ascensão

Primavera de 2011

“Esta é a nossa revolução! Não há barricadas, nada de romântico assim, mas o que podemos esperar? É uma merda, mas já sabíamos que este é o mundo em que vivemos. “

Eu estava ombro a ombro com uma amiga, abrindo caminho através das multidões que se apinhavam, das dezenas de milhares se juntavam para além do isolamento democrático para tomar a Praça Catalunya, no centro de Barcelona. Estávamos no nosso caminho de volta de uma copiadora onde xs funcionárixs, também tomadxs pela empolgação do momento, nos deixaram imprimir mais quinhentas cópias da  última carta aberta com um bom desconto, facilmente pagas com os trocados que as pessoas foram deixando na jarra de doações que estava na mesa de informações que nós, anarquistas, tínhamos montado.

Em menos de uma hora, todos os panfletos já havia sido levados, encontramos mais pessoas que compartilhavam algumas de nossas ideias, tinha um casal se envolvendo nos debates e uma outra breve discussão. Décadas de isolamento social tinham ido embora em uma súbita e inesperada manifestação de angústia social, raiva, esperança, desejo de se relacionar. Um milhão de necessidades individuais para a expressão de necessidades colectivas: “Sim, eu também preciso disso”. Um milhão de vozes solitárias reconhecendo-se num grito que todas elas traziam juntas: “Sim, eu também estou aqui”, um milhão de histórias de solidão encontrando-se em uma alienação compartilhada: “Sim, eu também sinto isso”. Era difícil não se deixar levar. Sentimos isso também.

Mas, naquela comuna de alienação, também sentimos um certo cinismo. Era mais do que apenas arrogância ou que um mero olhar torto para as pessoas enquanto elas gritavam todas as noites, “¡aqui comenza la Revolución!” (A revolução começa aqui). A verdade é que a gente duvidava do entendimento comum sobre o que uma revolução realmente implica.

E nossas dúvidas não surgiam sem motivo. Estar sozinhx nas ruas por anos, tentando espalhar ideias críticas, tentando abrir pequenos espaços de liberdade, sendo algemadx ou agredix, quando ninguém mais dá a mínima, quando todo mundo parece satisfeito assistindo às suas televisões, enquanto o planeta morre ao seu redor, certamente, isso pode tornar você um pouco arrogante. Isso pode torná-lx amargx e cínicx, e te fazer se sentir superior, e completamente alheix às mudanças inesperadas que sacodem o sistema que você passou a vinda inteira lutando contra. Mas também pode lhe dar perspectiva. E pode fazer você perguntar: “Por que essas pessoas estão nas ruas agora, só quando os seus próprios benefícios sociais são ameaçados, sendo que elas não levantavam um dedo quando eram outras pessoas sendo comidas vivas?” Ou então: “Por que a mídia está dando tanta atenção a este fenômeno, mesmo que muitas vezes seja uma atenção negativa, sendo que essa mídia ignorava completamente nossas lutas durante anos?”

Milhares de pessoas enchem a Plaza del Sol em Madrid durante a mobilização 15M em 2011.
Milhares de pessoas enchem a Plaza del Sol em Madrid durante a mobilização 15M em 2011.

Quando o movimento de ocupação das praças eclodiu no dia 15 de maio (15M) de 2011 por todo o Estado Espanhol, nos jogamos nele. Parte dxs anarquistas rejeitaram o movimento abertamente pela dificuldade de encontrar a real motivação daquela caótica desordem. Outra parte dava, acriticamente, seu selo de aprovação para qualquer coisa que parecia ter o apoio das massas. Mas nos recusamos a desistir das perspectivas e experiências que acumulamos ao longo dos anos de luta solitária quando alguns poucos grupos estavam insistindo que o sistema em que vivíamos era inaceitável.

Nem todxs nós interpretamos essas experiências da mesma forma, assim como não desenvolvemos as mesmas estratégias no meio do movimento de ocupação das praças. Só posso dar uma perspectiva dessa história; no entanto, é uma história que ajudamos a construir coletivamente, lutando lado a lado e disputando posições umxs com xs outrxs. Não há consenso na história do movimento e nem mesmo da participação anarquista, mas ao mesmo tempo, ninguém chegou na sua versão particular de eventos sozinhx.

Um elemento que todos compartilhávamos era uma crítica à democracia. Havia uma história apoiando a nossa posição. Em 1975, Francisco Franco morreu. Um ditador fascista que foi apoiado por Hitler e Mussolini e, mais discretamente pelos governos britânicos, dos EUA e o francês. A aberta aceitação que o Ocidente demonstrou em 1949 revelou mais uma vez a tolerância que um sistema mundial democrático pode ter com ditaduras que tiveram sucesso na prevenção de revoluções.

Em 1976, o grupo pela independência basca ETA explodiu uma bomba que matou o sucessor escolhido por Franco. O país foi inundado por greves e protestos. Ações armadas foram se multiplicando, mas não havia um grupo vanguardista com a esperança de controlar ou que representasse todo o movimento. Nenhuma figura que poderia ser cooptada ou destruída. Era o início da Transição.

Percebendo a inevitabilidade de um governo democrático, os fascistas se transformaram em conservadores, constituindo o Partido Popular e, em troca da legalização e uma chance de estar no poder, eles convidaram comunistas e socialistas para negociações, dando origem a um novo sindicato institucionalizado e legal: o CCOO. E também um novo partido político, o partido Socialista dos Trabalhadores da Espanha (PSOE). O PSOE governou o país de 1982 a 1996 e em 2010 eles estavam novamente no poder quando os burocratas da União Europeia e financiadores bancários exigiram medidas de austeridade. Eles rapidamente atenderam.

Mas, em meados dos anos 70, nem todos entraram na onda. Muitas pessoas rejeitaram negociações com os fascistas, ou rejeitaram qualquer tipo de governo e qualquer forma de capitalismo completamente. Conforme os anos se transformaram em décadas, esses redutos tornaram-se cada vez mais isolados, até que fossem levados pela marginalização institucional, judicial e pelos meios de comunicação para dentro de um gueto político reduzido. Nesta altura, os “irreductibles” poderiam ser majoritariamente encontrados dentro de um movimento anarquista que era muito mais fraco e mais vulnerável do que tinha sido antes da Guerra Civil, que colocou Franco no poder.

Essxs anarquistas continuaram a lutar, em grande parte, desenvolvendo um caráter antissocial como uma ferramenta para resistir aos efeitos psicossociais de extrema marginalização, bem como facilitar uma crítica da sociedade democrática como uma estrutura de controle majoritário e midiática. Mas, como as revoltas começaram a tomar países vizinhos vários anos antes do início da crise econômica, algumxs anarquistas começaram a dar atenção às possibilidades de uma revolta social generalizada, e começaram a mudar os seus métodos e suas análises para serem capazes de incentivar e participar em tais revoltas, na esperança aparentemente improvável que uma delas pudesse começar por aqui. Mas, em poucos anos, coincidindo com o início da crise, as revoltas se multiplicaram e se aproximaram – se não geograficamente, ao menos ideologicamente.

Antes do movimento 15M começar, Barcelona já tinha assistido a uma greve geral de um dia, com participação massiva, onde os discursos anticapitalistas eram frequentes, se não predominantes, e que resultou em ocupações de grande porte, tumultos, saques, e confrontos com a polícia, constituindo um importante passo na reapropriação de táticas de rua que fariam outras vitórias possíveis nos anos seguintes. Um protesto combativo no Primeiro de Maio tinha mudado o trajeto normal pelo centro da cidade para passar através de vários bairros ricos, deixando um rastro de destruição e uma pequena ação de vingança econômica.

O movimento 15M eclodiu apenas duas semanas mais tarde, e seus discursos oficiais pediam pacifismo total e protestos simbólicos para conseguir uma democracia melhor e mais saudável através de uma reforma constitucional. Quase nenhuma menção foi feita, dentro deste discurso oficial, sobre as condições de vida diária, de autodefesa colectiva contra a austeridade e a auto-organização direta de nossa sobrevivência. Mas de onde veio esse discurso oficial e como ele foi produzido em uma multidão enorme e heterogênea?

O 15M não era enorme desde o início. Na verdade, na primeira assembleia, em Barcelona, na primeira noite na Praça Catalunya, haviam apenas uma centena de pessoas presentes. Algumas delas membros da “Democracia Real Ya”, um novo grupo com sede em Madrid que tinha produzido o primeiro chamado para os protestos e ocupações em todo o país. Seu discurso era extremamente reformista e não fez nenhuma menção às ondas crescentes de protesto real e conflito social que vinham aumentando na Espanha, nem à construção fora de uma tradição de luta que trazia um grande conhecimento coletivo. Essas histórias estavam ausentes de sua perspectiva, o que talvez fosse a única maneira que encontraram para poder chamar as pessoas para um movimento baseado no pacifismo e na reforma legalista. Eles mencionaram a “Primavera Árabe”, sobretudo o levante no Egito, mas apenas da maneira mais comedida e manipuladora. Eles descreveram a insurreição egípcia como se ela fosse um movimento não-violento que já tinha atingido seus objetivos – quando na verdade, é óbvio e já era óbvio para qualquer pessoa com uma perspectiva radical, que a luta só estava começando.

Nessa primeira assembleia, usaram uma velha tática trotskista. Membros do movimento se espalharam por todo o círculo e tentaram forçar o grupo a adotar um consenso preestabelecido que casava com os encaminhamentos que haviam trazido de Madrid. Mas ficou claro que esses ativistas não eram experientes  nessa tática, pois estavam todos vestindo camisetas idênticas onde estava escrito “Democracia Real Ya”. No minuto em que alguém do movimento de esquerda independente catalão disse que a ocupação Barcelona deve estabelecer seu próprio caminho ao invés de seguir Madrid, a multidão concordou. Haviam poucxs anarquistas naquela primeira noite, mas xs presentes também se certificaram de que xs ativistas reformistas não fossem capazes de limitar o movimento desde o início.

* * *

“Quem é a favor?” – pergunta a pessoa com o microfone. Algumas milhares de pessoas levantam as mãos ao ouvirem sua voz dos alto-falantes.

“Quem é contra?”. Umas cinquenta pessoas levantam as mãos. Por uma questão de ordem, algumas pessoas fazem uma contagem rápida. É claro que o número de votos negativos não é suficiente para ser considerado relevante. Seria preciso uma centena para bloquear uma decisão.

“Quem quer mais debate?” Uma dúzia de mãos levantadas. Mais uma vez, aquém do mínimo necessário para enviar a proposta de volta para uma segunda rodada de debate.

“A proposta passou.” Os moderadores fazem uma pausa antes de passar para o próximo item. A multidão, talvez umas dez mil pessoas, espera sentada com uma paciência tolerante mas também muito entediante.

“O que acabamos de votar?” –  Ouvi uma jovem estudante perguntando a outra. Não seria exagero dizer que essa era uma das perguntas mais frequentes naquele mês de ocupação.

Em apenas uma semana neste grande experimento de democracia direta, a abstenção já tinha se tornado a opção mais comum nas assembleias. Na maioria dos votos, a abstenção atingiu proporções que igualam ou ultrapassam a porcentagem dos que escolhem não votar nas eleições e referendos de uma democracia representativa comum.

Não é nenhuma surpresa. Empoderamento não era mais do que um slogan na praça ocupada. Até mesmo quando haviam apenas cem pessoas numa assembleia, já não era possível que todas participassem. Uma vez que o número de participantes cresceu de centenas para milhares, comissões e subcomissões começaram a aparecer como cogumelos depois de uma chuva. Moderadores experientes começaram a dirigir as assembleias, colocando em prática técnicas para um processo de consenso diferenciado que tinha sido desenvolvido durante o movimento antiglobalização. As propostas foram desenvolvidas e consensuadas em comissões, então elas tiveram que ser claramente lidas para ser ratificada pela assembleia geral. Uma centena de pessoas, pelo que me lembro, podia bloquear uma decisão, e um número menor poderia enviá-la de volta à comissão para mais debate.

Para realmente ter qualquer influência significativa sobre uma decisão, alguém teria que gastar duas a quatro horas durante o dia em uma reunião de comissão para redigir a proposta, para além das várias horas que a Assembleia Geral da noite costuma durar. Propostas mais difíceis eram avaliadas durante dias ou uma semana inteira e em qualquer caso você tinha que ir para as reuniões das comissões a cada dia se quisesse ter certeza de que a proposta mais antiga não tinha sido anulada por uma nova. Obviamente, apenas um pequeno número de pessoas com um certo nível de independência econômica poderia participar plenamente nestas estruturas diretamente democráticas. Mas mesmo que todas as pessoas tivessem tal independência econômica, as próprias estruturas funcionavam como funis, limitando e concentrando a participação para que uma massa grande e heterogênea pudesse produzir decisões homogêneas, unificadas e enumeradas. Em qualquer assembleia ou comissão, certos estilos de comunicação e de tomada de decisão são favorecidos, enquanto outros estão em desvantagem.

A democracia direta não passa de uma democracia representativa em uma escala menor. Inevitavelmente, ela recria a especialização, a centralização e a exclusão que associamos com as democracias existentes. Em quatro dias, uma vez que as multidões excedeu 5.000 pessoas, o experimento de democracia direta já estava repleto de falso consenso e manipulações, minorias sendo silenciadas, aumento da abstenção de votos e dominação de especialistas e políticos internos.

Em um caso exemplar, anarquistas na Sub-Comissão de Auto-Organização e Democracia Direta queriam organizar um debate simples sobre a não-violência. A iniciativa quase não aconteceu porque a Sub-Comissão precisava de dias para debater e chegar ao consenso sobre como exatamente ela queria fazê-lo. No final, duas pessoas decidiram ignorar a comissão e juntar-se com outrx anarquista que não estava participando da Auto-Organização. Os três realizaram uma conversa e um debate bem-sucedidos em apenas um dia, fazendo o que um grupo de cinquenta pessoas não tinha conseguido ao longo de uma semana.

No entanto, não era tão fácil fazer as coisas por causa dos muitos obstáculos que os ativistas da democracia colocavam no caminho de qualquer ação direta que não tinha o seu selo de aprovação. Por duas vezes, reservamos o sistema de som e o espaço central na praça para debater a política de não-violência que tinha sido imposta a força em todo o movimento. Todas as vezes, a nossa reserva desaparecia misteriosamente e, na terceira vez, o sistema de som foi reservado para outro evento na mesmo horário que tínhamos programado nosso debate. Derrotadxs, decidimos realizar o debate com apenas um megafone na beira da praça. Seria menor, efetivamente marginalizadxs, mas insistimos em registrar nosso desacordo com uma posição que realmente só uma pequena minoria de ativistas impôs com sucesso sobre todo o movimento.

Fomos para a tenda da Comissão de Atividades para informar novamente sobre nossos planos. Em uma história digna de um romance do Kafka, o garoto na mesa olhou para seu formulário, um pequeno pedaço de papel todo cagado escrito de caneta e nos disse que não poderíamos fazer o nosso evento no local onde queríamos. “Por quê?”, perguntei, me preparando para ir a fundo na questão. Seria este ainda outro truque dos novos especialistas em democracia direta para proteger seu falso consenso em torno da não-violência?

A resposta foi muito mais patética do que eu esperava: “Porque os nossos formulários são divididos em colunas diferentes, veja, uma coluna para cada espaço na praça… Mas esse espaço que vocês querem, ao longo da escadaria… Bom, ele não é um espaço oficial.”

“Tudo bem, nós não ligamos. Só escreve ele aí.”

“Mas, mas, não posso. Não há uma coluna para ele “.

“Tá bom, é só fazer uma coluna.”

“Humm, não posso.”

“Meu deus! Olha aqui qual está vago… o Espaço Rosa, só escreve que nosso evento é no Espaço Rosa e na hora mudamos ele pra lá.”

Em apenas duas semanas, sem qualquer treinamento prévio, a revolução espanhola tinha criado burocratas perfeitos!

Mapa da Plaza del Sol, 20 de maio de 2011

 

Mapa da Plaza del Sol, final de maio 2011

Exemplos de manipulação do processo não faltaram. No início, a assembleia decidiu, de uma maneira bem anarquista, não lançar manifestos unificados falando por todo mundo. Posteriormente, as pessoas falavam suas próprias ideias nas assembleias e em espaços informais ao longo do dia. Nós, anarquistas, montamos uma banquinha de literatura onde distribuíamos cartas abertas e panfletos, publicando textos novos todos os dias. Estávamos contentes em nos expressarmos no diálogo com o resto, ao invés de tentar representar todo o movimento. Mas os militantes no meio daquela confusão toda ansiavam por algum manifesto unificado, alguma lista de exigências com as quais eles poderiam pressionar os políticos no poder. Eles só viam as enormes multidões como números, meios para um fim.

Posteriormente, eles formaram uma Comissão de Conteúdo a fim de formular o “conteúdo” ou as ideias do movimento, como se toda a praça ocupação foi apenas um cesto vazio, uma besta irracional esperando pela assembleia para ratificar uma lista de crenças e posições comuns. Na tenda anarquista, debatemos se devíamos ou não participar das comissões. Alguns de nós foram firmemente contra, mas como anarquistas, não buscávamos um consenso. Aquelxs que queriam participar não precisavam de nossa permissão. E pelo menos uma coisa boa saiu de sua participação: muitos exemplos da corrupção intrínseca e autoritarismo da democracia em todos os níveis.

Quando a participação anarquista impediu que trotskistas, ativistas da Democracia Real e outras militâncias de base produzissem um tipo de conjunto de demandas unificadas e manifestos que a assembleia geral havia vetado anteriormente, a Comissão foi dividida em uma dúzia de subcomissões. Todos os dias, em várias subcomissões, militantes faziam as mesmas propostas que tinham sido derrotadas no dia anterior, até o dia em que houve uma reunião na qual nenhumx dxs seus opositorxs estavam presentes. As exigências foram passadas através da Comissão e posteriormente ratificada pela assembleia geral, que havia ratificado quase todas as propostas que tinham passado por ela antes dessa.

Por outro lado, após uma semana de debate, os anarquistas na Auto-Organização e na Sub-Comissão da Democracia Direta chegaram a um consenso duramente conquistado com defensorxs da democracia direta para uma proposta de descentralizar a assembleia, o que significa que a heterogeneidade e as diferenças seriam respeitadas, e a assembleia seria transformada em um espaço para se compartilhar propostas e iniciativas, mas não para ratificá-las. Isso porque, no novo sistema, todxs seriam livres para realizar as ações que bem entendessem, e não precisaria de qualquer permissão burocrática. A proposta significaria a derrota total dos militantes, porque a assembleia não seria mais uma massa que poderiam controlar para seus próprios fins. Todxs seriam livres para organizar as suas próprias iniciativas e tomar suas próprias decisões. O funil seria transformado em um campo aberto.

A proposta anarquista de descentralizar a assembleia foi votada duas vezes, sempre conseguindo um apoio esmagador, mas curiosamente foi derrotada em procedimentos técnicos ambas as vezes. Os moderadores dramatizaram e gaguejaram, tentaram atrasar o processo e inventar obstáculos. Quando já não podiam impedir a votação, a proposta teve uma maioria mais expressiva do que talvez qualquer outra pauta naquelas semanas. Tentaram assustar as pessoas para barrar a proposta, insistindo que fosse lida várias vezes, para que todo mundo tivesse certeza de que entenderam suas implicações, e sugeriram que tirassem um dia a mais para refletir sobre ela, mas todas essas táticas acabaram saindo pela culatra. No final, esta foi uma das poucas propostas que todas as pessoas na assembleia prestaram atenção, discutindo e votando com a consciência total.

Cerca de apenas cinquenta pessoas votaram contra a proposta de descentralizar a assembleia. As mesmas cinquenta pessoas que votaram por mais debate, mesmo não tendo absolutamente nenhuma intenção de debater, então, a proposta foi descartada. A proposta alcançou um consenso consistente na Subcomissão. Mais debate não mudaria nada. Ela só voltaria mais uma vez para a assembleia geral e seria bloqueada novamente. Graças à democracia direta, cinquenta pessoas poderiam controlar vinte mil.

Esta ação demonstrou que tínhamos razão, tivemos muito apoio, e a assembleia era uma farsa. E isto, por si só, foi uma vitória. Mas a democracia direta não pode ser reformada a partir de dentro. Ele tem que ser destruída.

Muitas pessoas passaram a levar as comissões e a assembleia geral mais a sério do que o esperado. De fato, debates férteis entre grupos de cinquenta ou cem pessoas acontecia nas comissões, e a assembleia serviu parcialmente como uma plataforma para pessoas que não se conheciam expressarem suas queixas e construir um senso de coletividade. Mas só o fato de subverter as estruturas da burocracia e da centralização, para criticar as dinâmicas de poder que elas criaram e dar lugar a algo mais vibrante e livre na sombra da assembleia geral já eram coisas que valiam a pena.

Mas havia muito mais na ocupação das praças do que essas estruturas burocráticas frustrantes. O centro oficial do movimento, de fato, era pequeno em comparação com as margens caóticas. Estas margens eram todos os espaços na praça exterior ao das tendas das comissões e às duas horas de assembleia geral que aconteciam todas as noites. Durante todo o dia, a praça foi um espaço extenso e caótico de auto-organização, onde as pessoas atendiam suas necessidades logísticas, às vezes passando por canais oficiais, às vezes não. Foi feita uma biblioteca, um jardim, um centro internacional de tradução, uma cozinha com grandes fornos e fogões solares. E o tempo todo aconteciam shows, oficinas, debates e tendas de massagem, além de inúmeras conversas menores, debates, e encontros. As pessoas bebiam, debatiam, celebravam, dormiam, namoravam, faziam amizades. Era um caos, no sentido literal: padrões surgiam e desapareciam e não havia espaço central a partir do qual tudo podia ser observado, muito menos controlado.

Considere o programa reconhecido oficialmente: você só tinha que ir para a tenda da Comissão de Atividades para ver toda a programação. Partindo desse ponto, um agente da polícia poderia registrar todos os eventos que estavam acontecendo, o que estava sendo falado, o que estava sendo organizado. Uma pessoa nova, querendo participar, poderia vir e saber onde se envolver, e seu guia seria um pedaço de papel, uma agenda, ao invés de um novo amigo. Militantes podiam monopolizar os espaços e horários mais importantes, dando prioridade a certas reuniões ou eventos e marginalizando outros (ou poderiam até mesmo fazer eventos indesejados desaparecem, como aconteceu com o nosso debate sobre não-violência). Não é nenhuma coincidência que os interesses externos de controle estatal, os interesses internos de controle hierárquico e os interesses de eficiência impessoal ou racional, todos convergem nas estruturas de democracia direta.

Por outro lado, as margens não oficiais eram muito mais vivas e dinâmicas. A maioria das novas amizades e cumplicidades, as conversas mais significativas, face-a-face, e a maioria das experiências comuns satisfatórias, que faziam as pessoas voltarem, ocorreram nas margens caóticas do acampamento. Um punhado de pessoas poderiam organizar um debate ou um pequeno show sem ter que se esgotar passando por comissões e subcomissões. Poupando suas energias para o que realmente importava – a atividade em si – alguns indivíduos poderiam preparar um evento de qualidade por sua própria iniciativa, e uma multidão de cem, ou mesmo quinhentas pessoas, podiam espontaneamente se reunir e participar.

Mesmo durante as assembleias gerais, as margens caóticas não poderiam ser extintas. Milhares de pessoas boicotaram as votações. Algumxs de nós se recusaram sobretudo, como anarquistas, a legitimar tais exercícios e farsas autoritárias em nome do povo, como um corpo coletivo apagado pela imposição artificial de unidade. Muitas pessoas não votaram porque acharam a assembleia chata (muito parecido com a criança na sala de aula sonhando acordada, não porque ela é pouco inteligente, mas porque ela é, de fato, mais inteligente do que aquilo, porque ela não está envolvida pelo modelo autoritário e pacificador de educação). Outras não votaram porque, uma vez que as multidões tinham ultrapassado cinquenta mil, elas não poderiam chegar perto o suficiente para ouvir. As margens da praça tornaram-se um país ingovernável de conversas sussurradas, críticas e discordâncias com o que era falado no centro.

Não eram todos esses outros espaços à margem também espaços de tomada de decisão? Não tomamos decisões a cada momento de nossas vidas? Por que o espaço formalizado e masculino de uma assembleia é mais legítimo do que a cozinha comum, onde muitas decisões e conversas também acontecem? Por que ela é mais legítimo do que as centenas de aglomerados de pequenas conversas e debates que ocorrem durante o dia, em pequena escala, permitindo que as pessoas se expressem mais intimamente e mais plenamente?

Mesmo se participássemos de cada decisão formal, será que essas seriam as mesmas decisões as quais chegaríamos em espaços confortáveis, espaços de vida e não de política? Será possível que os nossos “eus” formais se tornem uma mera representação, uma manipulação produzida durante algumas horas chatas de reuniões que é usada para nós mesmxs nos controlarmos durante todos os outros momentos de nossas vidas?

“Não faça isso”, diz o ativista que se acha uma espécie de líder para a pessoa que começou a pixar um banco, “este é um protesto pacífico”. O líder fala com toda a legitimidade de um mandato popular. Supostamente, há um consenso sobre a questão da não-violência para este protesto, organizado pela assembleia da praça. No entanto, que tipo de consenso precisa ser continuamente reafirmado? Por que as pessoas que participaram da assembleia se rebelaram com tanta frequência contra as decisões que supostamente as representavam?

Nem precisa dizer que os defensores da democracia direta e suas estruturas oficiais fizeram tudo o que podiam para suprimir as zonas caóticas na praça. A tenda anarquista, por exemplo, nunca tinha permissão oficial e tentaram nos expulsar logo no primeiro dia que a montamos. Deixamos claro que eles teriam de usar a força para nos tirar de lá e, sendo assim, todo mundo iria ver em que consiste a sua democracia. Eles teriam feito isso se não fôssemos um bando de pessoas afiadas e calejadas pelos anos de luta nas ruas. Em vez disso, eles montaram cedo algumas barracas da comissão sobre o nosso local na manhã seguinte. Apenas encontramos um outro local.

A Comissão “Convivência” (um termo classista, muitas vezes racista que é sistematicamente utilizada pela administração da cidade) ocupou-se de tentar expulsar as pessoas que estavam bebendo na praça, mas não os jovens estudantes brancos, apenas os mais velhos, homens sem-teto geralmente imigrantes que dormiam na praça. Eles também tentaram várias vezes expulsar os imigrantes sem documentos que tinham que trabalhar vendendo cervejas ou bolsas nas ruas e que, muitas vezes, tinham que correr da polícia. Os membros da Comissão tentaram negar o acesso destes imigrantes ao espaço seguro que tínhamos criado na praça, e só pararam quando algumas pessoas do nosso grupo decidiram meter o dedo na cara deles, dizendo que estavam sendo racistas e que, se precisasse, iam usar a violência para que parassem com isso.

Chamar o movimento 15M de imperfeito não é o mais preciso. Todas as dinâmicas opressivas, todos os hábitos da passividade e do autoritarismo na nossa sociedade nos seguiram para dentro da praça. Mas ali, naquele espaço coletivo, tínhamos a oportunidade de enfrentá-los. As estruturas de democracia direta apenas mascaravam ou exacerbavam essas dinâmicas; elas eram tentativas fracas de controlar o caos que passava despercebido. Mesmo algumxs anarquistas não conseguiram ver isso. Como muitas outras pessoas distraídas com a aura da oficialidade – os títulos e processos, comissões, programações e diagramas. Tudo aquilo era uma farsa. A imposição de um modelo oficial foi montado para desviar nossa atenção e, ao mesmo tempo, controlar nossa participação. Espero que da próxima vez saibamos não levar isso tão a sério.

Com o tempo, o movimento 15M diminuiu, novamente imerso nos conflitos sociais que deram origem a ele, e que continuaram inabalados. Por um tempo, muitxs anarquistas em Barcelona participaram com milhares de outras pessoas nas assembleias de bairro que substituíram a ocupação  da Praça Catalunya.

Protestos contra desalojos devido a hipotecas se tornaram frequentes. Houveram ocupações de escolas e hospitais contra as medidas de austeridade. Greves gerais e confrontos nas ruas. Protestos contra novas leis repressivas. Ondas de prisões e contra-mobilização. A luta continuou.

Assembléia de bairro, Maio de 2011.

O surgimento desses movimentos nos ensinou uma série de coisas. Suas origens confirmaram certas teorias anarquistas sobre conflito social. Eles não foram mecanicamente desencadeados por condições materiais, como se tendessem a vir antes da crise ou dos piores efeitos econômicos da austeridade. Eu diria que não existem condições materiais, apenas interpretações das pessoas sobre suas condições. (Na verdade, toda a categoria chamada “material” parece mais uma tentativa grosseira de parecer científica, embora se baseie em uma dicotomia que vem desde as origens do ocidente e da civilização cristã.)

Os verdadeiros estopins dos movimentos e das revoltas foram uma empatia coletiva ou a sedução causada pelas revoltas que aconteceram em outros países, uma sensação coletiva de insegurança ou de avaliação de que o Estado tinha se tornado fraco; a indignação coletiva em resposta às medidas de um governo visto como um insulto à dignidade das pessoas e como ameaça ao seu bem-estar, e uma interpretação coletiva de que as condições ainda podiam se agravar.

Respostas institucionais nos mostraram que os governos muitas vezes reagem desajeitadamente aos movimentos emergentes, contribuindo para seu crescimento e radicalização, ao passo que os participantes reformistas ou sedentos de poder são os mais eficientes e espertos na criação de organizações que espelham o controle estatal dentro dos próprios movimentos, impedindo-os de desenvolver perspectivas revolucionárias.

Além disso, uma série de hipóteses sobre o pacifismo foram confirmadas: 1) nossa sociedade treina pessoas para apoiar acriticamente o pacifismo nos movimentos sociais, e assim, a corrente predominante de pacifismo se move progressivamente longe de uma prática que promove mudança social para uma prática de pacificação total; 2) a mídia, a polícia e os futuros líderes dos movimentos (e partidos) conspiram para impor o pacifismo; 3) a evolução natural dos movimentos leva a romper com a não-violência e desenvolver táticas mais empoderadoras. Mas os acontecimentos também nos deram a oportunidade de ver quando as multidões deixam de dar ouvidos demais aos aspirantes a líderes de movimentos sociais. Elas tendem a abandonar seu compromisso com a não-violência e a apoiar ou ao menos tolerar passivamente certas táticas ilegais ou destrutivas.

Por outro lado, o compromisso das lideranças com a democracia era mais profundo. Havia uma preocupação compartilhada, um apoio cego aos valores da democracia que lhes permitia legitimar a sua liderança sobre o que tinha sido um movimento anárquico.

O Democracia Real Ya fez um excelente trabalho de formulação de políticas medíocres definidas pelo seu populismo, vitimização, reformismo e moralismo. Usando termos comuns, carregados de valores tais como “democracia” (bom) e “corrupção” (ruim), eles criaram uma armadilha discursiva que recebeu apoio esmagador para todas as suas propostas enquanto desviava ou incluía falsamente propostas que iam além. Suas declarações incluíam linguagem revolucionária e o sentimento altamente popular que “vamos mudar tudo”, enquanto oferecia uma lista de demandas que basicamente hierarquizava o que era de maior valor para vender para o resto das pessoas. Tudo começou com a reforma da lei eleitoral, passando por leis para uma maior supervisão dos banqueiros e atingiu, no seu extremo mais radical, uma recusa em pagar os empréstimos de resgate para empresas privadas. Tudo foi estruturado em torno de demandas feitas ao governo existente, mas enfeitado em linguagem populista. Assim, o slogan popular anarquista Ningú ens representa (Ninguém nos representa), foi distorcido para dizer, “Nenhum dos políticos atualmente no poder nos representam: queremos políticos melhores para fazer isso”.

No entanto, para realizar este ato de equilíbrio, eles tiveram que adotar princípios de organização vagamente antiautoritárias herdados do movimento antiglobalização, como o compromisso de chamar assembleias e não ter porta-vozes ou partidos políticos. Propostas baseadas na ação direta ou em sentimentos de rejeição ao governo e ao capitalismo foram facilmente neutralizadas dentro deste modelo ideológico. As ações diretas seriam paternalisticamente toleradas enquanto projetos paralelos bonitinhos que não atrapalhassem o projeto maior de implementar demandas reformistas. A rejeição ao governo e ao capitalismo seriam aplaudidas e linkadas à retórica popular em uso, e corrompida para representar uma oposição aos políticos atualmente no poder e a banqueiros específicos.

A única maneira de contestar essa cooptação da revolta popular foi concentrar a crítica na democracia em si. Rapidamente descobrimos que a ideia de democracia direta foi a principal barreira teórica que protegia a democracia representativa existente. E ativistas da democracia direta, incluindo anarquistas, eram a ponte delicada entre os militantes parasitas e esse corpo social.

A experiência na praça nos ensinou na prática o que já tínhamos discutido na teoria: de que a democracia direta recria a democracia representativa; que não são certas características que podem ser reformadas (financiamento de campanha, limites de mandato, referendos populares), mas os ideais mais centrais da democracia que são inerentemente autoritários. A coisa bonita sobre o acampamento na praça foi que ele tinha vários centros de tomada de decisão e criação. A assembleia central funcionava para suprimir isso e, se tivesse conseguido, a ocupação teria morrido muito mais cedo. Ela não teve sucesso, em parte graças à intervenção anarquista.

A assembleia central não deu à luz nem uma única iniciativa. Ao invés disso, o que ela fez foi dar legitimidade às iniciativas trabalhadas nas comissões; mas este processo não deve ser retratado em termos positivos. Esta concessão de legitimidade era na verdade um roubo da legitimidade de todas as decisões tomadas nos vários espaços ao longo da praça que não foram incorporados em uma comissão oficial. Várias vezes, representantes autonomeados desta ou daquela comissão tentaram suprimir as iniciativas espontâneas que não levavam seu selo de legitimidade. Em outras ocasiões, comissões, moderadores e militantes internos contrariavam especificamente decisões tomadas na assembleia central, mas só quando isso favorecia uma maior centralização. Esta não é uma questão de corrupção ou de um modo ruim. A democracia sempre subverte os seus próprios mecanismos para favorecer quem está no poder.

Inúmeras vezes vimos na praça uma correlação entre a democracia e a paranoia de controle: a necessidade de que todas as decisões e iniciativas passem por um ponto central, a necessidade de tornar legível a atividade caótica de uma ocupação feita de multidões a partir de um único ponto de vista – ou, por assim dizer, de uma sala de controle. Este é um impulso estatista. A necessidade de impor a legibilidade em  situações sociais – que são sempre caóticas – é compartilhada por ativistas da democracia que pretendem impor uma nova estrutura organizacional brilhante; pelo cobrador de impostos que precisa que toda atividade econômica seja visível para então ser reapropriada; e pelo policial, que deseja uma vigilância total, a fim de controlar e punir. Também achei que muitxs anarquistas de diversas linhas ideológicas não foram capazes de ver a diferença teórica crucial entre as oposições democracia representativa versus democracia direta / consenso e centralização versus descentralização, porque em ambos os casos, esses termos em conflito se transformaram em sinônimos na prática. Por esta razão, decidi reabilitar o termo “caos” no meu uso pessoal, uma vez que é um termo assustador que nenhum populista no contexto atual iria usar e abusar. E isso se relaciona diretamente com teorias matemáticas que expressam o tipo de organização acéfala mutável, conflituosa e renovadora que anarquistas estão pedindo.

Chamam isso de Democracia
Chamam isso de Democracia

II. Ossificação

Outono de 2015

Junts pel Sí, a coalizão pró-independência que reúne os principais partidos de direita e de esquerda na Catalunha, ganhou as eleições regionais. Juntamente com a CUP – uma plataforma ativista popular que toma decisões em assembleias, e que surgiu a partir dos movimentos sociais para aproveitar mais de 10% dos votos–, eles têm uma maioria no parlamento catalão e anunciaram que vão fazer uma declaração unilateral de independência, transformando o parlamento em uma assembleia constituinte para uma nova constituição, rompendo com Espanha. Enquanto isso, o Partido Socialista e Partido Popular, que até há quatro anos governavam o país em um sistema de dois partidos inabalável, ameaçam entrar com uma ação legal desde Madrid. Podemos, um partido político ativista inspirado no Syriza, promete um referendo sobre a questão da independência para a Catalunha, o País Basco, a Galícia, se forem eleitos e chegarem ao poder. Eles sugerem a possibilidade de uma nova constituição, transformando a Espanha em uma nação de nações. Os jornais e a TV estão cheios disso todos os dias. Todo mundo aguarda, com expectativa.

Na primavera, as plataformas de ativistas, algumas delas com menos de um ano de idade, ganharam as eleições em Madrid, Valência e Barcelona. Em Donostia, o recém legalizado partido pela independência basca, Bildu, já estava no poder. Estes constituem quatro das cidades mais importantes da Espanha, incluindo as duas maiores.

A nova prefeita de Barcelona, Ada Colau, já foi ativista dos movimentos de moradia e já foi presa em um ato de desobediência civil para impedir um despejo que foi bem noticiado na mídia. Todo mundo discute sobre se ela vai cumprir suas promessas e proteger as famílias que não podem pagar as hipotecas de serem expulsas de suas casas. Será que ela vai criar emprego digno? Será que ela vai parar os estragos do turismo que estão refazendo a cidade? Todo mundo aguarda, com expectativa.

Madrid Plaza del Sol, mais uma vez cheia de pessoas, durante uma manifestação convocada pelo Podemos em 2015.
Madrid Plaza del Sol, mais uma vez cheia de pessoas, durante uma manifestação convocada pelo Podemos em 2015.

Um novo texto anarquista de Barcelona, “Uma aposta no futuro”, argumenta que esses novos partidos políticos são o resultado da morte do movimento 15M. Os aspirantes a líderes não conseguiram transformar diretamente movimento em um novo partido político, embora certamente tivessem tentado. Em todo o país, centenas de milhares de pessoas deram uma chance para a auto-organização em assembleias. E diante disso, elas alcançaram exatamente nada. Alguns anos mais tarde, em um clima de decepção geral, passividade e desmobilização, o Podemos e outros partidos políticos novos, como o Barcelona en Comu, foram formados. Plataformas de ativistas-que-viraram-partidos-políticos, como a CUP ou Compromis em Valência, prepararam-se para agarrar uma fatia maior do bolo. Os poucos remanescentes das assembleias de bairros ou do 15M, totalmente depenados, tornaram-se ferramentas de recrutamento para um partido ou outro.

A democracia espanhola foi se regenerando. As pessoas, depois de terem falhado, estão mais uma vez prontas para depositar a sua confiança nos políticos, contanto que eles sejam novos rostos fazendo novas promessas. A democracia direta revelou como ela se transforma novamente em democracia representativa, à medida que aumenta sua escala.

Nesta conjuntura, podemos ver como a democracia direta protegeu e revitalizou a democracia representativa. Coerente com sua ênfase na participação formal, superficial e regulamentada em um espaço alienado da política – a assembleia central como o juiz de todas as tomadas de decisões –, o movimento pela democracia direta buscou propor um conjunto de exigências com base na reforma institucional e do consenso social.

O que isso significa nos detalhes da vida cotidiana e da luta? Como todas as outras formas de governo, a democracia direta preserva e até mesmo celebra a política como uma esfera alienada da vida. Na verdade, a política – gestão da polis – é diretamente democrática nas suas origens. Em uma das alienações originais, as pessoas são feitas espectadores para as decisões que determinam como elas vivem.

As assembleias são uma ótima maneira de tomar certas decisões em situações específicas, mas a democracia direta dá precedência à assembleia geral sobre o grupo de afinidade, sobre a cozinha, sobre o círculo de estudo, sobre a oficina de trabalho e mais de um milhão de outros espaços em que nos organizamos por nós mesmxs. Este é um paralelo exato sobre como todos os governos concedem uma legitimidade exclusiva a qualquer forma de tomada de decisão que eles controlarem dentro dos canais institucionais. Um governo dirigido por estadistas carismáticos vai dar preferência a um congresso ou parlamento, um governo dirigido por tecnocratas vai dar prioridade aos bancos centrais e as comissões estaduais … e um governo dirigidos por ativistas de base a caminho da profissionalização vai dar prioridade à assembleia.

Em uma das revoluções que definiu modelos na era moderna, os bolcheviques fizeram uso dos sovietes – que funcionavam como assembleias democráticas e que anarquistas contemporâneos como Voline diziam estar prontas para cooptação – até que eles haviam consolidado seu Estado burocrático o suficiente para não precisar mais da estrutura anterior. A compatibilidade entre o que foi uma democracia direta (ou pelo menos federativa) e o “centralismo democrático” bolchevique que a aboliu e assumiu o controle não nos deve passar despercebido. Não é história antiga, mas um padrão que continua a se repetir.

A democracia direta se diferencia de outras formas de governo através de uma ênfase no princípio do “autogoverno”. Anti-autoritárixs que defendem a democracia direta podem evitar esse termo, mas na verdade ele é bastante preciso. A democracia direta envolve as pessoas no seu próprio governo, o que quer dizer a sua própria alienação em relação à tomada de decisão social. Podemos ver isso na forma como as pessoas em Praça Catalunya acabaram abstendo-se ou passando batido pelas pautas nas assembleias noturnas. Ao ser dada uma oportunidade de autogoverno, elas estavam sendo reeducadas, de uma forma muito direta, precisa e de mãos dadas com o exato significado de governo. Não é por acaso que, logo em seguida, uma grande proporção dessas massas estava mais uma vez pronta para apoiar um partido político e reproduzir todos os mesmos problemas de impotência e alienação que as havia trazido para as praças em primeiro lugar.

Quando nós, anarquistas, dirigimos nossa raiva e nossas críticas aos defensores da democracia direta, não é porque somos tão dogmáticxs, tão encantadxs olhando nosso próprio umbigo ou purificando nossos minúsculos espaços de dissidência que preferimos atacar um aliado do que ir para cima dos verdadeiros bandidos dentro dos bancos, salas de reuniões e parlamentos. Pelo contrário, o motivo é que o movimento pela democracia direta constitui a extensão mais eficaz do Estado dentro das nossas lutas de libertação. No final, não somos vítimas. Vivemos em uma sociedade opressiva porque a cada dia ajudamos a reproduzir essa opressão. É por esta razão que criticamos. Assim como uma limitada “autogestão” no local de trabalho pode lhe transformar em seu próprio patrão, autogoverno lhe transforma em sua própria comandante, e não há nada mais triste do que ser o agente ativo em sua própria alienação. Em suma, o autogoverno significa ser o seu pior inimigo.

É por isso que era lógico para um movimento baseado na democracia direta defender demandas baseadas na reforma institucional e consenso social: o olhar do movimento já estava fixado em tomar o poder centralizado – o poder que decorre da nossa alienação e impotência – ao invés de destruí-lo. Em vez de propor o fim das instituições dominadoras, ativistas da democracia direta propuseram maneiras de corrigi-las. Em vez de buscar a abolição de uma sociedade hierárquica, em vez de escolher os lados nos antagonismos de classe, do colonialismo, e do patriarcado, eles procuraram a unidade social. Afinal de contas, a sociedade é a máquina que os políticos desejam dirigir, por isso não faz sentido para os aspirantes a políticos tentar desmontá-la.

Essa inclinação reformista desviou o movimento de uma rota de colisão com as autoridades. Os valores da democracia direta suprimiram um conflito mais radical que veio se preparando, como visto nos distúrbios durante o Primeiro de Maio, as greves gerais e assim por diante. E a verdade é que o conflito serve como um laboratório, como um caldeirão para a revolução. Ao limitar o conflito, o movimento para a democracia colocou uma desvantagem em nosso processo de aprendizagem coletiva e nos roubou as experiências que poderiam ter oferecido um vislumbre de um horizonte revolucionário, um sem governantes, sem exploração, sem dominação.

As promessas reformistas dos pretensos líderes conseguiram algo mais. Redirecionando a atenção para a questão dos resgates, dos fundos públicos, da corrupção do governo e assim por diante, eles distraíram as pessoas da possibilidade vital de responder à austeridade no terreno da vida diária, com a auto-organização coletiva das nossas necessidades. E porque nenhuma reforma foi atingida através das assembleias, a maioria das pessoas as consideram como um fracasso. Interessante e inspiradoras mas, acima de tudo, derrotas. Certamente, os pragmáticos estavam corretos em dizer que a auto-organização na escala da sociedade é uma utopia idealista.

Essa propaganda enganosa cegou muitas pessoas para os avanços que as assembleias alcançaram de fato. Elas constituíram um importante primeiro passo – nos encontrar, começando um grande diálogo social – em direção à auto-organização da vida. E serviram como uma ferramenta para aumentar nosso poder, nossa capacidade de tomar o espaço público e transformá-lo em espaço comum. Na luta pelas nossas vidas, essa é uma grande vitória. Mas o pensamento por trás democracia direta não propõe colocar o poder de volta em nossas mãos para além de um nível simbólico e formalista, porque para o autogoverno funcionar, o poder deve permanecer centralizado, alienado.

Cuidado com o que deseja.
Cuidado com o que deseja.

Podemos culpar a democracia e os seus ingênuos proponentes de tentar vender essa ideia de revolução fadada ao fracasso desde o início, ou por não perceber, depois de tantas falhas semelhantes antes dela, que a revolução não é pragmática ou cautelosa. Mas que ela deve ser levada para além dos nossos horizontes, em direção ao imprevisível, ao incerto, aos limites mais distantes da nossa imaginação, ou então morrerá.

Mas não assistimos passivamente esse fracasso. Acho que, como um todo, nós – aqui, me refiro simplesmente a mim mesmx e a amigxs que eu estava em contato mais próximo naqueles dias – rapidamente aprendemos como prevenir que aspirantes a cargos políticos tomassem ou centralizassem as novas assembleias. Ou, no caso da assembleia da Praça Catalunya, que rapidamente se tornou grande demais para funcionar de forma empoderadora. Aprendemos como tornar evidentes as suas falhas e como tirar o potencial máximo de outros espaços de organização e de encontro. Muitas vezes, isso significava nos opor ao modelo de assembleia centralizada baseada em um processo de decisão unitário com o nosso próprio modelo baseado nas diferenças, na pluralidade, por múltiplas vias de tomada de decisão e sobre a total liberdade de ação, o que significa que qualquer pessoa poderia fazer o que quisesse sem permissão de uma assembleia, desde que cultivando o respeito mútuo para que os inevitáveis conflitos entre as diferentes correntes de atividade fossem construtivas e não paralisantes e destrutivas.

O que não aprendemos a fazer, vendo agora em retrospectiva, foi lançar propostas que uma grande parte da assembleia poderia se animar em participar; propostas resultantes de uma análise radical; propostas de soluções para a austeridade com base na ação direta e a auto-organização imediata de nossas necessidades, fora e contra as imposições do capitalismo.

Como o texto acima argumenta, na verdade, não é nossa responsabilidade como anarquistas chegar com as soluções para o resto da sociedade, mas se não somos capazes de descobrir como usar assembleias heterogêneas para avançar projetos antiautoritários baseados em apoio mútuo em resposta às necessidades reais das pessoas, como podemos esperar que qualquer outra pessoa faça isso?

É neste sentido que as assembleias acabaram sendo inúteis. Ninguém se atreveu a dar o passo de usá-las para cumprir nossas necessidades coletivas. O capitalismo e o governo democrático estavam esperando, como sempre, para intervir e oferecer suas próprias soluções.

21 de maio de 2011: Mesmo se nos reunirmos para protestar contra as eleições, acabaremos entrando ou criando um novo partido ao invés de começar a resolver os nossos problemas diretamente.

Essa falha poderia ser o assunto para um livro inteiro, ou melhor, para um processo de aprendizagem coletiva envolvendo milhares de pessoas sonhadoras e revolucionárias e as gerações que virão. Para concluir, como um simples gesto de apontar outros caminhos para avançar a partir deste impasse, vou mencionar dois componentes que senti falta: imaginação e habilidades.

Imaginação

É a capacidade de cria o nosso imaginário: visões de outros mundos em que nossos desejos e projeções podem residir, ou até mesmo prosperar, nos momentos em que o capitalismo não permite espaços autônomos nos quais as relações comunais podem se desenvolver. Não é por acaso que os movimentos revolucionários de hoje não  imaginam outros mundos, nem é uma coincidência que grande parte da produção capitalista suprime a imaginação de seus consumidores, oferecendo imaginários prontos, cada dia mais elaborados, mais visualmente estimulantes, mais interativos, para que as pessoas não tenham mais que imaginar qualquer coisa para si mesmos, porque mil mundos e fantasias já vêm pré-fabricadas. Todas as antigas fantasias que são utilizadas para criar nossos sonhos já foram fixadas em produções de Hollywood, com atores convincentes, terrenos plenamente representados, e trilhas sonoras emocionantes. Não sobra nada para recriarmos por nós mesmxs, apenas para consumir.

No atual mercado de ideias, parece que os únicos imaginários que descrevem o nosso futuro são o apocalipse ou a colonização de outros planetas da ficção científica. Aliás, a segunda é a última fronteira para a expansão capitalista, agora que este planeta está sendo rapidamente consumido e a primeira é a única alternativa que o capitalismo permite pensar que existe para além do seu domínio. Nos encorajam a imaginar que viveremos nos únicos mundos que podem ser concebidos de dentro da perspectiva capitalista.

Radicais e revolucionárixs de cem anos atrás sempre sonharam e planejaram um mundo sem Estado e sem capitalismo. Algumas dessas pessoas cometeram o erro de transformar seus sonhos em modelos, diretrizes dogmáticas que, na prática funcionavam como pontos de referência que permitiam julgar quem pensava ou agia diferente. Mas hoje estamos diante de um problema muito maior: a ausência de imaginários revolucionários e a quase atrofia total da imaginação em nós mesmas e no resto da sociedade. E a imaginação é o órgão mais revolucionário em nosso corpo, porque é o único capaz de criar novos mundos, de viajar para fora do capitalismo e da autoridade do Estado, e de nos permitir superar os limites da insurreição que se tornaram tão evidentes nestes últimos anos.

Hoje, conheço poucas pessoas que podem imaginar o que a anarquia pode ser. A incerteza não é o problema. Como sugeri anteriormente, a incerteza é um dos fundamentos da organização caótica e é apenas a neurose autoritária dos Estados que nos obriga a impor a segurança ou a certeza sobre uma realidade que está sempre mudando. O problema é que esta falta de imaginação constitui uma ausência do mundo. Uma parte vital de nós não está mais lá, como costumava estar, além do horizonte, no limiar entre claro e escuro, discernindo, modulando, e dando boas-vindas a cada novo personagem que entra em nossas vidas. O mundo da dominação já não tem de lidar com nossos mundos despedaçados, as várias formas de paraísos e recompensas prometidas pelas autoridades já não têm de superar o ridículo dos nossos contos de fadas, e as grandes sombras projetadas pelas estruturas de dominação não contêm milhares de possibilidades de coisas que poderíamos construir sobre suas ruínas; agora eles são apenas sombras vazias e obscuras.

As nossas perspectivas, no entanto, não são irremediavelmente sombrias. A imaginação pode ser sempre renovada e revigorada, embora devemos enfatizar a importância radical deste trabalho se as pessoas estão mais uma vez dispostas a criar, compartilhar e discutir novos mundos possíveis ou profundas transformações deste mundo. Eu diria que esta tarefa é ainda mais importante do que a contrainformação. Alguém que deseja a revolução sempre pode se educar, mas alguém que não pode sequer conceber uma transformação vai ser impermeável aos argumentos mais bem documentados.

Habilidades

O que complementa nossa falta de imaginação é a nossa falta de habilidades, embora não tão grave quanto a primeira. Desde a Segunda Guerra Mundial, atrofiar habilidades tem sido uma característica essencial do capitalismo. As habilidades que precisamos para sobreviver no mercado capitalista são completamente redundantes, totalmente inúteis para a sobrevivência em qualquer outro modo de vida. Sem as habilidades para construir, para curar, para corrigir, para transformar, para alimentar, apoio mútuo e auto-organização não podem ser nada mais do que slogans superficiais e vazios. O que estamos organizando? Apenas uma outra reunião, outro protesto? Que tipo de ajuda estamos mutualizando? Compartilhando nossa miséria, compartilhando o lixo que o capitalismo ainda não descobriu como fazer para comercializar?

Felizmente, algumas pessoas ainda sabem como curar, como cuidar, como alimentar, como construir, e mais pessoas estão começando a aprender a fazer isso. No entanto, geralmente essas não são tratadas como atividades revolucionárias, nem são praticadas de uma forma revolucionária. Qualquer pessoa pode aprender terapias naturais ou jardinagem, transformar isso em um negócio e o capitalismo ficará contente em tolerar uma nova habilidade – mas só enquanto houverem consumidores ricos o suficiente para servirem de patronos.

É só quando essas habilidades são postas a serviço de uma imaginação revolucionária e uma postura coletivamente combativa contra as instituições dominantes que a possibilidade de criar um novo mundo surge. Ao mesmo tempo, devemos deixar nosso imaginário mudar e crescer enquanto entram em contato com nossas habilidades construtivas e a combatividade que cultivamos. E as práticas de negação, sabotagem, e autodefesa coletiva que foram aprendidas nesse espaço de antagonismo devem ser postas a serviço dos nossos projetos construtivos e de nosso imaginário,

As raízes do Podemos.
As raízes do Podemos.

A regeneração da democracia, aqui e em outros lugares, deu um novo sopro de vida para as estruturas de dominação que vinham perdendo a credibilidade para tantas pessoas. Um futuro sombrio se ergue e talvez estejamos nos afastando cada vez mais de qualquer possibilidade revolucionária. Mas a realidade caótica do universo nos oferece uma promessa: nada é previsível, o futuro não está escrito e as estruturas mais rígidas estão quebradas, ridicularizadas e esquecidas no veloz e selvagem rio dos tempos.

Aparentemente, sistemas impenetráveis se desintegram e novas formas de vida emergem. Temos todos os motivos para aprender com nossos erros, renovar a nossas convicções nas teorias que os eventos recentes confirmaram e, mais uma vez, convidar todas as pessoas que querem participar dessa busca sonhadora pela liberdade total. As soluções fáceis e falsas promessas oferecidas pelos autointitulados pragmáticos – alguns deles sinceros, outros com fome de poder – só vão nos levar a uma derrota igual às que sofremos muitas vezes antes. As pessoas vão aprender a reconhecer isso, se não deixarmos a memória desaparecer.

Lembrem-se de como chegamos até aqui.
Lembrem-se de como chegamos até aqui.

 


NOTA: Esse texto faz parte de uma série e um debate internacional analisando a Democracia sob uma perspectiva anarquista. Não só a democracia representativa burguesa é abordada, mas também as experiências de democracia direta nos diversos movimentos e levantes ao redor do mundo nos últimos anos.

Outros textos serão publicados desenvolvendo a questão localmente. Encorajamos também um debate fora das redes. Convide e organize debate sobre a relação entre democracia e anarquaia na sua região.

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publicação: DA DEMOCRACIA À LIBERDADE

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Esse texto faz parte de uma série e um debate internacional analisando a Democracia sob uma perspectiva anarquista. Para saber mais e participar, veja o final do artigo.


O texto Da Democracia à Liberdade está agora disponível formato livreto para ser impresso como quiser e continuar levando o debate adiante. Copie, distribua e inspire suas próprias análises!

Um breve resumo a esse primeiro texto de uma série de críticas anarquista a todas as formas de democracia:

Democracia é o ideal político mais universal de nossos dias: George Bush o usou para justificar a invasão do Iraque; Obama parabenizou os rebeldes da Praça Tahrir por levarem-na ao Egito; o movimento Occupy Wall Street alegou tê-la destilado em sua forma mais pura. Da República Popular Democrática da Coreia do Norte até a região autônoma de Rojava, praticamente todo governo e movimento popular diz ser democrático.

E qual é a cura para os problemas da democracia? Todo mundo concorda: mais democracia. Desde a virada do século, vimos uma enxurrada de novos movimentos que prometem a democracia real, em contraste com instituições ostensivamente democráticas que eles descrevem como elitistas, coercitivas e alienadoras. Existe um fio que une todos esses diferentes tipos de democracia? Qual delas é a real? Alguma delas pode nos dar a inclusão e a liberdade que associamos com essa palavra?

Nossas próprias experiências em movimentos que fizeram uso da chamada democracia direta nos convida a retornar a essas questões. A conclusão é de que os dramáticos desequilíbrios nos poderes políticos e econômicos que levou as pessoas às ruas de Nova Iorque a Sarajevo, de Istanbul a São Paulo, não são defeitos incidentais em democracias específicas, mas características estruturais que datam das próprias origens da democracia; elas aparecem em praticamente todo exemplo de governo democrático da história.

A democracia representativa preservou todo o aparato burocrático que foi originalmente inventado para servir aos reis; a democracia direta tende a recriá-los em escalas menores, mesmo fora das estruturas formais do Estado. Democracia não é o mesmo que auto-determinação.


Esse texto faz parte de uma série e um debate internacional analisando a Democracia sob uma perspectiva anarquista. Não só a democracia representativa burguesa é abordada, mas também as experiências de democracia direta nos diversos movimentos e levantes ao redor do mundo nos últimos anos.

Outros textos serão publicados desenvolvendo a questão localmente. Encorajamos também um debate fora das redes. Convide e organize debate sobre a relação entre democracia e anarquaia na sua região.

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DA DEMOCRACIA À LIBERDADE – parte 4 de 4

 

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NOTA: Esse texto faz parte de uma série e um debate internacional analisando a Democracia sob uma perspectiva anarquista. Para saber mais e participar, veja o primeiro artigo.

Rumo à Liberdade: Pontos de Partida

O anarquismo não representa a forma mais radical de democracia, mas um paradigma totalmente diferente de ação coletiva.”

Uri Gordon, Anarquia Viva!

A clássica defesa da democracia é de que ela é a pior forma de governo — com exceção de todas as outras. Mas se o governo em si é o problema, precisamos voltar à prancheta.

Reimaginar a humanidade sem governo é um projeto ambicioso; dois séculos de teoria anarquista apenas riscam o verniz. Para o propósito desta análise, vamos concluir com alguns valores básicos que podem nos levar para além da democracia, e algumas propostas gerais sobre como entender o que podemos fazer ao invés de governar. A maior parte do trabalho ainda está por ser feita.

Horizontalidade, Descentralização, Autonomia, Anarquia

Se pararmos para analisar, a democracia não alcança os valores que nos atraíram nela em primeiro lugar — igualdade, inclusão, autodeterminação. Ao lado destes valores, devemos adicionar horizontalidade, descentralização e autonomia como suas contrapartes indispensáveis.

A horizontalidade se popularizou muito desde o fim do século XX. Começando com a insurreição Zapatista e ganhando impulso com o movimento anti-globalização e a rebelião na Argentina, a ideia de estruturas sem lideranças espalhou-se até mesmo para o mundo dos negócios.

Mas a descentralização é tão importante quando a horizontalidade se não quisermos ficar presos em uma tirania de iguais, na qual todo mundo tem que concordar com algo para que alguém possa fazê-lo. Ao invés de um único processo pelo qual toda iniciativa tem que passar, a descentralização significa diversos locais de tomada de decisão e diversas formas de legitimidade. Desta maneira, quando o poder for distribuído de forma desigual em um dado contexto, isso poderá ser contrabalanceado em outro local. A descentralização significa preservar as diferenças – a diversidade ideológica e estratégica é uma fonte de força para os movimentos e comunidades, assim como a biodiversidade no mundo natural. Nós não devemos nem nos segregar em grupos homogêneos sob o pretexto da afinidade nem reduzir nossas políticas aos mínimos denominadores comuns.

A descentralização implica em autonomia – a habilidade de agir livremente a partir da sua própria iniciativa. A autonomia pode ser aplicada a qualquer nível ou escala – uma única pessoa, um bairro, um movimento, uma região inteira. Para ser livre, você precisa de controle sobre o que está imediatamente ao seu redor e sobre os detalhes de sua vida diária; quanto mais autossuficiente você for, mais garantida está a sua autonomia. Isso não precisa significar suprir todas as suas necessidades de forma independente; pode também significar o tipo de interdependência que te dá influência sobre as pessoas de quem você depende. Nenhuma instituição única deveria ser capaz de monopolizar o acesso a recursos ou relações sociais. Uma sociedade que promove autonomia exige o que um engenheiro chamaria de redundância: uma grande gama de opções e possibilidades em todo aspecto da vida.

Se queremos fomentar a liberdade, não basta afirmarmos somente a autonomia1. Uma nação-estado ou partido político pode afirmar autonomia; assim como os nacionalistas e os racistas. O fato de que uma pessoa ou grupo é autônomo nos diz muito pouco se as relações que cultivam com outros são igualitárias ou hierárquicas, inclusivas ou exclusivas. Se quisermos maximizar a autonomia para todas pessoas ao invés de simplesmente buscarmos ela para nós mesmos, temos que criar um contexto social no qual ninguém é capaz de acumular poder institucional sobre os outros. Temos que criar anarquia.

Desmistificando as Instituições

As instituições existem para nos servir, e não o contrário. Elas não têm nenhum direito inerente à nossa obediência. Nós nunca devemos investir nelas mais legitimidade além das nossas necessidades e desejos. Quando os nossos desejos entram em conflito com os conflitos de outras pessoas, podemos ver se um processo institucional pode produzir uma solução que satisfaça a todas; mas assim que damos a uma instituição o poder de resolver nossos conflitos e de ditar nossas decisões, estamos abdicando de nossa liberdade.

Isto não é uma crítica de algum modelo organizacional específico, ou uma defesa das estruturas “informais” ao invés das “formais”. Em vez disso, é um pedido de que tratemos todos os modelo como provisórios – que os reavaliemos e os reinventemos constantemente. Onde Thomas Paine queria coroar a lei como rainha, onde Rousseau teorizou o contrato social e onde os entusiastas mais recentes do sonho capitalista de uma sociedade baseada somente em contratos, nós contrapomos que quando as relações estão verdadeiramente no melhor interesse de todas participantes, não há a necessidade de leis ou contratos.

Da mesma forma, este não é um argumento em favor do mero individualismo, nem de tratar as relações como descartáveis, nem de nos organizarmos apenas com aqueles com quem compartilhamos as mesmas opiniões. Em um mundo superlotado e independente, não podemos nos recusar a coexistir ou coordenar-nos com os outros. O negócio é simplesmente que não devemos buscar legislar as relações.

Ao invés de deferirmos uma manual ou um protocolo, podemos avaliar as instituições de forma constante: elas recompensam a cooperação, ou a competição? Elas distribuem a iniciativa, ou criam gargalos de poder? Elas oferecem a cada participante a oportunidade de alcançar todo o seu potencial em seus próprios termos, ou impõem imperativos externos? Elas facilitam a resolução de conflitos em termos mutualmente aceitáveis, ou punem aqueles que fogem de um sistema codificado?

Ele expressou para nós que nunca deveríamos nos permitir sermos tentados por qualquer consideração de reconhecer o direito à existência de leis e instituições se a nossa consciência os condenava. Ele nos advertiu a não nos importarmos se uma maioria, não importa o quão grande, se opuser aos nossos princípios e opiniões; as maiores maiorias eram algumas vezes apenas quadrilhas organizadas.”

August Bondi, escrevendo sobre John Brown

Criando Espaços de Encontro

Ao invés de locais formais para a tomada de decisões centralizada, nós propomos uma variedade de espaços de encontro onde as pessoas podem se abrir para a influência umas das outras e encontrar outras que compartilham as suas prioridades. Encontro significa transformação mútua: estabelecer pontos comuns de referência, preocupações comuns. O espaço de encontro não é um corpo representativo vestido da autoridade para fazer as decisões por outras pessoas, nem um órgão governante usando a decisão da maioria ou o consenso. É uma oportunidade para as pessoas experimentarem agir em diferentes configurações de forma voluntária.

A assembleia geral que aconteceu imediatamente antes dos protestos contra o Tratado de Livre Comércio das Américas em 2001 em Quebec, Canadá, foi um clássico espaço de encontro. Esta reunião juntou uma vasta gama de grupos autônomos que vieram de todos os lugares do mundo protestar contra o tratado. Ao invés de tentar tomar decisões vinculativas, os participantes apresentaram as iniciativas que os seus grupos haviam preparado e se coordenaram para o benefício mútuo sempre que possível. Muitas decisões foram tomadas depois em discussões informais entre os grupos. Através desses meios, milhares de pessoas conseguiram sincronizar as suas ações sem a necessidade de uma liderança central, sem dar a polícia muita ideia da grande variedade de planos que iriam se desenrolar. Se a assembleia geral tivesse empregado um modelo organizacional destinado a produzir unidade e centralização, os participantes poderiam ter passado a noite inteira discutindo de forma infrutífera sobre objetivos, estratégias e quais táticas permitir.

A maioria dos movimentos sociais das últimas duas décadas foram modelos híbridos sobrepondo espaços de encontro com alguma forma de democracia. No Occupy, por exemplo, os acampamentos serviam como espaços de encontro sem fins definidos, enquanto as assembleias gerais tinham a intenção formal de funcionar como órgãos diretamente democráticos para a tomada de decisões. A maioria destes movimentos alcançou os seus maiores efeitos porque os encontros que eles facilitaram abriram oportunidades para ação autônoma, não porque eles centralizaram a atividade do grupo através da democracia direta. Se nós abordarmos o encontro como a força motriz destes movimentos, ao invés de como material bruto para ser moldado pelo processo democrático, isso pode nos ajudar a priorizar o que fazemos melhor.

Anarquistas frustrados com as contradições do discurso democrático têm algumas vezes se recolhido para se organizarem baseados apenas na afinidade preexistente. Mas a segregação nos leva à estagnação e à rixas. É melhor nos organizarmos com base nas nossas condições e necessidades para podermos entrar em contato com todas as outras pessoas que os partilham conosco. Somente quando compreendermos a nós mesmos como nós dentro de coletividades dinâmicas, ao invés de entidades à parte possuidoras de interesses estáticos, poderemos fazer algum sentido da rápida metamorfose pela qual as pessoas passam durante experiências como o movimento Occupy – e o tremendo poder do encontro de nos transformar se estivermos abertos a isso.

Cultivando Coletividade, Preservando a Diferença

Se nenhuma instituição, contrato ou lei deve ser capaz de ditar as nossas decisões, como iremos concordar sobre quais responsabilidades nós temos uns com os outros?

Alguma pessoas sugerem uma distinção entre grupos “fechados”, nos quais os participantes concordam em responder uns aos outros pelas suas ações, e grupos “abertos” que não precisam alcançar o consenso. Mas isso nos leva à pergunta: como traçamos uma linha entre os dois? Se nós respondemos aos nossos companheiros em um grupo fechado somente até o momento em que decidimos deixá-lo, e podemos deixá-lo a qualquer momento, isso não é muito diferente de participar de um grupo aberto. Ao mesmo tempo, nós estamos todos envolvidos, queiramos ou não, em um grupo fechado compartilhando um único espaço inescapável: o planeta. Então não é uma questão de distinguir os espaços nos quais temos que responder aos outros dos espaços nos quais podemos agir livremente. A questão é como fomentar tanto a responsabilidade quanto a autonomia em todos os níveis da escala.

Com este fim, nós partimos para criar coletividades mutuamente gratificantes em todos os níveis da sociedade – espaços nos quais as pessoas se identificam umas com as outras e tem motivos para fazer a coisa certa para com os outros. Elas podem assumir muitas formas, de cooperativas de habitação a assembleias de bairro a rede internacionais. Ao mesmo tempo, nós reconhecemos que teremos que reconfigurá-las constantemente de acordo com quanta intimidade e interdependência se provarem benéficas para os participantes. Quando uma configuração precisar mudar, não precisa ser um sinal de fracasso: pelo contrário, isso mostra que os participantes não estão competindo por hegemonia. Ao invés de tratar a tomada de decisões em grupo como uma busca pela unanimidade, nós podemos abordá-la como um espaço para que as diferenças se manifestem, para que os conflitos aconteçam e para as transformações acontecerem quando diferentes constelações sociais convergem e divergem. Descordar e dissociar-se pode ser tão desejável quanto chegar a um acordo, contanto que aconteçam pelas razões certas; as vantagens de se organizar em maiores números devem ser o suficiente para desencorajar as pessoas de se dividirem gratuitamente.

Nossas instituições devem nos ajudar a trazer à tona nossas diferenças, e não suprimi-las ou submergi-las. Algumas testemunhas que voltaram de Rojava relatam que quando uma assembleia lá não consegue atingir o consenso, ela se divide em dois, dividindo os recursos entre as partes. Se isto for verdade, oferece um modelo de associação voluntária que é um grande avanço sobre a unidade coerciva da democracia.

Resolvendo conflitos

Algumas vezes, dividir-se em grupos separados não basta para resolver conflitos. Para descartar a coerção centralizada, nós temos que inventar novas formas de abordar disputas. Conflito entre as pessoas que se opõem ao Estado é uma das principais formas de preservar a sua supremacia2. Se quisermos criar espaços de liberdade, não devemos nos tornar tão divididos a ponto de não conseguirmos defender esses espaços, e não devemos resolver conflitos de forma que crie novos desequilíbrios de poder.

Uma das funções mais básicas da democracia é oferecer uma forma de encerrar disputas. Eleições, tribunais e a polícia, todos servem para decidir sobre os conflitos sem necessariamente resolvê-los; o Estado de Direito efetivamente impõe um modelo de lidar com as disputas onde o vencedor leva tudo. Ao centralizar a força, um Estado forte é capaz de obrigar os participantes de um conflito a suspender as hostilidades mesmo em termos que sejam mutuamente inaceitáveis. Isso lhe permite suprimir formas de luta que interferem no seu controle, como a guerra de classes, enquanto alimenta formas de conflito que sabotam a resistência horizontal e autônoma, como a guerra de gangues. Nós não podemos entender a violência religiosa e étnica da nossa época sem levar em consideração as formas em que as estruturas do Estado a provocam e a exacerbam.

Quando nós concedemos às instituições legitimidade inerente, isto nos oferece uma desculpa para não resolver os conflitos, confiando, ao invés disso, na interferência do Estado. Isso nos dá um álibi para encerrar as disputas à força e excluir aqueles que estão em desvantagem estrutural. Ao invés de tomarmos a iniciativa para resolver as coisas diretamente, nós acabamos em uma disputa por poder.

Se nós não reconhecemos a autoridade do Estado, não temos tais desculpas: devemos encontrar resoluções mutuamente satisfatórias ou então sofreremos as consequências de uma luta contínua. Isso nos dá um incentivo para levarmos a sério as necessidades e percepções de todas as partes, para desenvolver habilidades de reduzir as tensões. Não é necessário fazer com que todos concordem, mas temos que encontrar formas de viver com as diferenças que não produzam hierarquia, opressão ou antagonismo sem sentido. A primeira coisa a se fazer nessa direção é remover os incentivos que o Estado nos oferece para não resolvermos os conflitos.

Infelizmente, muitos dos modelos de resolução de conflitos que já foram utilizados pelas comunidades humanas agora estão perdidos, substituídos à força pelo sistema de tribunais das antigas Atenas e Roma. Podemos observar modelos experimentais de justiça transformativa para termos uma ideia das alternativas que teremos que desenvolver.

Recusando-se a Ser Governado

Para visualizar como seria uma sociedade horizontal e descentralizada, podemos imaginar redes de coletivos e assembleias que se interligam e se sobrepõem, nas quais as pessoas organizam-se para suprir suas necessidades diárias – comida, abrigo, cuidados médicos, recreação, discussão, companhia. Sendo interdependentes, elas teriam boas razões para resolver as disputas de forma amigável, mas ninguém poderia forçar outra pessoa a permanecer em um arranjo que não fosse saudável ou satisfatório. Em resposta às ameaças, elas se mobilizariam em formações temporárias, traçando conexões com outras comunidades ao redor do mundo.

De fato, muitas sociedades sem Estado se organizavam de forma um pouco parecida com essa ao longo da história humana. Hoje, modelos como esse continuam a aparecer nas interseções das tradições indígena, feminista e anarquista.

O princípio de que a maioria tem o direito de governar a minoria, praticamente resume todo governo em uma mera competição entre dois grupos de pessoas, sobre quais delas deverão ser as mestres, e quais as escravas; um competição que, por mais sangrenta, nunca poderá, pela natureza das coisas, ser encerrada, enquanto as pessoas se recusarem a ser escravas.”

Lysander Spooner, No Treason

Isso nos traz de volta ao nosso ponto de partida – à Atenas do dias modernos. Na cidade onde a democracia cresceu, milhares de pessoas agora se organizam sob faixas anarquistas em redes horizontais e descentralizadas. No lugar da exclusividade da antiga cidadania ateniense, a suas estruturas são abrangentes e sem fins definidos; elas abraçam os migrantes fugidos da Síria, pois elas sabem que o seu experimento em liberdade deve crescer ou perecer. No lugar do aparato coercitivo do governo, elas buscam manter uma distribuição descentralizada de poder reforçada por um compromisso coletivo de solidariedade. Ao invés de se unir para impor o governo da maioria, elas cooperam para prevenir a possibilidade de governo em si.

Este não é um modo de vida ultrapassado, mas o fim de um erro que dura muito tempo.

Da Democracia à Liberdade

Vamos voltar ao ponto alto dos levantes. Milhares de nós inundam as ruas, encontrando uns aos outros em novas formações que nos oferecem uma empolgante e desconhecida consciência do agir. De repente tudo se interliga: palavras e atos, ideias e sensações, histórias pessoass e eventos mundiais. Certeza – finalmente, nos sentimos em casa – e incerteza: finalmente, um horizonte aberto. Juntos, nos descobrimos capazes de coisas que nunca imaginamos.

O que é belo nesses momentos transcende qualquer sistema político. Os conflitos são tão essenciais como os momentos de inesperado consenso. Isso não é o funcionamento da democracia, é a experiência de liberdade – de pegar nossos destinos em nossas próprias mãos coletivamente. Nenhum conjunto de procedimentos poderia institucionalizar isto. É um prêmio que devemos arrancar das garras do hábito e da história repetidas vezes.

Da próxima vez que uma janela de oportunidades se abrir, ao invés de reinventarmos a “real democracia” mais uma vez, vamos deixar o nosso objetivo ser a liberdade, a liberdade em si.

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Fim da última parte.


1. “Autonomia” vem do grego antigo prefixo auto-, eu, e nomos, lei: quem dá a si mesmo a própria lei. Isto sugere uma compreensão da liberdade pessoal em que um aspecto do eu – digamos, o superego – permanente controla os outros e determina todo o comportamento. Kant define autonomia como auto-regulamentação, em que o indivíduo obriga-se a cumprir com as leis universais da moral objetiva em vez de agir de acordo com seus desejos. Por outro lado, um anarquista pode argumentar que devemos a nossa liberdade para a interação espontânea das forças inumeráveis dentro de nós, não para a nossa capacidade de forçar um único comando sobre nós mesmos. Qual dessas concepções de liberdade devemos abraçar é uma questão que terá repercussões sobre tudo, desde como podemos imaginar a liberdade em escala planetária até a forma como entendemos os movimentos das partículas subatômicas.

2. Por exemplo as Autodefensas no México que se organizaram para defender-se contra os cartéis que são praticamente tão opressivos quanto o governo em algumas partes do México, só para acabar se destruindo em guerras de gangues.

DA DEMOCRACIA À LIBERDADE – parte 3 de 4

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NOTA: Esse texto faz parte de uma série e um debate internacional analisando a Democracia sob uma perspectiva anarquista. Para saber mais e participar, veja o primeiro artigo.

Os Excluídos: Raça, Gênero e Democracia

Frequentemente ouvimos argumentos pela democracia baseados em que, por ser a forma mais inclusiva de governo, ela seria a melhor opção para combater o racismo e o sexismo em nossa sociedade. Entretanto, enquanto categorias de governantes/governados e incluídos/excluídos estiverem dentro da estrutura da política, codificadas como “maiorias” e “minorias”, mesmo quando as minorias são em maior número que as maiorias, desequilíbrios de poder nas linhas de raça e gênero irão sempre aparecer como disparidades no poder político. É por isso que mulheres, a população negra, e outros grupos ainda carecem de influência política proporcional aos seus números, apesar de já possuírem o tão alardeado direito ao voto por um século ou mais.

Nós não nos beneficiamos da democracia nos Estados Unidos. Nós apenas sofremos com a hipocrisia dos Estados Unidos.”

Malcolm X, “The Ballot or the Bullet”

Em The Abolition of White Democracy (A Abolição da Democracia Branca) o falecido Joel Olson apresenta uma empolgante crítica do que ele chama dedemocracia branca — a concentração de poder político democrático nas mãos de brancos através de uma aliança interclasses entre aqueles que possuem privilégio de raça. Mas ele aceita sem questionar o fato de que a democracia é o sistema mais desejado, assumindo que a supremacia branca é um obstáculo incidental ao seu funcionamento ao invés de uma consequência natural dela. Se a democracia é a forma ideal das relações igualitárias, por que ela tem sido implicada em racismo estrutural durante praticamente toda a sua existência?

Onde a política é construída como uma competição de soma-zero, aqueles que detém o poder abominarão a ideia de compartilhá-lo com outros. Leve em consideração os homens que se opuseram ao sufrágio universal e as pessoas brancas que se opuseram à extensão do direito de voto às pessoas de cor: as estruturas da democracia não desencorajam o seu preconceito, mas lhes dão um incentivo para institucionalizá-lo.

Olson traça o caminho pelo qual a classe dominante nutriu a supremacia racial para dividir a classe trabalhadora, mas ele negligencia a forma como as estruturas democráticas se prestaram a esse processo. Ele argumenta que nós devemos promover a solidariedade de classes como uma resposta a estas divisões, mas (como Bakunin argumentou contra Marx) a diferença entre os que governam e os governados é ela mesma uma diferença de classe – pense na antiga Atenas. A exclusão baseada em raça sempre foi o outro lado da moeda da cidadania.

“Ao erigir uma sociedade escravagista, os Estados Unidos criou a base econômica para o seu grande experimento em democracia… A indispensável classe trabalhadora dos Estados Unidos existia como propriedade além do reino da política, deixando os norte-americanos brancos livres para alardear o seu amor pela liberdade e pelos valores democráticos.”

Ta-Nehisi Coates, “The Case for Reparations”

Então a dimensão política da supremacia branca não é apenas uma consequência das disparidades raciais no poder econômico – ela também as produz. Divisões étnicas e raciais foram embutidas na nossa sociedade muito antes do surgimento do capitalismo; o confisco da propriedade de judeus durante a Inquisição financiou a colonização inicial das Américas, e a pilhagem das Américas e a escravização dos africanos providenciou o capital inicial para dar a partida no capitalismo na Europa e depois na América do Norte. É possível que as divisões raciais também possam sobreviver às próximas grandes mudanças econômicas e políticas – por exemplo, como assembleias compostas predominantemente por cidadãos brancos (ou judeus ou mesmo curdos).

Não existem soluções fáceis para este problema. Reformistas falam com frequência em tornar o nosso sistema político mais “democrático”, querendo dizer mais inclusivo e igualitário. Mas quando as suas reformas são realizadas de forma que legitimam e fortalecem as instituições do governo, isso só põe mais peso atrás dessas instituições quando elas atacam os perseguidos e marginalizados – veja o encarceramento em massa de pessoas negras desde o movimento pelos direitos civis. Malcolm X e outros defensores do separatismo negro tinham razão quando disseram que uma democracia fundada por brancos jamais poderia oferecer liberdade aos negros – não porque brancos e negros não possam coexistir, mas porque, ao transformar a política numa competição pelo poder político centralizado, a governança democrática cria conflitos que impedem a coexistência. Se os conflitos raciais de hoje pudessem ser resolvidos, seria através do estabelecimento de novas relações com base na descentralização, e não através da integração dos excluídos na ordem política dos incluídos1.

Enquanto houver polícia, de quem você acha que ela vai abusar? Enquanto houver prisões, quem você acha que vai estar lá dentro? Enquanto houver pobreza, quem você pensa que serão os pobres? É ingenuidade acreditar que podemos alcançar a igualdade em uma sociedade baseada na hierarquia. Você pode embaralhar as cartas, mas ainda é o mesmo baralho.”

Para Mudar Tudo

Enquanto nós entendermos o que estamos fazendo juntos politicamente como democracia – como o governo através de um processo de tomada de decisões legítimo – nós veremos essa legitimidade sendo invocada para justificar programas que são funcionalmente racistas, quer sejam políticas de um Estado ou decisões de um conselho. (Lembrem-se, por exemplo, das tensões entre os processos de tomada de decisões das assembleias gerais predominantemente brancas e dos acampamentos menos brancos dentro de muitos grupos do movimento Occupy). Somente quando nós dispensarmos a ideia de que qualquer processo político é inerentemente legítimo seremos capazes de nos despirmos do álibi final das disparidades raciais que sempre caracterizaram a governançademocrática. Isso nos dá uma nova perspectiva sobre as razões que levaram Lucy Parsons, Emma Goldman e outras mulheres a argumentar que a demanda pelo voto feminino estava errando o alvo. Por que alguém iria rejeitar a opção de participar na política eleitoral, imperfeita como é? A resposta mais curta é que elas queriam abolir o governo completamente, não torná-lo mais participativo. Mas ao olhar mais de perto, podemos encontrar algumas razões mais específicas pelas quais as pessoas preocupadas com a libertação das mulheres podem suspeitar da oferta.

A história das atividades políticas dos homens prova que elas não lhes deram absolutamente nada que ele não poderia ter alcançado de forma mais direta, menos custosa e mais duradoura. A propósito, toda pequena conquista que ele teve foi através da luta constante, uma briga incansável pela autoafirmação, e não através do sufrágio. Não existe nenhuma razão para crer que a mulher, na sua escalada pela emancipação, foi ou será ajudada pelo voto.”

Emma Goldman, “Women Suffrage”

Vamos voltar à polis e ao oikos – a cidade e o lar. Sistemas democráticos se baseiam em uma distinção formal entre as esferas pública e privada; a esfera pública é o local de todas tomadas de decisão legítimas, enquanto a esfera privada é excluída ou desacreditada. Em uma grande variedade de sociedades e eras, esta divisão foi profundamente baseada no gênero, com os homens dominando as esferas públicas – propriedade, trabalho assalariado, governo, chefia e locais públicos – enquanto as mulheres e outras pessoas fora do binarismo de gênero foram relegadas às esferas privadas: o lar, a cozinha, a família, criação dos filhos, trabalhadoras do sexo, cuidadoras e outras formas de trabalho invisível e não-remunerado.

Na medida em que os sistemas democráticos centralizam o poder e a autoridade para tomada de decisão na esfera pública, acabam reproduzindo os padrões patriarcais de poder. Isso é mais óbvio quando as mulheres são formalmente excluídas da política e do voto – mas mesmo quando não o são, elas frequentemente enfrentam obstáculos informais na esfera pública enquanto carregam responsabilidades desproporcionais na esfera privada.

A inclusão de mais participantes na esfera pública serve para legitimar ainda mais um espaço onde as mulheres e aquelas pessoas que não se conformam às normas de gênero operam em desvantagem. Se “democratização” significa uma mudança no poder de tomada de decisão de locais informais e privados para espaços políticos mais públicos, o resultado pode até mesmo desgastar algumas formas de poder feminino. Lembrem-se de como os abrigos para mulheres de iniciativa popular fundados na década de 1970 foram profissionalizados através de financiamento estatal a tal nível que, na década de 1990, as mulheres que os fundaram não estariam qualificadas nem para as vagas de emprego destinadas a iniciantes.

Assim, não podemos confiar no grau de participação formal feminina na esfera pública como um índice de libertação. Ao invés disso, podemos desconstruir a distinção baseada em gênero nas esferas pública e privada, validando aquilo que acontece nas relações, famílias, lares, vizinhanças, redes sociais e outros espaços que não são reconhecidos como parte da esfera política. Isso não significa formalizar estes espaços ou integrá-los em uma prática política supostamente neutra na questão de gênero, mas legitimar múltiplas maneiras de tomar decisões, reconhecendo os diversos locais de poder dentro da sociedade.

Existem duas formas de responder à dominação masculina na esfera política. A primeira é tentar tornar os espaços públicos formais o mais acessíveis e inclusivos possível – por exemplo, aceitando o registro de mulheres para votar, provendo creches, estabelecendo cotas de quem deve participar das decisões, avaliando quem deve ter permissão para falar nas discussões, ou até mesmo, como em Rojava, estabelecendo assembleias exclusivamente femininas com poder de veto. Esta estratégia busca implementar a igualdade, mas ainda pressupõe que todo poder deve ser investido na esfera pública. A alternativa é identificar locais e práticas de tomada de decisão que já empoderam as pessoas que não se beneficiam do privilégio masculino, e lhes dar maior influência. Esta abordagem aproxima-se de tradições feministas consagradas que priorizam as vidas e experiências das pessoas acima das estruturas e ideologias formais, reconhecendo a importância da diversidade e valorizando dimensões da vida que são geralmente invisíveis.

Essas duas abordagens podem somar-se e complementar uma à outra, mas somente se descartarmos a ideia de que toda legitimidade deve estar concentrada em um única estrutura institucional.

“De todas as ilusões modernas, o voto foi certamente o maior… O princípio de governo é em si errado: nenhuma pessoa tem o direito de governar outra.”– Lucy Parsons, “The Ballot Humbug

Argumentos Contra a Autonomia

Existem diversas objeções à ideia de que as estruturas de tomada de decisão devam ser voluntárias ao invés de obrigatórias, descentralizadas ao invés de esculpidas em pedra. Nos dizem que sem um mecanismo central para resolver conflitos, a sociedade se degradará em guerra civil; que é impossível se defender contra agressores centralizados sem uma autoridade central; que nós precisamos do aparato de um governo central para lidar com a opressão e a injustiça.

Na verdade, é tão provável que a centralização de poder provoque conflitos quanto que os solucione. Quando todos têm que ganhar influência nas estruturas do Estado para obter controle sobre as condições de sua própria vida, isso está fadado a gerar atritos. Em Israel/Palestina, Índia/Paquistão e outros lugares onde pessoas de uma variedade de religiões e etnias coexistiram de maneira autônoma em relativa paz, a necessidade imposta pela colonização de disputar poder político dentro da estrutura de um Estado único produziu prolongada violência entre etnias. Tais conflitos também eram comuns na política estadunidense do século 19 – considere a briga de gangues que rodeava as eleições em Washington e Baltimore, ou a luta pelo Kansas Sangrento. Se essas disputas não são mais comuns nos E.U.A., isso não é prova de que o Estado tenha resolvido todos os conflitos que gerou.

O governo centralizado, propagandeado como uma forma de resolver disputas, apenas consolida o poder de forma que os vitoriosos possam manter a sua posição através da força das armas. E quando as estrutura centralizadas colapsam, como aconteceu com a Iugoslávia durante a sua introdução à democracia na década de 1990, as consequências podem ser muito sangrentas. Na melhor das hipóteses, a centralização apenas adia as brigas – como uma dívida acumulando juros.

Mas será que as redes descentralizadas têm alguma chance contra as estruturas de poder centralizado? Se elas não têm, então toda essa discussão é irrelevante, já que qualquer tentativa de experimentar com a descentralização será esmagada por rivais mais centralizados.

A resposta ainda está por vir, mas os poderes centralizados de hoje não estão de forma alguma seguros da sua invulnerabilidade. Já em 2001, a RAND Corporation estava argumentando que redes descentralizadas, no lugar das hierarquias centralizadas, serão os atores importantes do século XXI. Nas últimas duas décadas, desde o assim chamado movimento antiglobalização até o Occupy e a experiência curda de autonomia em Rojava, as iniciativas que obtiveram sucesso em abrir espaço para novos experimentos (tanto democráticos quanto anarquistas) foram descentralizadas, enquanto tentativas mais centralizadas, como o Syriza, foram cooptadas quase imediatamente. Diversos estudiosos estão agora teorizando as vantagens e as características distintivas da organização em rede.

DIagramaAs vantagens da organização baseada em rede, descentralizada e autônoma sobre a democracia representativa e sobre a democracia direta baseada em assembleia.

E finalmente, há a questão de se uma sociedade necessita de um aparato político centralizado para ser capaz de colocar um fim na opressão e na injustiça. O primeiro discurso inaugural de Abraham Lincoln, feito em 1861 na véspera da Guerra Civil, é uma das expressões mais fortes deste argumento:

Claramente, a ideia central da secessão é a essência da anarquia. Uma maioria restringida por limitações constitucionais, e sempre capaz de mudar facilmente com cuidadosas mudanças dos sentimentos e opiniões públicas, é a única verdadeira soberania de um povo livre. Quem a rejeita o faz pela necessidade de migrar para a anarquia ou para o despotismo. A unanimidade é impossível. O governo da minoria, como um acordo permanente, é completamente inadmissível; tanto que, ao rejeitar o princípio da maioria, tudo que sobra é a anarquia ou o despotismo…

Fisicamente, nós não podemos nos separar. Não podemos separar nossas respectivas seções uns dos outros nem construir um muro impenetrável entre elas. Um marido e uma mulher podem se divorciar e afastarem-se um do outro, mas as diferentes partes de nosso país não podem fazer isso. Elas não podem senão ficar cara a cara, e a interação entre elas, seja amigável ou hostil, deve continuar. É possível então, tornar essa interação mais vantajosa ou mais satisfatória depois da separação do que era antes? Pessoas estranhas podem fazer tratados com mais facilidade do que amigos podem fazer leis? Podem os tratados serem mais policiados entre estranhos do que as leis entre amigos? Suponha que você vá para a guerra, você não pode lutar para sempre; e quando, depois de muita perda dos dois lados e nenhum ganho por nenhum, você pare de lutar, as mesmas velhas disputas estarão sobre vocês novamente.

Este país, com suas instituições, pertence às pessoas que nele habitam. Sempre que elas se cansarem do governo existente, elas podem exercer seu direito constitucional de alterá-lo ou o seu direito revolucionário de desmembrá-lo e derrubá-lo.”

Siga esta lógica o suficiente no mundo globalizado de hoje e você chegará na ideia de governo global: governo da maioria numa escala que abrange todo o planeta. Lincoln está certo, quando contraria os defensores do consenso, ao dizer que o governo unânime é impossível e que aqueles que não querem ser governados por maiorias devem escolher entre o despotismo e a anarquia. O seu argumento de que estranhos não podem fazer tratados mais facilmente do que amigos fazem leis soa convincente num primeiro momento. Mas amigos não impõem leis uns sobre os outros – leis são feitas para serem impostas sobre as partes mais fracas, enquanto tratados são feitos entre iguais. Governo não é algo que acontece entre amigos, não mais do que um povo livre precisa de soberano. Se tivermos que escolher entre despotismo, governo da maioria e anarquia, anarquia é o mais próximo da liberdade – aquilo que Lincoln chama de nosso “direito revolucionário” de derrubar governos.

Quando associou anarquia com a separação dos estados do sul dos EUA, Lincoln estava elaborando uma crítica da autonomia que ainda ecoa nos dias de hoje. Se não fosse pelo governo federal, diz o argumento, a escravidão nunca teria sido abolida, nem a segregação teria terminado e os direitos civis instaurados para as pessoas de cor. Essas medidas contra a injustiça tiveram que ser introduzidas à força pelos exércitos da União e, um século mais tarde, pela Guarda Nacional. Neste contexto, defender a descentralização parece significar aceitar a escravidão, a segregação e a Ku Klux Klan. Sem um corpo central de governo legítimo, qual mecanismo poderia impedir as pessoas de agirem de forma opressiva?

Existem vários erros aqui. O primeiro equívoco é óbvio: das três opções de Lincoln – despotismo, governo da maioria, e anarquia – os separatistas representavam o despotismo, não a anarquia. Da mesma maneira, é ingenuidade acreditar que o aparato do governo central será utilizado somente para defender a liberdade. A mesma Guarda Nacional que supervisionou a integração do sul, usou munição de verdade para conter a revolta dos negros por todo o país; hoje existem tantas pessoas negras nas prisões dos E.U.A. quanto haviam escravos antes. E, finalmente, não precisamos despejar toda a legitimidade em um único corpo de governo para poder agir contra a opressão. Ainda podemos agir – só devemos fazê-lo sem o pretexto de estar fazendo cumprir a lei.

Opor-se à centralização do poder e da legitimidade não significa retirar-se e ficar calado. Alguns conflitos devem ocorrer, não há como evitá-los. Eles surgem de diferenças verdadeiramente irreconciliáveis, e a imposição de uma falsa unidade apenas os adia. Em seu discurso inaugural, Lincoln estava pleiteando em nome do Estado a suspensão do conflito entre abolicionistas e defensores da escravidão – um conflito que era inevitável e necessário, que já havia sido adiado por décadas de tolerância inaceitável. Enquanto isso, abolicionistas como Nat Turner e John Brown foram capazes de agir decisivamente sem a necessidade de uma autoridade política central – na verdade, eles só foram capazes de agir assim pois não reconheciam tal autoridade. Se não fosse a pressão gerada por ações autônomas como as suas, o governo federal nunca teria intervindo no sul; e se mais pessoas tivessem tomado iniciativas como eles fizeram, a escravidão não teria sido possível e a Guerra Civil não teria sido necessária.

Em outras palavras, o problema não foi muita anarquia, mas muito pouca. Foi a ação autônoma que trouxe à tona o assunto da escravidão, não as deliberações democráticas. E mais, se houvessem mais defensores da anarquia, ao invés de do governo da maioria, não teria sido possível para os brancos do sul reconquistarem a supremacia política depois da Reconstrução.

Um outro fato merece ser mencionado. Depois de seu discurso inaugural, Lincoln se dirigiu a um comitê de homens de cor para defender que eles deviam emigrar para fundar outra colônia como a Libéria com esperança que os outros negros da América do Norte os seguissem. Relativo às relações entre negros emancipados e os cidadãos brancos estadunidenses, ele argumentou:

É melhor para nós ficarmos separados… Existe uma falta de vontade por parte do nosso povo, por mais cruel que seja, de que vocês, pessoas de cor livres, fiquem conosco.”

Então, na cosmologia política de Lincoln, a polis dos cidadãos brancos não pode se separar, mas assim que os escravos negros do oikos não tiverem mais sua função econômica, é melhor eles irem embora. Isso deixa as coisas bem claras: a nação é indivisível, mas os excluídos são descartáveis. Se os escravos libertados depois da Guerra Civil tivessem emigrado para a África, eles teriam chegado bem a tempo de vivenciar os horrores da colonização europeia, com uma taxa de morte de dez milhões só no Congo Belga. A solução correta para tais catástrofes não é integrar o mundo todo em uma única república governada pela maioria, mas combater todas instituições que dividem as pessoas em maiorias e minorias – governantes e governados – por mais democráticas que possam ser.

Obstáculos Democráticos à Libertação

Exceto se houver guerra ou milagre, a legitimidade de todo governo constituído está sempre sendo corroída; ela só pode ser corroída. Não importa as promessas do Estado, nada pode compensar por termos que abrir mão do controle sobre nossas vidas. Toda reclamação específica ressalta este problema sistêmico.

E é aqui que entra a democracia: outra eleição, outro governo, outro ciclo de otimismo e decepção.

A democracia é uma ótima forma de garantir a legitimidade do governo, quando ele faz um mau trabalho e não dá o que o povo quer. Em uma democracia em funcionamento, manifestações em massa desafiam os governantes. Mas não desafiam a natureza fundamental do sistema político do Estado.”

Noah Feldman, “Tunisia’s Protests Are Different This Time”

Mas isso nem sempre pacifica a população. Na última década vimos movimentos e insurreições por todo o mundo – de Oaxaca a Túnis, de Istambul ao Rio de Janeiro, de Kiev a Hong Kong – nas quais os desiludidos e os descontentes tentam resolver os problemas eles mesmos. A maioria delas girou em torno do padrão de mais democracia e de melhor democracia, embora isso não tenha sido unanimidade.

Considerando quanto poder o mercado e o governo têm sobre nós, é tentador imaginar que nós poderíamos de alguma forma virar o jogo e governá-los. Mesmo aquelas pessoas que não acreditam que é possível para o povo governar o governo acabam governando a única coisa que lhes resta – a sua resistência a ele. Abordando os movimentos de protesto como experimentos em democracia direta, eles pretendem prever as estruturas de um mundo mais democrático.

Mas e se a democracia prefigurativa for parte do problema? Isso explicaria por que tão poucos desses movimentos foram capazes de montar uma oposição irreconciliável com as estruturas que pretendem opor. Com as discutíveis exceções de Chiapas e Rojava, todos eles foram derrotados (Occupy), reintegrados ao governo estabelecido (Syriza, Podemos) ou, pior ainda, derrubaram o governo sem atingir qualquer mudança verdadeira na sociedade (Tunísia, Egito, Líbia, Ucrânia).

Quando um movimento busca de legitimar na base dos mesmos princípios que a democracia estatal ele tenta vencer o Estado em seu próprio jogo. Mesmo que ele obtenha sucesso, a recompensa pela vitória é ser cooptado e institucionalizado – quer seja dentro das estruturas existentes do governo ou através de sua reinvenção. Portanto, movimentos que começam como revoltas contra o Estado acabam o recriando.

Ocasionalmente você se rebela, mas é apenas para recomeçar a fazer a mesma coisa do zero.”

Albert Libertad, “Voters: You Are the Real Criminals”

Isso pode terminar de duas maneiras diferentes. Há os movimentos que se tornam ineficientes ao alegarem que são mais democráticos, mais transparentes ou mais representativos que as autoridades; movimentos que chegam ao poder através da política eleitoral, somente para trair seus objetivos originais; movimentos que propõe táticas diretamente democráticas que acabam sendo igualmente úteis àqueles que buscam o poder estatal; e movimentos que derrubam governos, somente para substituí-los. Vamos analisar cada um deles.

Se limitarmos nossos movimentos ao que a maioria dos participantes conseguir concordar com de antemão, talvez não sejamos capazes nem de tirá-los do papel. Quando grande parte da população aceita a legitimidade do governo e suas leis, a maioria das pessoas acha que não tem o direito de fazer nada que desafie a estrutura de poder existente, não importa o quão mal ela os trate. Consequentemente, um movimento que toma suas decisões pelo voto da maioria ou pelo consenso pode ter dificuldade em concordar em utilizar táticas que não sejam puramente simbólicas. Você consegue imaginar os residentes de Ferguson, no Missouri tendo uma reunião para chegar a um consenso se eles incendeiam ou não a primeira loja de conveniência e lutam com a polícia? E ainda assim, foram essas as ações que deram início ao movimento que se tornou conhecido como Black Lives Matter (Vidas Negras Importam). As pessoas geralmente têm que experimentar uma coisa nova para se abrirem para ela; é um equívoco confinar um movimento inteiro ao que já é familiar à maioria dos participantes.

Na mesma lógica, se insistirmos que nossos movimentos devem ser completamente transparentes, isso significa deixar que as autoridades ditem quais tática nós podemos usar. Em condições de infiltração e vigilância bastante difundidas, conduzir todo processo de tomada de decisões em público com completa transparência é um convite a repressão a qualquer um que seja percebido como uma ameaça ao status quo. Quanto mais público e transparente for o mecanismo de tomada de decisão, mais conservadoras provavelmente serão as suas ações, mesmo quando isso contradiz a sua razão de ser – pense em todas coalizões ambientais que nunca tomaram uma única medida para parar as atividades que causam as mudanças climáticas. Dentro da lógica democrática, faz sentido exigir transparência do governo, já que supostamente ele deve representar e responder ao povo. Mas fora dessa lógica, ao invés de exigir que os participantes dos movimentos sociais representem e respondam uns aos outros, devemos procurar maximizar a autonomia com a qual eles podem agir.

Se nós alegarmos legitimidade baseada no fato de que nós representamos o público, nós oferecemos às autoridades uma maneira fácil de nos derrotar, enquanto pavimentamos o caminho para que outros cooptem os nossos esforços. Antes da introdução do sufrágio universal, era possível sustentar que um movimento representava a vontade do povo, mas hoje em dia uma eleição pode levar mais gente às urnas do que o mais massivo dos movimentos consegue mobilizar nas ruas. Os vencedores das eleições serão sempre capazes de alegar que representam mais pessoas do que as que participam dos movimentos2. Da mesma forma, os movimentos que se propõem a representar os setores mais oprimidos da sociedade podem ser vencidos ao serem incluídos como representantes simbólicos desses setores nas instituições de poder. Enquanto nós validarmos a ideia de representação, algum novo partido ou político poderá usar nossa retórica para subir ao poder. Nós não devemos alegar que representamos o povo – devemos afirmar que ninguém tem o direito de nos governar.

O que acontece quando um movimento chega ao poder através da política eleitoral? A vitória de Lula e de seu Partido dos Trabalhadores (PT) no Brasil parece apresentar o melhor exemplo possível em que um partido baseado na organização de base popular e radical assumiu o controle do Estado. Na época, o Brasil possuía alguns dos movimentos sociais mais poderosos do mundo, incluindo o Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST) que com 1,5 milhão de integrantes defende a bandeira da reforma agrária; muitos desses movimentos eram interconectados com o PT. Mas depois que Lula assumiu a presidência em 2002, os movimentos sociais entraram em um grande declínio que durou até 2013. Membros do PT largaram a organização local para assumir posições no governo, enquanto as necessidades da política pragmatista (realpolitik) preveniram Lula de dar concessões aos movimentos que ele apoiou anteriormente. O MST havia forçado o governo conservador que antecedeu Lula a legalizar muitas ocupações de terras, mas ele não obteve nenhum avanço sob o governo de Lula. Este padrão é recorrente por toda América Latina quando políticos supostamente radicais traíram os movimentos sociais que os elegeram. Hoje, os movimentos sociais mais poderosos no Brasil são os protestos de direita contra o Partido dos Trabalhadores. Não existem atalhos eleitorais para a liberdade.

E se ao invés de buscarmos o poder estatal, nós nos focarmos em promover modelos diretamente democráticos como assembleias de bairro? Infelizmente, essas práticas podem ser apropriadas para servirem a diversas agendas. Depois das revoltas na Eslovênia em 2012, enquanto as assembleias de bairro auto-organizadas continuaram a se encontrar em Ljubljana, uma ONG financiada pelas autoridades locais começou a organizar assembleias em um bairro “negligenciado” como um projeto piloto de “revitalização” da área, com a intenção explícita de trazer cidadãos descontentes de volta ao diálogo com o governo. Durante a revolução ucraniana de 2014, os partidos fascistas Svoboda e Right Sector ganharam importância através das assembleias democráticas na Maidan ocupada. Em 2009, membros do partido fascista grego Aurora Dourada juntaram-se à população local no bairro ateniense de Agios Panteleimonas para organizar uma assembleia que coordenou ataques a imigrantes e anarquistas. Se quisermos fomentar a inclusão e a autodeterminação, não basta propagar a retórica e os procedimentos da democracia participativa3. Precisamos difundir um contexto que se oponha ao Estado e a outras formas de poder hierárquico.

Até mesmo estratégias explicitamente revolucionárias podem ser revertidas para favorecer os poderes mundiais em nome da democracia. Da Venezuela à Macedônia, vimos que agentes do governo e interesses disfarçados canalizam a genuína dissidência popular em movimentos sociais artificiais com o objetivo de encurtar o ciclo eleitoral. Geralmente, o objetivo é forçar o partido governante a renunciar para que seja substituído por um governo mais “democrático” — ou seja, um governo mais simpático aos objetivos dos Estados Unidos ou da União Europeia. Tais movimentos geralmente se focam na “corrupção”, sugerindo que o sistema funcionaria direito se as pessoas certas estivessem no poder. Quando vamos às ruas, para não correr o risco de nos tornarmos marionetes de alguma iniciativa da política estrangeira, não devemos nos mobilizar contra qualquer governo em particular, mas contra a ideia de governo em si.

A revolução no Egito ilustra dramaticamente o beco sem saída da revolução democrática. Depois de centenas de pessoas perderem suas vidas para derrubar o ditador Hosni Mubarak e instituir a democracia, as eleições populares trouxeram outro autocrata ao poder, Mohamed Morsi. Um ano depois, em 2013, nada havia melhorado, e as pessoas que haviam iniciado a revolução foram às ruas mais uma vez para rejeitar os resultados da democracia, forçando o exército egípcio a depor Morsi. Agora, o exército continua sendo quem governa o país de fato, e a mesma opressão e injustiça que inspirou duas revoluções continua. As opções representadas pelos militares, por Morsi e pelas população rebelada são as mesmas que Lincoln descreveu em seu discurso inaugural: tirania, governo da maioria e anarquia.

Aqui, na fronteira das lutas contra a pobreza e a opressão, nós sempre nos levantamos contra o Estado em si. Enquanto aceitarmos que nos governem, o Estado irá ficar alternando entre a tirania e o governo da maioria conforme necessário — duas expressões do mesmo princípio. O Estado pode assumir muitas formas; como a vegetação, ele pode morrer, para crescer novamente a partir de suas raízes. Ele pode assumir a forma de uma monarquia ou da democracia parlamentar, de uma ditadura revolucionária ou de um conselho provisório; quando as autoridades tiverem fugido e o exército tiver se amotinado, o Estado pode permanecer como um germe transmitido por defensores da ordem e do protocolo em uma assembleia geral aparentemente horizontal. Todas estas formas, por mais democráticas que sejam, podem se regenerar em um regime capaz de esmagar a liberdade e a autodeterminação.

A única maneira garantida de evitarmos a cooptação, a manipulação e o oportunismo é nos recusando a legitimizar qualquer forma de governo. Quando as pessoas solucionam seus problemas e suprem suas necessidades diretamente através de estruturas flexíveis, horizontais e descentralizadas, não existem líderes a ser corrompidos, nem estruturas formais que possam ser calcificadas, nem um processo único que possa ser sequestrado. Livre-se das concentrações de poder e aqueles que almejam o poder para si não poderão se apropriar da sociedade. Um povo ingovernável provavelmente terá que se defender de aspirantes a tiranos, mas nunca verá sua força sendo utilizada pelos esforços deles para governar.

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Fim da terceira parte.


1. Nessa questão podemos concordar com Booker T. Washington, quando ele disse: “O experimento Reconstrução na democracia racial falhou porque começou no ponto errado, enfatizando meios políticos e decretos de direitos civis em vez de meios económicos e auto-determinação. “

2. No final de maio de 1968, o anúncio de eleições antecipadas quebrou a onda de greves e ocupações que varreram a França; o espetáculo da maioria dos cidadãos franceses que votando no partido do presidente de Gaulle foi suficiente para dissipar toda a esperança de revolução. Isso ilustra como as eleições servem como um espetáculo que representa os cidadãos uns perante os outros enquanto participantes no sistema dominante.

3. Como as crises econômicas crescem junto com a descrença na política de representativa, vemos os governos oferecem participação mais direta na tomada de decisões para pacificar o público. Assim como as ditaduras na Grécia, Espanha, Brasil e Chile foram forçados a transição para governos democráticos para neutralizar os movimentos de oposição, o Estado está abrindo novos papéis para aqueles que de outra forma poderiam liderar a oposição a ele. Se somos diretamente responsáveis por fazer o sistema político funcionar, vamos culpar a nós mesmos quando ele falhar, não o sistema em si. Isto explica as novas experiências com orçamentos “participativos” de Porto Alegre para Poznań. Na prática, os participantes raramente têm qualquer influência sobre os gestores da cidade; no máximo, eles podem atuar como consultores, ou votar em um mísero 0,1% dos fundos da cidade. O propósito real do orçamento participativo é redirecionar a atenção popular a partir das falhas do governo para o projeto de torná-lo mais democrático.