DA DEMOCRACIA À LIBERDADE – parte 4 de 4

 

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NOTA: Esse texto faz parte de uma série e um debate internacional analisando a Democracia sob uma perspectiva anarquista. Para saber mais e participar, veja o primeiro artigo.

Rumo à Liberdade: Pontos de Partida

O anarquismo não representa a forma mais radical de democracia, mas um paradigma totalmente diferente de ação coletiva.”

Uri Gordon, Anarquia Viva!

A clássica defesa da democracia é de que ela é a pior forma de governo — com exceção de todas as outras. Mas se o governo em si é o problema, precisamos voltar à prancheta.

Reimaginar a humanidade sem governo é um projeto ambicioso; dois séculos de teoria anarquista apenas riscam o verniz. Para o propósito desta análise, vamos concluir com alguns valores básicos que podem nos levar para além da democracia, e algumas propostas gerais sobre como entender o que podemos fazer ao invés de governar. A maior parte do trabalho ainda está por ser feita.

Horizontalidade, Descentralização, Autonomia, Anarquia

Se pararmos para analisar, a democracia não alcança os valores que nos atraíram nela em primeiro lugar — igualdade, inclusão, autodeterminação. Ao lado destes valores, devemos adicionar horizontalidade, descentralização e autonomia como suas contrapartes indispensáveis.

A horizontalidade se popularizou muito desde o fim do século XX. Começando com a insurreição Zapatista e ganhando impulso com o movimento anti-globalização e a rebelião na Argentina, a ideia de estruturas sem lideranças espalhou-se até mesmo para o mundo dos negócios.

Mas a descentralização é tão importante quando a horizontalidade se não quisermos ficar presos em uma tirania de iguais, na qual todo mundo tem que concordar com algo para que alguém possa fazê-lo. Ao invés de um único processo pelo qual toda iniciativa tem que passar, a descentralização significa diversos locais de tomada de decisão e diversas formas de legitimidade. Desta maneira, quando o poder for distribuído de forma desigual em um dado contexto, isso poderá ser contrabalanceado em outro local. A descentralização significa preservar as diferenças – a diversidade ideológica e estratégica é uma fonte de força para os movimentos e comunidades, assim como a biodiversidade no mundo natural. Nós não devemos nem nos segregar em grupos homogêneos sob o pretexto da afinidade nem reduzir nossas políticas aos mínimos denominadores comuns.

A descentralização implica em autonomia – a habilidade de agir livremente a partir da sua própria iniciativa. A autonomia pode ser aplicada a qualquer nível ou escala – uma única pessoa, um bairro, um movimento, uma região inteira. Para ser livre, você precisa de controle sobre o que está imediatamente ao seu redor e sobre os detalhes de sua vida diária; quanto mais autossuficiente você for, mais garantida está a sua autonomia. Isso não precisa significar suprir todas as suas necessidades de forma independente; pode também significar o tipo de interdependência que te dá influência sobre as pessoas de quem você depende. Nenhuma instituição única deveria ser capaz de monopolizar o acesso a recursos ou relações sociais. Uma sociedade que promove autonomia exige o que um engenheiro chamaria de redundância: uma grande gama de opções e possibilidades em todo aspecto da vida.

Se queremos fomentar a liberdade, não basta afirmarmos somente a autonomia1. Uma nação-estado ou partido político pode afirmar autonomia; assim como os nacionalistas e os racistas. O fato de que uma pessoa ou grupo é autônomo nos diz muito pouco se as relações que cultivam com outros são igualitárias ou hierárquicas, inclusivas ou exclusivas. Se quisermos maximizar a autonomia para todas pessoas ao invés de simplesmente buscarmos ela para nós mesmos, temos que criar um contexto social no qual ninguém é capaz de acumular poder institucional sobre os outros. Temos que criar anarquia.

Desmistificando as Instituições

As instituições existem para nos servir, e não o contrário. Elas não têm nenhum direito inerente à nossa obediência. Nós nunca devemos investir nelas mais legitimidade além das nossas necessidades e desejos. Quando os nossos desejos entram em conflito com os conflitos de outras pessoas, podemos ver se um processo institucional pode produzir uma solução que satisfaça a todas; mas assim que damos a uma instituição o poder de resolver nossos conflitos e de ditar nossas decisões, estamos abdicando de nossa liberdade.

Isto não é uma crítica de algum modelo organizacional específico, ou uma defesa das estruturas “informais” ao invés das “formais”. Em vez disso, é um pedido de que tratemos todos os modelo como provisórios – que os reavaliemos e os reinventemos constantemente. Onde Thomas Paine queria coroar a lei como rainha, onde Rousseau teorizou o contrato social e onde os entusiastas mais recentes do sonho capitalista de uma sociedade baseada somente em contratos, nós contrapomos que quando as relações estão verdadeiramente no melhor interesse de todas participantes, não há a necessidade de leis ou contratos.

Da mesma forma, este não é um argumento em favor do mero individualismo, nem de tratar as relações como descartáveis, nem de nos organizarmos apenas com aqueles com quem compartilhamos as mesmas opiniões. Em um mundo superlotado e independente, não podemos nos recusar a coexistir ou coordenar-nos com os outros. O negócio é simplesmente que não devemos buscar legislar as relações.

Ao invés de deferirmos uma manual ou um protocolo, podemos avaliar as instituições de forma constante: elas recompensam a cooperação, ou a competição? Elas distribuem a iniciativa, ou criam gargalos de poder? Elas oferecem a cada participante a oportunidade de alcançar todo o seu potencial em seus próprios termos, ou impõem imperativos externos? Elas facilitam a resolução de conflitos em termos mutualmente aceitáveis, ou punem aqueles que fogem de um sistema codificado?

Ele expressou para nós que nunca deveríamos nos permitir sermos tentados por qualquer consideração de reconhecer o direito à existência de leis e instituições se a nossa consciência os condenava. Ele nos advertiu a não nos importarmos se uma maioria, não importa o quão grande, se opuser aos nossos princípios e opiniões; as maiores maiorias eram algumas vezes apenas quadrilhas organizadas.”

August Bondi, escrevendo sobre John Brown

Criando Espaços de Encontro

Ao invés de locais formais para a tomada de decisões centralizada, nós propomos uma variedade de espaços de encontro onde as pessoas podem se abrir para a influência umas das outras e encontrar outras que compartilham as suas prioridades. Encontro significa transformação mútua: estabelecer pontos comuns de referência, preocupações comuns. O espaço de encontro não é um corpo representativo vestido da autoridade para fazer as decisões por outras pessoas, nem um órgão governante usando a decisão da maioria ou o consenso. É uma oportunidade para as pessoas experimentarem agir em diferentes configurações de forma voluntária.

A assembleia geral que aconteceu imediatamente antes dos protestos contra o Tratado de Livre Comércio das Américas em 2001 em Quebec, Canadá, foi um clássico espaço de encontro. Esta reunião juntou uma vasta gama de grupos autônomos que vieram de todos os lugares do mundo protestar contra o tratado. Ao invés de tentar tomar decisões vinculativas, os participantes apresentaram as iniciativas que os seus grupos haviam preparado e se coordenaram para o benefício mútuo sempre que possível. Muitas decisões foram tomadas depois em discussões informais entre os grupos. Através desses meios, milhares de pessoas conseguiram sincronizar as suas ações sem a necessidade de uma liderança central, sem dar a polícia muita ideia da grande variedade de planos que iriam se desenrolar. Se a assembleia geral tivesse empregado um modelo organizacional destinado a produzir unidade e centralização, os participantes poderiam ter passado a noite inteira discutindo de forma infrutífera sobre objetivos, estratégias e quais táticas permitir.

A maioria dos movimentos sociais das últimas duas décadas foram modelos híbridos sobrepondo espaços de encontro com alguma forma de democracia. No Occupy, por exemplo, os acampamentos serviam como espaços de encontro sem fins definidos, enquanto as assembleias gerais tinham a intenção formal de funcionar como órgãos diretamente democráticos para a tomada de decisões. A maioria destes movimentos alcançou os seus maiores efeitos porque os encontros que eles facilitaram abriram oportunidades para ação autônoma, não porque eles centralizaram a atividade do grupo através da democracia direta. Se nós abordarmos o encontro como a força motriz destes movimentos, ao invés de como material bruto para ser moldado pelo processo democrático, isso pode nos ajudar a priorizar o que fazemos melhor.

Anarquistas frustrados com as contradições do discurso democrático têm algumas vezes se recolhido para se organizarem baseados apenas na afinidade preexistente. Mas a segregação nos leva à estagnação e à rixas. É melhor nos organizarmos com base nas nossas condições e necessidades para podermos entrar em contato com todas as outras pessoas que os partilham conosco. Somente quando compreendermos a nós mesmos como nós dentro de coletividades dinâmicas, ao invés de entidades à parte possuidoras de interesses estáticos, poderemos fazer algum sentido da rápida metamorfose pela qual as pessoas passam durante experiências como o movimento Occupy – e o tremendo poder do encontro de nos transformar se estivermos abertos a isso.

Cultivando Coletividade, Preservando a Diferença

Se nenhuma instituição, contrato ou lei deve ser capaz de ditar as nossas decisões, como iremos concordar sobre quais responsabilidades nós temos uns com os outros?

Alguma pessoas sugerem uma distinção entre grupos “fechados”, nos quais os participantes concordam em responder uns aos outros pelas suas ações, e grupos “abertos” que não precisam alcançar o consenso. Mas isso nos leva à pergunta: como traçamos uma linha entre os dois? Se nós respondemos aos nossos companheiros em um grupo fechado somente até o momento em que decidimos deixá-lo, e podemos deixá-lo a qualquer momento, isso não é muito diferente de participar de um grupo aberto. Ao mesmo tempo, nós estamos todos envolvidos, queiramos ou não, em um grupo fechado compartilhando um único espaço inescapável: o planeta. Então não é uma questão de distinguir os espaços nos quais temos que responder aos outros dos espaços nos quais podemos agir livremente. A questão é como fomentar tanto a responsabilidade quanto a autonomia em todos os níveis da escala.

Com este fim, nós partimos para criar coletividades mutuamente gratificantes em todos os níveis da sociedade – espaços nos quais as pessoas se identificam umas com as outras e tem motivos para fazer a coisa certa para com os outros. Elas podem assumir muitas formas, de cooperativas de habitação a assembleias de bairro a rede internacionais. Ao mesmo tempo, nós reconhecemos que teremos que reconfigurá-las constantemente de acordo com quanta intimidade e interdependência se provarem benéficas para os participantes. Quando uma configuração precisar mudar, não precisa ser um sinal de fracasso: pelo contrário, isso mostra que os participantes não estão competindo por hegemonia. Ao invés de tratar a tomada de decisões em grupo como uma busca pela unanimidade, nós podemos abordá-la como um espaço para que as diferenças se manifestem, para que os conflitos aconteçam e para as transformações acontecerem quando diferentes constelações sociais convergem e divergem. Descordar e dissociar-se pode ser tão desejável quanto chegar a um acordo, contanto que aconteçam pelas razões certas; as vantagens de se organizar em maiores números devem ser o suficiente para desencorajar as pessoas de se dividirem gratuitamente.

Nossas instituições devem nos ajudar a trazer à tona nossas diferenças, e não suprimi-las ou submergi-las. Algumas testemunhas que voltaram de Rojava relatam que quando uma assembleia lá não consegue atingir o consenso, ela se divide em dois, dividindo os recursos entre as partes. Se isto for verdade, oferece um modelo de associação voluntária que é um grande avanço sobre a unidade coerciva da democracia.

Resolvendo conflitos

Algumas vezes, dividir-se em grupos separados não basta para resolver conflitos. Para descartar a coerção centralizada, nós temos que inventar novas formas de abordar disputas. Conflito entre as pessoas que se opõem ao Estado é uma das principais formas de preservar a sua supremacia2. Se quisermos criar espaços de liberdade, não devemos nos tornar tão divididos a ponto de não conseguirmos defender esses espaços, e não devemos resolver conflitos de forma que crie novos desequilíbrios de poder.

Uma das funções mais básicas da democracia é oferecer uma forma de encerrar disputas. Eleições, tribunais e a polícia, todos servem para decidir sobre os conflitos sem necessariamente resolvê-los; o Estado de Direito efetivamente impõe um modelo de lidar com as disputas onde o vencedor leva tudo. Ao centralizar a força, um Estado forte é capaz de obrigar os participantes de um conflito a suspender as hostilidades mesmo em termos que sejam mutuamente inaceitáveis. Isso lhe permite suprimir formas de luta que interferem no seu controle, como a guerra de classes, enquanto alimenta formas de conflito que sabotam a resistência horizontal e autônoma, como a guerra de gangues. Nós não podemos entender a violência religiosa e étnica da nossa época sem levar em consideração as formas em que as estruturas do Estado a provocam e a exacerbam.

Quando nós concedemos às instituições legitimidade inerente, isto nos oferece uma desculpa para não resolver os conflitos, confiando, ao invés disso, na interferência do Estado. Isso nos dá um álibi para encerrar as disputas à força e excluir aqueles que estão em desvantagem estrutural. Ao invés de tomarmos a iniciativa para resolver as coisas diretamente, nós acabamos em uma disputa por poder.

Se nós não reconhecemos a autoridade do Estado, não temos tais desculpas: devemos encontrar resoluções mutuamente satisfatórias ou então sofreremos as consequências de uma luta contínua. Isso nos dá um incentivo para levarmos a sério as necessidades e percepções de todas as partes, para desenvolver habilidades de reduzir as tensões. Não é necessário fazer com que todos concordem, mas temos que encontrar formas de viver com as diferenças que não produzam hierarquia, opressão ou antagonismo sem sentido. A primeira coisa a se fazer nessa direção é remover os incentivos que o Estado nos oferece para não resolvermos os conflitos.

Infelizmente, muitos dos modelos de resolução de conflitos que já foram utilizados pelas comunidades humanas agora estão perdidos, substituídos à força pelo sistema de tribunais das antigas Atenas e Roma. Podemos observar modelos experimentais de justiça transformativa para termos uma ideia das alternativas que teremos que desenvolver.

Recusando-se a Ser Governado

Para visualizar como seria uma sociedade horizontal e descentralizada, podemos imaginar redes de coletivos e assembleias que se interligam e se sobrepõem, nas quais as pessoas organizam-se para suprir suas necessidades diárias – comida, abrigo, cuidados médicos, recreação, discussão, companhia. Sendo interdependentes, elas teriam boas razões para resolver as disputas de forma amigável, mas ninguém poderia forçar outra pessoa a permanecer em um arranjo que não fosse saudável ou satisfatório. Em resposta às ameaças, elas se mobilizariam em formações temporárias, traçando conexões com outras comunidades ao redor do mundo.

De fato, muitas sociedades sem Estado se organizavam de forma um pouco parecida com essa ao longo da história humana. Hoje, modelos como esse continuam a aparecer nas interseções das tradições indígena, feminista e anarquista.

O princípio de que a maioria tem o direito de governar a minoria, praticamente resume todo governo em uma mera competição entre dois grupos de pessoas, sobre quais delas deverão ser as mestres, e quais as escravas; um competição que, por mais sangrenta, nunca poderá, pela natureza das coisas, ser encerrada, enquanto as pessoas se recusarem a ser escravas.”

Lysander Spooner, No Treason

Isso nos traz de volta ao nosso ponto de partida – à Atenas do dias modernos. Na cidade onde a democracia cresceu, milhares de pessoas agora se organizam sob faixas anarquistas em redes horizontais e descentralizadas. No lugar da exclusividade da antiga cidadania ateniense, a suas estruturas são abrangentes e sem fins definidos; elas abraçam os migrantes fugidos da Síria, pois elas sabem que o seu experimento em liberdade deve crescer ou perecer. No lugar do aparato coercitivo do governo, elas buscam manter uma distribuição descentralizada de poder reforçada por um compromisso coletivo de solidariedade. Ao invés de se unir para impor o governo da maioria, elas cooperam para prevenir a possibilidade de governo em si.

Este não é um modo de vida ultrapassado, mas o fim de um erro que dura muito tempo.

Da Democracia à Liberdade

Vamos voltar ao ponto alto dos levantes. Milhares de nós inundam as ruas, encontrando uns aos outros em novas formações que nos oferecem uma empolgante e desconhecida consciência do agir. De repente tudo se interliga: palavras e atos, ideias e sensações, histórias pessoass e eventos mundiais. Certeza – finalmente, nos sentimos em casa – e incerteza: finalmente, um horizonte aberto. Juntos, nos descobrimos capazes de coisas que nunca imaginamos.

O que é belo nesses momentos transcende qualquer sistema político. Os conflitos são tão essenciais como os momentos de inesperado consenso. Isso não é o funcionamento da democracia, é a experiência de liberdade – de pegar nossos destinos em nossas próprias mãos coletivamente. Nenhum conjunto de procedimentos poderia institucionalizar isto. É um prêmio que devemos arrancar das garras do hábito e da história repetidas vezes.

Da próxima vez que uma janela de oportunidades se abrir, ao invés de reinventarmos a “real democracia” mais uma vez, vamos deixar o nosso objetivo ser a liberdade, a liberdade em si.

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Fim da última parte.


1. “Autonomia” vem do grego antigo prefixo auto-, eu, e nomos, lei: quem dá a si mesmo a própria lei. Isto sugere uma compreensão da liberdade pessoal em que um aspecto do eu – digamos, o superego – permanente controla os outros e determina todo o comportamento. Kant define autonomia como auto-regulamentação, em que o indivíduo obriga-se a cumprir com as leis universais da moral objetiva em vez de agir de acordo com seus desejos. Por outro lado, um anarquista pode argumentar que devemos a nossa liberdade para a interação espontânea das forças inumeráveis dentro de nós, não para a nossa capacidade de forçar um único comando sobre nós mesmos. Qual dessas concepções de liberdade devemos abraçar é uma questão que terá repercussões sobre tudo, desde como podemos imaginar a liberdade em escala planetária até a forma como entendemos os movimentos das partículas subatômicas.

2. Por exemplo as Autodefensas no México que se organizaram para defender-se contra os cartéis que são praticamente tão opressivos quanto o governo em algumas partes do México, só para acabar se destruindo em guerras de gangues.