6 Críticas à Criminalização e ao Mito do “Manifestante Infiltrado”

Porto Alegre, maio de 2020.

Uma crescente onda de manifestações tomou as ruas em dezenas de cidades do Brasil nos últimos meses, rompendo o consenso e a hegemonia de manifestantes pró-governo nas ruas. No entanto, reacionários e até setores da esquerda — que decidiram somente agora se juntar a antifascistas, torcidas organizadas e outros movimentos organizando os protestos — estão propagando a velha ideia de que manifestantes que escolhem participar de atos de destruição de propriedade ou que respondem à violência policial devem ser considerados “infiltrados” fazendo o “jogo da direita” e seriam os “verdadeiros responsáveis” pela repressão.

Trazemos aqui 6 críticas relevantes para que movimentos sociais e seus protestos de rua possam se potencializar e se expandir sem criminalizar indivíduos ou táticas específicas que são relevantes para qualquer luta política (esse sim o verdadeiro jogo do Estado e da repressão).

Nenhuma pessoa explorada é infiltrada na luta contra o capitalismo e suas opressões! (Só se for polícia). São Paulo, 31 de maio de 2020.

6 Críticas à Criminalização e ao Mito do “Manifestante Infiltrado”

Definir antecipadamente que quem for para “quebra-quebra” ou “confusão” será tratado como “infiltrado” é um erro tático (imediato) e estratégico (de longo prazo) por vários motivos:

1. A violência da legalidade.

Definir o que é legítimo e o que é ilegítimo (aceitável ou não) em um protesto de rua com base nas mesmas definições legais que protegem a propriedade privada e o monopólio do uso da força pelo Estado, apenas reforça discursos que criminalizam quem se rebela ou se defende e reforça que a ideia de que a violência policial pode ser justificável e merecida.
Na prática, entregar para a polícia pessoas que usam táticas diferentes das suas, nada tem de não-violento. Fazer isso é colocar o valor da propriedade privada acima da liberdade e da integridade física das pessoas que podem ser presas e agredidas por meros danos a objetos.

2. Táticas únicas são uma fraqueza para os movimentos.

Escolher uma tática única e se fechar para qualquer outra anula toda possibilidade de entendimento e aplicação da diversidade de táticas, isto é, a colaboração e coordenação de táticas pacíficas e combativas, públicas e anônimas, legais e ilegais nos movimentos sociais que, historicamente, determinaram o sucesso da esmagadora maioria das grandes lutas e revoluções.

3. Especialistas em autopoliciamento.

Com o tempo, esse discurso pode estimular o surgimento um policiamento interno dentro dos movimentos, pois uma vez que certas táticas são “proibidas”, é necessário força ou outras formas de reprimir e/ou entregar para a polícia quem não segue a “cartilha única” do movimento. Com o tempo, tal atividade tende a se cristalizar e logo surgirão bate-paus¹, pessoas dispostas assumir o papel de polícia do movimento e “especialistas” em aplicar a violência em nome da não-violência.

Uma paulada de baixo e à esquerda. Belo Horizonte, 31 de maio de 2020.

4. A culpa nunca é de quem se rebela.

Colocar a culpa da violência policial e das arbitrariedades penais nos próprios manifestantes é um ato reacionário. Mesmo que a proposta do ato seja uma marcha sem confronto ou depredação, colaborar com narrativas de que a repressão policial ou prisões ocorrem por culpa de “minorias infiltradas” e “vândalos” é tirar a atenção da violência estatal para jogar nos indivíduos que são alvos dela.

5. Infiltrado é sempre polícia ou fascista (mas normalmente ambos).

Palavras como “infiltrados” são tão vagas quanto “terroristas” e outros termos que o Estado usa para nomear seus inimigos. Assim, não explicita a que se refere exatamente e insinua que quem não concorda em aceitar a violência policial sem reagir, são iguais a P2 (policiais disfarçados) e demais agentes de segurança de fato infiltrados nos movimentos para destruí-los. É preciso não esquecer quem é nosso inimigo e atuar para minimizar a atuação de fascistas e agentes da repressão, não de pessoas comuns que se rebelam contra suas estruturas e sua violência.

6. A uniformidade facilita processos de divisão, enquanto a diversidade das táticas promove flexibilidade e resistência.

Acreditar que supostos “infiltrados querendo depredação” vão desvirtuar, deslegitimar ou rachar o movimento, é dar abertura para que policiais, fascistas e outros inimigos usem esses pontos de discordância sensível para causar discórdia, conflitos internos, criminalização e rupturas de fato no movimento. Se um movimento não é capaz  de abrigar diferentes posturas e formas de ação, ele se torna puramente legalista, rígido, intolerante com a diversidade de ações e vulnerável a conflitos internos. Reconhecer que minorias precisam praticar ações vistas como violentas para se defender e até para sobreviver, é uma ato de solidariedade necessário a todo movimento. 

A longo prazo, deixar claro que manifestantes de esquerda, antifascistas, anticapitalistas, cometem SIM atos de depredação, autodefesa e contra ataque e que isso TEM SEMPRE LEGITIMIDADE, é muito melhor que condenar quem comete ações radicais como se estivesse “fazendo o jogo do inimigo”. Isso dá força para um movimento não se romper diante da diversidade de frentes e das críticas da mídia, da opinião pública ou das autoridades.

Quem não tem a disposição ou não sente segurança para praticar formas de resistência que atacam estruturas e se defendem de agentes da repressão, pode não se envolver nelas, mas tem o dever de não condená-las e de legitimá-las sempre que for possível. Cair na armadilha de condenar essas pessoas é, na maior parte dos casos, garantir que minorias étnicas, mulheres e não-heterossexuais continuem desempoderadas e sendo as maiores populações carcerárias em todo o mundo.

Imaginem se a revolta em Minneapolis, que se espalhou por todos os Estados Unidos, queimando prédios, viaturas e delegacias, promovendo saques e contra atacando a polícia, fosse pautada apenas pelo que é visto como legítimo aos olhos da lei e do senso comum. Nenhum policial teria sido indiciado² pela morte de George Floyd, a questão racial e de classe não teriam sido levantados com a potência que foi e a polícia, certamente, iria reprimir os protesto da mesma forma, ou com ainda mais violência, uma vez que teriam a certeza de que suas ações não têm consequências legais ou diretas nas ruas.

Nossa liberdade e nossa força coletiva só existem com a diversidade de táticas e a luta contra a criminalização das pessoas que já são alvos do extermínio feito pelo Estado.

Cuide umas das outras para sermos um perigo juntas.



Notas:

1.  “Bate-Paus” são, geralmente, seguranças informais de líderes sindicais e candidatos políticos.

2. Em uma perspectiva abolicionista penal, entendemos que existem consequenciais previstas na lei burguesa para o assassinato, mas ela não é aplicada regularmente contra agentes da lei porque eles precisam de impunidade para realizar seu trabalho repressivo e assassino.