Um Guia Anarquista para Sobreviver ao Coronavírus – COVID-19

Tá bom, a epidemia é super assustadora e, por um grande número de razões, você talvez não possa, ou não queira, lidar com a infraestrutura médica – que estará sobrecarregada à beira de um colapso em alguns meses. No entanto, você provavelmente também não quer sucumbir ao vírus apesar disso. Organizamos esse guia como uma tentativa de ajudar pessoas a tomarem controle sobre seu bem-estar e a sobreviverem a esse surto sofrendo o mínimo possível.

por: Four Thieves Vinegar Collective

Aqui vai um spoiler: cuidados médicos são mais simples do que você imagina.

Basicamente você precisa lidar com isso como você lidaria com uma gripe, exceto que deve ser mais vigilante por que ele se espalha mais rapidamente, é mais difícil de “matar” e é mais duro com o seu corpo quando é contraído.

Pronta para levar essa parada à sério? Ok, vamos lá.

De maneira geral, mesmo mantendo uma higiene cautelosa, você também vai querer manter sua saúde em forma e estressar seu sistema imunológico o mínimo possível.


Para continuar se organizando em nível de base, através do apoio-mútuo, solidariedade e ação direta, recomendamos esse outro guia dos nossos camaradas do coletivo CrimethInc..

Como Evitar o Contágio

Higiene

Você pode contrair um vírus ao tocar em coisas que outras pessoas tocaram ou ao respirar gotículas microscópicas do espirro ou da tosse de alguém.

• Esterilize o seu celular nojento. Álcool vai servir. Faça isso toda vez que você chegar à um novo destino, especialmente a um lugar onde vai comer. Considere deixar esse treco em casa, ou ao menos não use-o durante suas refeições. Pergunte à uma microbiologista sobre celulares. Você irá desejar que não tivesse perguntado.

• Lave suas patas. Essa é uma medida chave: o lugar mais provável de pegar germes fresquinhos são suas mãos. Você pega em maçanetas, aperta botões de elevador, lida com dinheiro, cartões de crédito, recibos e assim por diante. Cada vez que chegar em um novo lugar lave suas mãos. Sempre use sabão e esfregue suas mãos por pelo menos 20 segundos, e lave também debaixo de suas unhas. Compre uma escovinha de unhas, é um ótimo investimento. Se você realmente quiser limpar tudo mesmo, considere adquirir clorexidina ou etanol. Fazer uma boa limpeza assim que retornar para casa é uma boa prática. Álcool gel é bom e barato. Se houver um corre-corre nas farmácias e não tiver mais nenhum, você pode encontrar em ferragens ou diretamente em postos de combustível. Não se esqueça de lavar os registros das torneiras também.

• Limpe com álcool os pontos comuns de contato: maçanetas, puxadores de armários e geladeira, interruptores elétricos, registros de torneiras e assim por diante.

• Considere usar luvas cirúrgicas quando estiver na rua e as descarte antes de lavar suas mãos ao chegar no seu destino.

• Não toque no seu rosto enquanto estiver fora. Isso se aplica se você estiver usando luvas ou não. Esse é um hábito difícil de desenvolver, mas se você estiver usando luvas elas funcionam como um bom lembrete. Sete dos nove pontos de entrada do seu corpo estão no seu rosto e suas mãos vão tocar nas coisas enquanto você estiver fora. Não as leve à porta de entrada para suas vísceras.

• Máscaras cirúrgicas não fazem muita diferença. Se alguém está doente, elas podem prevenir que outras pessoas contraiam se a pessoa doente estiver usando uma, mas se você está saudável então a máscara não vai fazer muita coisa. Especialmente se você não as descarta diariamente, nesse caso você só está criando um ambiente quente e úmido para os micróbios e amarrando ele ao seu rosto.

• Considere tomar banhos com mais frequência, se isso não é uma das suas coisas favoritas. Suas mãos não são o único lugar na sua pele por onde os micróbios circulam.

Saúde Geral e Imunidade

Essas dicas são praticamente senso comum, mas é importante escutá-las em caso de termos as esquecido ou nunca tê-las escutado antes.

• Mantenha-se hidratada o melhor que puder. Se você odeia beber água, tente água com gás ou adicione uma bebida eletrolítica em pó ou um aditivo vitamínico e/ou uma espremida de limão.

• Tente beber e fumar menos. Se o seu corpo está usando energia para se curar de uma ressaca ou para metabolizar alcatrão é energia que não vai poder ser usada para sua imunidade.

• Deixe entrar ar fresco em casa; ar parado serve de criadouro de germes. Pó e fumaça estressam o sistema respiratório e diminuem a imunidade.

• Coma alimentos de qualidade. Mesma coisa que já foi dito: se seu coração e fígado estão ocupados processando seu big-Mac duplo, é mais difícil de lidar com o resto das coisas.

• Durma bastante e com qualidade. Sabemos que isso esta começando a parecer com uma mensagem de voz da sua mãe, mas vamos encarar: ela provavelmente está certa em algumas coisas. Falta de sono é outra dessas coisas básicas que podem rapidamente tornar seu sistema imunológico de uma fortaleza num casebre de palha.

• Reduza seu nível de estresse. E isso não significa continuar a andar com pessoas tóxicas e tomar mais drogas para lidar com isso. Pelo contrário, significa autocuidado. Faça as coisas que te fazem feliz e te relaxam. Considere se demitir e abandonar seu marido abusivo. Diga a ele que é pelo bem da ciência.

• Considere tomar um multivitamínico básico; talvez uma vitamina C e Zinco também. Se você realmente sente que precisa de uma turbinada imunológica existem indícios que raiz de astragalus e extrato de tomilho podem ajudar, porém não consenso sobre isso. Existem poucos estudos feitos que determinam a sua eficácia ou não, o que também é o caso de outros medicamentos populares. Faça sua própria pesquisa. Decida por você mesma.

• Evite lugares lotados. Ok, essa é difícil; no transporte público e em empregos onde você deve interagir com o público isso se torna inevitável. Tente manter distância se puder.

• Se você é desse tipo que está evitando pessoas Asiáticas, tem uma técnica faça-você-mesma que vai fazer com que seja impossível que você contraia o vírus: encha um copo de água sanitária e beba em um só gole. Obrigado, seu racista de merda.

“Uma Pandemia não é uma Coleção de Vírus, mas uma Relação Social entre Pessoas, Mediada por Vírus. “

Como Saber se Você Contraiu

Ok, então você foi ótima em evitar as multidões, manteve sua saúde em cima e limpou tudinho com álcool gel e mesmo assim adoeceu. Acontece, é um jogo de probabilidades, não seja dura consigo mesma.

Agora você está preocupada se tem uma gripe simples (o que, por favor perceba, também está circulando num ritmo alarmante, então é bem possível) ou você tem de fato a peste assustadora.

A má noticia: É muito difícil descobrir a menos que você tire amostras e faça o sequenciamento do genoma do vírus. Se tiver um grupo de biohacking na sua área com algumas praticantes com um senso de curiosidade que se sobrepõe ao senso de autopreservação, você pode conseguir que elas façam isso pra você.

A noticia não tão ruim: Não faz tanta diferença. O que é preciso fazer em qualquer um dos dois casos é levá-lo a sério, cuidar de si mesma e não transmitir para outras pessoas.

Quando É Preciso Ceder e Ir Ao Hospital

O objetivo todo era evitar ir ao hospital. Ninguém gosta de ir e lá tratam minorias como lixo, mais um milhão de outras coisas, mas precisamos aceitar que é melhor ter que lidar com tudo isso do que estar mortas. Então, precisamos saber quando passou do ponto em que basta assistir ao Chaves e tomar uma canja de galinha.

Se você tem insuficiência respiratória, insuficiência cardíaca, ou septicemia, esses são quadros muito difíceis de tratar em casa e sobreviver e você provavelmente deveria ir para um hospital agora mesmo. Uma insuficiência significa que esses órgãos não estão funcionando como deviam, mas esses são quadros reversíveis e não uma sentença de morte.

Esses são os sintomas e sinais que você deve observar para saber se essas coisas estão acontecendo: Insuficiência Respiratória, Insuficiência Cardíaca, Septicemia.

Existem diferentes razões pelas quais a pessoa de quem você está cuidando pode parar de ser capaz encher os pulmões de oxigênio, ou para o seu coração ter problemas, ou ter uma infecção generalizada. Mas você não precisa saber nenhuma delas. Ao invés disso, você pode ficar de olho em indicadores de que esses processos estão começando, para transportar essa pessoa até um hospital. Geralmente há um processo muito complicado com vários equipamentos caros, mas você pode fazer isso de forma muito mais simples e barata com alguns instrumentos básicos. É muito útil ter um termômetro, um medidor de pressão e um oxímetro de pulso. Você não precisa deles, mas eles deixam as coisas mais fáceis. Você pode comprar um oxímetro de pulso na internet por cerca de 50 reais. Você também pode encontrar um medidor de pressão na internet. São um pouco mais caros, tipo 90 reais, mas valem a pena. Termômetros também são baratos na internet. Se alguém está doente, monitore todas as medidas para estabelecer um ponto de referência, e então monitore novamente de manhã e à noite, e sempre que você estiver preocupada. Fique atenta a mudanças. Se as coisas estiverem mudando rapidamente, então é motivo para se preocupar. Nesse caso, observe outros indicadores para determinar se alguma dessas condições críticas estão ocorrendo.

Você pode medir os batimentos com um relógio e com a sua mão. Encontre os batimentos da pessoa no seu pulso, e conte-os por um minuto inteiro. Você deve ter algo entre 60 e 100 batimentos. Se não for o caso, é um sinal de que as coisas não estão muito bem. Se você não possui um termômetro, você pode comparar a testa dela com a sua colocando uma mão em cada. Tente se apegar à memória dessa sensação, pois você quer estar atenta a mudanças. Se puder medir a sua temperatura, ela deve estar entre 36°C e 38°C. Se você estiver medindo a pressão e ela se alterar 20 pontos, não é um bom sinal. Decida com antecedência como você planeja chegar ao hospital (e qual), caso essas coisas comecem a acontecer. Você não quer decidir isso em um momento de crise.

O oxímetro de pulso mede os batimentos cardíacos de uma pessoa e a percentagem de oxigênio em seu sangue. Se a oxigenação do sangue cair abaixo de 90% você precisará de cuidados médicos. Isso dito, se os números estiverem bons, mas alguém estiver tendo muita dificuldade em respirar (mais do que apenas tossir e se sentir mal como nos sentimos quando estamos doentes), é preciso levá-la a um hospital. Se os lábios e/ou pontas dos dedos começarem a ficar cinza e azul, e está se esforçando pra respirar, é sinal de insuficiência respiratória iminente, indiferente dos níveis de oxigenação do sangue. Leve-a ao hospital imediatamente. Outros indicadores disso são: curvar-se para a frente para respirar, não ser capaz de terminar uma frase sem ficar sem ar, ou uma respiração rápida e rasa. Se os sons da respiração parecem muito úmidos, ou como um craquejar, ou se ela tosse um muco rosa e espumoso, é hora de soar o alarme.

Se você está conseguindo manter a pessoa hidratada, mas ela ainda assim acorda com uma enorme dor de cabeça, ou passa o dia todo sem fazer xixi, estes também são maus sinais. Outras duas coisas para cuidar: se alguém está tão sonolenta que quando você a acorda, ela logo cai novamente no sono e você não consegue mantê-la acordada, é um mau sinal. O outro sinal é se alguém parece rabugenta demais. Verifique se ela está mentalmente confusa, mas perguntando coisas como que dia é hoje ou onde ela está. Se você receber respostas estranhas, é hora de tirá-las daí.

Como Cuidar de Alguém Que Está Doente

Ok, vamos dizer que a pessoa ainda não precise ir ao hospital, mas ela ainda está doente e você precisa tratá-la. O que fazer?

Dê um pouco de conforto

Nunca é dizer demais: você está cuidando de um ser humano, e quanto mais você o mantiver relaxado e feliz e se sentindo amado, maiores as chances de recuperação. O sistema límbico sustenta o sistema imunológico. O sistema imunológico de uma pessoa feliz trabalha muito melhor que o de quem não está. Onde está o ursinho de pelúcia dela? Sua naninha? O seu gato? Traga eles!

Lembre-se que apesar do fato da virulência do COVID-19 ser alta, a taxa de mortalidade é baixa. Até agora sua letalidade é de cerca de 3,5%*. É provável que não seja muito diferente de pegar uma gripe forte, ou ficar de ressaca, e a pessoa em questão vai se recuperar.

Tente explicar a ela que a probabilidade de ficar mal por mais de uma semana é muito baixa, para que ela não se estresse e piore a situação.

Mantenha-a aquecida, mas não quente. Forneça a ela suas comidas e lanches saudáveis favoritos, e coloque pra ela assistir os filmes de que ela mais gosta (e se envergonha de gostar), e não tire sarro dela por isso. Sério.

Leia a ela o livro favorito de sua infância. Também não brinque com isso. Traga o seu jogo de tabuleiro favorito, e jogue com ela, mesmo que você deteste. Sim, não reclame.
Lembre a elas de que a sua sobrevivência deixa a revolução mais iminente, e que elas descansarem e permitirem-se ser cuidadas é um ato de guerra política, como Audre Lorde disse.

Se ela realmente quiser beber, faça para ela uma bebida quente, com um destilado, canela, gengibre, ao invés de doses de tequila ou cerveja. Tente não dar muito.
Se ela está desejando um cigarro desesperadamente, arranje pra ela um chiclete/adesivo/rapé, e coloque um pouco entre o seu dedinho do pé e o dedo próximo a ele, isso dará a ela uma dose de nicotina sem sobrecarregar os seus pulmões. Você pode fazer isso nos dois pés se ela precisar de uma dose maior.

Se ela quiser muito maconha, tente dar a ela algo de comer com cannabis ao invés de cigarro de maconha, para que não sobrecarregue os seus pulmões.

Se ela for ter uma crise de abstinência caso não receba sua dose, faça de tudo para ajudar ela a fazer isso de forma segura.

• Esse número é uma aproximação, e está errado em certo grau, pois há um atraso entre a confirmação e a morte, que faz com que o erro seja pra baixo. Entretanto, existem muitas pessoas que o contraem e não relatam aos hospitais e se recuperam bem, o que faria desse número um exagero. Além disso, há evidência de que o governo chinês está encobrindo as mortes pelo COVID-19 chamando-as de morte por “pneumonia”, e não as relatando, o que faz com que o erro seja pra baixo novamente. A China também está usando tecnologia muito lenta e velha para fazer os diagnósticos, e pode somente fazer alguns milhares de testes por dia, então isso também limita os dados. Então existem diversos erros aqui. Isso é só pra dizer que o número não é preciso, mas a taxa de mortalidade está somente na casa da porcentagem de um dígito.

Hidratação

Se você estivesse em um hospital, você estaria recebendo um soro intravenoso, que é o modo mais rápido e eficiente de colocar fluidos dentro do seu corpo. Entretanto, se você vive em alguns países como nos chamados “estados unidos”, isso não está disponível para o público, apesar de ser a maneira mais rápida de hidratar alguém.

Preparar um soro intravenoso não é difícil, se você conseguir uma bolsa e um dispositivo de infusão intravenosa (tem no Mercado Livre). Se você não conseguir, existem formas fáceis de fazer fluidos de reidratação oral que são melhores que Gatorade ou água de coco:
A ideia é pegar água limpa e adicionar alguns sais balanceadores para fazer com que seja mais fácil para a pessoa reter a água. Tente fazer com que tomem pequenos goles com frequência, já que essa é a maneira mais eficiente, tirando o soro intravenoso, de pôr fluídos em uma pessoa.

Pegue água destilada, açúcar ou mel, sal, bicarbonato de sódio e, se você quiser fazer a bebida um pouco mais palatável, um pouco de água de coco, suco de laranja ou banana madura amassada.

Soro em um Copo

• 1 Litro de água engarrafada
• 1/4 colher de chá de sal
• 1/4 colher de chá de bicarbonato de sódio
• 2 colheres de sopa de açúcar ou mel
• Opcional: 1 copo de água de coco / suco de fruta / purê de frutas madura
Comece adicionando o sal, mas se certifique que você não ponha demais. Não deve ser mais salgado do que lágrimas. Então adicione os outros ingredientes.
Três colheres de chá equivalem a uma colher de sopa, se você tiver uma ou outra.
Essas são medidas aproximadas, então não se preocupe tanto. Só garanta que não está salgado demais antes de adicionar o resto.

Mantendo-se Limpa

Tente fazê-las levantar e tomar um banho todos os dias. Troque a roupa de cama enquanto estão no banho, e as dê roupas limpas e confortáveis quando saírem. Essa não é apenas uma questão sanitária, isso também fará com que se sintam melhor em termos de animo. Mais alegre é mais saudável.

Oxigênio

Da mesma forma que com o soro intravenoso, você não pode só entrar numa loja de suprimentos médicos e comprar um tanque de oxigênio, mas existem maneiras de enjambrar um.

Teoricamente você pode usar oxigênio para solda, mas pode ser intimidador instalar os reguladores e tudo mais só você nunca trabalhou com gás comprimido. Se a pessoa de quem você está cuidando está numa situação tão complicada que necessita de oxigênio todo o momento, ela deveria estar em um hospital de qualquer maneira.

NÃO dê antibióticos!

Antibióticos funcionam para matar bactéria. Eles não fazem nada com vírus, você vai sobrecarregar o sistema da pessoa que você está dando e vai fazê-las piorar.
E quanto aquela suposta “cura” vinda da Tailândia? Ou aquela outra coisa que eu escutei falar?

Não há realmente muitos dados sobre nada disso. Parece que a coisa da Tailândia funcionou em um caso, mas isso pode ter sido por sorte. Além disso, outras pessoas em quem experimentaram tiveram reações muito negativas aos medicamentos antivirais (o que não é atípico), então é realmente uma aposta se você decidir tentá-lo. Entretanto não somos aquelas que se afastam da auto-experimentação, aqui estão todos os dados que conseguimos encontrar até esse momento. Com o tempo passando esperançosamente teremos algumas táticas estabelecidas. Se você aprender alguma coisa, por favor entre em contato. Existe também um teste clínico acontecendo na China para o tratamento “tailandês”.

Além disso, tenha em mente que muito provavelmente você não saberá se você tem o coronavírus ou gripe, e tomar altas doses de antivirais pode ter bastante efeitos colaterais. Então decida cuidadosamente onde você acha que está o limite para isso fazer mais mal do que bem. Ao paciente tailandês foi dado Oseltamivir, Lopinavir e Ritonivir
Oseltamivir é vendido sob o nome comercial de Tamiflu, e apenas com prescrição. É um medicamento controverso, e alguns médicos vão se recusar a prescrevê-lo, então se você for procurar vários médicos pra tentar conseguir diversas receitas para obtê-lo, esteja ciente que você talvez precise procurar vários. Mas é um antiviral e teoricamente faz a gripe passar mais rapidamente.

Então tem a questão dos dois medicamentos pra HIV, Lopinavir e Ritonavir. Eles são aprovados, estão no mercado e algumas vezes vem juntos sob o nome comercial de Kaletra. Atualmente a dosagem para casos de HIV é Lopinavir 400mg/Ritonavir 100mg. E ainda não existe dados quanto a doses usadas em casos experimentais, eles apenas dizem “alta dosagem”, então boa sorte no chute. Talvez começando por triplicar a dosagem regular.

As 5 Demandas Inegociáveis para Sobrevivermos Coletivamente à Pandemia.

Algum outro tratamento/cura possível?

Um artigo científico recém lançado mostrando que o Cloroquina e o Remdesivir (código de desenvolvimento GS-5734) matam o vírus em um tubo de ensaio, mas as coisas são mais complicadas no corpo humano. Tendo dito isso, tem uma pessoa que recebeu a combinação dos medicamentos e se recuperou. Isso não significa que ela se recuperou em função disso, mas é sugestivo. Além disso, estão iniciando testes ad hoc com esses medicamentos na China, então parece promissor.

Remdesivir é muito difícil de conseguir. Não está em produção já que ainda não foi aprovado, e não está no mercado. Há uma empresa o fabricando para os teste clínicos na China, mas não está sendo vendido. É uma nova molécula com um estranho formato, então nem mesmo fornecedores químicos comuns vão ter estoque. Potencialmente existem maneiras de conseguir no exterior, mas é uma questão de sorte, já que pode ser difícil saber se o que você está recebendo é a coisa de fato ou ampolas de água. Há também uma versão do GS-441524, que é um ativo, não-pró-fármaco que está disponível apesar de ser caro. Se você está planejando comprar isso, compre enquanto for capaz: os preços estão subindo e os estoques estão se esgotando.

O artigo científico publicado sobre o paciente que pode ter sido curado não fornece informação sobre a dosagem. Menciona, no entanto, que foi dada uma única infusão intravenosa, o que sugere que, se modelado de acordo com o teste de ebola, que a dosagem pode ser tanto uma dosagem baixa de 50mg/kg ou a dose alta de 150 miligramas por kilogramas de massa corporal. Nós estamos especulando que provavelmente tenha sido a dose alta. A dosagem para cloroquina é 300mg base (500mg de sal), dadas uma vez por semana, então provavelmente uma única dose. Para crianças é 5mg/kg.

Cloroquina é usada na prevenção e tratamento da malária, mas o seu uso gerou variedades resistentes. Então se quer conseguir com uma médica alegando que você esteve viajando por uma área com altos índices de malária, você deve pesquisar uma região rica em malária que não mutou para se tornar resistente ao cloroquina. Pesquise no site do Ministério da Saúde se você está pensando em seguir esse caminho.

Cuidem Umas das Outras

Faça o que for possível com o que estiver ao seu alcance, e as chances são de que as coisas vão ficar bem. Lembre-se de buscar ajuda se se tornar perigoso.

Aja! Reaja!
Com amor,
—FTVC

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A REVOLTA – essa ingovernável que perturba o sono dos governantes

Não começou em junho, não vai terminar em 2022!

As manifestações de junho de 2013 não foram um acontecimento monolítico. Sua beleza e complexidade estão justamente nesse truísmo. Teve junho antes de junho, teve junho depois de junho. Teve o junho de São Paulo, que foi diferente do que aconteceu no Rio de Janeiro que, por sua vez, teve desdobramentos diferentes do junho gaúcho e mineiro, assim como foram diferentes as manifestações no Espírito Santo, no Pará, no Ceará ou em Goiás e assim por diante. Os explicadores de junho de 2013 de todas as “vertentes” são os que se arvoram a ser coveiros da revolta que segue em curso. O fogo por vezes arrefece,  mas sua brasa segue sob as cinzas e qualquer vento pode reanimar a chama. Junho está sendo. Isso é lembrado a cada momento na política brasileira. Por isso, os melhores textos sobre junho de 2013 são análises de seus efeitos tratando-o como acontecimento e relatos da ordem do testemunho.

Tanto o que se convencionou chamar de direita, quanto o que se chama de esquerda odeiam junho de 2013. Mas a esquerda que governava à época odeia mais e por motivo bem simples: junho desvalorizou seu principal capital político parcimoniosamente acumulado desde a chamada abertura política. Capital este habilidosamente negociado com os dirigentes das elites nacionais e estrangeiras: o controle das ruas. A esquerda partidária e governista jamais perdoará as revoltas de junho por terem implodido seu bezerro de ouro.

Por isso, não surpreende que 2020 já começou com o “terraplanismo político” da blogsfera petista. Esta decidiu difamar publicamente uma militante que foi presa e perseguida insinuando que ela teria envolvimento com o fascismo e com o atentado ao prédio da produtora de vídeos de comédia Porta dos Fundos. Sites como DCM, Revista Fórum e os ventríloquos petistas na internet atacam de forma canalha e desonesta uma pessoa que teve sua vida destruída pela perseguição política nos governos PT. E assim, fazendo coro com as vozes da extrema direita. Nessa hora a tal polarização desaparece rapidinho. O mote, desta vez, foi um vídeo de 2013 em solidariedade a vários manifestantes presos na época. Nada é dito sobre 2013. E, desta maneira, usar o vídeo como meio de difamar pessoas e movimentos sociais diz mais sobre o caráter e o oportunismo de certa militância de esquerda do que sobre as pessoas que aparecem em um vídeo de 6 anos atrás.

Se vocês não lembram, nós lembraremos de como junho começou!

Quando a blogsfera petista traça uma caricatura para criminalizar as pessoas que estiveram nas ruas em junho de 2013, faz isso por medo de uma revolta popular incontrolável como as que explodiram em 2019 e ainda ocorrem no momento presente em vários lugares do mundo. Mas essa criminalização é feita também por ressentimento do que a revolta expôs de forma escandalosa: é preciso uma transformação radical. É evidente, pelo que se observa em nossos vizinhos do continente, que a revolta popular é a única resposta possível ao fascismo crescente com o qual foram e são coniventes todos os governos. Incluso o partido da ordem em junho de 2013, pois ele ajudou a implementar medidas que favoreceram tal fascismo: a política de segurança pública, a lei antiterrorismo e os projetos de cidades excludentes que acompanharam os megaeventos no Brasil, em especial no Rio de Janeiro. E as remoções nada mais eram do que uma parte desse projeto, que foi colocado em curso pelo governo do PT em aliança com o PMDB. Talvez seja essa a parte da história que mais gostariam de apagar. E era a resistência a essas remoções que se estava apoiando naquele momento, nada além disso.

Então vamos lá, mais uma vez retomar 2013. Haviam fascistas nas manifestações? Grupos de extrema direita? Sim, haviam! Extremamente minoritários, mas estavam lá, assim como outras forças políticas tentando tragar a revolta popular para suas pautas, seja para dizer que era tudo contra apenas a corrupção, seja para dizer que o povo queria a reforma política – ainda que gritássemos por revolução.

Ora, quando há uma revolta múltipla, com mais de um milhão nas ruas, é natural que as forças políticas estabelecidas tentem cooptar essa revolta para os seus interesses previamente estabelecidos pelo jogo político. Mas o mais importante sobre 2013 é que isso não deu certo, não deu certo para ninguém.

“Uma parte desta sociedade tem absoluto interesse em que a ordem siga reinando; a outra, em que tudo se derrube o mais rápido possível. Decidir de que lado está é o primeiro passo.” – Ai Ferri Corti

A revolta seguiu não tragável e foi nisso que ela se tornou incontrolável; e foi por isso que julgaram preciso criminalizá-la. Ora, quando se apoiou o indivíduo que deu um soco no secretário de obras do governo Paes, em meio a uma manifestação contra remoções, quem se estava apoiando? O indivíduo integralista, o indivíduo fascista, o indivíduo masculinista ou qualquer um dos seus outros predicados desconhecidos pelas pessoas que o apoiaram? Claro que não. O que estava sendo defendido era a soltura de manifestantes, incluindo o que deu um soco na cara do secretário durante uma remoção – era a ação e não o indivíduo que estava sendo apoiada. Não houve nenhum apoio ao fascismo ou qualquer posição política individual de tal sujeito. Se essa ação não fosse defendida, deveríamos defender a criminalização dos que lutavam contra as remoções – é isso que se espera? Nem é possível se supor que se deva conhecer bem todos aqueles que foram criminalizados por ações éticas antes de se defender a ação contra a criminalização. E contra as remoções, que uma autoridade ganhe um soco na cara não é nada: mereceu sim, mereceu muito. Daí depois se descobre que essa pessoa defende o integralismo, o governo Bolsonaro, o golpe militar… Bom, nada disso se segue da sua ação de dar um soco na cara daquele comandava as remoções, não há nada ser lamentado neste apoio pontual a uma ação e não a um indivíduo.

Mas nós vivemos o tempo das construções de narrativas capazes de forjar absurdos pelas mídias sociais, dos indivíduos que valem mais do que as ações, dos personalismos, das fake news, das guerras discursivas. Todas as pessoas na história recente assistiram o advento do fascismo contemporâneo caminhar junto à defesa da terra plana e das mamadeiras de pirocas. A política institucional representativa cresce pela tendência ao espetáculo. Mas qual diferença fundamental há em acreditar nas mamadeiras de pirocas ou em que 2013 foi orquestrado pela CIA? A política institucional tenta negar a realidade concreta porque a teme. Desde o levante popular, a esquerda institucional tenta associar a revolta que não controla à direita, tentando apagar a posição política que não se enquadra no que é tragável pelos seus objetivos eleitorais. Nessa narrativa, a culpa pela ascensão do fascismo é daqueles que radicalizaram as ruas. O certo seria aceitar a linha do grande “messias” que nos trará a paz através da conciliação de classes. Pra essa “esquerda”, a única política legitima é dos grandes acordos de gabinete. Tenta com isso obscurecer também que aqueles que sempre lutaram até o fim contra o fascismo sem concessões e que disputaram a despolitização das ruas em 2013 foram as forças políticas autônomas e anarquistas. Mas ainda assim as greves e as insurreições em resistência se espalham pelo mundo diante de uma esquerda institucional falida que abre espaço cada vez mais para o fortalecimento da extrema direita.

ALERJ, 2013: a única forma coerente de adentrar os palácios.

Por tudo isso, mais uma vez, o que gostaríamos de dizer é que essa realidade concreta permanece aí apesar dos discursos ruminantes – e ela é mais forte do que qualquer fake news espetacular que se consiga propagar. Quando a revolta popular chegar, tal como se espalhou pela América Latina e pelo mundo nos tempos recentes, a política feita por eles será impotente. A potência de 2013 jamais deixou de existir, mesmo com a criminalização, mesmo com a repressão, mesmo com as bobagens que escrevem. E assim como a terra não para de girar porque alguns dizem que ela é plana, a insurreição não se mata com discursos vazios. Absurdos não se combatem com argumentos, mas com ações.

Poderíamos seguir e especular o quanto essa “polêmica” atende aos interesses eleitorais da força hegemônica à esquerda. Como isso pode ser um meio de manter em seu lugar suas linhas auxiliares. Mas esta disputa não nos diz respeito como anarquistas. Como diz o ditado: “eles que são brancos que se entendam”. A nós, só interessa a revolta e nossa solidariedade aos amigos e amigas de luta que são alvo da má fé da esquerda institucional e seu rebanho de internet.

E seguiremos afirmando: 
Todo preso é um preso político!
Nenhum governo combate o fascismo até o final, pois recorre a ele sempre que se sente ameaçado!
Paz entre nós, guerra aos senhores e aos funcionários dos senhores!

Fogo nos fascistas! O fogo da revolta!

Nas ruas nos vemos, nas ruas reconhecemo-nos!

02 de NOVEMBRO: DIA MUNDIAL DE RESISTÊNCIA POR ROJAVA

Dia Mundial de Resistência por Rojava

2 de Novembro de 2019

A revolução no nordeste da Síria prevalecerá, o fascismo será esmagado!

Às 16 horas do dia 9 de outubro, o exército de ocupação turca e seus aliados islamitas começaram sua guerra de agressão há muito preparada contra as áreas libertadas do norte da Síria.

Às quatro horas da tarde em ponto, choveram bombas sobre as pessoas das cidades e vilarejos da fronteira. As milícias jihadistas começaram seu avanço sob a liderança do exército turco e tentaram penetrar na área de fronteira. A Turquia está falando de uma “operação militar” destinada a “proteger a fronteira” e o estabelecimento do chamado “corredor da paz”, mas o fato é que o exército turco e os mercenários islamitas sob seu comando preocupam-se apenas com a ocupação da área inteira povoada principalmente por curdos ao longo da fronteira entre a Turquia e a Síria. O regime em Ancara fala da “luta contra o terrorismo” e enfatiza que sua guerra de agressão não se trata da guerra contra a população civil, mas os bombardeios indiscriminados contra assentamentos civis, saques e deportações em massa de centenas de milhares de pessoas, execuções arbitrárias e o sequestro brutal de centenas de civis mostram uma mensagem diferente. Quanto mais a guerra contra o norte da Síria avança, mais fica claro o que Erdogan realmente quer: a limpeza étnica através da violenta expulsão de milhões de pessoas e da mudança demográfica a longo prazo de toda a região.

No norte da Síria, à sombra da guerra civil síria, um projeto social revolucionário e democrático prosperou nos últimos sete anos, sendo um espinho para as potências e estados imperialistas da região desde o início. As sociedades do nordeste da Síria estabeleceram seu próprio autogoverno e criaram um oásis de paz, baseado na coexistência igual de todos os grupos da população local, na libertação das mulheres, na economia ecológica e na democracia radical. A Federação Democrática do Nordeste da Síria se tornou um exemplo vivo de um futuro pacífico e democrático para o Oriente Médio, além do despotismo local e do domínio estrangeiro. Finalmente, as forças de defesa dos povos do nordeste da Síria, as Forças Democráticas da Síria, conseguiram esmagar os últimos remanescentes do califado turco do Estado Islamico.

Protesto em frente ao Consulado da Turquia em São Paulo, 12 de outubro de 2019

Hoje, milícias islamitas, a maioria combatentes do Estado Islâmico e da Al-Qaeda, estão avançando novamente com a ofensiva de ocupação turca no norte da Síria e espalhando medo e terror. Os estados da Coalizão Internacional, sobretudo os Estados Unidos, abriram o caminho para a guerra de agressão turca com sua retirada coordenada de tropas. Eles entregaram seus ex-aliados à destruição e sacrificaram os povos do nordeste da Síria por seus interesses sujos. Os estados do mundo concordaram em fechar os olhos enquanto o exército de ocupação turca e seus jihadistas estão cometendo um genocídio com armas da OTAN.

Mas não ficaremos de prontidão e testemunharemos em silêncio os massacres que hoje ocorrem aos olhos do mundo. Somente um amplo e resistente movimento anti-guerra irá parar esta agressão. Assim como as pessoas estavam despejando ruas nas ruas contra a Guerra do Vietnã ou a invasão do Iraque pelos EUA em 2003, a consciência da humanidade deve se revoltar hoje em face da barbárie turca no norte da Síria.

Em 1º de novembro de 2014, milhões de pessoas em todo o mundo foram às ruas por um dia para expressar sua solidariedade à heroica resistência de Kobane. Apelamos para que o dia 2 de novembro de 2019 ano seja um dia de resistência global contra a Guerra de Agressão da Turquia, para quebrar a situação normal e paralisar a vida. Participe de ações criativas e diversas de desobediência civil, manifestações e muito mais, e assuma as ruas e espaços públicos. Enquanto a matança continuar, a resistência não deve parar.

A revolução no nordeste da Síria prevalecerá, o fascismo será esmagado!

riseup4rojava.org | @RISEUP4ROJAVA | fb.com/riseup4rojava 

A COMUNA DE QUITO: por dentro da insurreição no Equador

No início de outubro, uma onda de protestos tomou as ruas do Equador contra os cortes no subsídio da gasolina e, consequente aumento dos custos de vida. A agitação se transformou no maior levante popular do país das últimas décadas. Marchas indígenas chegaram à capital Quito e ocuparam o prédio do Parlamento e milhares de manifestantes enfrentaram as forças policias do presidente Lenin Moreno, obrigando o governo a mudar sua sede da capital do país para tentar escapar da insurreição popular. Moreno é o sucessor e ex-vice presidente de esquerda Rafael Correa, que chegou ao poder impulsionado pelos movimentos sociais da década de 1990 e governou o país por 12 anos sob o mesmo padrão neoliberal e pacificação/cooptação dos movimentos sociais aplicado por outros governos de esquerda na América Latina – como PT no Brasil. A convergência de vários grupos do campo, da cidade, estudantes, mulheres e indígenas foi o que permitiu uma radicalização da luta que se transforma agora numa insurreição popular. Foram contabilizados até agora 554 feridos, 929 prisões e 5 mortes nos 9 primeiros dias repressão as manifestações.

Conduzimos essa entrevista com companheiros diretamente das barricadas nas ruas do Equador para debater algumas das questões mais relevantes sobre a mobilização.

Manifestantes invadem parlamento em Quito, dia 8 de outubro de 2019.
1. Os governos do Brasil, Argentina e instituições ligadas à União Europeia declaram apoio ao governo de Lenin Moreno no Equador e denunciam a revolta popular da classe trabalhadora e povos indígenas. Obviamente, essas instituições sabem que as políticas de austeridade também estão em sua agenda e temem que o mesmo cenário se espalhe pelas Américas e outras partes do globo. Como vocês enxergam a resistência às políticas de austeridade e corte de subsídios afetando a vida cotidiana no Equador? Qual o caminho que, na sua opinião, levou a população das cidades e aos indígenas a dizer basta? Existe um sentimento anticapitalista compartilhado nas ruas?

A resistência que está acontecendo nesse momento que já tem oito dias, já constitui uma data importante, um evento histórico. É a maior revolta dos últimos anos, historicamente não sei, mas seguramente é a maior greve dos últimos anos, que tem como protagonista os indígenas, porque os levantes do passado não duraram tanto tempo como está durando agora.

A austeridade e a política de redução de subsídios afetam a vida cotidiana no Equador, mas creio que há uma divisão de classe no que está acontecendo nesses dias na cidade de Quito e no Equador inteiro. Há uma parte da população que não entende as razões do protesto e que dizem que na verdade o governo não está aumentando o preço da gasolina mas apenas retirando um subsídio que existia. O que não entendem é que aumentar a gasolina é aumentar o preço das passagens, por exemplo. Um aumento de 10 centavos para um estudante de universidade pública é muito. Comprar alimentos nesse período também aumentou. Para as pessoas que tem negócios, que vão comprar coisas para seu uso cotidiano e ganham o mínimo, isso os afeta muito. Por exemplo, o saco de batata que estava a 18 dólares há 10 dias agora está de 30 a 35 dólares. Digamos que há um efeito imediato do aumento do preço da gasolina, já que os subsídios fornecidos anualmente permitiam um acesso maior a cesta básica e a outros tipos de bens de consumo. Além disto, a maior parte dos alimentos, vegetais e verduras que são cultivadas na Sierra (a região dos Andes) ou, por exemplo, as bananas cultivadas nas plantações da Costa, são todos transportados em caminhões a diesel. A maior parte dos ônibus urbanos, também. Há uma conexão entre os subsídios e a cesta básica, se aumenta um aumenta todos os preços, como já vem aumentando.

Escultura “Esfera de movimientos oscilantes”, em Quito, dia 8 de outubro.

E como disse, há uma questão de classe, a classe média pode ser que não sinta essas medidas, mas a maior parte da população já está sentindo. E os indígenas sabem que não vão conseguir vender seus produtos, e quando tiverem que vender para as pessoas da cidade, vão ganhar muito pouco. No final, acaba sendo uma cadeia na qual o produtor direto é o que vai ganhar menos, e eles sabem disso. É necessário que se entenda que aqui o alimento nas grandes cidades chega pelo campo, então há aí um efeito direto do aumento do preço da gasolina sobre os pequenos produtores no campo, onde a maioria dos companheiros indígenas vivem.

Sobre o sentimento anticapitalista nas ruas, a esquerda durante os últimos 12 anos esteve muito dividida, desde que o Rafael Correa chegou ao poder, um governo que se dizia de esquerda e que chegou ao poder capitalizando os protestos sociais dos anos 90 e da primeira década dos anos 2000. Desta forma, muito dos protagonistas destes tempos de luta entraram para o governo. Durante esses anos haviam pessoas que acreditavam neste projeto de governo, e que depois se deram conta que ele seguia uma direção muito capitalista. Isso impediu que houvesse uma verdadeira união na esquerda. Agora, neste momento histórico, não creio que houve um processo de crescimento pelo qual os movimentos sociais estavam articulados até chegar a este momento de explosão. Mesmo se aconteceram diversas coisas no campo social nos últimos anos, não havia um encaminhamento claro a respeito da organização revolucionária e comunitária, digamos. É como se os movimentos sociais estivessem adormecidos e, da noite para o dia, graças ao “paquetazo”*, todo o povo de repente se uniu, e isso permitiu que se radicalizasse a luta. Houveram, por exemplo, muitos bloqueios nos bairros, nos arredores das cidades, em pequenos povoados e isso manteve vivo os 8 dias de paralisação em que estamos.

*Paquetazo: refere-se o decreto 883 do governo de Lênin Moreno e seu pacote econômico, em espanhol usa-se a expressão para dar um sentido negativo

Parlamento ocupado em Quito, 8 de outubro.
2. No dia 8 de outubro, milhares de indígenas chegaram marchando à capital Quito e ocuparam o prédio do Parlamento. Como se deu esta mobilização indígena na cidade neste dia? Em torno de quais pautas e ações eles estão se organizando?

Na realidade os indígenas chegaram no dia 7 de outubro, na segunda-feira houve uma batalha campal na cidade de Quito que durou 5 ou 6 horas entre sobretudo estudantes, movimentos sociais e cidadãos de Quito que procuravam manter a polícia ocupada para permitir a entrada dos companheiros indígenas. Lembramos que estamos vivendo em Estado de Exceção, então os militares estão nas ruas e tinham bloqueado neste momento as principais entradas de Quito, as entradas Norte e Sul, para impedir que os indígenas vindos de outras províncias pudessem entrar. Mas, estes estavam tão bem organizados, que não teve inteligência militar capaz de parar a sua determinação. E o fato da luta ocorrer no centro da cidade, também permitiu abrir brechas para que os indígenas pudessem chegar até o centro histórico.

Bem no momento em que conseguimos que a polícia recuasse, vimos chegando os caminhões cheios de gente, e as motos que acompanhavam a caravana indígena, foi um momento muito emocionante. Eles foram diretamente até o Parque El Arbolito, ao lado da Universidade Salesiana onde está organizado um apoio logístico ao movimento. No dia seguinte se convocou uma concentração no Parque El Arbolito e foi decidido tomar a Assembleia. Chegando lá, uma primeira delegação entrou e aos poucos foram entrando mais gente, enquanto havia milhares de pessoas na porta da Assembleia querendo entrar. A polícia lançou bombas de gás no meio das pessoas, o que criou um movimento de pânico. Pessoas poderiam ter stido mortas pisoteadas porque muitos, não podiam respirar, outros muitos corriam em várias direções. Enquanto isso a polícia continuava atirando bombas de gás e balas de borracha nos manifestantes. Nesse momento começou uma repressão muito grande. A Assembleia, estrategicamente, é como um pequeno forte, situada em cima de um morro; para protege-la, a polícia se posicionou em um ponto mais alto e tinha condições de acertar os manifestantes com franco-atiradores. Consequentemente houve um número muito grande de feridos e alguns mortos, já que policiais estavam em uma posição estratégica para reprimir.

A ideia de ir até a Assembleia era uma das ações que o movimento indígena havia decidido executar durante estes dias que estiveram em Quito. Até ontem (quarta-feira, dia 9/10), havia bastante preocupação, porque não havia estratégia clara, enquanto o Governo não recuava e estava aumentando a repressão. Inclusive, o fato da polícia ter lançado bombas de gás dentro de centros de paz e espaços de acolhimento, como a Universidade Salesiana e a Universidade Catolica, causou muita indignação e, de uma certa forma, atingiu o Governo porque a notícia circulou, apesar do cerco midiático que as grandes mídias e o Governo estão tentando manter.

Manifestantes enfrentam as forças de segurança no centro de Quito.

Hoje (quinta-feira, dia 10/10) pela manhã, 8 policiais foram detidos pelo movimento e trazidos para a grande assembleia popular e indígena na Casa da Cultura onde havia cerca de 10.000 ou 15.000 pessoas. Os jornalistas dos grandes meios de comunicação que estavam lá acabaram transmitindo ao vivo a assembleia, mesmo que não o fizessem da melhor maneira. Isso permitiu de certa maneira quebrar o cerco midiático divulgando, por exemplo, o fato que um companheiro liderança indígena de Cotopaxi, Inocencio Tucumbi, foi morto. Ele desmaiou após ter inalado muito gás lacrimogêneo e em seguida foi pisoteado por um cavalo da polícia. Isso até então não tinha saído na grande mídia. De repente apareceram os mortos nos grandes canais de TV’s e foi se tornando evidente para o grande público que sim, o Governo está matando e está criando um nível de repressão muito grande!

Então, a estratégia de hoje teve êxito. Como eu te disse, ontem ainda não havia estratégia muito precisa, mas hoje já estávamos mais organizados. Houve uma missa, e foi organizado um corredor humano de 1 km da Casa da Cultura até o Hospital para poder encaminhar o corpo do nosso companheiro, muita gente aplaudiu, foi também um momento de grande emoção. Nos despedimos dele com muita honra, porque era um grande companheiro de luta. Também prometeu-se naquele momento que em sua memória a luta iria continuar. Também foi um momento para juntar forças, para descansar, para pensar sobre a estratégia a seguir nos próximos dias e para compartilhar essa dor geral pensando naqueles que caíram, naqueles que estão feridos e nos dar animo para seguir lutando.

A exigência da CONAIE (Confederação de Nacionalidades Indígenas do Equador) em seguida foi clara, dizendo que se o Governo radicalizasse a violência, obviamente a rua também iria em resposta se radicalizar.

Chegando a noite, os policiais foram libertados e foram entregues na frente da Assembleia, em meio à uma grande manifestação. Pelo fato da Assembleia e da Casa da Cultura estarem próxima, havia uma espécie de manifestação-plantão permanente na frente da Assembleia e a zona estava repleta de manifestantes. Havia esta noite cerca de 30.000 pessoas no local. Foram então entregues os policiais e os indígenas deixaram claro que eles haviam sido detidos por terem entrado em uma zona que havia sido declarada zona de paz. Foram portanto detidos, mas estavam sendo entregues são e salvos. Diferente da prática da polícia, pois no dia em que a Assembleia foi tomada, houveram cerca de 80 presos. E quase todos foram soltos, ontem, com marcas de violência e machucados.

3. Os povos indígenas declaram seu próprio estado de exceção em seus territórios, ameaçando prender agentes do estado que ousariam entrar nessas regiões. Como se dá essa autonomia e organização territorial dos povos? E quais são esses povos?

Sobre o Estado de Exceção decretado nos territórios indígenas, isto explica também o episódio todo que eu te contei. Pois neste momento a Casa da Cultura e toda a região ao redor estão sendo considerados como territórios indígenas, então foi considerado que os policiais violaram a soberania excepcional dos povos indígenas e por isto fora detidos. Isto aconteceu também em outros territórios indígenas nesta semana, onde foram detidos militares que violaram estes territórios, foram sequestrados ônibus e veículos blindados de militares. Isto acontece porque os povos indígenas, desde há tempos já exigem a autonomia em seus territórios e possuem sua própria lei indígena. Quando acontece algum problema dentro destes territórios, alguém roubando ou causando problemas, o caso é resolvido pela justiça indígena, sem passar pela justiça estatal.

Então, a partir do momento em que o Governo decretou o Estado de Exceção, em resposta os indígenas decretaram também o Estado de Exceção em seus territórios como uma forma de diminuir o nível de repressão e também de pressionar os militares e a polícia que, seja na rua ou nos territórios, reprime os povos, para que estes saibam que correm o risco de serem detidos, como aconteceu. Como disse, em diferentes territórios, militares e policiais foram retidos, desarmados e, depois de alguns dias, foram soltos após ter passado pela justiça indígena. Isso funciona claramente no sentido de expor na frente da pessoa acusada tudo que ela fez, dependendo do delito cometido e em relação a este se decide o castigo a ser sofrido pelo preso de modo comunitário.

E sobre as etnias, digamos que a CONAIE está dividida entre todos os povos indígenas e outros povos incluindo cholos (mestiços) e povos negros do equador. Existem os indígenas do litoral, os povos da Serra Norte, da Serra Central, da Serra do sul e os do oriente, da região Amazônica e todos se articulam através da Confederação das Nacionalidades Indígenas do Equador.

4. Existem rumores – criados pela grande midia vinculada ao governo – de que a CONAIE está fazendo acordos com o governo e parece que este último está tentando dividir o movimento entre bons e maus. Más nas últimas horas (10/10), no entanto, houve notícias de que não há acordo entre a CONAIE e o governo. Quanta chance essas tentativas tem de ser bem-sucedidas? Quanto a CONAIE estaria disposta a radicalizar o movimento ou negociar? E que influência ou representação efetiva a CONAIE tem em relação aos povos indígenas?

É claro que houve rumores, fofocas, mentiras e falsidades feitas pelo governo e pela mídia que obviamente tentam dividir a luta popular que hoje está ocorrendo nas ruas de Quito e em todo o Equador. Deve-se dizer que essas grandes organizações como a CONAIE, o FUT (que é o maior sindicato dos trabalhadores do país) historicamente também tiveram momentos em que negociaram, em períodos de fraqueza, e essas negociações não chegaram a nenhum lugar. E, por serem grandes organizações, também estão dentro de um cenário super-político; portanto, às vezes os próprios movimentos os vêem como estruturas políticas ambíguas. Mas isso é normal, além disso, devemos ver a capacidade organizacional que eles têm, neste caso especialmente a CONAIE, com seu papel histórico, considerando que no passado ela conseguiu derrubar vários presidentes. Nesses dias também temos visto a força das agremiações de transportadores e motoristas de táxi que paralisam a cidade e aquela dos estudantes que saíram às ruas. A verdade é que os transportadores têm um papel histórico muito mesquinho no Equador e eles decidiram sair da greve logo de que conseguiram aumentar o preço das passagens. Enquanto as pessoas e especialmente os estudantes conseguiram manter a luta nas ruas e os indígenas imediatamente se juntaram. Tanto o movimento urbano quanto o movimento indígena logo conseguiram descentralizar a atenção que era inicialmente exclusivamente para os transportadores.

Então sim, houve esses rumores. Mas hoje também tem o fato de que houve atenção para os polícias presos e, com aquilo, os jornalistas que foram imediatamente para lá. Os líderes de cada grupo indígena e o próprio presidente da CONAIE, o Sr. Vargas, declararam publicamente que não vão negociar com o governo porque que o sangue dos mortos não pode ser negociado e que, para iniciar um diálogo, eles colocam como condição a eliminação do decreto 883 (o “paquetazo”), que o FMI deixe o país, e que a ministra do Interior Maria Paul Robles e o ministro da Defesa, Oswaldo Jarrín, renunciem imediatamente, pois são os culpados pela morte dos companheiros que caíram nestes dias.

Obviamente, há uma grande pressão das bases. Nos dias anteriores, havia poucas reuniões, principalmente de líderes e alto comando de organizações políticas Mas hoje (10/10) foi decidido fazer essa assembleia popular que durou muitas horas e toda decisão era fruto de uma consulta a população, as bases que estavam lá e que, como eu disse, eram umas 10 a 15 mil pessoas e tudo foi então decidido coletivamente. Também podemos dizer que a pressão das bases está permitindo que a liderança também tome decisões radicais, e não seja vendida, por desespero, por medo de ser presa ou por dinheiro que o governo desejar dar a eles por debaixo da mesa.

A CONAIE, em geral, tem uma enorme representatividade. No Equador, se você pensa nos povos indígenas, pensa diretamente na CONAIE. É uma organização muito grande, com uma estrutura política incrível e também comunicativa, estratégica. Hoje vimos muito bem como eles conseguiram “virar la tortilla” e colocar o governo em dificuldade.

5. O governo acusa Correa de estar por trás das manifestações. Mas, ao olhar aquelas, não parece que os correistas estejam tendo um papel protagonista. Qual é o papel de Correa na fase atual, tanto nas marchas quanto na possibilidade de cooptação e saida “pacífica” ou eleitoral do conflito?

Obviamente, o governo acusou Correa, acusou Maduro, disse que Correa havia viajado para a Venezuela e que a partir daí ele desenvolveu um plano para desestabilizar o governo. Agora eles também dizem que por trás do tumulto nas ruas estão o Latinquín, que é uma “pandilla” (uma gangue) e as FARC, ou seja, esse senhor não sabe mais o que dizer. Obviamente, culpar Correa é uma coisa que ele está acostumado, tem dois anos que Correa tem sido culpado de tudo. Apesar de Correa ser um corrupto que deve pagar pelos crimes contra a humanidade, pela repressão que ocorreu durante seus governos, pelos casos de corrupção, não se pode culpá-lo por tudo que é de responsabilidade do atual governo, que comanda o país há mais de dois anos. Então há essa acusação geral por parte de toda a direita  que, neste momento, apóia Lenin Moreno e esse costume de culpar Correa toda vez que há uma crise: se falta dinheiro é porque Correa o levou; se há criminosos é porque Correa fez leis que liberavam criminosos; se há muitos migrantes é por causa da lei da mobilidade – o governo anterior sempre é o culpado.

Dito isto, apesar do fato de que nos últimos meses, no ano passado, nas mobilizações e marchas que contra o governo – que eram muito menores do que são agora, pois agora é uma verdadeira revolta – os correistas estavam sempre presentes e isso criava problemas para alguns movimentos sociais, que não queriam estar junto com eles. Isso nos fez pensar que eles ainda estariam presentes nas marchas desses dias, pois também são um grupo muito consistente. De fato, no primeiro dia foram marchar e foram reprimidos, no segundo também apareceram mas estavam por trás da marcha e queimaram dois pneus fora do Banco Central enquanto mais a frente os estudantes tentavam entrar no centro histórico e enfrentavam a polícia. Depois daquele dia os correistas praticamente desapareceram, as pessoas não lhe deram espaço. Hoje (10/10) estávamos fazendo entrevistas com alguns companheiros auto-organizados e perguntamos a eles: e Correa? E todos responderam com muita clareza: não sou correista, não estou aqui por Correa, Correa não nos paga. E isso é evidente: os correistas não estão nas marchas, certamente um ou outro há, mas não estão de forma organizada.

Milhares de indígenas marchando rumo a Quito no dia 9 de outubro.

Dois dias atrás, no dia da assembléia, o padre Tuárez – presidente do Conselho de Participação do Cidadão e foi demitido por ser fanático religioso – disse que Deus havia lhe dito que Correa era o Salvador e que ele precisava voltar, coisas assim. Ele tentou se infiltrar nas mobilizações e as pessoas o colocaram para correr. Ou seja, essa possibilidade não existe. Isso também é o interessante: nem os partidos políticos nem os políticos tradicionais foram capazes de se apropriar do que está acontecendo. As únicas autoridades digamos mais “políticas” que têm legitimidade e que neste momento estão liderando as mobilizações são as do sindicato FUT e da CONAIE. Na verdade, é todo o povo que fica nas ruas, e isso é muito assustador para a direita, para a burguesia, para os banqueiros, para os “donos” do país porque a rua não aceita nenhum dos líderes políticos. Então, a solução pode ser que o “paquetazo” caia e que por algum momento retorne a calma, mas obviamente isso não poderá durar muito tempo. Outra possibilidade é que Lenin Moreno renuncie, e o “paquetazo” permaneça e o governo tentaria distrair o povo que ele se acalme e para que a atenção fique no fato de Moreno ter saído ou o fato de que um governo popular possa realmente ser construído, um governo nascido das ruas – e esses rumores já estão circulando. Então imagine o que estão pensando a direita, a burguesia equatoriana. Eles não absolutamente podem permitir que as ruas ganhem, porque isso significaria que depois de 12 a 13 anos se mostra às pessoas algo que na percepção comum não existe mais, isto é, ir às ruas é bom e se você se organizar, se resistir, se continuar insistindo, alcançará seu objetivo. Essa seria uma reação em cadeia que permitiria novamente que as pessoas acreditassem em suas possibilidades. Eles sabem disso e é por isso que estão todos unidos para evitá-lo.

6. Como o bloco no poder está enfrentando as manifestações? Existem divisões possíveis (entre os partidos, nas Forças Armadas…)?

O bloco no poder está todo unido. Os maiores líderes políticos (Lenin Moreno, Guillermo Lasso, Jaime Negot, Álvaro Noboa) estão todos unidos. Correa obviamente não diz nada porque o que ele quer fazer é capitalizar o que está acontecendo nas próximas eleições. Ele sabe bem que não é conveniente para ele falar muito porque o governo já está dizendo que a culpa é dele e não é estratégico para ele se envolver demais. Basta que as pessoas pensem que “tudo era melhor quando ele estava lá” e nas próximas eleições é muito provável que ele possa ganhar. O presidente está agora em Guayaquil, que é o refúgio dos social-cristãos, o partido de direita, que todos temiam que fosse vencer na próxima eleição. Mas agora não parece possível porque, certamente, ele não vai ter o voto da Serra, de cidades como Quito, Ambato, Riobamba, das comunidades indígenas. Então todos estão unidos, tentando usar todos os meios possíveis para criminalizar o protesto.

Quanto às Forças Armadas, agora temos um Ministro da Defesa treinado em Israel, pelo Mossad e pela Escola das Américas, um louco fascista, um militar. Há quatro dias, o governo criou uma cadeia nacional de uma hora, na qual esse louco falou metade do tempo, ameaçando, dizendo que as Forças Armadas saberão se defender, que não devem ser provocadas, que as pessoas precisam manter a calma porque se não a repressão será feroz, como se estivéssemos na ditadura. Isso claramente levou as pessoas a serem bastante indignadas. Ainda não se sabe, não existem dados precisos sobre deserções dentro do exército ou da polícia. O certo é que o papel histórico do exército sempre foi reprimir o povo e, em um determinado momento, quando o descontentamento popular já é evidente, eles tentam alcançar uma estratégia para impedir a existência de um governo popular e se apresentam como mediadores para criar um novo governo, mas que geralmente sempre termina sendo pior que o anterior. Então é possível que em algum momento as Forças Armadas comecem a criar rupturas dentro da organização popular e também a tirar o apoio do presidente.

O Estado e o Capital mantendo seus cães de guarda devidamente alimentados.
Lenin Moreno saiu de Quito, mas deixou seus cães devidamente abastecidos.
7. Como o movimento transformou a vida cotidiana na cidade de Quito? E como se organiza o dia dia nos espaços ocupados pelos manifestantes?

É impressionante o nível de solidariedade que se instalou aqui na cidade, que alguns tem rebatizado a Comuna da Quito, justamente porque não são apenas indígenas, não são apenas os estudantes, não são apenas manifestações. Há bloqueios feitos nos bairros que estão organizados. Como no Centro Histórico, o bairro de San Juan por exemplo, se organiza autonomamente. Quando a manifestação chega lá, pessoas te dão comida, água. No dia de ontem, quando a tensão se deslocou para os arredores de San Juan, na parte alta do Centro histórico, haviam vários moradores que chegavam trazendo pedras, pessoas que desde as janelas das casas davam aos manifestantes materiais para poder queimar ou para se proteger do gás de pimenta. Na porta das casas, haviam pessoas que nos davam água.

Cozinha comunitária organizada pela CONAIE.

Dentro das casas haviam pessoas que recebiam e ajudavam os feridos, oferecendo um espaço para que os médicos voluntários pudessem os atender, já que as ambulâncias não conseguiam chegar até lá. Tem muitos médicos voluntários, muitos deles estudantes de medicina, de enfermaria, que estão ajudando nas ruas, dando assistência emergencial aos feridos para evitar que haja mortos ou que as feridas se agravem. Temos portanto um aparato médico incrível, muito organizado.

Temos locais de recepção de alimentos, faço parte de um destes grupos no Whatsapp porque o lugar onde eu trabalho está funcionando como ponto de coleta de produtos. E por todo centro, por todas as Universidades, tem lugares funcionando como cantinas populares, como espaços de acolhimento para as pessoas de fora que vieram à Quito para lutar. Estes lugares estão cheio de doações e, por vezes, nem sabem onde levar todas estas doações que recebem. Tem cozinhas comunitárias, onde pessoas vem oferecer seu tempo para preparar alimentos. Ontem, eu estava conversando com pessoas de uma cozinha comunitária, no Parque Arbolito, havia ali um senhor que foi ferido enquanto a polícia atacava o Parque, porque apesar do ataque a cozinha continuou no local, ajudando as pessoas. Foi um bairro de Quito que montou a cozinha, se organizando através de uma igreja evangélica, estava ali o pastor e suas três panelas gigantes. Me disseram que haviam alimentado 700 pessoas apenas neste dia. Conheci também uma senhora muito humilde do sul de Quito, com a qual eu conversei, que tinha um pequeno negócio e veio pela tarde com uma pequena van, junto com seu filho, passando pelo Parque distribuindo café e pão para as pessoas. Então realmente, a comida não falta, há comida por toda parte, hoje mesmo eu já comi quatro vezes, por todo canto há pessoas te chamando para comer algo e às vezes se ofendem se você recusa porque é uma forma de doação.

Tem pessoas organizadas para apagar os gases de pimenta, ou para cuidar das pessoas atingidas pelos gases. Tem todo tipo de organização, tem pessoas que se encarregam de cuidar das crianças. (Tosse forte, “foi mal, é o efeito dos gases nos pulmões”.) Tem pessoas que organizam brincadeiras para as crianças. Tem pessoas que passam o dia cantando, tocando música. É realmente muito muito interessante o que está acontecendo aqui. Por isto, alguns falam aqui da Comuna de Quito, alguns dizem que de certa forma já ganhamos neste ponto de vista, no nível da auto-organização espontânea. Mas foram muitas assembleias para poder organizar o que está acontecendo agora. E creio que esta é a maior vitória, e esperamos que isso poderá continuar, este espírito de auto-organização. Este fato de mostrar que juntos já podemos resistir 8 dias e paralisar um país por 8 dias, para dizer que nossos direitos sejam respeitados.

8. Como o movimento planeja se organizar a partir de amanhã?

Hoje, durante todo o dia (10/10), houve uma manifestação, com a entrega dos policiais que haviam sido detidos, com o chamado para continuar a luta e os indígenas ainda estão aqui em Quito. Hoje foi um dia de tranquilidade, paz, luto. De fato, a CONAIE anunciou três dias de luto, não sei se isso significa que nos próximos três dias haverá apenas marchas pacíficas. Mas acho que estrategicamente também pode servir um pouco, por exemplo, hoje foi um dia “pacífico”, mas muitas coisas foram alcançadas, a atenção da mídia foi alcançada, a barreira da mídia foi quebrada. Apesar do fato de que eles cortaram nosso sinal de telefone celular e a Internet, o que dificultou a documentação de mídias independentes e pessoas desde os telefones celulares particulares. Então, acho que todos estamos nos preparando para uma longa resistência, se no início pensávamos que poderia terminar de um momento para o outro, depois do que vimos nesse últimos dias, entendemos e temos a sensação de que isso durará muito mais tempo – e é por isso que devemos organizar estrategicamente os momentos de luta e não queimá-los imediatamente. É importante tentar gerar opinião pública, quebrar a barreira da mídia, criar novas estratégias de combate, além das manifestações, dos momentos de riot, dos momentos de conflito com a polícia. Isso não significa que uma coisa esteja certa e outra errada, mas que precisamos usar todas as ferramentas possíveis para obter a vitória.

Certamente a luta continuará! Hoje prometemos diante do caixão do camarada morto pela polícia, que a luta continuará!