BLACK BLOCS E LIBERTAÇÃO ANIMAL – 6 Anos da Ação em São Roque em 2013

Bons exemplos mas não um modelo pronto

Em outubro de 2013, exatos 6 anos atrás, um protesto contra o uso de animais em testes realizados em um laboratório no interior do estado de São Paulo se transformou em uma das mais emblemáticas ações diretas daquele ano que mudou o cenário político e os movimentos sociais no Brasil. O evento por si só já chama a atenção pelo tamanho e pela eficiência, ainda mais no contexto brasileiro, pouco familiarizado com ações radicais pela libertação animal com uma perspectiva anticapitalista. Acreditamos ser importante revisitar tais acontecimentos para aprender com suas limitações e desenvolver seus acertos no que diz respeito a diversidade de táticas, coordenação de diferentes movimentos, radicalidade e contundência da ação que pode inspirar outros grupos e novas campanhas.

A ação em São Roque:

Após dias acorrentadas nos portões do Instituto Royal, na cidade de São Roque, denunciando o uso e o assassinato de animais com técnicas como a vivissecção (cortar animais ainda vivos e sem anestesia para experimentações), ativistas atraíram a atenção da mídia e de outras organizações para a causa. E na madrugada do dia 18 daquele mês a manifestação se tornou uma ação de resgate dos animais que libertou quase 200 cães da raça beagle e dezenas de ratos. Toda a ação foi fotografa e filmadas pelas participantes.

Do lado de fora do laboratório, a estrada foi tomada por barricadas logo pela manhã. Uma viatura da polícia militar e um carro da imprensa foram queimados por manifestantes. Algumas pessoas menos acostumadas com a dinâmica de resistência em protestos de rua ainda tentaram formar uma barreira para proteger os carros de emissoras de TV da destruição, mas não adiantou. Do lado de dentro, jaulas foram esvaziadas, computadores, documentos e materiais de pesquisa foram destruídos. Paredes pixadas por símbolos da Frente de Libertação Animal (ALF) e ruas tomadas por Black Blocs que montaram barricadas para impedir que a tropa de choque chegasse ao laboratório e prendesse manifestantes.

Carro de emissora de TV depredada e viatura da Polícia Militar incendiada na estrada em frente ao laboratório.

Para muitas pessoas ali, era como se enfim chegasse o dia que toda uma geração de movimentos pela libertação animal, anticapitalistas e anarquistas sonharam e trabalharam para ver. Era o momento em que táticas radicais se encontram, convergem permitindo que movimentos distintos, com táticas distintas, operassem em conjunto para uma ação efetiva. Foi possível atingir tanto seu objetivo imediato (resgatar os animais e impor consequências ao laboratório pelo uso e tortura dos mesmos), quanto objetivos de médio e longo prazo (o fechar o laboratório e a educar a opinão pública sobre o tema). A ação chamou a atenção do público geral e tomou as notícias em todo o país, provocando uma mudança inédita no imaginário das pessoas sobre o que é possível fazer em uma ação direta pelos animais e educando as pessoas sobre o quão perverso e inútil são os testes em animais e o uso dos animais para qualquer fim. Tudo isso devido a uma janela de possibilidades aberta nas ruas em junho de 2013 nos grandes levantes contra o aumento das passagens no transporte público.

A invasão do Instituto Royal é um exemplo emblemático mas que também desperta curiosidade e demanda reflexão. Como nas ruas tomadas na luta contra o aumento em todo o país em junho daquele ano, a batalha em São Roque contou com a presença de uma grande diversidade de pessoas. Diferentes idades, posições políticas, classes sociais e também diferentes táticas e modos de luta e organização: ativistas que defendem o “bem estar animal” (ou que focam sua ação apenas em cães e gatos) estavam lado a lado com grupos veganos anticapitalistas. Personalidades da TV ou manifestantes de classe média que defendem a causa animal protegidas atrás de barricadas feitas por Black Blocs anarquistas. Um mosaico de inúmeras formas e contextos de luta se aliaram com um objetivo comum. A articulação prévia de longos dias foi organizada por um número reduzido de pessoas e catalisou a luta que surgiu de forma espontânea para centenas de pessoas que aderiram ao movimento imediatamente após um chamado aberto para a ação direta. Uma estratégia improvisada e repentina se tornou a principal arma contra uma polícia despreparada e incapaz de prever os movimentos de pessoas determinadas a agir.

Animais foram resgatados, o laboratório declarou falência e o impacto nas leis e na opinião pública foi maior do que todo o ativismo estritamente legalista ou outros protestos simbólicos contra a empresa durante os cinco anos anteriores: até o início de 2014, novas leis que regulam e restringem o uso de animais em testes foram aprovadas, incluindo a proibição desse tipo de teste para cosméticos em todo o país. O que nos prova que mesmo quando as pessoas querem apenas reformas, novas leis ou o fim de uma instituição opressiva, é melhor demonstrar força popular para realizar essas mudanças por nossas própria ações do que pedir pacificamente e esperar a boa vontade de poderosos. Se nos mostrarmos irredutíveis e com disposição para ação, as autoridades vão correr para nos atender antes que consigamos algo por nossa conta. Nesse momento é que os movimentos devem buscar ainda mais força para dobrar as autoridades.

Manifestantes rompendo as barreias policiais e ativistas resgatando cães dentro das dependências do Instituto Royal.

A invasão ao Instituto Royal serve com um exemplo de sucesso obtido quando a organização de longo prazo encontra a imprevisibilidade de ações imediatas, inovadoras e capazes de mudar de táticas para encontrar uma brecha no sistema, antes que a repressão policial seja capaz de reagir à altura. Questionando o discurso tradicional das lutas sociais legalistas, vimos que a diversidade de táticas e de formas de organização, quando aliadas, podem ser a chave para vitórias que tornam possível o que era até mesmo impensável.

Ainda assim, o episódio é um bom exemplo e não um modelo ou receita a serem seguidos metodicamente. Mais do que buscar respetir suas táticas e etapas de ação, é preciso entender e assimiliar as posturas que permitiram o sucesso da ação. Mesmo conflituosa e divergente para muitas pessoas que participaram, a ação mostra que uma diversidade de táticas e frentes de luta diferentes pode ser muito mais eficientes, tanto a curto quanto a longo prazo. Diferentes níveis de luta, como ação direta e confronto com forças de repressão, mídia independente e autônoma, comissões legais e porta-vozes, ajudam a distribuir a legitimidade dos movimentos e torna difícil a tentativa do Estado de isolar e silenciar “minorias infiltradas” ou “grupos radicais” do resto da luta. Essa harmonia e cumplicidade entre formas diferentes de ação se mostrou muito efetiva para libertar os animais, impor danos ao laboratório e não dividir o movimento entre “legítimos” e “ilegítimos”, “legais” ou “ilegais”, impedindo que as autoridade encontrassem divisões fáceis entre participantes que permitisse isolar e prender quem realizou ações ilegais de invasão, dado a propriedade.

O sucesso imediato e a continuidade do debate sobre o uso de animais como objetos e sua condição de propriedade em um sistema capitalista conseguem ir para além do reformismo bem-estarista (que visa apenas regular o uso de animais) e desafia o moralismo burguês dos movimentos abolicionistas (que lutam para que nenhum animal seja considerado propriedade) que se baseiam, muitas vezes, em princípios pacifistas como valores absolutos.

Black Blocs formando um cordão de proteção para bloquear o avanço da polícia em direção ao laboratório.

É necessário sempre repensar táticas, ser capaz de inovar e sempre fazer uma autocrítica. Não há problema na radicalização das ações antiautoritárias e de libertação. O problema não é atacar ferozmente o sistema, mas sim não continuar atacando. Somente a radicalização aliada ao debate sobre uma diversidade de táticas e discursos pode impedir que a legitimidade das lutas seja determinada pela mídia, pelo Estado ou por ativistas privilegiados – empresários, apresentadoras de TV e políticos – que buscam sequestrar lutas sociais organizadas por pessoas anônimas ou invisibilizadas como forma de acumular ainda mais poder e privilégios.

Para compreender um pouco mais de como foi a luta por trás das barricadas e por baixo das máscaras, publicamos aqui dois relatos escritos por pessoas que estiveram na invasão do laboratório. Elas contam como foram esses momentos de luta e descrevem sua importância para ações futuras. É preciso mais debates e, principalmente, mais ações que desafiam as leis e as “receitas de bolo” revolucionárias.

Por uma luta de libertação animal e humana total, radical e anticapitalista!

Primeiro Relato:

Em meio ao instável cenário político que veio após os protestos de junho de 2013, ativistas pelos direitos animais começaram uma campanha para fechar o Instituto Royal, um laboratório localizado no interior do estado de São Paulo conhecido pelos testes em animais e pelas práticas de vivissecção.

Após alguns dias atraindo atenção para o assunto e para esse estabelecimento em particular, a noite que mudaria como a mídia, a população e até legisladores encaram a vivissecção estava por vir. E sua história seria escrita através da ação direta. Naquela noite, em especial, as pessoas se reuniam em frente ao portão do laboratório atraídas pelas notícias que circulavam nas mídias sociais. No momento que cheguei àquela área rural cortada por estradas de terra e algumas poucas casas, a polícia estava guardando os portões e podíamos ver funcionários e seguranças privados andando dentro do prédio. Caminhões entravam e saíam, aparentemente, levando documentos e animais por medo de uma invasão. Mas essa não era uma ação da Frente de Libertação Animal (ALF). Pessoas de todos os tipos estavam presentes. Algumas só se importavam com os beagles, outras com apenas cães e gatos em geral, outras eram ativistas dos direitos animais. Black Blocs também estavam lá e até apresentadoras de TV que apoiam causas animais chegaram pois a mídia começou a divulgar que uma invasão estaria para acontecer. O que fez com que a mídia burguesa aparecesse e também mais pessoas em geral.

A polícia logo ficou em menor número e claramente incapaz de lidar com o fenômeno que tomava forma ali. É importante lembrar que São Roque fica a uma hora de qualquer cidade maior. Em poucas horas éramos muitas à postos naquela estrada sem saída cercada de mato. A estrada termina em um portão com uma largura que cabe 15 pessoas enfileiradas. De repente não parecia mais ser uma barreira e a polícia já demonstrava não estar preparada para a situação. O que pode dizer que eles poderiam reagir de forma desproporcional, mas como não se tratava do batalhão de choque, era mais provável que iriam apenas recuar. Especialmente devido à diversidade da multidão composta por senhoras de cinquenta ou sessenta anos junto a estudantes e pessoas vestidas como um Black Bloc.

Por volta da meia noite os carros do laboratório não conseguiam mais sair pelo portão e os latidos dos cães nos lembrava que as pessoas do lado de fora não eram as únicas apreensivas. Redes sociais funcionavam fortalecendo centenas de nós que estavam ali. Às duas da manhã, no dia 18 de outubro, ficou óbvio que haveria uma invasão. Bastou alguém tomar a iniciativa de começar a bater no cadeado do portão com uma pedra para que todo mundo ver que estava na hora. O portão já estava sendo derrubado enquanto gente cortava as cercas e a multidão pressionava em todas as possíveis entradas.

Rodovia que leva ao laboratório bloqueada por manifestantes.

Entramos! Uma pequena estrada leva ao prédio principal, com mais portas a serem quebradas e arrombadas. A polícia só conseguia olhar e a mídia estava lá dentro também com as câmeras ligadas. A maioria das pessoas usava máscaras como em um resgate aberto. Algumas de nós, que temiam o que podia acontecer depois, tínhamos o cuidado de cobrir nossos rostos.

Um por um, quase 200 beagles foram transportados no colo subindo o morro até onde, há poucos minutos, havia um portão onde outras ativistas esperavam com seus carros – praticamente todo mundo chegou lá de carro porque não havia outro meio de transporte para o local a essa hora da noite. Quem libertava os cães de suas jaulas não sabia para onde eles estavam sendo levados. O que importava era que estavam sendo libertos da exploração. Isso foi útil quando ativistas que estavam lá dentro sob o foco das câmeras começaram a ser identificados e sofrer acusações por roubar “propriedade privada”. Como argumentamos, as chamadas “propriedades” nunca foram tomadas como posse daquelas pessoas que os tiraram de lá.

Pessoas carregam cães um a um para fora do Instituto.

Um grupo de advogados voluntários se formou para defender quem era identificado e uma rede clandestina de veterinárias se dispuseram a remover chips que poderiam identificar animais adotados. Curiosamente, um deputado que atua na área de bem estar animal também estava presente durante o resgate, atraído pela presença da mídia e pela multidão de ativistas. Ele adotou dois beagles que passaram a morar em sua casa e poucos dias depois a mídia estava lá para filmar os cães e contar sua história. Em seu benefício, a lei brasileira diz que um membro do congresso não pode ser acusado desse tpo de crime enquanto exerce seu mandato. Para pessoas menos privilegiadas, podíamos apenas ter a companhia de alguns beagles que sofreram abusos, com sinais de mutilação e traumas psicológicos que às vezes são difíceis de notar.

A invasão foi realmente uma cena caótica, sem planejamento prévio, nenhuma direção e, provavelmente, não é um modelo a ser repetido. Sua espontaneidade foi a mágica que fez com que tudo fosse possível. Sua diversidade foi um fator que fez os números de participantes possíveis e a repressão impossível. A compaixão de todo mundo presente foi a força que ampliou seu significado para além dos indivíduos salvos.

Poucas semanas depois, após extensiva e persistente cobertura da mídia sobre o assunto, leis começaram a ser propostas na cidade, no estado e no país. A prefeitura mandou trancar o laboratório e manifestantes mantiveram a pressão até que o Instituto Royal anunciou seu fechamento no dia seis de novembro. Ainda assim, eles recusavam a liberar os animais que ainda estavam lá durante o primeiro resgate. Então uma nova e legítima ação da ALF realizada no dia 13 de novembro por uma pequena célula resgatou os 300 ratos que ainda estavam lá e nenhum animal esteve presente para testemunhar os últimos momentos do Instituto Royal.

Interior do laboratório atacado durante a madrugada.

Vídeo da segunda invasão ao Instituto Royal para resgatar ratos que ainda estavam presos.

Tendo em vista as elevadas e irreparáveis perdas e os danos sofridos em decorrência da invasão realizada no último dia 18 – com a perda de quase todo o plantel de animais e de aproximadamente uma década de pesquisas -, bem como a persistente instabilidade e a crise de segurança que colocam em risco permanente a integridade física e moral de seus colaboradores, os associados concluíram que está irremediavelmente comprometida a atuação do Instituto Royal para dar continuidade à realização pesquisa científica e testes mediante utilização de animais. Por este motivo, o Instituto decidiu encerrar suas atividades na unidade de São Roque”

Declaração do Instituto Royal em 06/11/2013 sobre seu fechamento.

Segundo Relato:

Nós fomos de carro de São Paulo a São Roque em três pessoas no segundo dia de manifestação. Ativistas que retiraram os cães ficaram a noite toda lá e, no dia seguinte, iriam retirar os roedores que restaram. Eu cheguei em São Paulo pela manhã e nós chegamos no instituto no começo da tarde, a Rodovia Raposo Tavares já estava interditada pela Polícia Militar muito antes. Chegando lá havia muito tumulto e uma divisão bem clara: de um lado, ativistas pacifistas pelos cães com faixas e dizeres cristãos, se recusando a cobrir o rosto e mantendo distância do conflito com a Tropa de Choque. Do outro, pessoas de máscaras e bandanas iam de encontro a linha policial. A polícia parecia estar evitando o conflito e focando na porta do instituto, que já estava fortemente protegida pela PM para evitar a segunda entrada dos militantes. Uma viatura foi incendiada e logo após outro carro de uma emissora de TV também estava em chamas. A polícia interviu muito após isso para tentar dispersar a manifestação e me juntei a um grupo que se formou para tentar entrar no instituto através da mata em volta. Pulamos uma cerca e tentamos dar a volta para entrar pela parte de trás onde não havia policia, mas havia helicópteros sobrevoando o local e nos encondemos em uma casa abandonada. De lá chegamos perto dos limites do instituto para encontrar com uma segurança privada, sem identificação e portando de armas de fogo.

Polícia ataca manifestantes e Black Blocs formam barricadas pare resistir e responder à agressão policial em frente ao laboratório.

A PM percebeu a tentativa de entrar por trás e começou a perseguir alguns manifestantes dentro da mata. O grupo inicial havia se dividido em vários por não concordar em como entrar no instituto. Havia ainda ativistas que se recusam a cobrir o rosto por insistir em que resgatar animais não consistia em crime. E foi esse o sentimento que persistiu do começo ao fim.

Considerando que as pessoas que organizaram a manifestação inicial são pacifistas e cristãs, houve muita desorganização por conta desse racha ideológico. As pessoas pacifistas colocaram muito em risco a identidade e segurança de quem se dispôs a entrar no instituto e enfrentar a polícia.

Polícia tenta dispersar a multidão sem sucesso.

Por fim, encurralados, saímos da mata muito longe do instituto e fomos cercadas por bombas de gás. A manifestação foi se dispersando no fim da tarde e só nos restou o plano de voltar em outra ocasião.

Havia pessoas de várias partes do país. Todas as placas, cercas, carros e estruturas no perímetro do instituto foram destruídas. Em comparação a junho de 2013, houve muito mais organização, disposição em se arriscar e união. Todos presentes nas ações radicais sabiam claramente qual era o objeto e que tal objeto era extremamente legítimo. Motivadas de maneira quase emotiva, as pessoas viram claramente que aquilo era apenas o começo e que a PM não era capaz de frustrar nossas tentativas, tamanha a presença e vontade de muitas pessoas dispostas a libertar aqueles animais por quaisquer meios necessários. Esse evento inspirou o resgate das chincilas em Itapecirica e outras ações. E independente de rachas ideológicos, foi possível conciliar a disposição dos Black Blocs em se arriscar com a força legalista para fechar o instituto Royal permanentemente e proteger as pessoas que tiveram suas identidades expostas.

Um acontecimento sem precedentes no Brasil e uma semente que, acredito eu, ainda vá germinar em forma de um Frente pela Libertação Animal concreta.

ENTREVISTA: Comuna Internacionalista de Rojava

Uma revolução começou em Rojava, em 2012, mudando radicalmente a vida de milhões de  pessoas no norte da Síria. O povo curdo uniu-se a diversos outros povos da região e se organizou em conselhos autônomos, comunas e cooperativas, libertando-se assim do autoritarismo do regime de Assad. Formularam uma sociedade comum para além do Estado e do Capitalismo. A organização das mulheres tornou-se a força motriz da revolução social e política da região e desenvolveu-se um projeto multiétnico e multirreligioso singular, que hoje garante a coexistência pacífica de milhões de curdos, árabes, assírios, yazidis, armênios, cristãos e muçulmanos, ao mesmo tempo em que tomavam a frente no combate ao Estado Islâmico. Por tudo isso, tal experimento revolucionário sempre foi visto como um problema para os poderes regionais, seja pelos governos de Assad na Síria e Erdoğan na Turquia, ou pelos imperialistas ocidentais.

Nos últimos meses, as ameaças da Turquia contra a Federação Democrática do Nordeste da Síria atingiram um novo nível. O governo de Erdoğan anunciou que está pronto para invadir Rojava, o que pode reacender a guerra civil no país. O presidente turco quer massacrar aquelas pessoas que derrotaram o grupo terrorista conhecido como Estado Islâmico e agora vivem em paz e liberdade.

Assim que o Estado Islâmico foi derrotado, o governo dos EUA induziu as Forças Democráticas da Síria (SDF) a desmantelar suas defesas ao longo da fronteira síria, prometendo garantir a paz na região. região e desencorajá-los a procurar outros aliados internacionais. Uma vez que estavam indefesos, Trump deu à Turquia permissão para invadir a região.

Em meio a uma eminente ameaça de guerra e genocídio contra um povo que protagonizou o maior levante revolucionário do século XXI, conseguimos uma entrevista com a Comuna Internacionalista de Rojava, um enclave revolucionário, que recebe pessoas voluntárias de todo o planeta interessadas em se juntar a revolução, praticando políticas ecológicas, democráticas, horizontais e comunais. Tudo isso em consonância com os valores e estratégias dos povos locais.

Segue a entrevista feira pela Facção Fictícia e um chamado para a solidariedade come essa revolução que pode definir os rumos da luta anticapitalista no Oriente Médio e no mundo.

Cotidiano na Comuna Internacionalista em Rojava.

1. O que é e como você define o trabalho da Comunidade Internacionalista de Rojava? Onde ela está situada e como é a relação com as
comunidades em torno de vocês?

A Comuna Internacionalista é um local de vida e aprendizado comunal situado perto de Derik, no cantão de Cizre, no nordeste da Síria. Seu objetivo é ser um lugar onde os voluntários internacionais aprendam primeiro as bases do revolução, como a Jineolojî (ciência das mulheres) e a história do Curdistão e do Oriente Médio, como uma introdução às atividades em que irão participar então em outros lugares. Este aspecto educacional está organizado através da Academia Internacionalista Șehid Helîn Qereçox, que fica dentro da comuna. Esta é uma das principais atividades da Comuna. Mas também é um lugar que serve de base para grupos internacionais ficarem entre várias atividades, onde podemos discutir nossas experiências, ter um intercâmbio sobre temas ideológicos e aprofundar nossa compreensão da revolução. Trabalhos práticos também são realizados com a campanha Make Rojava Green Again (Torne Rojava Verde Novamente, em um trocadilho com o slogan eleitoral de Trump), que implementa projeto ecológicos.

2. Quais são os principais princípios e valores da comuna? Como isso está conectado na vida cotidiana lá com outras formas de luta como anarquismo, zapatismo, feminismo e ecologia?

Uma discussão em andamento na Comuna é: o que significa ser internacionalista? Então, podemos dizer que é por trás dessa palavra que muitos de nossos valores são colocados, como solidariedade internacional, lembrando dos nossos şehids (mártires de batalha) e o desejo de aprender com esta revolução, bem como de toda a história revolucionária.

Os internacionais aqui vêm de origens muito diferentes, que abrange os tópicos mencionados, para que possamos dizer que essas lutas fazem parte desse internacionalismo, e aprendemos com todos eles todos os dias através do debate. Mais concretamente, aqui as mulheres têm seu próprio espaço e são organizadas de forma autônoma. Pessoas que querem participar de ativismo ecológico pode se juntar ao do Make Rojava Green Again. Mas todos as pessoas na Comuna estão envolvidas nos trabalhos ecológicos. Nossa conexão com o anarquismo e o zapatismo são apresentados por retratos de figuras desses movimentos nas paredes, como Comandante Ramona ou Federica Montseny, e seus feitos são discutidos nos processos de educação ou mais informalmente também. Além disso, através de nossos trabalhos de mídia, com o site da Comuna Internacionalista (internationalistcommune.com) e a campanha Rise Up 4 Rojava (riseup4rojava.org), compartilhamos informações e perspectiva sobre movimentos radicais em todo o mundo, mantendo sólidos laços com eles.

Vídeo da campanha Riseup4Rojava:

3. O que mudou no contexto da vida cotidiana e da base organizando desde que o Estado Islâmico (ISIS ou Daesh) foi derrotado pelas forças populares curdas (YPG/YPJ)?

A queda do Estado Islâmico trouxe a possibilidade de ir mais longe na organização da sociedade de maneira comunitária e com uma perspectiva de longo prazo maior do que com a sua constante ameaça. Mas algumas células ocultas ainda existem e ataques terroristas estão acontecendo regularmente. Além disso, a
presença de muitos membros do Estado Islâmico no território detidos ou em células dormentes, com essa falta de informação sobre se serão ou não julgados em seus países de origem, tudo isso representa uma séria ameaça à segurança na região.

Combatentes da YPJ, batalhão de mulheres de Rojava.

4. Recentemente, em agosto de 2019, a Turquia se declarou abertamente como a maior inimigo das realizações da revolução em Rojava. Como isso afeta
a região e a política lá? Essa ameaça é a maior até agora?

Neste momento, ao escrever essas linhas, estamos lidando com a ameaça de uma invasão imediata, como o presidente turco Erdogan anunciou um ataque e os EUA estão removendo suas tropas da região. Essas ameaças foram feitas várias vezes, com intensidade crescente ao longo do ano passado, com picos em dezembro/janeiro e julho/agosto, onde pensávamos que a guerra poderia começar a qualquer momento, possivelmente como uma guerra total, já que sabemos o que a Turquia já foi capazes de fazer isso no passado. E eles têm anunciado: querem limpeza étnica, querem genocídio. Então sim, a Turquia é a maior ameaça à região desde o início da revolução. Em tais momentos, temos que congelar nossos trabalhos para pensar em nossa segurança. Isso afeta todos os aspectos da sociedade. Todo mundo se pergunta: o que faremos se a guerra começar? Então é claro que muitas atividades são pensadas em relação ao contexto da guerra, a política se concentra na descoberta de uma solução democrática contra as ameaças turcas e a situação pós-ISIS. Comunicamos mais sobre as realizações da revolução, para mostrar o que está em perigo. Mas também tentamos manter a vida como ela deveria ser e, de alguma forma, nos leva a ser ainda mais democráticos, ir mais longe na revolução como resposta.

5. Quais são as suas perspectivas de futuro para a revolução e o legado da Comuna Internacionalista para movimentos revolucionários em todo o mundo?

O momento em que vivemos agora é histórico: ou a revolução ficará mais forte ou será aniquilada. O que está em jogo não é apenas a revolução no nordeste da Síria, mas a possibilidade de uma revolução em todo o Oriente Médio e no mundo. Esperamos que a seriedade da situação leve as pessoas ao redor do mundo a expressarem solidariedade, se levantarem e, talvez, virem se juntar a nós. A Revolução de Rojava deve irradiar e inspirar outros movimentos revolucionários. A Comuna Internacionalista continuará a dar notícias e perspectivas sobre a situação aqui, com um foco internacional e acolherá expressões de solidariedade de todo o mundo.

Funeral para o combatente anarquista italiano Lorenzo Orsetti, em março de 2019:

 

6. Agradecemos imensamente pelas palavras e por gastar algum tempo nesse momento delicado. Esperamos que esta conversa possa ser útil para pessoas de todo o mundo trabalharem em solidariedade e apoio total às pessoas na Revolução em Rojava e todo o norte da Síria. Alguma consideração final?

A revolução Rojava é uma revolução feminina e é uma revolução de todos. Todos devem se preocupar com o que está acontecendo aqui, porque o que está ameaçado é a possibilidade de viver uma vida livre, uma vida democrática e comunitária, com princípios populares, feministas e ecológicos. Então converse com seus vizinhos, colegas e sua avó sobre isso!

Obrigado pela solidariedade, abaixo a todos os fascistas!

Da Comuna Internacionalista de Rojava

Revolução é a semente de um mundo novo.

Convidamos a todas e todos para conferir o comunicado de anarquistas sobre a ameaça Turca à revolução em Rojava e aos povos na Síria. Imprima, compartilhe, difunda e mobilize solidariedade.

Mais informações:

riseup4rojava.org

internationalistcommune.com

jinwar.org

 

CINCO LIÇÕES HISTÓRICAS PARA ANTIFASCISTAS

[PDF Leitura] [PDF Impressão]

Este texto é um capítulo do livro Manual Antifascista, do autor estadunidense Mark Bray, lançado em português em 2019. Ele analisa brevemente cinco lições que muitos antifascistas extraem ou deveriam extrair da história. Cada uma delas começa com uma descrição mais factual de um determinado fenômeno histórico antes de passar para uma interpretação antifascista dos fatos em questão. Como todos os fenômenos históricos, esses fatos estão sujeitos a múltiplas interpretações. Essas certamente não são as únicas lições do antifascismo, mas esclarecem o embasamento de algumas de suas principais fundamentações históricas.

1. AS REVOLUÇÕES FASCISTAS NUNCA FORA BEM-SUCEDIDAS. OS FASCISTAS ALCANÇARAM O PODER LEGALMENTE.

Primeiro, alguns fatos importantes: a marcha de Mussolini em Roma foi apenas um espetáculo legitimando um convite anterior para formar um governo. O Putsch da Cervejaria de Hitler em 1923 falhou miseravelmente. Sua eventual ascensão ao poder veio quando o presidente Hindenburg o nomeou chanceler. A lei que lhe concedeu o poder completo foi aprovada pelo parlamento.

Para os militantes antifascistas, esses fatos históricos lançam dúvidas sobre a fórmula liberal de oposição ao fascismo. Essa fórmula equivale essencialmente na fé de um “debate fundamentado” para combater ideias fascistas, na polícia para combater a violência fascista nas ruas e nas instituições governamentais parlamentares para combater as tentativas fascistas de tomar o poder. Não há dúvidas que por algumas vezes essa fórmula funcionou. Também não há dúvidas de que algumas vezes ela falhou. O fascismo e o nazismo surgiram como apelos emocionais e antirracionais fundamentados em promessas masculinas de renovação do vigor nacional. Enquanto a argumentação política sempre é importante para fazer um apelo a uma potencial base popular do fascismo, sua nitidez se ofusca quando confrontada com as ideologias que rejeitam os termos do debate racional. A racionalidade não foi capaz de impedir os fascistas ou os nazistas. Apesar de necessária, da perspectiva antifascista, infelizmente a razão é insuficiente por si só.

Assim, não é surpresa que a história mostre que governos parlamentares nem sempre são uma barreira para o fascismo. Pelo contrário, em várias ocasiões, foram responsáveis por estender o tapete vermelho. Quando as elites econômicas e políticas do período entre guerras se sentiram suficientemente ameaçadas pela perspectiva da revolução, voltaram-se para figuras como Mussolini e Hitler para esmagar impiedosamente a dissidência e proteger a propriedade privada. Embora seja um erro reduzir inteiramente o fascismo a um último recurso de um sistema capitalista ameaçado, esse elemento de sua composição desempenhou um papel importante e muitas vezes decisivo em suas vitórias. Quando os líderes autoritários do período entre guerras se sentiam muito menos ameaçados, implementavam muitas vezes políticas fascistas de cima para baixo. Para a maioria dos revolucionários, isso significa que o antifascismo deve necessariamente ser anticapitalista. Enquanto o capitalismo continuar a fomentar a luta de classes, eles dizem, o fascismo sempre surgirá como uma solução autoritária para conter a revolução popular.

Quanto à polícia contra a violência fascista – houve vezes que a polícia prendeu e perseguiu fascistas, mas o registro histórico mostra que, junto com os militares, eles também estão entre os mais ansiosos para “restauração da ordem”. Estudos mostram que uma alta porcentagem de policiais gregos votou no Aurora Dourada. Nos EUA, está claro que muitos policiais receberam Trump como o presidente das “Blue Lives Matter” (uma alusão satírica do movimento antirracista Black Lives Matter), que permitiria que a aplicação da lei continuasse com as agressões e assassinatos nas desprotegidas comunidades negras e latinas. Recentemente, foi revelado que o FBI vem investigando de forma alarmante (embora não surpreendente) altos níveis de infiltração de supremacistas brancos na polícia por décadas. Além disso, independentemente da composição da força policial dos EUA, o fato que ela se origina das patrulhas escravocratas no Sul e da oposição ao movimento trabalhista no Norte nos dá uma visão do papel da supremacia branca dentro do sistema de “justiça” criminal.

Tudo isso para dizer que o fato de que as revoltas fascistas sempre falharam não deve diminuir as preocupações sobre seu potencial insurrecional. A “estratégia de tensão” fascista na Itália, o desenvolvimento do conceito de “lobo solitário” e “resistência sem líder” promovido pelo líder norte-americano da Klan, Louis Beam, e a luta armada fascista que se desenvolveu em ambos os lados nos conflitos na praça Euromaidan na Ucrânia atestam o perigo material da violência fascista insurrecional. Não obstante, historicamente o fascismo ganhou acesso aos corredores do poder não derrubando seus portões, mas convencendo seus porteiros gentilmente a abri-los.

2. MUITOS LÍDERES E TEÓRICOS ANTIFASCISTAS DO PERÍODO ENTRE GUERRAS NÃO LEVARAM O FASCISMO VERDADEIRAMENTE A SÉRIO ATÉ QUE FOSSE TARDE DEMAIS.

Para cada revolução, houve uma contrarrevolução. Para cada ataque da Bastilha havia um Termidor. Depois da Comuna de Paris, centenas de pessoas foram executadas e outras milhares presas e deportadas. Mais de 5 mil presos políticos foram executados e 38 mil foram presos após o fracasso da Revolução Russa de 1905, que também testemunhou 690 pogroms antissemitas que mataram mais de 3 mil judeus. Os radicais europeus e as minorias étnicas de modo algum eram estranhos à violência da reação tradicional.

No entanto, o fascismo representava algo novo. Inovações ideológicas, tecnológicas e burocráticas criaram um veículo para o imperialismo e o genocídio que os europeus haviam exportado de todo o mundo quando trouxeram suas guerras de extermínio de volta para casa.

Sem surpresa, muitos comentaristas de esquerda conceituaram incialmente o fascismo dentro dos parâmetros das forças contrarrevolucionárias existentes na época. De acordo com a Federação Socialista dos Trabalhadores, os fascistas italianos eram “no sentido mais estrito, uma Guarda Branca”, referindo-se aos contrarrevolucionários da Revolução Russa. O Partido Comunista da Grã-Bretanha os chamou de “os Black and Tans italianos”, se referindo às forças contrarrevolucionárias britânicas na Guerra da Independência da Irlanda. Na década de 1920, alguns marxistas usaram a análise do comunista húngaro Geörgy Lukács de “terror branco” para argumentar que os squadristi de Mussolini eram apenas um baluarte não-ideológico da classe dominante.

Por outro lado, vários comentaristas destacaram os recursos exclusivos do fascismo. Eles reconheceram a novidade do flerte nacionalista com o socialismo e seu elitismo populista. Eles observaram como setores anteriormente antagônicos, como os latifundiários tradicionais e capitalistas burgueses, podiam formar um movimento contrarrevolucionário unido. O foco marxista na dinâmica de classes subjacente ao fascismo revelou novos elementos dessa intrigante doutrina que os observadores centristas não foram capazes de captar. No entanto, esse foco também tendeu a limitar o perigo potencial que o fascismo poderia representar para os confins de seu suposto papel de guarda-costas da classe dominante, e assim os marxistas e muitos outros falharam em antecipar como o alcance de sua violência se estenderia além do que era “necessário” para proteger o capitalismo. Além disso, embora o fascismo do período entre guerras tenha se desenvolvido principalmente a partir de círculos eleitorais da classe média com o apoio da classe alta, à medida que os movimentos fascistas cresciam, às vezes, mas nem sempre, eles conquistavam apoiadores na classe trabalhadora – um fato que os marxistas demoraram a aceitar.

Independente do conteúdo de suas análises, muitos políticos socialistas e comunistas não agiram como se a própria existência de seus movimentos estivesse em jogo. Os socialistas italianos assinaram o Pacto de Pacificação com Mussolini em 1921, e nem eles nem os comunistas achavam que a ascensão do Duce ao poder representaria mais do que uma nova oscilação para a direita no velho pêndulo da política parlamentar burguesa. Dessa forma, eles não eram totalmente diferentes da maioria dos socialistas espanhóis que colaboraram com o governo militar meio-fascista de Primo de Rivera na década 1920. Na Alemanha, os comunistas acreditavam que o fascismo já havia chegado quando os “governos presidenciais” do início da década de 1930 começaram a governar por decreto. No entanto, nem os supostos “governos presidenciais” fascistas nem a chancelaria de Adolf Hitler foram suficientes para convencer a liderança do partido que eles enfrentavam uma ameaça existencial. Para a liderança do KPD, o fascismo não pedia resistência por quaisquer meios necessários, mas sim paciência. Seu slogan era “Hitler primeiro, depois nós”. Na virada do século, os esquerdistas tinham razões para antecipar que épocas de repressão iriam e viriam. O fascismo mudou as regras do jogo.

O primeiro reconhecimento substancial da essência do perigo fascista veio com a “Revolta de Fevereiro” de 1934, quando os socialistas austríacos lutaram contra as incursões do autoritário chanceler Dollfuss nos centros socialistas (instigadas por Mussolini). A revolta foi brutalmente reprimida, deixando 200 mortos, 300 feridos e o partido na clandestinidade. No entanto, sua bravura inspirou os mineiros socialistas espanhóis que se rebelaram mais tarde naquele ano nas Astúrias. Seu slogan era “Melhor Viena do que Berlim”, onde a ascensão de Hitler ao poder não foi combatida pela força. Quando a Guerra Civil Espanhola eclodiu, o antifascismo foi amplamente entendido como uma luta desesperada contra o extermínio.

A tendência dos teóricos e políticos esquerdistas em conceituar excessivamente o fascismo com base no paradigma da contrarrevolução tradicional impediu a capacidade da esquerda de se ajustar à nova ameaça que enfrentava. Uma vez que as formas de resistência sempre devem ser calibradas contra aquilo que está sendo resistido, cabe aos antifascistas reavaliar continuamente seus arsenais teóricos, estratégicos e táticos, se baseando nas mudanças das ideologias e de práxis de seus adversários da extrema-direita. Matthew N. Lyons colocou essa lição em prática ao criticar escritores que argumentam que a alt-right deveria só ser chamada de neonazista. Embora muitos membros da alt-right claramente sejam neonazistas, Lyons argumenta que isso “internaliza a infeliz ideia de que as políticas de supremacia branca são basicamente as mesmas…. Que não é preciso compreender nosso inimigo”. Conceber o inimigo nos termos de um paradigma ultrapassado custou muito caro aos antifascistas. Em algum ponto, a evolução da extrema-direita pode significar transcender completamente a estrutura do “fascismo”, à medida que nos afastamos cada vez mais do século XX.

É essencial que os antifascistas desenvolvam uma compreensão clara e precisa do fascismo. No entanto, a fim de compreender a natureza robusta e flexível da política antifascista, devemos reconhecer a relação entre dois dos muitos registros do antifascismo: o analítico e o moral.

O registro analítico consiste em mobilizar definições e interpretações historicamente informadas sobre o fascismo para elaborar uma estratégia antifascista adequada aos desafios específicos contra grupos e movimentos com ideologias fascistas. Métodos de oposição a grupos neonazistas podem não fazer sentido contra outros grupos de extrema-direita. Compreender sua diferença deve ser o que mantém as escolhas táticas e estratégicas bem informadas.

O registro moral se desenvolveu com o poder retórico do epíteto “fascista” – chamar alguém ou algo de fascista – no período do pós-guerra. Ele é colocado em jogo quando a lente antifascista é direcionada a fenômenos que tecnicamente podem não ser fascistas, mas são fascistóides.

Por exemplo, os Panteras Negras estavam errados ao chamar os policiais que matavam negros impunemente de “porcos fascistas” se eles pessoalmente não possuíssem crenças fascistas ou se o governo dos EUA não fosse literalmente fascista? Em uma manifestação antifa em Madrid, vi uma bandeira do arco-íris com o slogan “homofobia é fascismo”. A existência de homofóbicos não-fascistas invalida o argumento? Os guerrilheiros que lutaram contra Franco na Espanha ou Pinochet no Chile se equivocaram ao chamar sua luta de “antifascista” se, de acordo a maioria dos historiadores, esses regimes não foram tecnicamente fascistas?

Como já discutimos, é importante analisar cada um desses casos e muitos outros para podermos desenvolver uma análise bem afinada. No entanto, o registro moral do antifascismo compreende como o “fascismo” se tornou um significante moral que aqueles que lutam contra uma variedade de opressões têm utilizado para destacar a ferocidade dos inimigos políticos que enfrentam e os elementos de continuidade que eles compartilham com o fascismo real. A Espanha de Franco pode ter sido mais um regime militar católico tradicionalista do que fascismo per se, mas isso pouco importava para aqueles que eram perseguidos pela Guarda Civil.

O desafio em definir o fascismo embaça a linha entre esses dois registros. Além disso, o registro analítico contém uma crítica moral, assim como o registro moral implica em uma ampla análise da relação entre uma determinada fonte de opressão e o fascismo. Embora seja verdade que, em certo ponto, o epíteto fascista perde um pouco seu poder se for usado de forma muito genérica, um componente-chave do antifascismo é se organizar contra ambas políticas, fascistas e fascistóides, em solidariedade com todos aqueles que sofrem e lutam. Questões de definições devem influenciar nossas táticas e estratégias, não nossa solidariedade.

3. POR RAZÕES IDEOLÓGICAS E ORGANIZATIVAS, A LIDERANÇA SOCIALISTA E COMUNISTA DEMOROU MAIS QUE SUA BASE PARA AVALIAR COM PRECISÃO A AMEAÇA DO FASCISMO.

Como inicialmente muitos socialistas e comunistas consideravam o fascismo uma variação da política contrarrevolucionária tradicional, eles se concentraram muito mais em combater uns aos outros do que seus inimigos fascistas. Ambas as frentes argumentavam que, se unissem o proletariado sob sua liderança, superariam qualquer obstáculo da direita.

Assim, enquanto alguns socialistas de base se mantiveram lado a lado com o Arditi Del Popolo para lutar contra os camisas negras italianos no início da década de 20, os quadros do partido se retiraram para retomar sua trajetória eleitoral legalista. Quando esse caminho definitivamente foi bloqueado, o partido cambaleou para conseguir mudar seus rumos.

De forma similar os socialistas alemães optaram, na mesma época, por um curso estritamente legalista nas décadas de 1920 e 30, apesar do crescente desconforto dos membros do partido. Embora os socialistas do Reichsbanner, e mais tarde na Frente de Aço, tenham pressionado por medidas mais agressivas, o aparato do partido estava mal equipado para considerar estratégias alternativas. Da mesma forma, a base do socialismo austríaco lutava para empurrar a liderança do seu partido para a autodefesa militante frente aos ataques da extrema-direita. Na Grã-Bretanha, os membros do Labour Party e do Trades Union Congress confrontaram os fascistas na rua, apesar das advertências de seus líderes. A liderança trabalhista condenou os membros que participaram da Batalha de Cable Street – quando vários grupos enfrentaram os camisas negras de Oswald Mosley no quarteirão judeu do East End em Londres – e se recusou a apoiar os que se juntaram às Brigadas Internacionais para combater na Espanha. Como argumenta o historiador Larry Ceplair, os sociais-democratas “haviam jogado o jogo parlamentar por muito tempo e seus líderes se tornaram ideológica e psicologicamente incapazes de organizar, ordenar ou aprovar qualquer tipo de resistência armada ou revolução preventiva”.

Não obstante, muitos socialistas independentes, que eram muito menos sobrecarregados pela ideologia partidária legalista e pela estratégia eleitoral ditada por uma direção, parecem ter sido mais sensíveis às mudanças de condições na base e muito mais preparados para enfrentar o fascismo.

No início da década de 1920, a Internacional Comunista acreditava que a tarefa mais urgente da revolução era traçar uma clara e antagônica distinção entre o marxismo-leninismo e a social-democracia, para que ela pudesse liderar a onda de insurgência que parecia estar engolfando o continente. Esse objetivo voltou à tona com o início do “terceiro período” do Comintern em 1928. O modelo organizacional leninista de “Centralismo Democrático” ditava uma cadeia de comando disciplinada do Comintern em Moscou por intermédio dos partidos nacionais para suas filiais regionais e quadros de cada bairro. Esse modelo permitiu que o movimento comunista internacional agisse em uníssono por vastas extensões geográficas, mas também significava que as intermináveis disputas entre a elite do partido em Moscou produziam um impacto maior nas políticas do Comintern do que as condições materiais de cada local.

A linha “social-fascista” foi um desses exemplos. Muitas lideranças nacionais a adotaram a contragosto e rapidamente a negligenciaram com a mudança do Comintern para a política de Frente Popular em 1935. Os comunistas e os socialistas de base geralmente não se odiavam tanto quanto seus líderes. Na verdade, as primeiras iniciativas de unidade entre socialistas e comunistas na França e na Áustria, por exemplo, vieram de baixo. Todos esses exemplos demonstram algumas das desvantagens da organização hierárquica.

4. O FASCISMO ROUBA DA IDEOLOGIA, DA ESTRATÉGIA, DA CULTURA E DO IMAGINÁRIO DE ESQUERDA.

O nazismo e o fascismo surgiram no desejo da burguesia capitalista de libertar o nacionalismo, o militarismo e uma masculinidade “decadente” intrínseca à frente dos governos italiano e alemão, e de capturar as políticas populares coletivistas da esquerda socialista “degenerada”. Mesmo antes de Hitler assumir, o Partido Alemão dos Trabalhadores (predecessor do NSDAP) já usava uma considerável dose de vermelho em suas bandeiras e cartazes, e seus membros chamavam uns aos outros de “camaradas”. Isso produziu paradoxos anti-ideológicos e antirracionais como o “nacional-sindicalismo” e o “nacional-socialismo”. Fascistas e nazistas “de esquerda” foram expurgados à medida que seus partidos conquistavam poder e se uniam às elites econômicas, embora a cooptação nacionalista da retórica popular da classe trabalhadora tenha desempenhado um papel fundamental para fazê-los chegar até lá.

Com base nas suas boas relações com os empresários, os nazistas foram responsáveis por criar novos postos de trabalho para os desempregados. De certa forma, essa era uma variação colaboracionista entre classes, do papel do sindicato como um intermediário para alcançar o emprego em uma indústria. As tabernas das Stormtroops (SA) nazistas claramente floresceram inspiradas na tradição socialista, que datava do século XIX.

Eles também forneceram comida e abrigo gratuito para seus apoiadores no período da Grande Depressão. Essa foi uma ruptura marcante com os conservadores tradicionais, que demonstravam desprezo pelos pobres e desempregados e, no máximo, contribuíam ocasionalmente para instituições de caridade apolíticas ou religiosas.

Esse modelo de caridade política de extrema-direita foi adotado pela Aurora Dourada grega, a CasaPound italiana, o Hogar Social Madrid, e a britânica National Action, todos os quais começaram a distribuir alimentos e mantimentos grátis para gregos, italianos, espanhóis – apenas “brancos”. Os ativistas da CasaPound começaram a imitar as ocupações autonomistas em prédios abandonados, e a Hogar Social Madrid não apenas começou com ocupações, mas também se organizou contra a expulsão de espanhóis étnicos em uma clara tentativa de capitalizar com o vibrante movimento de esquerda espanhol.

Mais profusamente, os fascistas do pós-guerra continuaram a se voltar para a esquerda revolucionária e para seus insights estratégicos. Os que seguiam a linha da “Terceira Posição” procuraram aplicar teorias maoístas de revolução no Terceiro Mundo às metas de “libertação europeia”, que implicavam em uma remoção forçada de “não-europeus”. Na década de 1980, uma facção francesa chamada Troisième Voie procurou usar uma “estratégia trotskista” para se infiltrar no Front National, a fim de aparelhá-lo por dentro. Os fascistas ucranianos tentaram se apropriar do legado do líder anarquista ucraniano Nestor Makhno, enquanto as bases fascistas espanholas Autónomas elogiavam o anarquista Buenaventura Durruti.

Começando no final dos anos 80 e início dos anos 90, e ganhando força no final dos anos 2000, os fascistas em toda a Europa tentaram copiar até a tática black bloc dos autonomistas alemães. Esses “nacionalistas autônomos” vestidos de preto, que às vezes usam o logotipo das bandeiras antifascistas com slogans nacionais-socialistas ou kaffiyehs palestinos, tentaram imitar o apelo da esquerda radical defendendo o anticapitalismo, antimilitarismo e anti-sionismo na Alemanha, Grécia, República Tcheca, Polônia, Ucrânia, Inglaterra, Romênia, Suécia, Bulgária e Holanda. Essa tendência começou a declinar na Europa Ocidental por volta de 2013. A ideia de “nacional-anarquismo” é outra nova variação dessa farsa. Os “nacionais anarquistas” abusam do conceito anarquista de autonomia para defender “comunidades étnicas” separadas e homogêneas, incluindo uma pátria só de brancos.

Muitos outros exemplos poderiam ser citados, mas esses são suficientes para demonstrar como o antifascismo não se trata apenas de um escape aventuresco na oposição ao fascismo, mas sim da proteção Against the Fascist Creep, como sugere o título do maravilhoso trabalho “Les autonomes nationalistes en Allemagne” de Alexander Reid Ross. Eles também demonstram a importância da ideologia de esquerda. Sem estabelecer como eles se encaixam, conceitos como “autonomia”, “libertação nacional”, ou mesmo “socialismo”, e táticas como as ocupações, organização de mutirões de alimentos ou a formação de black blocs podem ser cooptadas bem debaixo dos nossos narizes.

5. NÃO É PRECISO UM GRANDE NÚMERO DE FASCISTAS PARA CONCEBER O FASCISMO

Em 1919, o Fasci de Mussolini tinha 100 membros. Quando Mussolini foi nomeado primeiro-ministro em 1922, cerca de 7% a 8% da população italiana, e apenas 35 dos mais de 500 membros do parlamento, pertenciam ao seu Partito Nazionale Fascista (PNF). O Partido Alemão dos Trabalhadores tinha meros 50 membros quando Hitler participou de sua primeira reunião após a Primeira Guerra Mundial. Quando Hitler foi nomeado chanceler em 1933, apenas cerca de 1,3% da população pertencia ao NSDAP (Nationalsozialistische Deutsche Arbeiterpartei, ou Partido Nacional Socialista dos Trabalhadores Alemães). Em toda a Europa, partidos fascistas de massas emergiram daquilo que inicialmente eram pequenos núcleos durante o período entre guerras. Mais recentemente, o sucesso eleitoral de muitos partidos fascistas, minúsculos antes da crise financeira de 2008, e a recente onda de migração, demonstraram o potencial para um rápido crescimento da extrema-direita quando as circunstâncias se tornam favoráveis.

Esses partidos certamente cresceram e ambos os regimes consolidaram seu poder, conquistando apoio das elites conservadoras, industriais ansiosos, dos alienados proprietários de pequenos negócios, nacionalistas desempregados e outros. As triunfantes narrativas de resistência pós-guerra talvez tenham negado que todos, menos os ideólogos do fascismo mais comprometidos, tenham apoiado figuras como Mussolini ou Hitler, mas na verdade ambos os regimes conseguiram cultivar um amplo apoio popular, obscurecendo ainda mais nosso entendimento do que significava ser um fascista ou um nazista nos anos 1930. Nesse sentido, foram necessários alguns fascistas para conceber o fascismo. O ponto é, no entanto, que antes de conseguir tal apoio popular, os fascistas e os nazistas não eram mais que minúsculos grupos de ideólogos.

Enquanto isso, é importante notar que, ao mesmo tempo em que Mussolini montava um grupo com 100 veteranos amargos e alguns socialistas nacionalistas peculiares, e Hitler lutava pela liderança do minúsculo Partido Alemão dos Trabalhadores, a Itália e a Alemanha aparentemente estavam à beira de uma revolução social. Não havia razão para que a esquerda tivesse olhado para qualquer crescimento. Esses pequenos grupos não poderiam ter sido mais irrelevantes.

Dado o que anarquistas, comunistas e socialistas sabiam na época, não havia razão para que eles dedicassem qualquer tempo ou atenção aos primórdios do fascismo. No entanto, é impossível não nos perguntarmos o que poderia ter acontecido se eles tivessem prestado mais atenção. É uma hipótese impossível de se levar a sério, e refletir demais sobre ela significaria omitir os fatores sociais mais amplos que prepararam o terreno para a ascensão do fascismo. Não obstante, os antifascistas concluíram que, como o futuro não é escrito e o fascismo frequentemente emerge de pequenos grupos marginais, todo grupo fascista ou supremacista branco deveria ser tratado como se fossem os 100 fasci de Mussolini ou os 54 membros do Partido Alemão dos Trabalhadores que ofereceram a Hitler a base para seus primeiros passos.

A trágica ironia do antifascismo moderno é que, quanto mais bem-sucedido, mais sua razão de ser é questionada. Seus maiores sucessos estão no limbo hipotético: quantos movimentos fascistas assassinos foram cortados pela raiz nos últimos 70 anos por grupos antifas antes que sua violência pudesse se espalhar? Nós nunca saberemos – e isso efetivamente é uma coisa muito boa.

SOMOS TODAS ANTIFASCISTAS – MENOS A POLÍCIA: sobre como e com quem lutamos

A REAÇÃO BATE À PORTA

Entramos com tudo em um tempo de reação. A década progressista dá lugar a uma onda de movimentos e governos de extrema direita ganhando espaço em todo o mundo. É difícil acreditar que existe alguma surpresa nisso. Como poderíamos nos surpreender com a eleição de Trump nos EUA e Bolsonaro no Brasil, “quando Putin, Berlusconi, Erdogan, Modi e Netanyahu têm reinado por anos no mesmo modelo1” na Rússia, Itália, Turquia, Índia e Israel?

Estados Unidos e Brasil são os retardatários em uma tendência mundial de governos de direita chegando ao poder democraticamente. Trump e Bolsonaro não são fascistas se usamos a palavra com rigor histórico e uma análise apurada de suas influências e características políticas. No entanto, ambos mobilizam emoções e ressentimentos comuns ao fascismo presentes em grande parte das camadas populares, e também das classe média branca e elites conservadoras que historicamente se beneficiam de privilégios desde a época da colonização e da escravidão institucionalizada nas Américas. Eles falam para os que se sentiram “esquecidos” pelas políticas sociais de programas de governo da última década, como o caso dos democratas de Obama nos EUA, e o PT de Lula e Dilma no Brasil. Portanto, entendemos os governos de Trump e Bolsonaro como populistas de extrema direita. Eles buscam aplicar reformas e ataques a direitos sociais conquistados para reinventar uma forma de governar “em nome do povo”. Sobretudo, são governos que se mantém a forma democrática, mas praticam a violência de Estado buscando promover a segurança, são, portanto, democracias securitárias.

Estejam eles vindo de raízes ‘populares’ ou apenas apropriando seu estilo, esse grupo [de governantes] exuma aquela chamada aliança entre o soberano e seu ‘Povo’. Eles criam a aparência de um abismo no outro lado onde as elites buscam refúgio, espremidas juntas sob a obscura luz do ‘deep state’. Esse novos populistas ganharam corações com a promessa de salvaguardar tudo o que, em nome do povo, é idêntico a eles mesmos, a fim de fazê-lo se levantar, em uníssono, contra a ameaça das minorias étnicas, sexuais ou políticas – um gesto que muitas vezes parece se estender ao ponto de incluir, em um momento ou outro, quase todo mundo. Das entranhas destas massas que vagam longamente no deserto neoliberal, elas ressuscitam um novo Povo de ressentimento.”

Liaisons, In The Name of The People

A VIOLÊNCIA NÃO ACABA, MAS É DIRECIONADA CONTRA AS MINORIAS

Nenhum estado democrático reprime ou elimina definitivamente as milícias ou grupos fascistas e racistas. No Brasil não foi diferente: em 1964 vivemos um golpe de estado com armas, tanques e disposição para matar, torturar e fazer sumir milhares de pessoas. Em 2018, vimos os herdeiros do aparato militar ditatorial, que foi para o crime organizado das milícias durante a era democrática, organizarem a vitória eleitoral de seu patrono. E Jair Bolsonaro não tem nenhuma vergonha em elogiar e estimular ações ilegais como a tortura e o extermínio, seja de suspeitos de cometer algum crime ou povos originários habitando uma terra que é sua desde muito antes. E é nessa área cinza entre o legítimo e o ilegítimo, entre a violência policial legalizada e a agressão criminosa de gangues e milícias, que o fascismo opera e cresce para, quando tomar o controle do Estado, poder usar sua força total através de grupos de extermínio, das polícias e das prisões e campos de concentração mantidos e expandidos nos períodos democráticos.

Rodrigo Amorim quebrando a placa em homenagem à Marielle Franco em 2018, metralhada e morta com o motorista Anderson Gomes por milicianos. Até então, os que encomendaram suas mortes continuam desconhecidos. Sabemos apenas que quem puxou o gatilho foram ex-policiais militares que hoje estão presos.

Bolsonaro – assim como Trump nos EUA ou Puttin na Rússia – não pretende acabar ou sequer diminuir a gigantesca violência necessária pra manter o Capitalismo neoliberal em sua fase decadente e de crise permanente. O que ele pretende é canalizar essa violência o máximo possível para as minorias políticas: as populações negras, LGBTTTIQ, mulheres, indígenas, imigrantes e pobres. A imagem do “cidadão de bem” que quer ser protegido pela liberação do porte de armas é a imagem do homem branco, de classe média ou alta e heterossexual, que diz querer defender sua família e seu patrimônio da criminalidade, mas se sente muito mais ameaçado politicamente pela ascensão de membros das classes subalternas, pela liberdade das mulheres e de pessoas não heterossexuais ou praticam sexo de forma dissidente. Os que mais se beneficiam diretamente da política de liberação de armas serão os mesmos ruralistas que já praticam torturas e assassinatos nos campos e as milícias que controlam bairros e municípios inteiros em cidades como o Rio de Janeiro. Para o senhor presidente, violência se combate com medidas que apenas aumentam a violência classista, racista e sexista no país.

Para canalizar essa violência contra as minorias, esses líderes precisaram deixar claro seu projeto para serem eleitos. Bolsonaro e Trump não foram eleitos apesar de serem abertamente sexistas, racistas, homofóbicos. Eles foram eleitos justamente porque são tudo isso. E não apenas o presidente, mas vários parlamentares foram eleitos pela mesma lógica. O candidato Rodrigo Amorim, quebrou a placa em homenagem à Marielle Franco em 2018, enquanto fazia campanha para ser deputado estadual no Rio de Janeiro. Amorim foi eleito como candidato mais votado. Depois de eleito, o deputado emoldurou e pendurou a placa quebrada em seu escritório e alega que estava “restaurando a ordem” quando a quebrou. Para seus eleitores, o fato dele afrontar publicamente a memória ou qualquer homenagem a uma mulher negra, lésbica, criada na favela e que foi assassinada por policiais, é apenas mais uma “demonstração de caráter” de seu candidato.

Quando analisamos esses perfis e suas ações, concluímos que de nada adianta acusar esses políticos de serem machistas, sexistas ou mesmo fascistas. Isso não fará com que percam apoiadores porque foram essas características que atraíram seus apoiadores. A melhor reposta que podemos dar é saber enfrentá-los mostrando que sua política é apenas mais do mesmo, que serão incapazes de melhorar a vida das pessoas dentro do neoliberalismo e entregarão às pessoas apenas mais frustração. Precisamos mostrar que eles são fracos e ainda mais limitados que a organização e solidariedade entre as pessoas.

SERIAM OS POLICIAIS NOSSOS ALIADOS? – E PORQUE POLÍCIA ANTIFASCISTA É UM CONTRASSENSO

Percebemos, assim, que vivemos em um tempo no qual ideias e emoções fascistas desfilam sem muito receio de se mostrar explicitamente, tentando ganhar propulsão com discursos canalizam o ódio contra as minorias. Por vezes, com novos nomes, como Alt-Rigth (Europa e EUA) ou bolsonarismo (Brasil), mas com as mesmas práticas de eliminação e extermínio das formas de vida que ele declara como insuportáveis e indignas de viver. Hoje, esse fascismo não apenas se serve da democracia, como aprendeu a se perpetuar com uma renovada retórica democrática associada ao desejo por segurança. Eles sabem que as instituições democráticas, ao fim, os favorecem.

Belo Horizonte, 2014.

Para ficar em um exemplo rápido (e cinematográfico) sobre como as instituições na democracia favorecem o fascismo, assistam o filme “In the fade”, de Fatih Akin, vencedor em Cannes de melhor filme estrangeiro em 2018. No filme, como na vida, a polícia e o tribunal ficam do lado dos neonazistas, sejam eles alemães do PEGIDA ou gregos do Aurora Dourada. Assim acontece qualquer gangue fascista ou neonazista sob o governo de um Estado em qualquer lugar do planeta. Fascismo e Estado democrático de direito não são, necessariamente, antagônicos. E hoje isso é uma verdade por demais evidente.

No Brasil, desde que o bolsonarismo tomou forma político-eleitoral e caminhou em direção à ocupação do governo do Estado por meio da democracia, a temática do antifascismo se espalhou por vários grupos sociais e indivíduos gerando imagens, memes em mídias sociais, camisetas, adesivos, declarações inflamadas etc. É com alegria que os anarquistas, dedicados à lutas antifascista desde sempre, veem isso. Mas essa alegria não abafa a desconfiança de que essa “onda antifa” em uma esquerda mais ampla, seja apenas isso: uma onda; ou pior, uma nova grife, uma identidade ou uma tática de frente única para conter os que são vistos como radicais.

Nesse sentido, é salutar recordar o alerta do coletivo catalão Josep Gardenyes em seu libelo “Uma Aposta para o Futuro” (Edição Subta, 2015, pp. 19-20), que diz o seguinte: “insistimos na ideia de que o antifascismo é – e tem sido desde os anos 1920 – uma estratégia da esquerda para controlar os movimentos e frear as lutas verdadeiramente anticapitalistas. Ele também sempre foi um fracasso se o pensarmos como uma luta contra o fascismo. As [históricas] estratégias propriamente anarquistas para combater o fascismo foram muito mais efetivas, porque entendiam o fascismo como uma ferramenta da burguesia – e nesse sentido, da democracia –, e dessa forma eles atacaram diretamente o fascismo não no ponto onde ele entrava em conflito com a democracia (direitos, liberdades civis, moderação), mas onde ele convergia com os interesses de proprietários e governantes. (…) O totalitarismo do sistema-mundo atual é uma tecnocracia (…) ele é totalmente compatível com a democracia e não tem nenhuma necessidade de carismas nem de aliança conscientes nem pactuadas entre classes, com seus protagonistas indispensáveis e atores proativos.” O alerta é, no mínimo, pertinente.

São Roque, 2014.

Não queremos com isso dizer que os anarquistas possuem o monopólio da luta antifascista, nem tampouco desprezar ou subestimar a atual onda neofascista e pertinentes reações que ela provoca em amplos setores da sociedade. O alerta provoca uma análise apurada em dois sentidos. Primeiro, é preciso compreender as formas do fascismo contemporâneo e como elas conseguiram equacionar sua presença nas democracias hoje, diluindo as lutas antifascismo no pluralismo democrático e neutralizando seu caráter antissistêmico. Segundo, que ao tomar o antifascismo como principal atividade, os anarquistas correm o risco de cerrar fileiras com aqueles que, mais cedo ou mais, se voltarão contra os anarquistas. Os exemplos históricos são inúmeros, não iremos repetir aqui. Como versa um velho jargão militante: mais importante do que saber contra quem lutamos é saber com quem lutamos. Ao que acrescentamos: mais importante que saber o que fazer, é saber como fazer. A nossa luta já é a vida anarquista em ação.

Mesmo admitindo que uma frente, o mais ampla possível, seja importante para se combater o neofascismo, causa, no mínimo, estranhamento que agora temos que presenciar fenômenos bizarros como o surgimento dos chamados “policiais antifascistas”. Segundo reportagem veiculada pela revista Época, o movimento surgiu em setembro de 2017, composto por policiais civis e militares e demais profissionais da área de segurança pública. Um de seus criadores, um investigador da polícia civil, diz que o Policiais Antifascismo “busca discutir novas políticas de segurança inserindo o policial no debate público — inclusive no que diz respeito aos seus direitos”. A mesma matéria, informa que o movimento conta “com 10 mil membros e representações nos 26 estados brasileiros e no Distrito Federal.”2 O cerne das reivindicações do movimento é a crença de que pode haver uma polícia que respeite as liberdades civis e os direitos humanos e que os policiais devem ser vistos e se entenderem como trabalhadores, assim como o são diversos profissionais de outras áreas. Não duvidamos aqui das boas intensões das pessoas, mas não há um só motivo para acreditarmos nessa histórica instituição de opressão.

A polícia emerge, modernamente no século XIX, como um dispositivo de segurança destinado ao cuidado da população. Na antiga Prússia ela surge como medicina social; na França como instrumento das reformas urbanas como resposta às sedições dos trabalhadores; na Inglaterra aparece vinculada à medicina do trabalho e ao controle dos operários nas fábricas, além de sua faceta de proteção à propriedade do comércio marítimo. Na América do Norte, a polícia é herdeira direta das patrulhas de caça e captura de escravos fugitivos. Então, além de sua faceta repressiva contemporânea, a polícia é, desde seu início, um instrumento de governo voltado ao processos de normalização biopolíticos, como mostram as pesquisas de Michel Foucault e Jacques Donzelot. Sua forma ostensiva é mais recente e ao sul do equador foi acrescida de tecnologias de caça e controle coloniais e escravocratas. Nesse sentido, não é exagero dizer que sob qualquer regime político, a polícia é destacamento dos estados dedicado a manutenção da supremacia racial branca, do controle da classe trabalhadora, da imposição de desigualdade material e do patriarcado: todos os valores e requisitos necessários a um estado fascista. E hoje em dia, após o avanço do neoliberalismo desde os 1970, não apenas do Estado, mas de empresas de segurança privada e do desejo de cada cidadão que clama pelo morte do que lhe é insuportável, atuando como um cidadão-polícia.

São Paulo, 2016.

Assim, quando uma das lideranças do movimento diz, na mesmo entrevista, que “o policial é um garantidor de direitos”, ele não está dizendo nada além da histórica função desse peculiar dispositivo de segurança. Ele segue, justificando a existência do grupo: “a própria palavra polícia significa ‘gestão da polis. Ele [o policial] deve atuar na cidade garantindo direitos. Ele tem que entender que os direitos básicos de um cidadão são os direitos humanos e fundamentais: o direito à vida, à liberdade de expressão”. Essa declaração expõe, mesmo que involuntariamente, a vinculação da atividade policial com o dever de manter o cidadão e os grupos sociais atrelados ao Estado. Depreende-se disso que, na contingente e elástica atuação cotidiana, cada policial é um agente do golpe de Estado cotidiano que impede que se rompa o vínculo subjetivo, operado nas ditaduras e nas democracias, entre sujeito e governo de Estado. Basta reparar que em todas revoluções modernas, desde a Revolução Francesa e as Independências dos EUA e do Haiti, a única constante invariável é a permanência da polícia – ao lado das prisões, dos exércitos, dos tribunais, das fronteiras. É possível ser antifascista sendo operador de algum destes dispositivos?

A polícia não é o oposto dos fascistas. Eles abusam, sequestram, prendem, deportam e assassinam mais pessoas de cor, mulheres e LGBTTTIQ todos os anos do que qualquer grupo fascistas. Eles trabalham mais para fazer avançar a agenda supremacista branca do que qualquer organização de extrema direita independente.”

CrimethInc., What they can’t do with badges, they do witch torches.

Enquanto anarquistas, sempre tentamos deixar óbvio que o papel da polícia é impor e reforçar os desequilíbrios econômicos entre as classes, mantendo os pobres sob controle e o patriarcado e a supremacia branca operando como barreiras à igualdade no Capitalismo.

A violência policial não é um caso isolado, uma aberração local ou a característica de um determinado tipo de regime, mas um elemento fundamental para uma sociedade baseada nos direitos de propriedade privada e na autoridade centralizada do Estado. O papel da polícia é manter as desigualdades de classe, raça, gênero e nacionalidade. Eles vão garantir que as pessoas pobres continuem na pobreza, que as excluídas continuem na exclusão, e que as injustiçadas convivam com a injustiça.

Sendo assim, a polícia nunca será uma aliada porque ela é a maior inimiga de quem questiona a ordem imposta, de quem quer mudanças sociais, de quem quer uma vida sem as desigualdades criadas pelo Capitalismo e pelo Estado. Afinal, eles são os primeiros a aparecer para o conflito quando nos cansamos de apenas sofrer as misérias desse sistema e partimos para a ação.

UMA VIDA SEM FASCISMO É UMA VIDA SEM CAPITALISMO, SEM ESTADO E SEM POLÍCIA

Nenhum governo do mundo combate o fascismo até suprimi-lo. Quando a burguesia vê que o poder lhe escapa das mãos, ela recorre ao fascismo para manter o poder de seus privilégios.”

–  Buenaventura Durruti, em entrevista ao jornalista Van Passen, 1936

O papel da polícia e o das gangues fascistas não são conflitantes entre si, são complementares. Em 2011, a primeira demonstração pública em defesa das posições do então deputado Jair Bolsonaro foi organizada por skinheads neonazistas em São Paulo. Na época, Bolsonaro era apenas mais um membro desconhecido do parlamento, visto como uma piada, dando declarações racistas e homofóbicas para atrair atenção com polêmicas e escândalos. Dezenas de antifascistas compareceram para impedir que uma marcha neonazi conseguisse ainda mais atenção para Bolsonaro e a polícia ficou entre os dois grupos para impedir um confronto. Quando estamos em grande número, a polícia fica entre nós e os fascistas para “garantir a segurança de todos”. Mas quando somos minoria, os policiais deixam que os fascistas nos ataquem.

Contra-manifestação antifascista para barrar “ato cívico” chamado por skinheads neonazistas em apoio às declarações racistas e sexistas de Jair Bolsonaro em São Paulo, 2011.
Quando estamos em grande número, a polícia fica entre nós e os fascistas. Mas quando somos minoria, os policiais deixam que os fascistas nos ataquem.
Neonazistas defendendo Bolsonaro em São Paulo, 2011: Mais do que aos discursos abertos de um político, devemos prestar atenção em quem serão os primeiros a lhe demonstrar apoio.

Normalmente, a polícia ataca, prende, tortura e mata com impunidade legal. Eles não existem para impedir o crime, mas para garantir que a impunidade para atos considerados criminosos continuem sendo monopólio de quem tem poder econômico e político nas mãos. Nas melhores hipóteses, suas limitações são meramente burocráticas: quando a prisão não é em flagrante e é impossível forjar as provas; ou quando é necessário um mandado judicial para desalojar violentamente um imóvel ocupado; ou então quando uma manifestação popular toma as ruas de forma radical e a violência necessária para contê-la é ilegal ou controversa demais para ser praticada de forma explícita pelas forças policiais. Nesses casos, a ação de bandos neonazistas é útil para fazer o trabalho sujo que a polícia não quer ou não pode fazer num determinado momento.

Uma outra utilidade para a ação fascista nas ruas é nos manter ocupados demais tentando evitar que as coisas fiquem “ainda piores” e para lutar contra o sistema em si. O mesmo acontece com políticos como Bolsonaro e Trump: seus escândalos e suas medidas absurdas nos obriga a estar sempre reagindo às suas agendas invés de seguir as nossas próprias. Isso faz parecer que tudo o que queremos é restaurar alguma “normalidade” perdida no sistema democrático. Passamos a ser apenas defensores da última versão menos absurda da vida sob Capitalismo. O que é sempre o risco de soarmos como reacionários enquanto a direita se apresenta como “os rebeldes antissistema”.

parece que ocorreu uma inversão: por um lado, os progressistas se voltam para o passado, querem evitar a “decadência” dos valores democráticos, e assumem uma posição reativa (que era desde o século XIX a posição dos conservadores clássicos, dos teóricos da decadência etc.). Por outro lado, os populistas de direita, isto é, os reacionários, se tornaram “progressistas” no sentido de que querem acelerar o tempo e adiantar o futuro – mas por isso são apocalípticos. Apocalípticos porque amigos do apocalipse, porque eles não têm pudor em acelerar o processo de devastação do meio ambiente, em aniquilar pessoas (ou simplesmente deixar morrer, como no caso italiano em que impediram que um barco de refugiados atracasse) e em transformar a sociedade em uma guerra de todos contra todos em que sobrevive o mais armado – e isso não é nenhum “retorno à Idade Média”, é o próprio ápice do desenvolvimento capitalista, cuja verdade não é nenhuma versão democrática e luminosa de sociedade, mas sim esse grande Nada destrutivo.”

Felipe Catalani, A decisão fascista e o mito da regressão: o Brasil à luz do mundo e vice-versa

Se, depois de toda essa reflexão, alguém ainda acredita que se aliar a membros da polícia em alguma luta social revolucionária pode ser uma boa ideia, afirmamos que abrir as portas e confiar em agentes da repressão estatal que querem lutar contra o fascismo é expor nossos movimentos à infiltração e outros riscos extremos desnecessariamente. Após séculos de luta das classes trabalhadoras e excluídas sendo perseguidas, traídas, mortas e aterrorizadas por instituições como a polícia e o exército; e com a sombra de uma ditadura civil-militar ainda viva na memória, é difícil pensar que tais indivíduos possam ser confiáveis – ou que seus colegas o sejam. Deveríamos trazer para dentro de nossas reuniões, protestos e ações, as pessoas que convivem e compartilham o dia de trabalho com assassinos, torturadores e inimigos da liberdade? Se policiais acreditam que todos devem se opor ao fascismo ou a qualquer forma de opressão, seu caminho deve ser o mesmo de qualquer pessoa à frente de instituições repressivas ou exploradoras: desertar. Que abandonem seus cargos, seus salários, seus privilégios e expropriem o máximo de recursos e munições possíveis que devem estar em mãos revolucionárias – e mesmo assim, é possível que levemos anos ou décadas para sequer começar a dar alguma confiança a pessoas que abriram mão de toda decência humana para aceitar um salário em troca de perseguir, prender e matar.

O governo grego promoveu uma ofensiva em Exarchia, o bairro anarquista de Atenas, despejando várias ocupações e centenas de pessoas, dentre elas imigrantes e refugiados. No meio da operação, era possível ver policiais usando símbolos fascistas. Na foto, o policial usa brasão e slogan do partido fascista Aurora Dourada.

A luta antifascista entre anarquistas é a recusa ao fascismo, mas também é a afirmação da vida. Não podemos e não queremos estar ao lado de quem opera dispositivos de governo. Nesse sentido NÃO somos todas antifascistas, se nos juntamos a uma instituição criada para impedir que as pessoas transformem sua opressão em revolta.

Por essas e outras, os anarquistas sempre tiveram claro que não existe luta antifascista no interior da instituições. Derrotar o fascismo significa obstruir sua virtualidade contida em qualquer Estado, em especial nas instituições que racionalizam e operam o extermínio: a polícia, o exército, as prisões e todo sistema de justiça criminal. Além disso, a história das lutas anarquistas nos informam que, em muitos casos, a luta antifascista é uma tática utilizada por liberais democratas e socialistas autoritários para conter a radicalidade do nosso anticapitalismo e de nosso antiestatismo inegociáveis. E aí chegamos a nosso ponto: somos todos, realmente, antifascistas? O que pensar de operadores das instituições de extermínio e do racismo de Estado que declaram adesão às lutas antifascistas em momentos de recrudescimento autoritário do regime político? Pensamos, especificamente, nos que se autointitulam policiais antifascistas. Ser antifascista é viver uma vida não-fascista. Como viver essa vida quando se é um agente do Estado armado e autorizado a matar? Como conceber isso? Especialmente num país como o Brasil, onde a polícia carrega toda herança escravocrata e está estruturada segundo os regimes autoritários no país durante o século XX?

Por favor, não diluam suas causas a ponto de ir para a rua com uma turminha dessas.

Não precisamos nos aliar a mercenários armados, ensinados a obedecer sem questionar, com autorização legal para agredir e matar defendendo as desigualdades existentes em nossa sociedade. Podemos trabalhar em conjunto sob princípios de solidariedade e horizontalidade para atender às necessidades de nossas comunidades, resolver conflitos e nos defender mutuamente da violência autoritária – ou seja, da polícia, fascista ou antifascista. Não existe caminho para a liberdade que não seja através da liberdade aqui e agora. A única autonomia que construímos está nos nossos laços sociais e de solidariedade: se quisermos garantir nossa integridade física contra agressões, precisamos de redes de apoio mútuo capazes de se defender, precisamos construir autodefesa e autodeterminação, que é nossa forma de liberdade diante da abstrata e dependente ideia de segurança. Não queremos essa democracia securitária, queremos liberdade e autodeterminação: cada pessoa e comunidade agindo de acordo com sua consciência e responsabilidade coletivas, em vez da coerção inerente aos governos e aos agentes de segurança, pois estes são sempre externos aos conflitos e problemas que vida em sociedade inevitavelmente cria.

A luta antifascista deve ser aliada à luta pelo fim de todas as instituições estatais, principalmente as repressivas. Precisamos alimentar e expandir estruturas para tomada de decisão que promovam autonomia e, por fim, práticas de autodefesa que possam nos proteger daqueles que no futuro queiram se tornar nossos líderes, como nos ensinam os povos ameríndios em sua relação com as chefias. Da mesma forma que não existe luta contra opressão sem uma luta contra todo aparato policial e estatal, não existe espaço na luta antifascista para reformar uma economia capitalista, o Estado, sua polícia e suas prisões – e muito menos espaço para policiais em uma luta contra o fascismo. Se, como disse com razão um dos líderes do movimento de policiais supostamente antifascistas, a polícia é a gestão da polis, nós seremos ingovernáveis.

Não passarão: sejam polícias, sejam fascistas, ou ambos juntos.

1 In The Name of The People, LIAISONS