Nem CPI, Nem Eleições: Só o Povo Nas Ruas Vai Barrar o Genocídio

A pandemia segue matando mais de mil pessoas por dia no Brasil, na maior média diária do mundo. Sem qualquer plano no nível federal para vacinar e barrar o contágio, o saldo de mortes evitáveis continuará crescendo. Pessoas em todo país começam tomar novamente as ruas para enfrentar um governo tão ou mais perigoso que a pandemia. Além do vírus e da crise social que o acompanha, o governo e o congresso promovem ataques históricos às populações indígenas, ameaçando sua permanência em suas terras e entregando o que resta das florestas para a mineração e o agronegócio.

Enquanto isso, a oposição dentro do Senado lidera uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) que busca comprovar se a negligência do governo federal foi elaborada intencionalmente para espalhar a Covid-19, com especial impacto mortífero sobre as pessoas pobres, negras e indígenas. A investigação encontra várias provas dessas práticas, além de revelar escândalos de corrupção na compra de vacinas. Com efeito, muita gente renova a esperança de que as “instituições funcionem” para punir os responsáveis por mais de meio milhão de mortes. Quem escolhe protestar nas ruas, encontra sindicatos e partidos da centro-esquerda tentando controlar e canalizar a revolta para lançar seus candidatos nas próximas eleições. Enquanto os nossos morrem, sabemos que não é possível esperar nem por punição nem por eleição.

As Instituições Estão Funcionando Normalmentee Precisamos Pará-las

A democracia é sempre apresentada como a “antítese” da ditadura e/ou do fascismo. Alega-se que a divisão dos poderes serve de freios e contrapesos para regular o poder do chefe de Estado e de governo. Acredita-se que essa fórmula da democracia moderna é suficiente para impedir que ele faça apenas o que bem entende sem limites ou consequências em caso de abuso de autoridade. Mas não é isso o que vemos na prática, especialmente nas Américas, onde praticamente todos os países foram fundados sobre a escravidão negra e o etnocídio indígena. As investigações da Comissão Parlamentar de Inquérito podem oferecer uma esperança, mas não podemos nos dar ao luxo de confiar nos ritos democráticos.

Tomemos um exemplo recente da chamada “maior democracia do mundo”: Donald Trump saiu ileso de dois processos de Impeachment, em 2020 e em 2021. Em ambos obteve a maioria dos votos no parlamento dos Estados Unidos mesmo após cometer crimes explícitos e bem documentados – como chantagear o presidente da Ucrânia para interferir nas eleições americanas e incentivar seus apoiadores a invadir o Capitólio em janeiro de 2021 com símbolos neonazistas para atacar congressistas e tentar vingar sua derrota nas urnas.

Durante as investigações de crimes eleitorais em 2019 e o primeiro processo de Impeachment de Trump em 2020, parte da população renovou sua confiança de que as instituições e a lei cumpririam a promessa de punir o presidente Trump por seusdesvios. Os protestos que marcaram o governo desde a sua posse foram dando lugar à promessa de que as autoridades resolveriam o problema. Foi somente após o assassinato de George Floyd pela polícia em maio de 2020, que as ruas tornaram a ser o principal palco da ação popular. Uma onda de levantes iniciada em Minneapolis varreu 200 cidades no país, queimando delegacias e centenas de viaturas, ocupando praças e prédios e expulsando a polícia de vizinhanças inteiras.

Manifestantes em frente à 3ª Delegacia de Minneapolis em chamas, após assassinado de George Floyd, 2020.

Figuras proeminentes do partido Democrata acusaram os movimentos insurgentes da rebelião de George Floyd de assustarem o eleitorado, de serem a imagem de “inimigo interno” perfeita para Trump se projetar nas urnas como solução para o caos político e para a crise sanitária – ambos ampliados por ele mesmo e pelas políticas que ele representa. Mas os eventos demonstraram que a população se identificava com os protestos combativos contra a violência e o racismo policial e, como resultado, a popularidade de Trump despencou.

Como afirmam camaradas dos EUA antes da eleição,

“Na verdade, se estudarmos as pesquisas ao longo de 2020, Biden consolidou sua liderança depois que a Rebelião George Floyd começou no final de maio; Trump só começou a recuperar terreno quando os protestos cessaram. Se Trump perder esta eleição e deixar de manter o poder por outros meios, muito do crédito deve ir para os rebeldes por forçarem parte da classe dominante a mudar de lado e apoiar Biden, mostrando que mais quatro anos de Trump podem tornar aos Estados Unidos ingovernável.”

Deixar claro que não haveria paz sob o governo de Trump foi uma forma de dizer que se aliar a ele é desgastar a própria imagem e uma grande quantidade de energia para manter legitimidade e controlar a rebelião. A semelhança entre a esquerda liberal, a direita conservadora e os ricos de toda espécie é que ambos preferem a paz para governar e manter as instituições e os negócios funcionando.

Não foram as instituições democráticas, e sim a coragem das pessoas enfrentando a polícia e milícias supremacistas brancos nas ruas que deixou Trump isolado, contribuiu para a queda da sua popularidade e perda de votos – algo que nenhuma investigação ou Impeachment conseguiu. Se a maior parte das pessoas tivessem aceitado não ir para as manifestações e deixar as poucas pessoas que foram lutarem sozinhas, isoladas, para serem reprimidas, a extrema-direita poderia ter se sobressaído e ganhado ainda mais confiança ocupando essas ruas ao lado das forças policiais. Ambas teriam mais legitimidade e o controle da situação para ajudar Trump a dominar o debate público e vencer a eleição.

Sem a revolta popular demolindo a imagem do governo, esses apoiadores dentro das elites ainda tentariam apoiar um segundo mandato de Donald Trump – mesmo após sua gestão catastrófica da pandemia e a tentativa de invasão do Capitólio por seus apoiadores.

Imitando as trapaças do magnata americano, Bolsonaro e sua corte miliciana prometem contestar o resultado das eleições em 2022 e já está há tempos aparelhando as instituições com mais de 6 mil militares da ativa, muitos deles generais, em altos cargos civis do governo – mais do que a própria Ditadura Civil-Militar de 1964-1985 – e comprando o apoio das polícias militares com prestígio, impunidade para crimes cometidos em serviço e crédito para compra de imóveis. Sem falar de sua campanha permanente para armar cidadãos alinhados à sua ideologia patriarcal e autoritária que já dobrou o número de armas em circulação no país. Carreatas e desfiles de motos caras complementam seu espetáculo performando uma imagem de apoio popular e ameaça à oposição no estilo gangue de macho branco ressentido.

Para entender onde Trump e Bolsonaro se encaixam na política de nossa época, devemos considerar que eles não são a morte das democracias, são sua face mais pura e sem pudores expondo os mesmos elementos policiais, securitários, racistas, genocidas, prisionais e patriarcais que governos democráticos compartilham com os regimes fascistas históricos. Para executarem seus planos autoritários e colocar a vida de milhões de pessoas em risco ainda maior, basta conquistar a maioria dos votos populares e apoio no parlamento para agir com legitimidade e total impunidade. No caso brasileiro, isso é ainda mais explícito uma vez que não houve justiça de transição nem qualquer forma de responsabilização aos militares pelas perseguições, prisões, torturas, desaparecimentos e mortes que praticaram ao longo da última ditadura¹. Hoje, Bolsonaro é apenas o maior representante do mesmo projeto ou “partido militar” que nunca deixou de controlar a República, desde sua fundação em 1889.

Sempre foi evidente, antes mesmo da vitória eleitoral, que Bolsonaro representava um projeto violento que custaria a liberdade e a vida das populações pobres e excluídas. Mas não imaginávamos as dimensões que uma pandemia adicionaria a essa tragédia. A Covid-19 se tornou uma verdadeira arma biológica na matança de pobres e não-brancos se aliando e ampliando o morticínio policial cotidiano. Com 2,7% da população mundial, Brasil já contabiliza 13% das mortes por Covid-19 no mundo. Nessa ofensiva, povos indígenas enfrentam não só a pandemia, mas incêndios na Amazônia, no Pantanal, o avanço do agronegócio, mineração ilegal e extração de madeira sem regulação ou qualquer consequência legal. Pelo contrário, legisladores estão determinados a entregar reservas indígenas ao latifúndio e ao extrativismo em nome do crescimento do PIB, como abordaremos adiante.

Seu plano de extermínio ceifou mais de meio milhão de vidas com o pretexto de salvar a economia” jogando as pessoas no trabalho, nas escolas e nos transportes lotados para se contaminarem com a Covid-19. Até agora, esse plano nada secreto de disseminação do vírus, comprovado e descrito pelo estudo de diversas instituições de pesquisa, ganhou alguma materialidade e testemunhos bem embasados durante os inquéritos da CPI, que apurou também que ao menos 400 mil mortes teriam sido evitadas se o básico tivesse sido feito para promover a prevenção.

Além disso, ficaram evidentes a censura de estudos que atestam o impacto desproporcional da Covid-19 sobre população negra e indígena, demissão ou silenciamento de servidores que se comprometem em aplicar as recomendações sanitárias que funcionaram em todo o mundo (uso de máscara, testagem, isolamento), uma campanha de boicote à vacinação e em favor da “imunidade de rebanho” aliado ao uso de remédios ineficazes contra o vírus e, mais recentemente, o atraso deliberado na compra de vacinas eficazes para poder comprar vacinas superfaturadas por intermédio de paraísos fiscais, evidenciando que a corrupção está muito bem articulada com o negacionismo científico.

Gráfico do pesquisador Pedro Hallal censurado em reunião com membros do Ministério da Saúde.

A CPI trouxe também declarações e comparações com o Holocausto em mais de um momento. Primeiro quando parlamentares compararam a busca por responsáveis pelas mortes na pandemia com o julgamento de Adolf Eichmann, oficial nazista responsável pela logística dos campos de concentração de Hitler. Em outros casos, trazendo a imagem da cidade de Manaus durante a crise de falta de oxigênio no estado do Amazonas, quando centenas de pessoas morreram sufocadas em hospitais sem ter atendimento em casos graves de Covid-19, os mortos eram enterrados em valas comuns e vieram as acusações de que a cidade foi usada como “campo de teste” para uso em massa de medicamentos ineficazes, como a cloroquina. Exagero ou não, o cenário é terrível o bastante para trazer tais paralelos no debate público.

Com esse peso trágico, a investigação no Senado atrai a atenção de quem não quer “apenas esperar 2022” e torce pelos possíveis resultados da CPI da Covid-19, assim como grande parte dos estadunidenses aguardaram em vão uma condenação de Trump ou um Impeachment. Mas o projeto colonial, patriarcal e genocida brasileiro segue mais vivo do que nunca enquanto o mesmo Congresso que investiga a gestão Bolsonaro não faz nada para barrar as leis que viabilizam seu projeto de destruição dos biomas e dos povos.

Rebeliões de um Novo Junho

Desde 29 de Maio e ao longo de Junho e Julho de 2021, movimentos sociais e centrais sindicais convocaram atos nacionais para protestar contra o governo de Jair Bolsonaro. Os protestos levaram dezenas de milhares de pessoas às ruas nas maiores capitais. Muitas pessoas compareceram carregando o nome e a foto de entes que perderam na pandemia. Blocos autônomos, formados por anarquistas, indígenas, torcidas organizadas e antifascistas em geral tomaram espaço em muitas cidades. Alguns foram mais combativos, com barricadas, pixações e ataque à propriedade dos ricos e do Estado. Aos poucos, o luto e a revolta por todas as mortes evitáveis, pela miséria e pela violência que se aprofundam vão tomando espaço.

Alguns movimentos sociais sob a hegemonia dos partidos de centro-esquerda ressoam a perigosa ideia de que somente nas eleições de 2022 poderemos nos livrar de Bolsonaro e seu governo. Lula se tornou novamente elegível após ter suas condenações anuladas por falta de provas e é apresentado como favorito nas pesquisas eleitorais para ser o novo/velho salvador da pátria. Após o grande ato de 29 de Maio, com forte repressão policial contra um ato pacífico em Recife, e os protestos de 19 de Junho, marcado por confrontos em São Paulo, tais organizações convocaram um novo ato apenas para 24 de Julho, mais de um mês depois.

Bloco Autônomo em São Paulo, dia 3 de julho.

No entanto, escândalos de corrupção envolvendo membros do governo federal comprando de vacinas superfaturadas, deram um tom de “urgência” aos atos, que foram marcados às pressas para o início de julho. Dessa forma, muitas renovaram suas esperanças nas instituições, como nas investigações durante o governo Trump nos EUA. Como reflexo, vimos as centrais sindicais, partidos e movimentos da esquerda tentando centralizar o controle e as decisões sobre quando serão os atos de rua.

Muitas pessoas, coletivos e movimentos autônomos criticaram a explícita tentativa de adiar os atos para amortecer a radicalização que começava a surgir e domesticar a revolta para não comprometer sua agenda e seus interesses eleitorais – sempre um dos riscos de depender da centralização dentro dos movimentos luta. Quando as centrais sindicais e partidos decidem que é razoável esperar mais de um mês para o próximo ato e protesto pelas centenas de milhares de mortes evitáveis para, em seguida, decidir adiantá-los quando veio à tona um escândalo de corrupção, elas estão se somando o moralismo que ergueu a extrema direita ao afirmar: a morte em massa é parte do nosso cotidiano, mas a corrupção não, essa é intolerável!

Se queremos derrubar governantes, temos que fazer isso por nossas mãos. Mesmo que o contexto nos leve apenas a conseguir meias vitórias, como um Impeachment ou a derrota eleitoral de Bolsonaro, dificilmente isso acontecerá sem as ruas em chamas. E isso implica enfrentar práticas centralizadoras e legalistas em meio a nossos próprios movimentos e exige abandonar os desejos de governar a revolta. Quando alguém tenta centralizar a influência sobre os movimentos e monopolizar o discurso de legitimidade para então distribuí-la de forma desigual entre quem parte para ação, o próximo passo é sempre a repressão policial.

https://twitter.com/RedeInfoA/status/1411434924645752837

Da Centralização à Polícia da Paz

Muitos movimentos sociais no Brasil dizem se inspirar na radicalidade das lutas recentes na Colômbia, nos Estados Unidos e no Chile, mesmo que para arrancar avanços pontuais – como foi o caso da nova constituição chilena ou da luta do povo colombiano para barrar a reforma tributária de Iván Duque. Mas parece que devemos sempre lembrá-los que tamanha força social só é possível respeitando e promovendo a diversidade de ações nas ruas e em cada tipo de organização. Não é deve ser aceitável criminalizar ou tentar disputar legitimidade reproduzindo o que diz a lei burguesa e sua polícia.

Assim como fazem petistas em seus delírios sobre os levantes de 2013 no Brasil, ou democratas e liberais nos EUA em 2020, a esquerda reformista e a mídia voltam a difundir boatos de que a revolta popular é sempre fruto de “infiltrados – a nova figura mítica temida por quem não tem intimidade com as ruas e teme a revolta mais do que teme a polícia. Para tanto, além de romper de vez com a narrativa que culpa quem se rebela pela repressão, é preciso eliminar do debate público a noção de que não ir paras as ruas e ficar em casa, depois de nos aglomerar no trabalho e no transporte público, é o que vai nos manter a salvo em meio a uma pandemia governada por uma extrema direita sem qualquer pudor de deixar nítido uma política genocida.

Dia 19 de junho em São Paulo, um dos primeiros atos mais combativos, ficou marcado por revelar as consequências das inclinações centralizadoras dentro dos movimentos sociais de massa que aceitam ser base eleitoral e conduzem a práticas policialescas. Membros do MTST (Movimento dos Trabalhadores Sem-Teto, de onde saiu Guilherme Boulos, candidato a presidência e à prefeitura de São Paulo) atacaram fisicamente um bloco autônomo de luta que incluía indígenas, sindicatos, indivíduos e coletivos anarquistas. Membros do MTST tentavam desfazer barricadas na avenida e denunciar pessoas para a polícia – repetindo os feitos de 2014 quando desmascararam e entregaram pessoas em um black bloc para polícia.

Tal episódio foi condenado por grande parte dos movimentos negros, indígenas e libertários. O MTST é um dos maiores movimentos do país e não é justo julgar todos os indivíduos que compõe, sendo muitos deles também indígenas e negros. Dinâmica semelhante se repetiu nos protestos de 13 de julho no Rio de Janeiro, quando membros de um partido stalinista tentaram tomar a frente do ato expulsando o bloco autônomo formado também por indígenas e anarquistas.

A tentativa de abafar organizações autônomas, não partidárias, indígenas e libertárias dentro da esquerda nas ruas mostra os riscos das práticas e métodos centralizadores e hierarquizados aplicados às dinâmicas de rua. Se blocos ou pessoas agindo autonomamente e expressando sua revolta pela perda dos mortos e pela miséria dos vivos incomodam não só a polícia, mas quem marcha ao nosso lado, então é mais provável que os movimentos abortarão qualquer rebelião muito antes que a própria polícia o faça. A disposição dos que optaram por atacar as barricadas e o protagonismo indígena e a ação de grupos autônomos, e o total silêncio de suas lideranças sobre os ocorridos apenas expõe uma faceta autoritária de parte da esquerda que aceita a revolta apenas se puder controlá-la. Fazer pressão nas ruas e causar transtorno para governantes não é tanto uma prioridade quando se quer apenas uma revolta simbólica voltada para a única forma de transformação social vista como legítima: a das urnas.

O Levante é Pela Terra

Desde o início de junho de 2021, indígenas de ao menos 25 etnias se reúnem em Brasília para protestar contra o Projeto de Lei 490/ 2007 que entrega seus territórios para a exploração econômica predatória e inviabiliza a demarcação de novas terras e incentiva a evangelização dos povos que escolheram viver isolados dos brancos e da cidade. Para ter direito às suas terras, indígenas precisam comprovar a sua posse até o dia que foi promulgada a Constituição Federal de 1988, ao fim da Ditadura Civil-Militar. Um dos maiores ataques aos povos indígenas nesse governo, mas que tem raízes nos governos anteriores e avançou bastante com o PT no poder. O projeto foi redigido em 2007 mas encarna as ambições coloniais de um país fundado sobre a conquista e extermínio indígena, que quer reverter direitos conquistados e apagar a diversidade étnica e cultural dos povos que habitam essas terras muito antes da invasão europeia. É também um avanço rumo ao “ponto de não retorno” de devastação na Amazônia, maior floresta tropical do mundo que, em 2020, teve o maior desmatamento da década e pode não se recuperar totalmente dos impactos atuais.

No primeiro dia de protesto, 8 de junho, cerca de 800 indígenas protestavam para pressionar Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) da Câmara Deputados que aprovaria ou não a PL/490. Na porta da FUNAI, a polícia atacou com bombas e bala de borracha os indígenas quando estes apenas se reuniam e cantavam músicas tradicionais.

No dia 22, dia da votação da lei, a polícia atacou novamente indígenas na porta da Câmara dos Deputados, que revidaram com flechadas e acertaram dois policiais. O confronto adiou a votação para o dia 23, quando foi aprovada pela maioria dos deputados. Os acampamentos em Brasília continuam e já contam com quase 2 mil indígenas de 52 etinias.

Os indígenas que permaneceram em seus territórios organizaram ações solidárias junto a outros movimentos autônomos para apoiar e repercutir a luta em Brasília. Bloqueios de rodovias com pneus e fogo foram organizados no dia 25 de junho em São Paulo, por Guaranis da Terra Indígenas do Jaraguá, e no dia 28, Guajajaras, Puris, Xoklengs bloquearam uma avenida no Rio de Janeiro. O mais famoso foi, provavelmente, o bloqueio organizado pelos Pataxós no sul da Bahia no próprio dia 22, bloqueando a rodovia BR101 aos cantos de “Vamos cantar, dançar o catimbó, pra trazer o bolsonaro amarrado no cipó”.

Mais resistência é esperada em agosto para derrubar a PL/490 na Justiça. Porém, fica a lição da articulação indígena que adiou a votação na Câmara e no STF, chamando atenção e solidariedade pelo país e pelo mundo: quando parte dos movimentos sociais urbanos se destaca por desfazer e atacar quem ergue barricadas ou organiza a autodefesa, se distanciando destes para favorecer a repressão, as lutas indígenas provam que ações diretas combativas e a solidariedade entres os diversos povos e movimentos são parte fundamental da luta contra um governo e um estado genocidas.

Nenhuma Paz Pode nos Proteger 

Historicamente, movimentos fascistas como o Integralismo foram barrados pela ação direta, muitas vezes violenta, como no episódio que ficou conhecido como Batalha da Praça da Sé em 1934. Nela, anarquistas, socialistas e comunistas acabaram com um encontro Integralista no centro de São Paulo, roubaram uma metralhadora da polícia e dispersaram violentamente os fascistas, sepultando seu movimento pelas décadas que se seguiram.

Em 2020, protestos no Brasil se deram conta de que era preciso agir diretamente e começaram com chamados das torcidas organizadas e grupos antifascistas barrando atos da direita nas ruas e, posteriormente, denunciando o racismo e a violência policial – o que ganhou fôlego e inspiração com onda de protestos nos EUA. Muitos movimentos e personalidades políticas e artísticas disseram que não se juntariam aos atos e recomendaram que muitos não fossem, alegando que isso “ofereceria ao governo Bolsonaro o pretexto para uma repressão ainda maior” ou até mesmo para “um golpe” (ou auto-golpe). Como vimos durante os levantes por George Floyd, essa narrativa é falha e reacionária em si, pois coloca a responsabilidade da repressão na revolta dos oprimidos. Como se a resposta para um momento de crise e escalada autoritária fosse ainda mais passividade e submissão. Como se baixar a cabeça fosse uma estratégia válida, legítima ou efetiva para enfrentar déspotas como Bolsonaro ou Trump. Algo sem qualquer correspondência na história ou na atualidade.

Para dar fim a um governo, devemos confiar no poder da revolta popular nas ruas para conseguir isso, seja diretamente, seja como vimos nos EUA, destruindo a imagem e o apoio político e econômico de seus líderes, ameaçando a tranquilidade e os negócios de seus aliados, seja como no Chile e na Colômbia, massificando a revolta e tornando-a incontrolável, tanto para a polícia quanto para os movimentos partidários e governistas. Não devemos nos iludir, é claro, com vitórias parciais. Uma nova constituição chilena ou uma reforma policial nos EUA não são nossos objetivos revolucionários de longo prazo e, pelo contrário, podem colocar novas limitações a esses objetivos . Ainda assim, está óbvio que não conseguiremos nem mesmo uma vitória parcial, como a queda imediata de Bolsonaro, se as forças que tentam controlar, pacificar e criminalizar a revolta surgem e crescem dentro dos movimentos sociais do nosso lado das barricadas.

Se queremos a revolta popular massificada nas ruas, temos a certeza de que nem todas as pessoas participando serão parte de uma organização formal – e nem precisam ser para se juntar aos protestos. Nem toda forma de ação é prevista e planejada pelos movimentos sociais. Da Primavera Árabe aos levantes por George Floyd nos EUA, dos protestos contra Lei de Extradição em Hong Kong aos levantes contra o neoliberalismo no Chile, vários exemplos comprovam essa tese. E nem por isso tais agitações deixam de ser uma expressão legítima da revolta dos povos. Em vez de questionar a “organização” ou a “legitimidade” por trás das ações de pessoas ou grupos dispostos tomar a cidade, atacar a propriedade e se defender da polícia nas ruas, devemos nos perguntar como apoiar e oferecer ferramentas para que essa revolta se torne uma força revolucionária ainda mais perigosa para essa ordem social assassina, e ainda mais efetiva em construir alternativas duradouras.

Quanto aos perigos das ações combativas nas ruas, lembramos que no dia 29 de Maio a polícia do Recife não precisou de pretexto algum para atacar um protesto pacífico e cegar duas pessoas que nem participavam do ato. Se um bloco organizado estivesse presente para proteger manifestantes com escudos e capacidade para revidar e afastar a tropa de choque, como fazem com sucesso as linhas de frente no Chile e em Hong Kong, a presença de idosos, famílias ou pessoas com mobilidade reduzidas não seria uma justificativa para promover o pacifismo e apanhar gratuitamente da polícia. No “relógio revolucionário” dos que buscam centralização, controle e pacificação, nunca é hora de erguer barricadas e contra-atacar. Porém quando o fascismo está florescendo e tomando tanto as ruas quanto as instituições, é sinal de que nosso relógio está atrasado e já passou da hora de agir.

Combater e desarticular o fascismo envolve impedir seus eventos de acontecerem, bloquear suas marchas e carreatas para que não ocupem as ruas recrutando mais membros, desmantelar as estratégias para difundir suas ideologias e mentiras. Os atos de junho e julho mostram que milhares de pessoas estão dispostas a ocupar as ruas e impor consequências para os ricos e poderosos. Povos indígenas se articulam contra o governo mais nocivo para sua sobrevivência em décadas e mostram disposição para uma aliança popular e radicalizada.

O que beneficia um governo autoritário não são as ações radicais e combativas nas ruas, mas a falta delas. É também saber que a própria esquerda acha que a revolta popular só pode ser ação de “elementos infiltrados”. Dividindo manifestantes entre legais e ilegais, legítimos ou ilegítimos. Cavando uma divisão e agindo como polícia de si mesmo, a ala legalista da esquerda poupa dois dos principais trabalhos da repressão.

Lutar Será Crime

Nosso sistema penal já é uma máquina de moer vidas e toda prisão deve ser considerada uma questão política. A repressão durante o governo Bolsonaro, porém, vem reafirmando a perseguição ideológica de opositores. Dia 18 de março, em Brasília, Rodrigo Pilha, militante do PT, foi preso pela Polícia Federal por carregar uma faixa escrito “Bolsonaro Genocida” e só foi liberado mais de 100 dias depois ao iniciar uma greve de fome denunciando isolamento, torturas e ainda estar preso mesmo depois de ter direito ao regime semiaberto. Ele e mais quatro companheiros serão processados sob a Lei de Segurança Nacional, entulho jurídico dos tempos da Ditadura. Em São Paulo, nos protestos do dia 3 de julho, o jovem Matheus Machado foi preso arbitrariamente e levado para um presídio por 10 dias depois de achar no chão um capacete policial. Acusado de furtar o item, Matheus também seguirá respondendo em liberdade. Ambos só estão em casa depois de muita pressão popular e nas redes. O uso desses dispositivos legais para enquadrar manifestantes e militantes não é novo e foi usado em 2013 no governo Dilma. Porém, vemos um avanço e um estímulo explícito à perseguição policial e à criação de leis ainda mais duras, como o projeto de lei escrito pelo próprio Bolsonaro, quando ainda deputado em 2016, inspirada no Patriotic Act – absurdo decreto do governo de George W. Bush nos EUA após o 11 de setembro. Outro projeto em curso, a PL272, ataca diretamente a movimentos sociais, considerando crime até mesmo greves, protestos e pequenos atos de vandalismo (já tipificados como dano a propriedade), introduzindo trechos vetados pela Lei Antiterrorismo assinada por Dilma Roussef e seu governo petista logo antes de sua queda em 2016.

É inegável a relação simbiótica e de fundação do moderno projeto de democracia capitalista brasileiro com o que há de mais sombrio de sua herança colonial, escravocrata, aristocrática e ditatorial. Nas leis, na polícia e na política vivemos o resultado dessa história não superada. Especialmente quando muitos dos agentes militares e seus discípulos da época da Ditadura Civil-Militar ainda mantém seus poderes, privilégios e a noção de que podem fazer o que quiserem sem consequências.

As intenções golpistas do presidente são óbvias e muito anteriores ao seu governo. Suas ameaças serão um risco ainda maior se souber que não haverá resistência. Como ele mesmo alegou, são os militares é que “decidem se o povo vai viver numa democracia ou numa ditadura”. Se até o governo Dilma os líderes militares não costumavam opinar frequentemente sobre a política e se diziam “estarem totalmente comprometidos com a democracia”, hoje é rotina declarações que se somam ao tensionamento e às ameaças de Bolsonaro. O chefe da Aeronáutica reagiu às investigações da CPI que apontam para a corrupção de militares ligados ao governo dizendo que “homem armado não ameaça” – o que em si já é uma ameaça.

Nesse cenário, militantes bolsonaristas organizando atos, carreatas e passeios de moto, policiais milicianos aparelhados e os militares controlando a maior parte do poder Executivo representam uma ofensiva autoritária que vai da rua ao topo das forças de segurança e do governo. O atual aparelhamento das polícias militares, até então controladas a nível estadual, e o precedente de golpe orquestrado pelas polícias na Bolívia em 2019 não contribuem para perspectivas otimistas.

Bloqueio de viaduto em Belo Horizonte, 3 de julho de 2021.

Se perdermos a chance de ir para as ruas desmoralizar o governo Bolsonaro e desarticular seus apoiadores – como os povos têm feito de norte a sul do continente –, para apenas esperar uma simples vitória nas urnas em 2022 ou uma condenação após a CPI, corremos o risco de duplicar o saldo de mortes pela pandemia, aprofundar a crise social e securitária, o genocídio de negros e indígenas e ainda ter que enfrentar uma base fascista mais consolidada do que nunca nas ruas num futuro próximo. Por isso, o melhor momento para agir e barrar o fascismo é sempre agora. E a melhor forma é sempre diretamente. Não podemos esperar que o parlamento que aprova os projetos desse governo ou as mesmas elites político-econômicas que abriram as portas para o militarismo protofascista de Bolsonaro sejam aliados em nossa luta para derrubá-lo. Restaurar a política democrática-liberal não é eliminar o fascismo, é apenas voltar com ele para a caserna de onde será recrutado novamente assim que avanços sociais, mesmo que mínimos, ou revoltas populares abalarem o sono dos poderosos.

Quando ocupamos as ruas massivamente, aprendendo com nossos erros e acertos, compartilhando ferramentas para a resistência e a autodefesa, avançamos muito mais numa construção revolucionária do que quando esperamos que líderes e burocratas façam o serviço em nosso lugar. O governo cumpre seu papel assassino, as força políticas que disputam o governo querem pacificar as ruas. Só a revolta pode introduzir um elemento novo, provocar o ingovernável e fazer emergir o mundo novo que trazemos em nossos corações. Se governo é a morte, a fome e a destruição com a política que é a programação racional desses atos, sejamos a revolta ingovernável que afirma a vida e não teme a ruína, pois tudo que aí está foi construído por nós, faremos melhor sem o governo atrapalhando. Mais do que nunca, devemos bradar, nem ditadura, nem democracia, anarquia!

Sejamos quem constrói as barricadas nas ruas para enfrentar o fascismo, não as mãos pacificadoras que as desfazem.


Notas:

1: Ironicamente, em 2021 houve a primeira condenação criminal de um membro repressão da Ditadura Civil-Militar, 36 anos após seu fim. Um delegado foi condenado a 2 anos no regime semi-aberto por sequestro e cárcere privado.

Os Mais de 40 Dias de Greve de Fome dxs presxs Anarquistas e Subversivxs em Santiago

[tradução de texto de La Zarzamora]

No dia 22 de março deste ano, um total de 8 companheiros e 1 companheira em privação de liberdade por ações políticas iniciaram uma greve de fome líquida nas prisões de CPF San Miguel, Santiago 1 e Cárcere de Alta Segurança (CAS). Isso, por um lado, como forma de protesto contra as últimas modificações no decreto de lei 321, referente aos requerimentos exigidos pelo sistema carcerário para o acesso à Liberdade Condicional, e por outro para exigir a liberdade de Marcelo Villaroel, preso autônomo subversivo, que recebeu o castigo do estado e de seus mecanismos d e controle durante grande parte de sua vida por se posicionar e lutar contra o poder.

Hoje, há mais de 40 dias, continuam com a ação: Mónica Caballero, Marcelo Villarroel, Juan Flores, Joaquín García, Pablo Bahamondes e Francisco Solar. Do mesmo modo, o companheiro Juan Aliste Vega continua aderindo sem greve de fome por conta de seus graves problemas de saúde.

Essa ação de protesto, na qual desde a prisão se estabelece o próprio corpo como território de luta e resistência, a primeira trincheira de combate, irrompe para instalar com força a existência do problema gerado com as modificações dos anos 2016 e 2018 no DL 321, modificações impostas desde o poder político com absoluto desconhecimento da realidade dos centros de tortura e castigo do estado/capital.

Como objetivo da ação, a e os companheiros estabeleceram os seguintes pontos:

● Revogação do artigo 9 e a restituição do artigo 1 do DL 321.

● A liberdade do companheiro Marcelo Villarroel, preso subversivo autônomo libertário, perseguido e encarcerado por sua luta contra o poder.

● A liberdade de todos os presos políticos da revolta, mapuche e de longas penas sequestrados pelo estado do $hile.

● O fim da perpetuidade das prisões.

A saúde da e dos companheiros em greve

Já entrando nos 40 dias da manifestação, a perda de peso corporal, as tonturas e náuseas são parte do dia a dia de nossa companheira e de nossos companheiros.

Até o momento foram registradas as seguintes variações de peso: Mónica Caballero com perda total de 8 kg; Francisco Solar com perda de 10,5 kg; Marcelo Villarroel com perda de 10kg; Joaquín García com perda de 11 kg; Juan Flores com perda de 10,5 kg e Pablo Bahamondes que registra uma perda de 12 kg.

Mediante os boletins semanais da Coordinadora 18 de Octubre, foi informado que o INDH já visitou as pessoas em greve, assim como o Colégio Médico. Da mesma forma, apontam que foram acrescentados obstáculos para o ingresso de líquidos para a e os grevistas, uma forma de amedrontamento que não terá resultado na decisão dos companheiros e da companheira.

A situação de Mónica Caballero

Uma situação preocupante é o que está vivendo a companheira Mónica Caballero, que está sendo diretamente hostilizada com medidas de desgaste, como o traslado semanal para o Hospital Penal que a Gendarmeria realizava para fazer controles de sangue. Mesmo assim, após ter cumprido 38 de greve, foi ameaçada com ser enviada novamente ao Hospital Penal.

Tal ameaça foi repudiada pela companheira, que se negou rotundamente a esta transferência, motivo pelo qual no último 28 de abril foi realizada uma audiência na qual a defesa de Mónica rechaçou esta imposição, argumentando o desgaste físico e emocional que significam os mais de 40 dias de greve, assim como o controle diário de pressão e peso por parte de uma enfermeira da prisão de San Miguel, bem como a visita semanal de um médico externo.

Esses controles são suficientes para manter uma noção concreta de seu estado de saúde, porém as redes de apoio já advertiram sobre o perigo de que Mónica fosse trasladada à força nos próximos dias, por isso a tensão está presente e o chamado é para ficar alerta.

Em solidariedade com a situação de Mónica, os companheiros decidiram em sua totalidade rechaçar as mostras de sangue por “constituir uma evidente estratégia de desgaste e em solidariedade com Mónica e seus traslados semanais ao hospital penal para realizar essas amostras desnecessárias”.[1]

As modificações no DL 321

Para compreender mais a fundo o atual problema (uma expressão a mais da crise carcerária), revisaremos como e porque se originam estas modificações e como tem sido aplicadas.

No ano de 2016 se efetua uma modificação que incide brutalmente no tempo da pena cumprido para poder optar pela Liberdade Condicional (LC).

Essa modificação surgiu logo após um grande escândalo feito pelos meios hegemônicos, que alarmaram a população por um “suposto perigo” que significava a saída para a liberdade condicional de 1800 pessoas privadas de liberdade de diferentes cárceres do território, em sua maioria da V região. Isso significou, como de costume, uma assimilação social desse “perigo”, que ao mesmo tempo justificava convenientemente uma reforça na lei que permitisse manter o crescimento da população penal.

Como resultado se gera a lei 20.931, que indica em seu artigo 7 a modificação do artigo 3 do DL 321 para consolidar aspectos como o cumprimento de 2/3 da pena para poder optar pela LC em delitos como roubo, furto, receptação e outros crimes de maior violência.

Chama atenção como o punitivismo jurídico iguala os delitos antes mencionados com os de máxima gravidade como: feminicídio, parricídio, estupro e infanticídio. Assim mesmo incorpora nesta lista de delitos o “homicídio de membros das Polícias e da Gendarmeria do Chile em exercício de suas funções”[2], entregando mais uma vez a proteção privilegiada do sistema jurídico/prisional aos executores dos mecanismos de controle, no caso os Carabineros do Chile e a PDI.

Já com esta modificação em curso, os tempos necessários para optar pela LC aumentaram para a maioria da população penal. Todavia, dois anos depois outro fato de comoção social abriria caminho para a modificação seguinte.

Em Junho de 2018 é outorgada a liberdade condicional para 7 criminosos de lesa-humanidade. Essa situação fez com que o poder legislativo e executivo acordassem para “subir o padrão de requisitos para adquirir a liberdade condicional a criminosos de guerra, genocidas ou quem tenha cometido crimes de lesa humanidade”³ derivando isso na lei 21.124 ditada em 18 de janeiro de 2019.

Como já era de se esperar, essa nova modificação que pela primeira vez estabelecia a existência dos crimes de lesa-humanidade, longe de manter estes em privação de liberdade, foi utilizada e aplicada a todos os condenados sem distinção, isso considerando que em nenhum parte se menciona que tais padrões seriam aplicados à população penal comum ou social, ou seja, todos que tenham cometido delitos comuns e que não são e nem foram agentes do estado.

O Observatório Social Penitenciário diferencia a população penal em dois setores, por uma parte a população penal social que seria toda “persona de a pie” e os criminosos de lesa-humanidade, que seriam todos os agentes de estado que executaram ou executam violência política contra a população civil.

“É indispensável ter em conta que em nenhuma parte da mensagem se faz referência aos delitos comuns nem à necessidade de subir os padrões para acesso aos benefícios penitenciários para as pessoas que cometem esses delitos. Logo, toda a discussão no Tribunal Constitucional se centrou na necessidade de modificar a legislação interna para os crimes de lesa-humanidade e nunca se sugeriu sequer que essas normas se aplicariam aos presos condenados por delitos comuns” (Liberdade Condicional e uma modificação imensamente necessária. Observatório Social Penitenciário).[3]

Ambas as modificações antes mencionadas serviram como um coringa para a reprodução do sistema carcerário em um período de pleno auge das prisões concessionadas, assim como para frear a suposta “queda da população penal” que ainda se estabelece como “argumento” em contradição à superlotação denunciada diariamente por presas e presos no $hile.

Novamente podemos presenciar o jogo do poder político e judicial movendo peças sob os discursos “democráticos” adequados às abordagens internacionais de DDHH, para esconder os verdadeiros objetivos que vão aparecendo a medida que essas modificações são aplicadas.

Solidariedade ativa e propaganda pelo fato

Sem dúvida esta greve fez pulsar mais uma vez as forças solidárias do anarquismo em diferentes e também distantes territórios, onde a propaganda pelo fato irrompeu no controle social implantado desde a pandemia.

Graças a coordenação da rede de apoio à greve se desenrolou um potente trabalho de difusão, por meio da plataforma Buscando la Kalle somado aos meios livres e da Coordinadora 18 de Octubre, que possibilitou romper com o cerco midiático e com as fronteiras para coletivizar a informação do porque e de como vai a greve.

Desta maneira se registraram ações solidárias no Peru, Costa Rica, Grécia, Colômbia, Argentina, México, Suécia, Uruguai, Brasil, Espanha e no território dominado pelo estado do $hile do norte até o gelado sul.

Também se realizou 2 fóruns informativos, 2 coletivas de imprensa, um cadenazo radial (transmissão simultânea em vários meios) convocado pela Rádio 31 de Enero em solidariedade com a greve que contou com a participação de rádios livres de diferentes latitudes (entre elas La Zarzamora), dois shows online, um ciclo de cinema anticarcerário e transmissões radiais solidárias de diversas rádios, como as realizadas por Sin Fronteras Ni Naciones e Rádio 1 de Mayo.

Um fato a se destacar tem sido o apoio de outros presos, tal como foi o caso de Luis Castillo, preso político da revolta na cárcere de Huachalalume, de La Serena (norte do $hile), que começou uma greve de fome em 29 de março, se somando às demandas e exigindo sua liberdade.

As ações solidárias de outras e outros companheiros na prisão política em diferentes partes do mundo tampouco tardaram a acontecer, e desta forma chegaram as mensagens combativas da companheira Pola Roupa e Nikos Maziotis, ambxs presxs na Grécia e membros da guerrilha urbana anarquista “Luta Revolucionária”, que mediante um comunicado público mencionaram como o estado e o capital mantêm, mediante suas leis, a prisão política de quem luta contra o poder.

Do mesmo modo, em 12 de abril nos inteiramos da decisão Juan Sorroche, anarquista espanhol preso político na prisão de Terni, Itália, de iniciar uma greve de fome que durará até quando ele “considerar oportuno”, mencionando, entre outras razões, a “solidariedade com as lutas de prisioneirxs nas cárceres chilenas”.

Essas ações vão potencializando as forças de Mónica e dos companheiros para resistir à longa luta contra as modificações no DL 321, que conta com amplo rechaço desde sua aplicação. Não podemos deixar de mencionar as mobilizações geradas por presas e presos sociais em 2019, paralisando dezenas de centros de extermínio por dias.

É importante insistir que este decreto de lei afeta toda a população pena, não somente em seu artigo 9 com arbitrariedades terríveis, mas também com o artigo 3 referente às mulheres e corpos gestantes, no qual se incita a gerar uma gravidez intracarcerária por meio do qual as presas poderiam optar pela liberdade condicional somente com o cumprimento de metade da pena (como antes das modificações) e não com os dois terços.

Em relação a este ponto é necessário mencionar que a gravidez forçada é considerada um crime de lesa-humanidade e está qualificado dentro do que se compreende como “violência político-sexual”. À parte desse ponto ser um atentado à autonomia dos corpos e um controle aberrante da “capacidade” reprodutiva das mulheres e corpos gestantes em privação de liberdade, que só perpetua o ciclo carcerário, reproduzindo vidas dentro do cativeiro para no futuro alimentar o negócio sujo da prisão.

Derrubar as limitações para o acesso à liberdade condicional e que ela volte a ser um direito é uma luta difícil que foi assumida pela companheira e pelos companheiros, que com o apoio sem fronteiras podem chegar a alcançar uma mudança histórica na realidade das pessoas privadas de liberdade no $hile.


[1] Boletim informativo. Coordinadora 18 de Octubre.

[2] https://leyes-cl.com/decreto_ley_n_321_que_establece_la_libertad_condicional_para_las_personas_condenadas_a_penas_privativas_de_libertad.htm

[3] Liberdade Condicional e uma modificação imensamente necessária. Observatório Social Penitenciário.

Do Genocídio Pandêmico a Um Levante Fascista – O que Precisamos para Barrar Bolsonaro

Agentes de saúde antes de examinar o corpo de uma pessoa em durante o surto de coronavírus em Manaus.

A pandemia da Covid-19 no Brasil chega a números absurdos 210 mil pessoas mortas, cidades entrando em colapso. Sabíamos que o bolsonarismo deixaria um legado de repressão, violações e morte. Mas a crise sanitária está elevando as consequências ao extremo da devastação humana e ecológica. Em Manaus falta oxigênio e vítimas da Covid-19 e outras enfermidades morrem sufocadas enquanto o presidente e seus ministros dizem que “não podem fazer nada”. Não existe mais auxílio emergencial e os despejos seguem mesmo durante a pandemia, a letalidade policial aumentou 7% em relação à 2019 (cerca de 6 mil execuções) e o desemprego atinge índices históricos.

Para agravar o cenário, o presidente se isola entre a extrema-direita global, negando a pandemia, sabotando qualquer iniciativa e discursos médicos-científicos que viabilizem a vacinação e recomendando falsos “tratamentos precoce” da doença com hidroxicloroquina e vermífugos – ideia que até mesmo Donald Trump abandonou meses antes de perder as eleições.

Bolsonaro é o último chefe de Estado que segue como apoiador declarado, e ainda fiel, dos delírios de Trump, reproduzindo sua narrativa de fraude eleitoral e sendo o único líder mundial que apoia os discursos que justificam a invasão do Congresso estadunidense por uma multidão de fascistas no dia 6 de janeiro.

Multidão invade o Capitólio impulsionada por discurso de Trump com bandeiras racistas e neonazistas: serão eles a imagem do futuro?

E vai além: Bolsonaro é o único caso do mundo de um candidato que mesmo tendo ganho a eleição alegou, sem provas, que o sistema eleitoral brasileiro é fraudulento e que, caso o país não abandone as urnas eletrônicas, voltando as antigas cédulas para votação de papel, haverá manipulação também na eleição presidencial de 2022. Com isso, sinaliza que seria necessário haver uma reação à suposta fraude do futuro, nos moldes da invasão ao Capitólio que ele acaba de celebrar.

Por mais que certas mitologias insistam, a história não se repete. Mas é fácil encontrar padrões de atuação política e discursos entre grupos ou líderes mundiais que compartilham interesses e um mesmo momento histórico. Como o fracassado Trump, Bolsonaro surfa na mobilização de grupos sociais que transformam seu ressentimento em ação política autoritária, supremacista e estridente. Essa onda que garante uma base de apoio reduzida, mas fiel e ativista. Seus apoiadores funcionam por meio de uma lógica identitária onde fatos ou dados científicos não têm relevância se não reforçarem suas próprias crenças e nem favorecerem as políticas do seu líder. Nesse caso, seguir recomendações médicas não é uma questão de saúde e cuidado de si e dos outros, mas apenas uma polêmica na disputa limitada entre a extrema-direita reacionária e social-democracia gestora, identificada, no Brasil, com os anos de governo do PT.

Nessa lógica de identificação sectária e paranóica, sua base mais radical é inflamada para realizar nas ruas e outros locais o que o discurso do presidente e seu time (ainda) não podem fazer abertamente: a violência física e o assassinato direto da oposição. Embora saibamos que suas políticas são responsáveis pela morte de milhares de pessoas, seja na pandemia, nos desastres ambientais ou pela mão da polícia, o discurso de Bolsonaro e sua família ainda é tratado como uma “metáfora” ou como “mera brincadeira” por seus defensores mais poderosos da mídia ou em cargos públicos. Quando diz que a “ditadura matou pouco”, ou que o que o Brasil passou entre 1964 à 1985não foi uma ditadura”, ou mesmo quando diz que vai “metralhar a esquerda”, Bolsonaro se foge de qualquer responsabilidade alegando que não está falando literalmente ou está sendo mal interpretado. Mas, assim como Trump incentivando (e depois elogiando) neonazistas que atiraram e mataram manifestantes antirracistas em agosto 2020 e invadiram o Congresso em janeiro de 2021 para manter seu governo no poder, o comportamento de Bolsonaro abre caminho para que seus apoiadores se sintam ainda mais encorajados a agir no mundo real.

As políticas de liberação de armas no Brasil e propostas de isenção de impostos sobre elas caminham para facilitar o acesso a armamentos para quem tem dinheiro para isso e se identifica com o discurso reacionários do presidente. As 180 mil novas armas registradas em 2020 já são um recorde, representando um aumento de 91% em relação a 2019 e um aumento geral de 183% desde o início do governo.

Bolsonaro demonstra querer formar uma base radicalizada – e armada – para defender seus interesses nas ruas conforme o exemplo trumpista. No contexto estadunidense, onde a posse legal de armas como pistolas ou fuzis já é parte da cultura, Trump foi capaz de insuflar seus apoiadores até que um de seus apoiadores, membro de uma milícia supremacista, matou duas pessoas e feriu uma terceira com tiros de AR-15 em agosto de 2020, num protesto antirracista em Kenosha, com a conivência da polícia.

Com tantas novas armas nas mãos de pessoas que se influenciaram pela propaganda bolsonarista, não é difícil imaginar manifestações de onde partidários do presidente acabem abrindo fogo ou praticando outras formas de violência contra outros manifestantes ou minorias que já são alvo do racismo, sexismo e xenofobia.

E se há alguma dúvida quanto a atuação da polícia, os recentes esforços do governo federal em tirar o controle das Polícias Militar e Civil dos governos estaduais e transferi-lo para Brasília (revisão do Projeto de Lei nº 4.363, de 2001), revelam o interesse de centralizar o comando das forças policiais, assim como acontece com as Forças Armadas. Vale lembrar que o golpe de estado organizado pela extrema direita na Bolívia em 2019 foi executado pela polícia, sem que o Exército tentasse impedir.

Além disso, Bolsonaro concede agrados e praticamente se tornou um paraninfo oficial de formaturas em academias de polícia. A polícia é uma das bases políticas mais sólidas de Bolsonaro, e o presidente constantemente encaminha propostas que fortalecem esse apoio. Como a que amplia o excludente de ilicitude para a polícia, isentando policiais de punição por qualquer ato ilegal cometido em serviço, ou seja: estimulando para que matem ainda mais!

Sobre a Violência

O discurso armamentista da direita é baseado na antiga ideia de que o “cidadão de bem” deve ter o direito de defender sua propriedade. Numa sociedade capitalista e patriarcal, isso significa: homens brancos, possuidores de imóveis ou terras com liberdade para usar a violência contra quem não tem. O Estado, que detém o monopólio da violência legal, mas garante “legitimidade” para que o rico possa matar pobres quando se sentir ameaçado – mas jamais vai tolerar que pobres, pretos, mulheres, indígenas e outros grupos marginalizados possam se defender da mesma forma contra agentes do Estado ou do Capital. A autodefesa é negada para todos esses grupos. Em outras palavras, só pode se defender quem já tem a proteção do Estado, como uma extensão da defesa ao direito de propriedade. E quem já é alvo, deve permanecer sem defesa ou sofrer duras punições casto tente revidar.

Mas não é somente a direita que trabalha para manter esse monopólio da autodefesa. Quando parte da esquerda condena protestos “violentos”, os bloqueios, o vandalismo, a desobediência e o contra ataque à violência policial, ela está complementando o mesmo discurso armamentista de Bolsonaro e seus apoiadores. Mesmo sem uma intenção explícita, as consequências de seu discurso pacificador afirmam: esses corpos não têm o direito de se defender, não podem revidar, devem traduzir seu ódio e sua insatisfação para um canal “legítimo” dentro de instituições que foram criadas pela elite para controlá-los e silenciá-los. Desnecessário dizer que quem concede essa legitimidade é a mesma lei burguesa que acolhe a violência policial e criminaliza qualquer resistência.

Vamos nos defender: a polícia sempre estará do lado do fascismo!

É compreensível que líderes de movimentos e partidos de esquerda reproduzam esse discurso, pois precisam da legitimação do poder estatal para disputar seus cargos e o controle das instituições. Se candidatos como Guilherme Boulos, que mandou integrantes do movimento sem-teto agredir adeptos da tática Black Blocs em atos em São Paulo, estimularem a desobediência e o confronto com a polícia, como esperar que a mesma polícia vá obedecer suas ordens caso sejam eleitos? Ou pior, como convencerão as pessoas que elas não devem desobedecer ou atacar a polícia quando ela estiver cumprindo as suas ordens?

Assistimos ao fim da representatividade democrática, desgastada e ineficiente. Com a perda da confiança em seus processos, o fracasso em prover o bem-estar geral dentro do neoliberalismo, a violência e o autoritarismo se tornam os únicos recurso para manter o comando do Estado. Sendo assim, nenhuma pessoa ou grupo que almeja um dia controlar esses governos e polícias irá nos salvar do fascismo, pois nunca agirão contra essas instituições que sempre abriram caminho e sustentaram regimes fascistas.

Nossa Ação é Direta

Em meio a um cenário de radicalização e promessa de violência, é inútil esperar que polícias, leis ou exércitos impeçam a escalada do fascismo dentro e fora das instituições. A história recente nos mostra que todo aparato criado sob a justificativa de reprimir extremistas e fascistas, especialmente após os atentados de 11 de setembro, acabam sendo usados contra movimentos sociais e minorias. Nos EUA pós 2001, movimentos anticapitalistas, antifascistas e de libertação animal e da terra (Animal Liberation Front e Earth Liberation Front), se tornaram os principais alvos do combate ao “terrorismo doméstico”, mesmo nunca causando uma única morte ou atentado contra qualquer pessoa.

Fascistas e outros tipos de nacionalistas e populistas como Bolsonaro, Trump, Modi, Putin e Erdogan tendem a levar a balança do jogo político todo para a direita. Por isso pensar apenas numa polarização entre direita x esquerda nas urnas não é o suficiente, pois exclui do espectro político movimentos pela libertação real, anticapitalista e antiautoritária. Políticos e grupos neoliberais e conservadores reconhecem que a gestão genocida de Bolsonaro ou a tentativa fracassada de golpe com apoio de neonazistas orquestrada por Trump, são extremos perigosos. Como vemos no embate entre o governador de São Paulo e o governo federal, neoliberais como João Dória, que oferece ração para estudantes e pessoas em situação de rua e que manda a PM atirar para matar, vão se apresentar como a oposição moderada ao bolsonarismo. O risco que os fascistas nos apresentam é tornar o antifascismo um mero resgate das políticas assim como eram ontem, ou pior, que as mantenha como estão hoje. Com o medo do que pode ser pior, a esquerda se torna paralítica ou até mesmo reacionária diante de rupturas radicais.

Não é raro surgir na mídia ou na internet discursos de petistas – ou do próprio Lula – acusando os levantes de 2013 de serem os responsáveis pela escalada conservadora e fascistóide que levou ao impeachment de Dilma Rousseff em 2016 e elegeu Bolsonaro. Ao fazer isso, tentam garantir que qualquer ação política fora de sua gestão eleitoral/estatal seja suprimida e sugerem que na era PT o povo brasileiro viveu uma plena revolução, com igualdade para todas e fim da opressão – como se os bancos não tivessem lucros recordes, a reforma agrária tenha sido paralisada, os movimentos abafados e a população carcerária aumentado dramáticos 620%.

As recentes mobilizações no Chile, Argentina, México e Estados Unidos conseguiram vitórias e importantes avanços porque não esperaram para revidar à violência policial e das leis. Decidiram romper com a institucionalidade e o controle burocrático da esquerda acostumada com os palácios, reformas paralisadoras e a conciliação de classe. Mesmo quando a luta é por mudanças legais e institucionais, como a legalização do aborto na Argentina ou a derrubada da constituição chilena em vigor desde a ditadura de Pinochet, a pressão direta das pessoas nas ruas, tomando, ocupando e bloqueando a normalidade são muito mais eficientes. Se quisermos saúde de gratuita de qualidade, o fim dos despejos e acesso a recursos e alimentos durante e após a pandemia, não podemos esperar que governantes se antecipem, e sim tomar a iniciativa em nossas mãos.

Anarcafeministas com os escudos roubados da polícia da Cidade do México, em 28 de setembro.

As mobillizações no Brasil em 2020, durante a pandemia, provam que os maiores sindicatos, movimentos e partidos da oposição são os últimos a tomarem alguma inciativa no mundo real para mudar algo. Uma das maiores e mais importante paralisação de trabalhadores foi organizada por entregadores e entregadoras rompendo com o isolamento da informalidade forçada pelos aplicativos de delivery. As mais combativas manifestações que barraram fisicamente carretas e passeatas bolsonaristas foram puxadas por torcidas e movimentos antifascistas nos quatro cantos do país.

É fundamental impedir os encontros e marchas para que fascistas não tenham espaço para fazer propaganda e recrutar novos membros paras suas fileiras. No entanto, percebemos que quando a esquerda está nas ruas em busca de palanque eleitoral e em defesa da institucionalidade, ela vai aceitar recuar e protestar contra o fascismo distante dos fascistas – como foi o caso de movimentos em São Paulo que negociaram a paz com a Polícia Militar para protestar alternadamente com os movimentos de direita.

Nota de repúdio: manifestantes em frente ao 3º Distrito Policial de Minneapolis, onde trabalhavam os assassinos de George Floyd.

Para o dia 23 de janeiro estão marcados diversos atos pelo Brasil contra a política genocida de Jair Bolsonaro e sua equipe. No entanto, não são apenas movimentos de base e a esquerda que estão convidando pessoas para irem às ruas no momento em que a popularidade do presidente despenca – a direita conservadora que vem rompendo com o governo que ajudou a eleger também está determinada a tentar limpar sua imagem voltar ainda mais fortes. Não podemos deixar que neoliberais e fundamentalistas cristãos monopolizem as revoltas que estão por vir e se tornem a imagem da resistência ao bolsonarismo nas ruas. Se falharmos, em breve veremos cenas como a do dia 6 de janeiro nos EUA, com manifestantes tentando novamente invadir o Congresso ou o STF em nome de um regime ainda mais autoritário e assassino.

Organizar a solidariedade, revidar avanços fascistas, tomar as ruas, ocupar para morar e plantar e, não menos importante, impor consequências aos ricos e ao Estado para pressionar por mudanças estruturais é a única garantia de que não teremos nossas demandas amortecidas ou cooptadas por pretensas lideranças. Os levantes do dia 20 de novembro de 2020, dia da Consciência Negra, após a morte de João Alberto em uma loja do Carrefour em Porto Alegre já nos mostram o potencial da coordenação informal em escala nacional da revolta que trazemos latente contra toda essa política de morte impregnado nas estruturas desse sistema.

Somente formas de ação popular e radicais vão ser capazes de defender comunidades de ataques fascistas e impedir que seus movimentos ocupem as ruas com suas ideias vazias e cheias de ressentimento.

A luta é radical e pela vida. E só poder ser agora.

De Ferguson a Porto Alegre: FOGO NOS RACISTAS, NOS FASCISTAS E NOS CAPITALISTAS!

 

6 Críticas à Criminalização e ao Mito do “Manifestante Infiltrado”

Porto Alegre, maio de 2020.

Uma crescente onda de manifestações tomou as ruas em dezenas de cidades do Brasil nos últimos meses, rompendo o consenso e a hegemonia de manifestantes pró-governo nas ruas. No entanto, reacionários e até setores da esquerda — que decidiram somente agora se juntar a antifascistas, torcidas organizadas e outros movimentos organizando os protestos — estão propagando a velha ideia de que manifestantes que escolhem participar de atos de destruição de propriedade ou que respondem à violência policial devem ser considerados “infiltrados” fazendo o “jogo da direita” e seriam os “verdadeiros responsáveis” pela repressão.

Trazemos aqui 6 críticas relevantes para que movimentos sociais e seus protestos de rua possam se potencializar e se expandir sem criminalizar indivíduos ou táticas específicas que são relevantes para qualquer luta política (esse sim o verdadeiro jogo do Estado e da repressão).

Nenhuma pessoa explorada é infiltrada na luta contra o capitalismo e suas opressões! (Só se for polícia). São Paulo, 31 de maio de 2020.

6 Críticas à Criminalização e ao Mito do “Manifestante Infiltrado”

Definir antecipadamente que quem for para “quebra-quebra” ou “confusão” será tratado como “infiltrado” é um erro tático (imediato) e estratégico (de longo prazo) por vários motivos:

1. A violência da legalidade.

Definir o que é legítimo e o que é ilegítimo (aceitável ou não) em um protesto de rua com base nas mesmas definições legais que protegem a propriedade privada e o monopólio do uso da força pelo Estado, apenas reforça discursos que criminalizam quem se rebela ou se defende e reforça que a ideia de que a violência policial pode ser justificável e merecida.
Na prática, entregar para a polícia pessoas que usam táticas diferentes das suas, nada tem de não-violento. Fazer isso é colocar o valor da propriedade privada acima da liberdade e da integridade física das pessoas que podem ser presas e agredidas por meros danos a objetos.

2. Táticas únicas são uma fraqueza para os movimentos.

Escolher uma tática única e se fechar para qualquer outra anula toda possibilidade de entendimento e aplicação da diversidade de táticas, isto é, a colaboração e coordenação de táticas pacíficas e combativas, públicas e anônimas, legais e ilegais nos movimentos sociais que, historicamente, determinaram o sucesso da esmagadora maioria das grandes lutas e revoluções.

3. Especialistas em autopoliciamento.

Com o tempo, esse discurso pode estimular o surgimento um policiamento interno dentro dos movimentos, pois uma vez que certas táticas são “proibidas”, é necessário força ou outras formas de reprimir e/ou entregar para a polícia quem não segue a “cartilha única” do movimento. Com o tempo, tal atividade tende a se cristalizar e logo surgirão bate-paus¹, pessoas dispostas assumir o papel de polícia do movimento e “especialistas” em aplicar a violência em nome da não-violência.

Uma paulada de baixo e à esquerda. Belo Horizonte, 31 de maio de 2020.

4. A culpa nunca é de quem se rebela.

Colocar a culpa da violência policial e das arbitrariedades penais nos próprios manifestantes é um ato reacionário. Mesmo que a proposta do ato seja uma marcha sem confronto ou depredação, colaborar com narrativas de que a repressão policial ou prisões ocorrem por culpa de “minorias infiltradas” e “vândalos” é tirar a atenção da violência estatal para jogar nos indivíduos que são alvos dela.

5. Infiltrado é sempre polícia ou fascista (mas normalmente ambos).

Palavras como “infiltrados” são tão vagas quanto “terroristas” e outros termos que o Estado usa para nomear seus inimigos. Assim, não explicita a que se refere exatamente e insinua que quem não concorda em aceitar a violência policial sem reagir, são iguais a P2 (policiais disfarçados) e demais agentes de segurança de fato infiltrados nos movimentos para destruí-los. É preciso não esquecer quem é nosso inimigo e atuar para minimizar a atuação de fascistas e agentes da repressão, não de pessoas comuns que se rebelam contra suas estruturas e sua violência.

6. A uniformidade facilita processos de divisão, enquanto a diversidade das táticas promove flexibilidade e resistência.

Acreditar que supostos “infiltrados querendo depredação” vão desvirtuar, deslegitimar ou rachar o movimento, é dar abertura para que policiais, fascistas e outros inimigos usem esses pontos de discordância sensível para causar discórdia, conflitos internos, criminalização e rupturas de fato no movimento. Se um movimento não é capaz  de abrigar diferentes posturas e formas de ação, ele se torna puramente legalista, rígido, intolerante com a diversidade de ações e vulnerável a conflitos internos. Reconhecer que minorias precisam praticar ações vistas como violentas para se defender e até para sobreviver, é uma ato de solidariedade necessário a todo movimento. 

A longo prazo, deixar claro que manifestantes de esquerda, antifascistas, anticapitalistas, cometem SIM atos de depredação, autodefesa e contra ataque e que isso TEM SEMPRE LEGITIMIDADE, é muito melhor que condenar quem comete ações radicais como se estivesse “fazendo o jogo do inimigo”. Isso dá força para um movimento não se romper diante da diversidade de frentes e das críticas da mídia, da opinião pública ou das autoridades.

Quem não tem a disposição ou não sente segurança para praticar formas de resistência que atacam estruturas e se defendem de agentes da repressão, pode não se envolver nelas, mas tem o dever de não condená-las e de legitimá-las sempre que for possível. Cair na armadilha de condenar essas pessoas é, na maior parte dos casos, garantir que minorias étnicas, mulheres e não-heterossexuais continuem desempoderadas e sendo as maiores populações carcerárias em todo o mundo.

Imaginem se a revolta em Minneapolis, que se espalhou por todos os Estados Unidos, queimando prédios, viaturas e delegacias, promovendo saques e contra atacando a polícia, fosse pautada apenas pelo que é visto como legítimo aos olhos da lei e do senso comum. Nenhum policial teria sido indiciado² pela morte de George Floyd, a questão racial e de classe não teriam sido levantados com a potência que foi e a polícia, certamente, iria reprimir os protesto da mesma forma, ou com ainda mais violência, uma vez que teriam a certeza de que suas ações não têm consequências legais ou diretas nas ruas.

Nossa liberdade e nossa força coletiva só existem com a diversidade de táticas e a luta contra a criminalização das pessoas que já são alvos do extermínio feito pelo Estado.

Cuide umas das outras para sermos um perigo juntas.



Notas:

1.  “Bate-Paus” são, geralmente, seguranças informais de líderes sindicais e candidatos políticos.

2. Em uma perspectiva abolicionista penal, entendemos que existem consequenciais previstas na lei burguesa para o assassinato, mas ela não é aplicada regularmente contra agentes da lei porque eles precisam de impunidade para realizar seu trabalho repressivo e assassino.