NA CORDA BAMBA – Contribuições e Considerações Desde e Para o Combate Anárquico – por Francisco Solar

O texto a seguir foi escrito por Francisco Solar, companheiro anarquista sequestrado pelo Estado chileno em 24 de julho deste ano e mantido preso desde então. Recentemente publicamos um artigo no qual apresentamos um breve panorama sobre a luta anárquica no território dominado pelo Estado chileno e também sobre o contexto de repressão, que inclui tanto a prisão de Francisco e Mónica Caballero, como a perseguição às comunidades Mapuches em luta. Também traduzimos algumas cartas de anarquistas mantidos sequestrados nas prisões chilenas escritas em solidariedade a Mónica e Francisco.

SOLIDARIEDADE COM TODXS XS PRESXS DA GUERRA SOCIAL!
LIBERDADE!

NA CORDA BAMBA – Contribuições e Considerações Desde e Para o Combate Anárquico

Este texto pretende ser uma colaboração ao desenvolvimento e o aprofundamento do combate anárquico informal, levando em consideração os avances tecnológicos cada vez mais especializados no controle e na vigilância da população em geral e sobretudo para aqueles que se aventurem a se rebelar contra o estabelecido.

Nasce também da necessidade de desferir golpes mais fortes e contínuos ao poder que gerem brechas que podem ir se abrindo.

Não surpreende a ninguém o acelerado aumento da vigilância realizada com as câmeras de segurança, os múltiplos cartões que temos de utilizar para fazer quase tudo e o incipiente, mas rápido, aumento do uso de drones de televigiância. Se somamos a isso o controle que se realiza por meio dos celulares, o panorama se complica ainda mais. Essa engrenagem tecnológica, que é ativada quando nos conectamos, passa a tomar o controle quase absoluto da cidade, nosso campo de batalha. O cruzamento de imagens, horas e a utilização de esse ou aquele meio, seja de transporte ou outro, faz com que sejam possível detectar e registrar os movimentos de qualquer indivíduo. A cidade toda está sob uma lupa, este mundo é praticamente uma prisão de alta segurança a céu aberto e não é exagerado dizer isso. E se levamos em conta a presença policial e agora militar em cada esquina, o cenário se torna ainda mais limitado e controlado.

Contudo, se cada pessoa da sociedade se encontra monitorada pela dita interconexão da vigilância, para quem se declara inimigx desta sociedade e atua em consequência o controle aumenta de maneira considerável. A situação passa a ser ainda mais escabrosa se pensamos nas pessoas que já são conhecidas pelos aparatos repressivos por terem estado na prisão, por estarem vinculadas a espaços que apostam na confrontação ou por diversos outros motivos. O espaço para essa ação transgressora se estreita e faz que o ato de tomar a decisão de passar ao ataque se transforme em uma corda bamba na qual se está o tempo todo a ponto de cair. O que fazer para burlar os golpes repressivos? Ou melhor, o que fazer para dificultar o trabalho de captura dos aparatos policiais?

Curitiba, junho de 2020.

OPÇÕES E DECISÕES

Um dos aspectos da crítica da tendência informal do anarquismo aos grupos político-militares de esquerda é quanto a sua forte instrumentalização que os leva, entre outras coisas, a optar pela clandestinidade como estratégia de luta. Essa situação de clandestinidade traria consigo uma marcada divisão das funções que estaria diretamente ligada com a militarização presente nesses grupos. A clandestinidade, entendida desse modo, seria fundamental na engrenagem de uma organização que divide seus militantes em legais e ilegais, sendo essa última a ala oculta que se encarregaria de efetuar os golpes e a primeira seria a cara pública destinada a gerar redes de apoio, logística e propaganda, entre outros trabalhos. A vida na clandestinidade se caracterizaria por estar sumamente limitada a aspectos operativos; uma dinâmica de combate permanente que, segundo xs críticxs a ela, deixaria de lado aspectos tão essenciais e enriquecedores como a necessária troca de experiências, o compartilhamento de visões sobre a luta ou também a qualificação em âmbitos que, embora não se concentre no combate armado, são indispensáveis para a luta pela liberação total. As longas conversas onde se debate sobre diferentes assuntos que certamente ampliam a perspectiva são muito difíceis ou impossíveis de ocorrerem na clandestinidade, o que mostra os momentos ou experiências determinantes que se perdem por tal situação. Tentar se separar ou se afastar das lógicas de consumo (não me refiro com isso ao devaneio das “bolhas de liberdade”) também é complicado de se fazer clandestinamente, uma vez que exige seguir caminhos cidadãos, pois se pretende passar despercebidx. Essas e muitas outras são as restrições trazidas por essa vida que tem a solidão como o elemento principal. Entretanto, quero deixar explícito que me refiro a uma clandestinidade na e para a guerra, não a que, por mais válida e legítima que seja, se busca fugir do inimigo e, com isso, levar uma vida tranquila sem passar à ofensiva. Falo de uma opção pela clandestinidade – ainda que também exista quem se vê obrigadx a tal situação – como estratégia para a luta, como estratégia para golpear forte e constantemente o poder.

Outra crítica frequente a esses grupos e organizações que optam por esse caminho é que, finalmente, acabam desembocando todo o seu fazer político na manutenção da “estrutura clandestina”, que requer muitos recursos de todo tipo para se sustentar. Assim, deixam de lado tarefas importantes como a propaganda ou a geração de redes de apoio para conseguir manter xs clandestinxs, xs quais, obviamente, terminam sendo contraproducentes e fortalecendo o militarismo.

Quito, Outubro de 2019.

EXEMPLOS PARA SE LEVAR EM CONTA

Não apenas as organizações político-militares de esquerda optaram pela clandestinidade para enfrentar o poder. Grupos anarquistas e autônomos também recorrem a essa estratégia, experiências que são necessárias de levar em conta no momento de considerar essa opção.

Uma das experiências mais notáveis nesse sentido foi a do MIL (Movimiento Ibérico de Liberación) que lutou clandestinamente contra a ditadura franquista no início da década de 1970, na Catalunha. Evidentemente, a sufocante bota de Franco foi determinante para que o grupo tomasse essa decisão. Porém, seus membros, mesmo não identificados pelos aparatos repressivos, passaram automaticamente à clandestinidade assim que o grupo foi formado. A particularidade do MIL foi, sem dúvida, sua ampla produção teórica que souberam complementar com a luta armada. A constante elaboração de textos e reflexões, inclusive criando o Editorial “Maio de 37”, demonstra que a propaganda e a geração de reflexões políticas constituiu uma das principais preocupações do MIL, inclusive mais do que a luta armada.

Um caminho similar foi seguido pelos Grupos Autónomos que agiram principalmente em Barcelona, Valência e Madri de forma paralela e posterior ao MIL durante a transição democrática no reino da Espanha. No momento de tomar a decisão de formar um desses grupos, os indivíduos deviam ter armas, contato com algum local “seguro” e documentação falsa para, assim, passar para a ação. Segundo diversos relatos, essa situação de clandestinidade terminou por transformar sua prática política basicamente em expropriações bancárias para financiar a clandestinidade, o que impediu a ampliação de redes de apoio, entre outros aspectos. Não é demais assinalar que os aparatos repressivos do estado Espanhol – a Brigada Político Social – seguiu intacta na transição democrática, o que pode ter determinado que os Grupos Autónomos do final de 1960 e início de 1970 continuassem com a mesma dinâmica dos grupos que agiram durante a ditadura.

Também é preciso levar em conta a experiência da Conspiração de Células de Fogo (CCF), na Grécia, na medida em que se trata de um grupo anarquista informal de ação dos últimos anos que optou pela clandestinidade. Não tenho certeza se tal decisão esteve determinada pela identificação previa de seus membros ou de algum deles pelo aparatos repressivos. Mas o que sim é um fato é que seus ataques foram constantes, chegando a várias dezenas em um ano, o que, talvez, reflita uma vantagem da clandestinidade.

Outro grupo anarquista que levou a cabo a luta armada no mesmo território foi o “Luta Revolucionária”, que, empurrado pela perseguição policial, se tornou clandestino e nessa condição realizou duros e contundentes golpes ao poder. O caso da “Luta Revolucionária” é um exemplo explícito de clandestinidade em guerra, onde suas ações de envergadura colocaram em xeque o sistema em seu conjunto, segundo uma das sentenças judiciais contra o grupo. Todos os grupos mencionados tiveram a particularidade que não se constituíram como estruturas rígidas com uma marcada divisão de funções, como possuem as organizações político-militares de esquerda. Sua opção pela luta clandestina foi assumida livremente levando em conta os caminhos que implicavam. Sua prática política desembocou na luta armada; alguns realizando ações esporádicas de envergadura e outros ataques incessantes que não deram descanso ao poder. Porém, não descuidaram da reflexão nem da difusão dela, sendo uma contribuição para o desenvolvimento qualitativo das lutas anárquicas e demonstrando nos atos uma coerência entre o que se defende e o que se pratica.

SOBRE A NECESSIDADE DE GOLPEAR COM FORÇA

O ataque contra todo o estabelecido está plenamente legitimado desde o momento que existe Estado e capitalismo, e isso, creio, é compartilhado dentro da tendência informal anárquica. Todavia, a necessidade de que essas ações ganhem maior envergadura é algo colocado em diversas ocasiões, mas que encontra pouca materialização. Desde uma perspectiva anárquica de combate, são imprescindíveis os ataques que façam os poderosos tremerem, que façam o empresário que seca um rio para regar sua plantação de abacates saber que o seu ato trará consequências.

Ações que demonstrem força e decisão, e possam ser reproduzidas por qualquer pessoa que tenha por horizonte a liberdade. Seja para acompanhar, estender e aprofundar um contexto de revolta, para tentar gerar brechas e fissuras ao imposto como “normalidade”, ou como um ato de vingança, é necessário dar um salto qualitativo no combate anárquico informal que permita abrir possibilidades ainda desconhecidas por nós. Junto com isso, se pretendemos que nossas ações tenham maior impacto, elas devem, necessariamente, acontecer com uma relativa frequência, pois a memória é cada vez mais frágil e curta. Portanto, se nossos golpes são demasiado esporádicos, correm o risco de se converterem em “atos isolados” ou depoimentos. Como disse alguém, “quando os golpes fortes se repetem uma e outra vez, começa a poesia”.

Então é possível realizar ataques complexos e de envergadura com uma frequência considerável vivendo em uma situação de legalidade onde o inimigo sabe seus passos e onde te encontrar? A clandestinidade facilitaria a realização de ações desse tipo?

PALAVRAS FINAIS

“Acontece uma ação contra o poder que alerta de alguma maneira a normalidade, a polícia começa a trabalhar imediatamente e consegue ter indícios ou uma forte presunção de quem é ou quem seriam responsáveis, porém não se sabe o paradeiro das pessoas e nem os lugares que frequentam e nem com quem se relacionam”.

Esse exemplo representa uma das vantagens trazidas pela clandestinidade. Dificultar o trabalho policial quanto à caça e captura. Nesse ponto, é necessário voltar ao tema dos avances tecnológicos de controle e vigilância; a cidade, ao estar quase totalmente monitorada, monitoramento que se aperfeiçoa no dia a dia, qualquer erro na execução da ação custa caro e xs realizadorxs são conhecidxs pela polícia, sua captura se torna iminente. Isso, por exemplo, foi o que ocorreu com os companheiros Alfredo Cospito e Nicola Gai quando atiraram contra o empresário nuclear Adinolfi. A clandestinidade faria, de algum modo, que a tecnologia para a vigilância perdesse, em parte, sua efetividade, pois no momento de encontrar quem realizou a ação, as pessoas já estariam na escuridão, conspirando para o próximo ataque. A vigilância policial permanente que se exerce sobre xs inimigxs conhecidxs do poder deixaria de ter efeito, o qual, sem dúvida, constitui outra vantagem da clandestinidade já que permite uma maior mobilidade. O fato de ter múltiplos olhos vigiando restringe enormemente a capacidade de ação em golpes esporádicos e mais ainda se eles se tornam recorrentes. A clandestinidade outorgaria, então, mais facilidade para levar a cabo uma prática de ataque sistemático e a geração de cumplicidades, portanto a ação política estaria voltada quase em sua totalidade à conspiração e ação.

Mas esse tipo de vida é o que realmente buscamos ou queremos? Poderemos levar essa dinâmica sem cair em condutas militaristas e instrumentalizadas? Sem dúvida, múltiplos aspectos indispensáveis na prática anarquista ficariam de lado no momento de optar pela clandestinidade. O questionamento permanente que se faz a nível individual e coletivo para tentarmos abandonar condutas autoritárias e/ou cidadãs é algo que seria dificultado levando em conta a dinâmica da clandestinidade que, como afirmado antes, exige adotar condutas que muitas vezes não se compartilham com o propósito de passar desapercebidx. A discussão e o debate longo e frutífero com companheirxs que tanto ajudam em nosso desenvolvimento individual também seriam impedidos, já que os contatos públicos seriam escassos ou praticamente inexistentes.

Além disso, a clandestinidade também nos leva a correr o risco de levantar hierarquias e relações verticais, nos transformando no que criticamos e atacamos, estabelecendo uma distância abismal entre meios e fins. A partir do momento em que isso ocorra, estamos perdidxs, começamos a utilizar métodos alheios e contrários ao que defendemos e, nesse caso, seria oportuno abandonar a opção pela clandestinidade.

Portanto, como combinar uma prática de ataque sistemático e de envergadura com o necessário desenvolvimento individual nos mais diversos âmbitos?
Somente o avance e a qualificação do combate anárquico informal e os caminhos que isso pode abrir é que nos darão essas respostas.

Francisco Solar¹
Seção de Segurança Máxima
Prisão de Alta segurança
setembro 2020

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Notas

1. Em 24 de julho de 2020, companheiros anarquistas Mónica Caballero e Francisco Solar foram detidos. Francisco é acusado de enviar pacotes bomba contra a 54ª delegacia de polícia e contra o Ex-ministro do Interior, Rodrigo Hinzpeter, em julho de 2019, ação reivindicada por “Cómplices Sediciosos / Fracción por la Venganza”. Enquanto isso, ambxs são acusadxs do duplo atentado explosivo contra o edifício Tânica, no endinheirado bairro de Vitacura, em 27 de fevereiro de 2020, em plena revolta, ação reivindicada por “Afinidades Armadas en Revuelta”. Ambxs são conhecidxs não somente pela repressão por terem enfrentado distintas operações repressivas no Chile e na Espanha, mas também pelos diferentes entornos de luta, sendo ativos em publicações, manifestações, programas de rádio e iniciativas contra o poder.

Entrevista Exclusiva: Tekoşîna Anarşîst – Anarquismo e a Luta pela Vida no Norte da Síria

Em setembro de 2019, logo após o anúncio da invasão turca no norte da Síria em mais um ataque ao povo Curdo e a revolução em Rojava, enviamos entrevistas para grupos internacionalistas atuando por lá junto à revolução, com perguntas semelhantes sobre seu envolvimento no cotidiano do processo revolucionário. Em outubro publicamos uma inspiradora entrevista com a Comuna Internacionalistas de Rojava. Infelizmente, pelos óbvios obstáculos que uma guerra impõe, o coletivo Tekoşîna Anarşîst (Luta Anarquista/TA) não pode responder na época e precisamos esperar um melhor momento para retomar a proposta. Enquanto isso, traduzimos e lançamos uma excelente entrevista feita pela Federação Anarquista Uruguaia em julho de 2020.

Agora, em agosto de 2020, retomamos contato e, felizmente, nossos camaradas puderam ceder um pouco do seu tempo para responder sobre a atual situação dos povos e da revolução em Rojava sob invasão da Turquia de Erdoğan, especialmente no contexto da pandemia da Covid-19. Também abordamos a relação do coletivo com o anarquismo, a revolução em andamento e a luta dos povos no Norte da Síria mas em todo o mundo.

Esperamos seguir trocando e aprendendo com os desafios desse processo revolucionário, com suas grandes conquistas, desafios e contradições. Nos interessa, principalmente, compreender que papéis anarquistas podem desempenhar nesse processo, o que da prática e da teoria anarquista se materializam, contribuem ou mesmo se chocam com a realidade concreta de uma revolução no século XXI.

Facção Fictícia, setembro de 2020
English Version Here

Momentos após comemorar Newroz e derrota militar do Daesh, março de 2019, Baghouz Fawqani.

1. O que é e como vocês definem o trabalho da Tekoşîna Anarşîst? Onde vocês operam e como se dá a relação com as comunidades no território sírio?

Tekoşîna Anarşîst é um coletivo anarquista revolucionário composto de pessoas de diferentes partes do mundo que trabalham no Nordeste da Síria (Curdistão Ocidental) para apoiar a revolução em curso. O que nos conecta não é necessariamente um lugar ou uma região, nem uma prática particular. É mais nossa estratégia de longo prazo, formas de organização, métodos e compromisso para refletir sobre nós mesmos e nossa organização através do aprendizado constante – em outras palavras, nossa perspectiva. Viemos para o Nordeste da Síria inspirados pela revolução iniciada pelo movimento de libertação curdo, para colocar em prática nossas ideias e nosso compromisso de construir autonomia, de construir uma vida livre em uma sociedade sem Estado. Acreditamos que a luta do povo e, especialmente, das mulheres são a principal força para as mudanças revolucionárias, e o que está acontecendo aqui é algo com que anarquistas e outras revolucionárias de todo o mundo podem aprender muito. E que melhor maneira de aprender do que dividir o pão com o povo local e ficar ombro a ombro com eles quando se trata dos desafios que uma revolução traz? Seja pelas difíceis contradições que a sociedade enfrenta ao passar por grandes mudanças, seja pela luta armada contra os inimigos que tentam destruí-la, decidimos ficar aqui e defender a revolução. Tekoşîna Anarşîst não é um grande movimento – ao contrário, é uma gota no oceano da organização da população local.

No entanto, trabalhamos em diferentes áreas de atuação e nosso trabalho é dentro ou coordenado com as estruturas locais. Pode ser trabalho militar, médico de combate, saúde, diferentes formas de organização civil e, o mais importante, educação. Isso é algo fundamental que realmente falta, especialmente no Ocidente – ir mais fundo, aprender, progredir, compartilhar, ouvir, superar o ego, construir narrativas coletivas, redefinir termos e conceitos em um nível mais amplo de “sociedade”, não apenas individualmente em nosso cabeças. Para buscar pontos de conexão em vez de separação. A relação com as estruturas e pessoas locais é fundamental e em muitos níveis a nossa sobrevivência depende disso. Procuramos construir e manter boas ligações com diferentes grupos e organizações locais, com os quais aprendemos muito nesta sociedade repleta de diversidade. Queremos também ampliar essa diversidade, e nosso trabalho inclui criar um lugar na revolução para pessoas que talvez não se encaixem em outro lugar. Camaradas trans e não-conformes de gênero não são bem compreendidas por muitas estruturas aqui, e a sociedade tem relações de gênero muito particulares. Devemos, com cuidado e respeito, criar um lugar para que todos os tipos de camaradas se juntem à luta e também sejamos nós mesmas de uma forma revolucionária. Temos uma grande variedade de identidades de gênero em nossas fileiras e, mesmo que isso traga algumas situações desafiadoras, buscamos nos manter nessa linha, abrindo espaço para pessoas que têm experiências fora da classe privilegiada do patriarcado – ou seja, queremos convidar especialmente mulheres, camaradas trans e queer para trabalhar conosco.

Funeral do anarquista Lorenzo Orsetti membro da TA que caiu em Baghuz Fawqani durante o último ataque contra as forças restantes do Daesh no rio Tigre. Maio de 2019.

2. Vimos que vocês estavam muito envolvidos não apenas no combate em si, mas também no apoio e logística, como quando alguns de vocês estavam trabalhando com a ambulância resgatando pessoas no fronte. Quais são as principais formas de ação que vocês realizam e quais são elas?

No início, a Tekoşîna Anarşîst era principalmente uma estrutura militar para defender a revolução contra os ataques do Estado Islâmico, sempre com o objetivo de apoiar os movimentos locais e a população local. Percebemos a necessidade de apoiar as equipes médicas das forças militares e começamos a nos envolver nessa frente. Trabalhamos como médicos de combate em diferentes operações e linhas de frente, desde o fim do califado do Daesh em Deir Ezzor, até a resistência contra a invasão turca nas linhas de frente de Serekaniye e Til Tamer. No na área médica, há uma ampla gama de trabalhos que muitas vezes pode mudar da medicina de combate a pontos de triagem, transporte ou trabalho em hospitais. Diferentes pessoas ou grupos trabalham em várias áreas e muitas vezes a necessidade de mudar de uma tática para outra não é uma escolha, mas uma necessidade de acordo com a situação. Portanto, tentamos treinar de uma forma que nos permita ser flexíveis no modo como atuamos. Alguns de nós já tinham formação médica, mas aqueles que não, receberam educação aqui dos companheiros. A maior parte disso foi construída do zero, impulsionada pela necessidade e urgência da guerra, e todos podem ter que assumir um trabalho que não sabiam fazer antes – para se defender, defender seus companheiros e as pessoas. Quando camaradas falam em legítima defesa não se referem apenas a lutar com uma arma, porque lutamos pela vida, para defender e sustentar a vida.

Unidade médica de combate TA em Baghouz Fawqani, fevereiro de 2019.

Nossas equipes definitivamente não foram as primeiras nem as únicas atuando como médicos de combate no Nordeste da Síria, mas especialmente no início, isso era bastante raro. Quando olhamos para trás, vemos que havia três objetivos neste trabalho. Primeiro, para ser capaz de fazer este trabalho, de aprender e estar pronta sempre que necessário, para ganhar confiança através do nosso trabalho e fornecer ajuda aos camaradas feridos o mais rapidamente possível. Em segundo lugar, cooperar com as forças locais de uma maneira que mostre através da prática que este é um trabalho muito importante, pressionando para desenvolvermos este papel dentro das fileiras da SDF ( Forças Democráticas da Síria). E terceiro, para ver como podemos compartilhar conhecimentos e habilidades com alguns camaradas interessadas, ​​para multiplicar o número de pessoas engajadas nessa atividade, organizando treinamentos com outros grupos para fornecer mais ajuda nas linhas de frente. Vimos que não basta ser um grupo de médicos de combate, cada pessoa deve ser capaz de ajudar seus companheiros se eles estiverem feridos e também de tratar a si mesmo. Temos treinado a nós mesmas e a companheiros de outras estruturas revolucionárias internacionalistas e, recentemente, pela primeira vez, demos uma educação de primeiros socorros às forças do SDF, o que foi um passo muito importante e também uma experiência agradável. Aqui todos são alunos e professores ao mesmo tempo, o que aprendemos passamos uns aos outros.

Momentos de um treinamento IFAK feito pela TA. Os objetivos dessas educações são expandir as capacidades médicas de combatentes curdos e árabes das Forças Democráticas da Síria (SDF), ensinando ajuda médica básica, como torniquetes.

3. Vocês podem fazer uma breve atualização sobre a situação em Rojava após a invasão turca e seus aliados jihadistas e agora com a pandemia do coronavírus? Como esse novo fator afeta a luta e o cotidiano revolucionário? Existe um programa coordenado a esse respeito? Como o governo turco está se aproveitando dessa situação para entrar em ofensiva?

A ocupação turca, de Afrin em 2018 e sua continuação em outubro de 2019 com Serekaniye e Gire Spî, trouxe a guerra de volta a Rojava e com ela uma nova crise humanitária. Centenas de milhares foram forçados a fugir para salvar suas vidas, procurando abrigo em outras cidades ou campos de refugiados. Isso criou um alto risco de doenças infecciosas, devido às condições difíceis e superlotadas nos campos de refugiados. Além disso, com a atual escalada da crise do coronavírus aqui agora, isso está ficando especialmente perigoso. A guerra também trouxe outros problemas para o sistema de saúde: a maioria das ONGs médicas deixou o Nordeste da Síria quando a invasão começou, por isso perdemos o acesso a medicamentos e profissionais de saúde qualificados. O sistema de saúde de autogestão teve que fazer grandes esforços para cobrir as lacunas deixadas pela retirada das ONGs. Várias precauções foram adotadas em março para evitar um enorme surto de Covid-19 depois que alguns casos positivos foram detectados e por um tempo os esforços foram bem-sucedidos. Isso deu algum tempo para fazer mais preparativos, organizar espaços para atender os pacientes, garantir o fornecimento de suprimentos médicos que pudessem ser necessários e construir respiradores. No início de agosto, os hospitais começaram a detectar pacientes com o coronavírus em diferentes cidades, portanto, as restrições de viagens e outras medidas aumentaram. Ao mesmo tempo, do outro lado da fronteira, a Turquia está tendo grandes surtos de Covid-19 e eles têm enviado vários pacientes infectados a hospitais nos territórios ocupados no norte da Síria, especialmente em Serekaniye e Afrin. Com essas condições, o exército turco aproveitando o surto do vírus para lançar um ataque é uma ameaça muito real, e as forças de autodefesa estão tentando tomar todas as medidas possíveis para evitar um cenário catastrófico. Como antes, não é sobre se o exército turco vai atacar Rojava ou não, é sobre quando e onde eles o farão.

Foto em apoio à Semana Internacional de Solidariedade a Prexs Anarquistas, agosto de 2019.
Grafite no 8 de março de 2019

4. A solidariedade anarquista internacional é um aspecto importante da luta revolucionária na história. E a revolução em Rojava é conhecida por ter alguma influência de pensamentos e perspectivas anarquistas. Quanto dessa influência você vê lá no chão? Como poderia ser maior / mais forte?

Podemos encontrar claramente a influência de algumas perspectivas anarquistas nas ideias do confederalismo democrático. Muita gente já apontou as ligações com as ideias de Murray Bookchin, que fazia um apelo à organização de comunas e à construção de um poder dual, desenvolvendo autonomia e municipalismo com base na ecologia e na democracia direta. Também podemos encontrar influências de outros pensadores anarquistas, entendendo o Estado como o principal sistema de violência e opressão e a consequente determinação de construir uma sociedade sem Estado. Mas acima de tudo, as mudanças mais relevantes vêm do movimento das mulheres curdas, dizendo abertamente que temos que nos livrar do Estado para superar o capitalismo e que temos que derrubar o patriarcado para superar o Estado, trazendo a libertação das mulheres como a prioridade deste movimento.

Mas esses desenvolvimentos ideológicos nem sempre trouxeram uma mudança radical na forma como o movimento revolucionário curdo é organizado, e ainda vemos grande influência das velhas práticas marxista-leninistas que os movimentos anarquistas criticam, como centralização e organização hierárquica. Essas contradições são o principal desafio quando se trata de medidas práticas e muitas vezes há abordagens paternalistas em relação à sociedade – herança da mentalidade vanguardista dos partidos revolucionários. Enfrentar essas contradições e poder seguir avançando é um dos maiores desafios para anarquistas aqui. Permanecer em solidariedade crítica e cooperação com um movimento que, mesmo que não concordemos em alguns aspectos, é hoje um dos processos revolucionários mais relevantes em que podemos nos encontrar. Há muita coisa longe da sociedade utópica sonhamos: as comunas locais não são os conselhos revolucionários que gostaríamos de ver, os latifundiários ainda possuem grandes terras, os velhos ainda vendem suas filhas para casamento em troca de dinheiro ou mercadorias, as pessoas estão com fome e precisam unir forças militares para alimentar suas famílias, SDF está lidando com as forças imperialistas e fazendo acordos com empresas dos EUA para controlar os campos de petróleo, milhares de soldados do Daesh estão nas prisões à espera de uma oportunidade de escapar e reconstruir o sangrento califado, Afrin, Serekaniye e Tal Abyiad ainda estão sob Ocupação turca… É muito difícil desenvolver soluções estáveis ​​para esses problemas, com ou sem perspectivas anarquistas.

Fotos da ambulância dos médicos de combate TA na linha de frente, março de 2019, Baghouz Fawqani.

Até agora, os movimentos organizados anarquistas não desempenharam um grande papel nesta revolução. Se olharmos para o número de anarquistas e outros internacionalistas revolucionários envolvidos na Revolução e Guerra Civil Espanhola em na década de 1930 e compará-los com o envolvimento no nordeste da Síria, não sentimos nada além de decepção. Fica pior se compararmos quantas pessoas de tantos lugares diferentes se juntaram ao Daesh na última década. Isso não quer dizer que todo revolucionário deva correr para o Nordeste da Síria agora mesmo, mas com certeza é algo que deve nos fazer refletir sobre qual é a atual situação da solidariedade internacional anarquista. No Ocidente, nossos movimentos que se autodenominam revolucionários são referentemente baseados em identidade e subcultura, influenciados pela modernidade capitalista em todos os aspectos de nossas vidas. O surgimento do YPJ/G tornou-se acessível para nós devido à atenção da mídia, às campanhas nas redes sociais e aos cartazes nas paredes. Essas coisas não são ruins em si mesmas, mas precisamos ir mais fundo do que isso. Precisamos nos perguntar por que essa revolução está avançando enquanto nossos movimentos estão paralisados, o que significa ser um revolucionário, que tipo de vida nos esforçamos para viver, que tipo de relações desejamos ter, o que significa liberdade para nós e como muito disso é influenciado pelo liberalismo e individualismo (“Eu faço o que quero”). Sabemos que também temos a responsabilidade de como a luta se apresenta no Ocidente, e não nos demos tão bem com nossa própria comunicação midiática no passado. Percebemos que apenas começamos a entender um pouquinho de todas essas perguntas e que encontrar respostas será uma luta de longo prazo, não algo que possamos resolver por meio de atalhos superficiais. Se queremos ter uma influência maior nos movimentos revolucionários internacionais, essas são questões e contradições que devemos refletir.

Solidariedade com todos que lutam contra o patriarcado todos os dias! Em Baghouz Fawqani, março de 2019.

5. O que mudou no contexto da vida diária e das organizações populares desde a queda do ISIS como costumava ser?

Existem várias mudanças que podemos mencionar relacionadas com o fim do califado. Os primeiros são os desafios e contradições sociais que a autogestão enfrenta para integrar todas as áreas libertadas do Daesh. Cidades como Raqqa, Manbij e Tabqa, que viveram alguns anos sob o fascismo teocrático do Estado Islâmico, agora fazem parte da autogestão e têm que enfrentar não só a reconstrução das cidades depois da guerra, mas também os conflitos e contradições das mudanças sociais. Esses desafios são ainda maiores em territórios como Deir Ezzor, que também são terras árabes tradicionais com um sistema tribal e conservador profundamente enraizado, longe dos valores revolucionários da autogestão em temas como organização social, liberdade religiosa e principalmente a libertação da mulheres. Junto com os desafios sociais, existem também desafios econômicos, ecológicos e militares. Células adormecidas dos islamitas continuam atacando e desestabilizando a região e as forças leais ao governo de Bashar Al-Assad estão fazendo operações para retomar o controle do território, tentando derrubar a Autoadministração.

Claro que a invasão turca torna tudo ainda mais complicado, não só pela ocupação militar das regiões de Afrin, Serêkaniye e Gire Spî, mas também pela guerra especial em outros territórios, como cortar o acesso à água e focar ataques de drones em alvos selecionados . O Estado turco sempre utilizou o Estado Islâmico, fornecendo-lhes armas, cuidados médicos e ajuda para atravessar a fronteira com a Síria. Vários prisioneiros do Daesh que foram entrevistados falaram sobre o apoio contínuo da Turquia e, quando os combatentes do Daesh capturados conseguem escapar da prisão, eles correm de volta para as áreas controladas pela Turquia. Após a derrota do califado na primavera de 2019, os soldados do Estado islâmico se uniram às fileiras das forças de ocupação turcas, levando consigo sua ideologia fundamentalista. Esses grupos, sob a égide do TFSA (Exército Livre da Síria, apoiado pela Turquia), estão alimentando os sonhos imperialistas neo-otomanos de Erdogan, cometendo terríveis crimes de guerra sob a bandeira de um estado da OTAN. O mundo inteiro sabe disso, e a OTAN está lá para proteger os interesses e benefícios da indústria militar, corporações que lucram com a morte e a miséria, não para responsabilizar os Estados membros. Isso dá ao Daesh a oportunidade de continuar suas operações e reorganizar o fascismo teocrático para manter sua “guerra santa” contra a humanidade, não apenas no Oriente Médio, mas em todos os lugares onde possam expandir sua influência.

Registros da cerimônia em memória de Lorenzo Orsetti (Tekoşer Piling), lutador italiano da TA que caiu em Baghuz Fawqani durante o último ataque contra as forças restantes do Daesh no rio Tigre. Maio de 2019.

6. Quais são as suas perspectivas de futuro para a revolução? Vocês esperam que o trabalho da Tekoşîna Anarşîst possa inspirar outros revolucionários ao redor do mundo?

Depois de anos de guerra, muita coisa aqui está destruída. Em todas as cidades existem ruínas de casas antigas, bombardeadas e destruídas, cheias de buracos de bala. Mesmo assim, as pessoas vivem nessas ruínas, porque não têm para onde ir. Alguns deles tentam consertar aquelas ruínas, recolocando tijolos quebrados, construindo paredes novamente, montando o quebra-cabeça novamente. Outros decidem demolir as ruínas completamente e construir uma nova casa ao lado delas. Pegam o que ainda pode ser usado e recomeçam.

Sentimos que nossas vidas na sociedade patriarcal e capitalista são muito assim. Vivemos em lugares social e emocionalmente destruídos, desconectados de nossos vizinhos, sem muitas opções de como viver, mas também sem alternativa, sem para onde fugir. Qual é a melhor abordagem para uma revolução? Reconstruir dentro do sistema, usando o pequeno abrigo e segurança que ele oferece enquanto tenta reorganizar as peças até que algo melhor cresça a partir dele? Ou derrubando tudo, nos expondo ao espaço frio e vazio, onde tudo é possível? Esperando poder construir algo bonito, mas sempre sob o risco de que alguém construa algo terrível mais rápido.

Alguns momentos do hospital Serekaniye durante a invasão turca, combates e bombardeios à cidade.

Como fomos inspirados por outros camaradas ao redor do mundo e sua luta, é claro que esperamos que nossas histórias e nossas ações inspirem outras pessoas também. Às vezes é difícil saber se estamos construindo uma base estável ou apenas jogando algumas pedras ao redor. Portanto, desviando o olhar de nossas próprias obras e nos concentrando em nossos camaradas em todo o mundo, podemos ter uma visão mais ampla. Podemos encorajar umas às outras e dar força e perspectiva, trazer conselhos e encontrar inspiração, ajustando nossos planos para que um dia os resultados do nosso trabalho se encontrem e se conectem.

Aqui em Rojava temos o privilégio de aprender com esta revolução e este privilégio vem com o dever de traduzir as perspectivas e experiências que aqui estamos reunindo. Para que nossos companheiros possam entender o significado, aprender e se desenvolver.

Queremos construir pontes entre nossas pequenas casas revolucionárias, ajudar umas às outras na criação de comunidades mais saudáveis e estáveis, para que possamos juntos desafiar a ordem patriarcal e capitalista de nossas sociedades de todos os lados e ângulos, cada um de nós de seu próprio lugar e perspectiva, para que nossas batalhas individuais se tornem uma luta forte.

Homenagem no túmulo de Mikhail Bakunin na Suíça em memória de um combatente da TA, TAevger Makhno, um camarada da Turquia que caiu enquanto defendia Afrin em março de 2018.

7. Agradecemos muito por compartilharem perspectivas neste momento delicado, esperamos que essa conversa possa ser útil para pessoas de todo o mundo trabalharem em solidariedade e apoio total às pessoas no norte da Síria. Alguma consideração final?

Obrigado pelo espaço e apoio. Talvez estejamos trazendo mais perguntas do que respostas, mas às vezes o caminho mais longo traz a experiência mais significativa, que não podemos medir com os passos que damos hoje. Acreditamos que a busca que iniciamos aqui nos levará a um lugar melhor e essa é a fé que nos torna capazes de lutar por um futuro melhor.

Há muito trabalho pela frente e muitos obstáculos no caminho. Faremos o nosso melhor para manter a promessa aos nossos camaradas caídos, para encontrar o caminho e a força que eles nos mostraram que nos ajuda a navegar nos momentos mais sombrios.

Gravura em memória de Lorenzo Orsetti na Grécia.

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Leituras Recomendadas:

 

CHILE: Cartas de Presos Anarquistas em Solidariedade a Mónica Caballero e Francisco Solar

A solidariedade não reconhece fronteiras. Atravessa montanhas, matas, rios, oceanos. Encurta distâncias, aproxima corações incendiários, perfura muros, serra grades, destrói cercas. Hoje, dia 14 de agosto, se marca o dia internacional de agitação e propaganda com anarquistas presxs.

Publicamos essa semana um artigo contextualizando a prisão de Mónica e Francisco num quadro maior de repressão a anarquistas, ao povo Mapuche e toda a dissidência política no Chile. Abaixo um vídeo do coletivo Antimídia sobre a prisão de nossos companheiros:

Para somar nessa campanha, traduzimos 3 cartas dos companheiros libertários Joaquín García Chancks, Marcelo Villaroel Sepúlveda e Juan Aliste Vega, que vêm sendo mantidos encarcerados pelo Estado chileno. Chancks foi condenado a 10 anos de prisão por sua suposta participação em uma explosão na Escola de Gendarmería de San Bernado e outra na Delegacia de San Miguel em 2015. Marcelo e Juan foram sentenciados com 14 e 42 anos de prisão pela suposta participação em expropriações bancárias e pela morte de um policial durante uma fuga em outubro de 2007, no que ficou conhecido midiaticamente como Caso Security.

Um abraço forte e solidário à Mónica, Francisco, Joaquín, Marcelo e Juan.

LIBERDADE!


Carta de Joaquín García Chancks

Parece que a Negação não alcança nenhuma Verdade, Razão ou Lógica imóvel, que da luta contra a falsidade do existente só resulta um caminho semeado de dúvidas, no que o presente e o devir se borram, com uma tinta difusa, uma densa neblina na qual sempre será uma tarefa navegar, mas existe algo que traz novamente a claridade a esta trilha; é a bússola da confrontação que se apresenta como a razão consequente com a noção inseparável de uma simbiose teórico-prática, o ponto de vista de uma existência as vezes errante.

A dinâmica do combate sacode a existência para trazê-la de volta à vida, dotando-a da Fogosidade que o cansaço e a monotonia muitas vezes extingue; a construção de um existência antagonista carrega, então, a capacidade de viver longe da virtualidade imposta pela vida normalmente ditada, o golpe a golpe do ataque agradável, impulsor da mítica destruição criadora e o sofrimento de quando não somos quem golpeia, da prisão, a morte, que flerta com a subversão, são os sabores da vida, vida real, bebidas amargas e ambrosia.

Hoje bebemos desta bebida amarga; dois afetuosxs companheirxs são detidxs e acusadxs pela colocação de múltiplos artefatos explosivos, entre eles o enviado ao ex-Ministro do Interior Rodrigo Hinzpeter e um enviado à 54ª delegacia de Huechuraba. Inevegável que ambos belos ataques falam da continuidade histórica, do golpe da memória que não esquece. O poder transtornado e temeroso.

Festina, com a detenção dxs supostxs responsáveis, que recorde, a revolta não foi o ponto de culminante de um êxtase rebelde, é a criação, o ponto de inflexão de centenas de vidas em combate.

Um grande abraço à distância, cheio de amor, carinho e força para vocês, Mónica Caballero e Francisco Solar.

Viva a anarquia.

Joaquín García Chancks
Carcel de Alta Seguridad Chile,
14 de agosto de 2020.

Carta de Juan Aliste Vega

Há pouco menos de um mês da detenção de nossxs companheirxs Mónica e Francisco pelas mãos do aparato policial de Estado, Guardas do poder e defensores dos interesses da casta burguesa política deste território.

Mónica e Francisco em prisão e reféns deste Estado capitalista que xs julga e sentencia desde o primeiro instante em que midiaticamente a administração fascista instala sua maquinaria jurídica servil em suas consequentes vidas.

São companheirxs que têm posição de caminhar livres e com férteis convicções. Abraço elxs com incondicional força e ternura, com o coração repleto de cumplicidade.

Como inimigo deste Estado, levantando a escrita pela bela insistência de reconhecermos na palavra transformada em ato e o pensar em ação subversiva. Juntxs no abraço de guerra que transcende muros e fronteiras, batida incansável que flui pela eliminação de toda forma de submissão.

E o combate diário frente a qualquer forma de poder. É a anarquia presente kom oxigênio libertário que não deixa de bombear, desde os negros corações, mais razões nesta luta contínua.

A prisão não é alheia a este caminhar, nossas vidas não são mensuráveis em custos, há aprendizado constante, há a decisão inquebrável de confrontação e ação direta, indicador tangível de que é possível não somente batalhar, mas também ser livres.

Juntxs no abraço de guerra que transcende muros e fronteiras nessa luta contínua.

Caminhando com dignidade rebelde e olhar subversivo, dentro e fora da prisão até a liberação total!

Enquanto houver miséria, haverá rebelião!!

Juan Aliste Vega,
Prisionero subversivo
Cárcel de Alta Seguridad Chile,
14 de agosto de 2020.

Carta de Marcelo Villaroel Sepúlveda

É nossa a konvicção!!

Indestrutíveis nossos desejos e infinitos os motivos e razões para seguir, nesta guerra, pela morte do estado, da prisão e do kapital.

Há 21 dias a notícia nos akordou batendo em nossas karas. Foram presxs Mónica e Francisco. Desta vez akusadxs de serem autorxs de diversos ataques explosivos em Santiago no último ano. Klaramente a ofensiva permanente do Estado por meio de seus aparatos repressivos, sua estrutura jurídica penitenciária e sua imprensa servil e empresarial desenha a karicatura sobre nossxs irmãxs komo xs culpadx perfeitxs para quem se espera todo o rigor da lei dominante.

A decisão do poder é o kastigo exemplar para servir de lição e de fase preliminar à resistência ofensiva komo prática insurrecional de ataque ao existente. Nossxs companheirxs hoje enfrentam uma dura luta. O poder, em bloco, fazendo uso de suas ferramentas, adianta duras condenações.

Nossas palavras nascidas de uma longa resistência à estadia forçada na prisão buscam assinalar certezas e convicções. Uma delas é a justeza de nossa ação rebelde e insurreta. Outra é que a luta pela destruição da sociedade carcerária é uma necessidade imperativa. De urgência vital nestes tempos de controle, repressão e morte.

O inimigo espalhado por todo o território atua com todos os capangas na rua, e nesta confrontação inevitável hoje nossxs kompanheirxs aparecem como destinatárixs inevitáveis de todo o peso da lei enquanto passam a formar parte deste contingente de kompanheirxs, que navegamos nesta paisagem sombria da prisão em um kontexto de permanente e interminável konflitividade.

A guerra social se torna comum e necessária por meio da legitimidade da violência multiforme como prática liberadora de rebelião, mas também vai parindo presxs, fugitivxs, fugidxs e mortxs. Esta é a realidade do konflito.

O que não podemos nunca esquecer: virão mais e mais kompas perseguidxs, kaídxs, fugidxs, mas, do mesmo modo, haverão companheirxs passando para a ofensiva, dando continuidade à esta luta pela liberdade, pela terra, kontra o kapital e tudo o que nos impede de viver.

Desta cela, onde meus pensamentos voam até as que habitam hoje, abraço xs kompanheirxs neste novo trajeto morro acima que seguramente saberemos seguir.

Mónika e Francisco e todxs x presxs da guerra social, da Revolta e da liberação mapuche para a rua!

Enquanto existir miséria, haverá rebelião!!

Marcelo Villaroel Sepúlveda
Prisioneiro libertário
Carcel de Alta Seguridad Chile,
14 de agosto de 2020.

CHILE: O Fogo que Arde Desde a Cordilheira

Em 24 de julho de 2020, entre o nascer do sol e as primeiras horas do dia, a polícia chilena tenta sufocar mais uma vez o agitado movimento anarquista daquele território. Casas são invadidas, buscas são feitas pela cidade de Santiago e logo as notícias começam a se espalhar: duas pessoas, anarquistas, foram sequestradas pelo Estado e estão sob as mãos dos policiais. Eram Mónica Caballero e Francisco Solar, companheiros acusados de envio de 4 pacotes-bomba. No mesmo dia da prisão, o judiciário decidiu pela prisão preventiva de 6 meses para investigação.

Dois dos pacotes teriam sido deixados em fevereiro de 2020, em um prédio localiado em uma região elitizada de Santiago. Outros dois, mais antigos, teriam sido enviados em julho de 2019, sendo um para a 54ª delegacia de Huechuraba e outro para o escritório onde trabalhava o facínora Rodrigo Hinzpeter, um dos fundadores do partido de direita Renovación Nacional, ligado ao Movimiento de Unión Nacional (partidários da ditadura de Augusto Pinochet). Hinzpeter é bastante conhecido por suas operações de perseguição aos anarquistas. Durante a primeira gestão de Sebastian Piñera na presidência do Chile (2010-2014) ele foi Ministro do Interior entre março de 2010 e fevereiro de 2011, cargo que depois foi transformado em Ministro do Interior e Segurança Pública do Chile. Em seguida, se tornou Ministro da Defesa Nacional do Chile, cargo que ocupou até 2014. Durante esse período, manteve explícita a tentativa de calar os movimentos populares e insurrecionais, as comunidades mapuches em luta, o movimento estudantil radicalizado e, sobretudo, o movimento anarquista.

É um dos responsáveis pelo Caso Bombas, que em 2010 promoveu uma caça aos anarquistas com base em montagens policiais, provas forjadas e espetáculos midiáticos. No caso, uma série de companheiros anarquistas foram presos sob a acusação de terem implantado bombas em bancos e delegacias pela região metropolitana de Santiago. Os presos foram absolvidos e o Caso Bombas se transformou em uma aberração policialesca e até hoje é conhecido como uma das tentativas de criminalização mais grotescas, mas que encontra desdobramentos até o dia de hoje. Tanto é que entre os anarquistas presos naquela época estavam Mónica Caballero e Francisco Solar, companheiros presos mais uma vez pelo Estado chileno, quase 10 anos depois.

Mónica Caballero e Francisco Solar

Após serem absolvidos no Caso Bombas, os dois partem para a Espanha, onde em novembro de 2013 são alvos de uma nova investigação: um atentado explosivo na Basílica de Pilar, em Zaragoza. São presos novamente junto a outros 3 anarquistas em meio à uma caçada do Estado espanhol aos libertários naquele território, que contou com ao menos 5 operações policiais e encarcerou mais de 40 pessoas e acusou muitas outras, além de dezenas de centros sociais e casas terem sido invadidas pela polícia.

Assim como no Caso Bombas de 2010 e na prisão de ambos na Espanha em 2013, a acusação de agora contra Mónica e Francisco está vinculada à uma montagem policial. Entre as supostas provas mencionadas pelo judiciário estão amostras de DNA “masculino”, que foram apresentadas como provas da participação de Francisco Solar, imagens de câmeras de vigilância de baixa qualidade etc. Reportagens da imprensa chilena mostram que ambos estavam sendo monitorados de perto pela polícia ao menos desde quando foram extraditados pelo Estado espanhol. Policiais a paisana os seguiram por meses, acompanharam suas publicações nas redes sociais, produziram um relatório com informações sobre as pessoas com quem os companheiros se relacionavam, onde trabalhavam etc. Além disso, Francisco foi detido pela polícia em 15 de maio de 2020 durante uma manifestação anticarcerária chamada pela Coordinadora 18 de Octubre sob a alegação de que ele teria promovido “desordem pública” e, de acordo com as informações difundidas pela imprensa, foi durante esta detenção que seu material de DNA foi recolhido e posteriormente utilizado como suposta “prova” de sua participação no envio das bombas.

Quando dizemos que ambos os casos foram montagem não estamos questionando a existência de tais ataques à propriedade e autoridade. Nos interessa explicitar o modo próprio da atuação policial: espetáculo midiático, invenção de ligações entre os eventos, provas forjadas, invasão de casas e espaços anarquistas. E aqui não nos interessa argumentar que os companheiros são inocentes ou culpados, mas explicitar que jurídico e político não se separam. Utilizar como argumento a inocência frente às acusações é reforçar existência e continuidade do judiciário, do tribunal e do sistema penal, armas utilizadas pelo Estado na guerra social para tentar suprimir toda e qualquer resistência que não se submeta à legalidade, à soberania, ao princípio da autoridade.

Ao retomar esses acontecimentos nos quais os companheiros estiveram envolvidos, não nos interessa, como fazem os jornalistas e policiais, discutir formalidades, legislações, culpabilizações ou vitimizações. Queremos dar um abraço forte, solidário e incendiário, para Mónica e Francisco, que se mantém firmes mesmo que sequestrados pelo Estado chileno. Demonstramos nossa solidariedade irrestrita com eles. E isso inclui, invariavelmente, respeitar o posicionamento de ambos, que mesmo com todas as perseguições dos últimos anos, se mantiveram com a cabeça erguida, resistindo aos ataques constantes por parte do Estado. Aproveitamos para fazer eco das palavras de Mónica e Francisco, que durante o seu julgamento na Espanha disseram, sem hesitar, em meio a tribunal: “muerte al estado, viva la anarquia”.

CARTA DE MÓNICA CABALLERO:

“Companheirxs, amigxs e familiares:

Novamente lhes escrevo desde uma cela. Me encontro isolada na prisão de San Miguel e durante 14 dias permanecerei isolada por conta do protocolo de prevenção de contágio ao COVID-19, posteriormente me classificarão e me levarão a um módulo definitivo.

Já são quase 10 anos desde a primeira vez que pisei na prisão como acusada. Durante esses anos minha vida, de uma forma ou outra, sempre esteve ligada às prisões, embora os sistemas de controle possam mudar, sua estrutura essencialmente não, se segue buscando o castigo e o arrependimento.

Há quase 10 anos, ao entrar na prisão, estava plenamente convencida de que o conjunto de ideias e práticas antiautoritárias são pontos fundamentais para enfrentar a dominação, em todo esse tempo não existiu nem um só dia em que pensei o contrário. Piso na prisão com a cabeça erguida, orgulhosa do caminho percorrido.

SOLIDARIEDADE COM TODAS AS LUTAS ANTICAPITALISTAS
NEWEN PEÑIS, PRESOS POLÍTICOS MAPUCHES, PRESOS SUBVERSIVOS E DA REVOLTA PARA AS RUAS!

Julho de 2020,
Mónica Andrea Caballero Sepúlveda, presa anarquista.”

O Fogo Não Tem Fim

Os enfrentamentos entre as forças na guerra social não param. Portanto, entendemos a operação para prender Mónica Caballero e Francisco Solar como uma tentativa de silenciar o movimento insurrecional que tomou as ruas de diferentes cidades do território dominado pelo Estado chileno nos últimos meses. O mês de outubro de 2019 foi bastante quente. As imagens de barricadas com fogo, encapuchadxs, enfrentamentos com os carabineiros e derrubadas de estátuas de colonizadores rodaram por várias partes do planeta. Muito se discutiu sobre qual teria sido o estopim para que as ruas fossem tomadas… se haveria sido o aumento na tarifa de transportes, ou o custo de vida, a “corrupção”, a acentuação do neoliberalismo ou se havia sido tudo isso em conjunto. Prontamente jornalistas, cientistas políticos, políticos, celebridades, youtubers e derivados não demoraram para tentar encaixá-la em uma explicação racional, de causa e efeito. O que mais chama a atenção sobre essas análises é que elas, invariavelmente, não levam em conta os enfrentamentos da guerra social que já ocorriam naquele território. Sem dúvida, uma insurreição possui um momento de erupção, assim como um vulcão. Mas mesmo o vulcão é composto por lavas e bolas de fogo que não param de queimar, ainda que debaixo da terra, ainda que a gente não enxergue.

Durante as manifestações daquele outubro, chegavam imagens e textos exaltando a resistência e coragem daquelas pessoas que decidiram se defender da repressão policial. O termo primera línea se tornou viral e prontamente uma identidade adotada por muitas pessoas que acompanhavam de outros cantos do planeta por meio das redes. Entretanto, essa romantização, essa invenção de uma nova identidade escondia anos de repressão, criminalização, espancamentos e delações por parte de organizações de esquerda contra grupos de afinidades anarquistas. A até então chamada tática black bloc, as pessoas encapuchadas, expulsas muitas vezes das manifestações estudantis por sindicatos, passou a ser alvo de uma tentativa de amansamento e adestramento.

Ainda que a gente apoie e estimule sem ressalvas todo e qualquer ato de não se silenciar frente à repressão e considere que é preciso ter muita coragem para se enfrentar um carro blindado armado de pedras e garrafas, em nossa perspectiva, a transformação de uma tática de defesa e enfrentamento em uma identidade por parte das pessoas que se colocam como solidárias às lutas possibilitou que houvesse um abandono do comprometimento ético com as forças envolvidas na insurreição. A insurreição e os enfrentamentos passaram a ser acompanhados por muita gente que se diz “solidária” como quem assiste a um filme ou a uma série ficcional, na qual não é necessário nenhum envolvimento com a luta. Tanto é que bastou os atos multitudinários deixaram de tomar as ruas e as notas em solidariedade diminuíram, se é que continuaram a existir. Entretanto, é importante ressaltar: muitas pessoas, companheiras, continuam presas e/ou processadas, muitas foram feridas, perderam seus olhos, foram mortas pela polícia. Não dizemos isso como uma forma de apontar o dedo, mas como uma provocação. A solidariedade é mais do que palavra escrita e nada tem a ver com o consumo de imagens, martirização, espetacularização. Quando se fala de uma insurreição, ela não é abstrata. São corpos reais, pessoas combatentes na guerra social, se colocando em risco contra uma vida de miséria. Saudamos sua coragem, mas como solidários, precisamos sempre estar atentos para não sermos tragados pelo elemento espetacular, pela foto de capa, pela reportagem no jornal, pelo vídeo nas redes.

O efeito da insurreição está sendo sentido ainda, ele não acabou. A pandemia de Covid-19 esvaziou à força as ruas e as manifestações multitudinárias desapareceram. Todavia, para nós, é preciso lançar um olhar insurrecional que conecte as lutas, pois as forças aprendem mutuamente, se fortalecem, se alteram, se enfrentam. Nesse sentido, o fogo nunca cessa. Mesmo que o exercício de governo se atualize, os Estados se armem, as forças moderadas busquem conter a possibilidade insurrecional. Mesmo que a esquerda tente aplicar uma reforma constituinte para substituir a constituição atual promulgada, em grande parte, durante a ditadura de Augusto Pinochet. Mesmo que os Estados tentem lançar mão da lei antiterrorismo contra os movimentos insurrecionais e radicais, contra quem não se submete à lógica do Estado e do capitalismo, sejam nós anarquistas, sejam nossos companheiros das comunidades mapuches que se levantam há séculos por autonomia e liberdade, sobretudo na região patagônica.

Mapuches em Luta

Não temos a pretensão de explicar a cosmovisão mapuche, nem de esgotar todos os casos de resistência e repressão e muito menos pretendemos falar em nome das diversas comunidades em luta. O que queremos, sim, é difundir alguns elementos sobre a singularidade dessa luta, pois só assim é possível que a solidariedade indomável seja mais do que palavra escrita, mais do que um palavrório universalizante que não leva em conta as forças envolvidas. As lutas das comunidades mapuche possuem suas singularidades justamente por serem inseparáveis de seus modos de vida e do vínculo direto com a terra.

A relação com a terra está no próprio significado do nome: em mapudungún (o idioma mapuche, língua da terra) mapu significa terra e che gente, pessoa. E é sobretudo em torno da questão da terra que rondam os levantes das últimas décadas na região conhecida como Wallmapu (totalidade do território mapuche em ambos os lados da cordilheira). De um lado, no território dominado pelo Estado chileno, atualmente as comunidades mapuches se concentram sobretudo nas regiões patagônicas de Bio-Bio e Araucania, zona centro-sul, e são atacadas permanentemente pelas multinacionais, florestais e hidrelétricas, que destroem, pouco a pouco, a natureza da região com a derrubada dos bosques, contaminação das águas e expulsão das comunidades locais. De outro, no “lado argentino” da patagônia, os enfrentamentos se dão também contra o grupo Benetton, que é proprietário oficial de invasões em terras ancestrais mapuches. Como explica o livro Wenüy – por la memória rebelde de Santiago Maldonado, a invasão destas terras em específico tem origens na The Argentinian Southern Land Company, fundada em Londres em 1889 para realizar atividades comerciais na Patagônia e “em 1986 foi beneficiada com a doação de dez fazendas de quase noventa mil hectares cada uma. Em troca de financiar a Campanha do Deserto, obteve terras estratégicas para o desenvolvimento da ferrovia que lhe serviu para exportar a produção de gados. Em 1982 a empresa traduziu seu nome – Compañia de Tierras del Sud Argentino – e integrou sua direção com 60% de diretores argentinos. Esse pacote acionista foi comprado em 1991 pela Benetton por cinquenta milhões de dólares”.

É nesse contexto de usurpação e invasão das terras ancestrais mapuches que se formam as diferentes táticas de luta. Não há uma uniformidade entre as comunidades, que se dividem entre uma minoria que busca diálogo e acordos com os Estados; outros que reivindicam o reconhecimento dos povos mapuche como uma Nação, o que implica na formação de um Estado plurinacional, como no caso boliviano; e uma vasta gama de grupos que reivindicam sua autonomia total e a retomada das terras ancestrais por meio da ação direta. Estes últimos, ao fazerem valer sua autonomia, há décadas vêm promovendo as chamadas recuperações territoriais em ambos os lados da cordilheira. É por meio dessas recuperações que os laços comunitários e culturais se fortalecem, dos cultos espirituais à alimentação, de brincadeiras e jogos a ensino do mapudungún. Enfim, se trata de um modo de vida que enfrenta diretamente o capitalismo, ao não reconhecer a usurpação de suas terras e o princípio da propriedade privada, e aos Estados, ao reivindicarem e espalharem a autonomia de cada localidade.

Nesse sentido, como afirma um posicionamento de um companheiro mapuche reproduzido no livro “Wenüy…”, “seguimos tendo as piores terras e a qualidade do solo é abismalmente diferente em comparação com as grandes fazendas: têm os melhores pastos, as melhores vertentes, as nascentes dos rios, os riachos. E esse é um dos motivos pelos quais seguimos vivendo em uma situação de extrema pobreza. Assim, obrigam nossa gente a migrar para as cidades, a viver nos bairros periféricos, com uma qualidade de vida pior da que tinham nos campos, passando a ser mão de obra barata e trabalhando por miséria. Por isso temem essa recuperação: porque questiona o estado das coisas”.

Nos últimos anos, os meios anarquistas de outros territórios começaram a dar enfase à luta dos mapuche sobretudo quando Santiago Maldonado foi assassinado pela gendarmeria em 1 de agosto de 2018 na província de Chubut, na região patagônica ocupada pelo Estado argentino. Como mostra o livro “Wenüy…”, os partidos e organizações de esquerda e de direitos humanos tentaram apagar que Santiago era anarquista e que foi assassinado enquanto estava encapuchado com companheiros mapuche durante uma barricada pela liberdade de Facundo Jones Huala. Tanto foi que nas manifestações ocorridas nas cidades argentinas primeiro em decorrência de seu desaparecimento e depois pela confirmação de seu assassinato, os anarquistas foram perseguidos pelas organizações de esquerda, e aqueles que usavam capuchas foram acusados de infiltrados.

Os enfrentamentos e os assassinatos de mapuches em luta não são uma questão nova, seja nos territórios hoje conhecidos como Argentina ou Chile. Também não se restringem à governos de direita. Durante os governos de partidos de esquerda, a perseguição não parou. Em 2008, por exemplo, a polícia chilena assassinou a tiros o jovem Matias Catrileo durante uma recuperação territorial na região de Vilcún, em Araucania. No mesmo mês, após ser detido agredido por policiais, o jovem mapuche Johnny Cariqueo morre dias depois no hospital. No ano seguinte, em 12 de agosto de 2009, o comunero mapuche Jaime Mendoza Collío foi morto com tiro nas costas pelas Forças Especiais dos Carabineiros. Na época, o país era governado por Michelle Bachelet, que, ironicamente (ou não), atualmente ocupa o posto do alto comissariado de direitos humanos da Organização das Nações Unidas. Esses são somente alguns dos casos de execuções, torturas, espancamentos, prisões, montagens policiais realizadas contra os povos mapuches.

Manifestação realizada em Curaucatin por diferentes comunidades mapuches em repúdio aos ataques racistas ocorridos nos últimos dias.

O recrudescimento da repressão foi elevado quando o Estado chileno criou o chamado Comando Jungla, força especial treinada na Colômbia durante o governo Bachelet e que somente foi “inaugurada” por Sebastián Piñera em junho de 2018. A justificativa da criação do Comando era o combate à chamada “violência rural” na região de Araucania. Naquele ano, em 14 de novembro, foi responsável pela execução do mapuche Camilo Catrillanca com um tiro na cabeça. Um companheiro de 15 anos que o acompanhava, após presenciar o assassinato, foi levado pelos soldados e torturado. E isso não foi um desvio de conduta. As invasões dos territórios recuperados e das comunidades mapuches por parte das forças especiais da policia permanece. E obviamente essa repressão começou com Bachelet ou Piñera. A resistência mapuche tem séculos de existência. Contudo, nos últimos anos, tanto o Estado chileno quanto o argentino têm se armado ainda mais para tentar apagar o fogo que sopra desde a cordilheira. Os carabineiros continuam rondando o território ancestral mapuche com blindados, drones, GPS de ultima geração e armas de grosso calibre.

Frente a isso, a ofensiva não esquece de seus mortos. No contexto das ações em memória do assassinato de Matias Catrileo, um incêndio levou à morte do casal de latinfundiários Werner Luchsinger e Vivianne Mackay em janeiro de 2013, na mesma região de Vilcún. Por conta do incêndio, foram realizadas diversas prisões de lutadores mapuches nas cidades de Temuco, Vilcún e na comuna Padre de Las Casas. Dentre os presos estavam a Machi Francisca Linconao e José Cordova, irmão de Celestino Córdova. Ao julgamento, se somou um espetáculo midiático e o judiciário tentou aplicar a lei antiterrorista, mas não conseguiu. Dentre os acusados, Machi Celestino Córdova foi o único considerado culpado e condenado a 18 anos de prisão. Cabe lembrar que Machi é uma denominação utilizada pelos mapuches para se referir à uma autoridade espiritual ancestral, uma pessoa que faz a conexão com o mundo dos espíritos. Logo, a condenação do Machi Celestino Córdova é um ataque explícito às comunidades da região.

Há mais de 3 meses, o Machi Celestino e mais 8 mapuches que estão presos na cárcere de Angol iniciaram uma greve de fome contra a repressão ao seu povo. E a greve de fome foi se espalhando. Há mais de um mês, 11 mapuches encarcerados na prisão de Lebu também inciaram uma greve de fome e, alguns dias depois, 7 mapuches presos na cidade de Temuco também aderiram. Dentre eles, está Facundo Jones Huala, lonko (em mapudungún, cabeça e referência de uma comunidade) preso pelo Estado argentino e deportado e preso em junho de 2017 no território dominado pelo Estado chileno sob a acusação de ter causado um incêndio na região de Valdivia em 2013. Quando Jones Huala foi preso, uma campanha pela sua liberdade se espalhou pelos dois lados da Patagônia e foi durante um trancamento de uma estrada promovido por comuneros mapuches e apoiadores em Chubut, na região argentina, que a gendarmeria argentina assassinou o anarquista Santiago Maldonado em 1 de agosto de 2017.

Entre as reivindicações da greve de fome está a liberdade dos mapuches encarcerados poderem realizar seus rituais espirituais, o que é permitido, formalmente, pelas as normas judiciárias e por tratados internacionais, como o caso do Convênio 169 sobre povos indígenas e tribais da Organização Internacional do Trabalho (OIT), assinado em 1989. O documento afirma, nos parágrafos 9 e 10: “1- Desde que sejam compatíveis com o sistema jurídico nacional e com direitos humanos internacionalmente reconhecidos, os métodos tradicionalmente adotados por esses povos para lidar com delitos cometidos por seus membros deverão ser respeitados. 2- Os costumes desses povos, sobre matérias penais, deverão ser levados em consideração pelas autoridades e tribunais no processo de julgarem esses casos” ; “1- No processo de impor sanções penais previstas na legislação geral a membros desses povos, suas características econômicas, sociais e culturais deverão ser levadas em consideração. 2- Deverá ser dada preferência a outros métodos de punição que não o encarceramento”.

Obviamente que não estamos aqui defendendo tratados internacionais, nem a própria Organização Internacional do Trabalho, composta por representantes de Estados-nações e que faz funcionar o capitalismo a partir de suas “recomendações” e “regulamentações”. Contudo, é importante compreender que para perseguir aqueles que lutam , que vivem outro modo de vida, uma outra maneira de se relacionar com a terra, os Estados rasgam tratados muitas vezes assinados por eles mesmos. Isso mostra mais uma vez a seletividade presente no sistema penal e que é inerente a todo e qualquer exercício de governo. Os “direitos”, teoricamente universais, são desconsiderados rapidamente na tentativa de conter as práticas indomáveis. E como afirmou a companheira mapuche Giovanna Tafilo, uma das porta-vozes dos presos em greve de fome, em uma entrevista ao canal Nuestra Dignidad, a perspectiva, ao lançar mão dessa Convenção, é justamente a de explicitar que não apenas aqueles que estão em greve de fome devem ser liberados, mas que as prisões deveriam deixar de existir.

A situação da greve de fome dos mapuches presos explicita mais ainda que a prática de Estado é uma prática de morte dos povos originários e uma tentativa de aniquilação de seus modos de vida. Machi Celestino, junto aos demais companheiros, está há 99 dias em greve de fome (sem ingerir alimentos) e caso as reivindicações não sejam atendidas, anunciou que entrará novamente em greve seca (sem ingestão de líquidos) nos próximos dias. De acordo aos costumes mapuches, ele, por ser uma autoridade espiritual, não pode ter seu sangue retirado e isso vem sendo desrespeitado pelo Estado chileno e, portanto, seus companheiros precisam estar sempre alertas para impedir que isso ocorra. Ele também se pronunciou exigindo que caso sua situação piore, que não seja submetido à alimentação e hidratação forçada e, no limite, se tiver uma parada cardio-respiratória, que seu corpo não seja reanimado. Todavia, o Estado chileno já deu mostras de que pode desrespeitar essa decisão pessoal de Machi, pois, conforme publicizado por mapuches que acompanham de perto a luta, os médicos do hospital de custódia já deixaram preparados máquinas de reanimação para impedir que ele morra.

Simultaneamente, diversas ações foram e estão sendo realizadas. Na primeira semana de agosto, mapuches ocuparam as prefeituras de Victoria, Curacautín, Ercilla e Traiguén, todas na região de Araucanía, em solidariedade aos 27 presos em greve de fome. Durante a ocupação, grupos de extrema-direita cercaram as ocupações, agrediram os mapuches e tentaram incendiar os prédios. A situação mais grave se deu no município de Curacautín. Os ataques racistas foram acompanhados pela gendarmeria, que não interveio, numa explícita cumplicidade com a tentativa de matar os mapuches que ali estavam. Vários grupos de extrema-direita estavam envolvidos, como a Associação para a Paz e a Reconciliação em Araucania (APRA), composto por latifundiários e empresários da região. Em resposta, dias depois 100 mapuches ocuparam a prefeitura de Tirúa e foram prontamente atacados pela gendarmeria. Mas a luta não tem fim, o fogo não se apaga. Dias depois, 17 caminhões e duas retroescavadeiras foram incendiados e destruídos em uma fábrica na região. Os enfrentamentos continuam enquanto escrevemos estas linhas e as notícias que nos chegam dizem ter mais de 50 pessoas detidas e outros tantos feridos.

Enfim, sabemos que nesses processos nunca se tratou da participação real dos anarquistas nos ataques à bomba ou dos mapuches em incêndios e demais ações. Sabemos que tais processos não são mais do que uma tentativa desesperada do Estado de disseminar uma ideia de que haveria uma luta boazinha e outra condenável, uma palatável e a outra intragável, pois insurrecta, indomável. Se tratou (e se trata) de um uso estratégico e permanente que todo Estado faz dos eventos na tentativa de silenciar as práticas insurrecionais. Além de processar e encarcerar, mata e desaparece com companheiras e companheiros. Mata, como fez o Estado chileno com a anarquista Claudia Lopez, assassinada a tiros por carabineiros durante uma barricada no dia 11 de setembro de 1998 e tantos outros e com os mapuches Camilo Catrillanca, Matías Catrileo, Alex Lemún, Macarena Valdés, Rafael Nahuel e tantos outros até o dia de hoje. Desaparece, como fez com Jose Huenante, considerado um dos primeiros desaparecidos da democracia chilena pós-ditadura de Augusto Pinochet. Mata, como fizeram os Estados chileno e argentino, em 2018 quando assassinaram Santiago Maldonado. Encarcera, como faz com Facundo Jones Huala e com os presos subversivos Marcelo Villaroel Sepúlveda, Juan Aliste Vega, Mónica Caballero, Francisco Solar, entre muitos outros.

O fogo não tem fim. Sua chama pode diminuir, mas continua a arder, eternamente. A tudo queima. Consome as certezas, os acordos, as pacificações. Suas fagulhas voam como estrelas cadente iluminando a escuridão da noite. Frente ao silêncio paralisador das maiorias, submissas à ordem, aos tribunais e à legalidade democrática, os pequeninos estalos produzidos pelas brasas se tornam ensurdecedores. E não há Estados, deuses ou mestres que as apaguem.

Nem um minuto de silêncio, toda uma vida de combate!
Mano tendida a los compañeros, puño cerrado al enemigo!
Solidariedade irrestrita à Mónica Caballero, Francisco Solar, às comunidades mapuches em luta e os demais presxs da guerra social!

WALLMAPU LIBRE!
Abaixo a sociedade carcerária!
Pelo fim do medo,
Liberdade!


Para Saber Mais:

Uma Nova Onda de Repressão no Chile, por Crimethinc.

Amplas Manifestações Pela Nação Mapuche Contra a “Horda Racista”, texto por Equipe de Comunicações Mapuche, traduzido por Terra Sem Amos.

Caso Bombas, documentário sobre a série de montagens policiais para perseguir anarquistas no Chile.

Por que como anarquistas apoyamos la lucha autonoma del pueblo mapuche, por La Peste

Carta a Mónica e Franscisco

“Wenüy – por la memoria rebelde de Santiago Maldonado”, livro que compila textos, artigos e comunicados tanto sobre a morte do anarquista quanto dos grupos mapuche em luta na região patagonica.

Canais com notícias sobre as lutas anarquistas e mapuches:

Contrainfo – es-contrainfo.espiv.net
Coordinadora 18 de Octubre – instagram.com/coordinadora18octubre
Rede pela liberdade de Mónica e Francisco – instagram.com/redlibertadmonicayfrancisco
Rádio Kurruf – https://radiokurruf.org/
Kimunkaweychan – instagram/kimunkaweychan
Libertade para Machi Celestino – instagram.com/libertadmachicelestino