Algumas breves reflexões em torno da luta pelxs prisioneirxs da revolta

Seguindo com a difusão das lutas que ocorrem no território dominado pelo Estado chileno e da campanha pela liberdade imediata e sem restrições de compas anarquistas que caíram antes e durante a insurreição que queimou as ruas daquela região em outubro de 2019, publicamos uma tradução de um texto lançado originalmente em espanhol no canal anticarcerário Refractario, em fevereiro de 2021.

Pela abolição da sociedade carcerária, pela liberação total!

Que viva a anarquia!


Como sabemos, a revolta iniciada em outubro de 2019 não nos trouxe somente belas e enriquecedoras experiências de combate ao Estado e de rachadura nas relações de autoridade, mas também uma longa lista de mortes, torturas, violações, mutilações e prisões.

Durante os primeiros dias, o número de pessoas envolvidas na revolta que ingressavam nas prisões aumentou rapidamente de dezenas a centenas, até chegar ao ápice de milhares. Em dezembro de 2019 o Estado mantinha atrás das grades 2500 delas, acusadas de participar de uma ou outra forma em ações da revolta.

Com o passar do tempo, muitas conseguiram sair com prisão domiciliar ou outras medidas cautelares, pois a maioria estava presa principalmente por delitos considerados menores (desordem, saques etc.). Permaneceram em prisão preventiva principalmente as acusadas de incêndio e portes de bomba molotov, sendo mantidas reclusas em distintas prisões do país, literalmente desde Arica até Punta Arena. Em fevereiro de 2021, sem existir um número exato, não mais de 200 devem ser aquelas que se encontram atrás das grades, mesmo que um alto número esteja em prisão domiciliar ou outras medidas.

Desde o primeiro dia da revolta quem questionou e enfrentou permanentemente a prisão identificou não somente a iminente realidade de quem caíu por conta da repressão, mas também a necessidade de continuar com força a luta pelxs prisioneirxs subversivxs em situações de completa ruptura com a ordem estabelecida. Foi assim que em 27 de novembro de 2019 distintas individualidades anarquistas e antiautoritárias chamaram uma manifestação em frente ao Centro de Justicia, onde se dizia “A quantidade de presxs rebeldes neste momento é impressionante e estão arriscando condenações muito longas. É necessário instalar o discurso anticarcerário antes que seja tarde demais…” e finalizava com a frase “Porque poderia ser qualquer pessoa. Fogo nas prisões, liberdade a nossxs presxs da revolta de outubro e da guerra social”.

Logo, com o passar do tempo se foram formando distintas coordenadorias e instâncias de apoio axs prisioneirxs da revolta de forma mais ou menos permanente, tanto a nível regional como nacional. Durante os momentos ápices da revolta, aquelas orgânicas funcionaram a todo vapor tanto no apoio concreto como na difusão e agitação, muitas vezes sem dar conta da imensa quantidade de prisões, das dificuldades de manter contato com seu entorno e da permanente entrada de novas pessoas no cárcere.

As fortes medidas repressivas instauradas em março de 2020 com a desculpa da pandemia golpearam profunda e inegavelmente o ritmo dos enfrentamentos nas ruas. Assim foi como, nos meses mais agudos de confinamento e prisão, essas persistentes iniciativas mantiveram viva a necessidade de apoio axs presxs da revolta e a visibilidade de suas diferentes situações particulares. Quando as ruas voltaram a ser tomadas de forma massiva e com vitalidade pelxs rebeldes, o tema dxs prexs políticxs da revolta 1 já estava completamente instalado.

Foi justamente no contexto do plebiscito por uma nova constituição (setembro-outubro-novembro) que não apenas surgiram inúmeros grupos de apoio axs prisioneirxs da revolta, mas também grande parte das assembleias territoriais e individualidades voltaram seu interesse ao tema das prisões. Após o plebiscito essa realidade se tornou inegável, talvez movidas pela culpa de ter apoiado a institucionalização da revolta, com certa vergonha de quem votou nas urnas do poder (incluindo várixs “anarquistas”) ou talvez pelo “dever democrático” de resolver o tema das prisões da revolta às portas de um novo processo. O certo é que o assunto realmente se espalhou por toda parte, transbordando qualquer organização que tivesse algum caráter específico de apoio às pessoas presas. Desde então a situação dxs prisioneirxs da revolta adquiriu um protagonismo, passando a ser parte dos principais pontos de mobilização das ruas.

Vasculhando becos sem saída

No final de 2020 começou a ser gestada, por parte de alguns setores, a necessidade de buscar uma “solução política” axs presxs da revolta e, em função dessa necessidade, ir trabalhando em sua criação, gestão e, óbvio, sua administração.

A “solução política” assume que o encarceramento de quem participou da revolta se deve a motivações políticas e por isso uma das possibilidades de sua liberação seria de caráter político-administrativo, muito mais do que jurídico. Tudo isso considerando a enorme quantidade de pessoas processadas e as diferentes situações que englobam xs presxs da revolta.

Com essa premissa, vários interesses começaram a confluir, construindo uma saída institucional em relação às prisões. De um lado se encontrava uma fração dos poderosos, partidos políticos e administradores das estruturas, que buscavam capitalizar politicamente essa mobilização, voltar a legitimar e se validar politicamente, bem como respaldar seus próprios candidatos a constituintes. A aposta destes setores é a desmobilização e a paz social após “solucionar” o problema dxs prisioneirxs políticxs, continuar com a institucionalização da revolta e limpar o processo constituinte.

De outro lado se encontram os distintos grupos e coletivos que nasceram nos últimos meses em apoio axs presxs políticxs da revolta, vários deles com partidos políticos ou candidatos constituintes por trás (basta cavar um pouquinho – não muito, só um pouco – para se da conta, para poder ver suas bandeiras), que somado a algumas organizações, buscam se legitimar frente aos poderosos (daí as inumeráveis e entediantes cartas escritas aos partidos, políticos, instituições etc. há mais de um ano), desejosos de mais democracia e mais direitos. São os excluídos desejosos de serem incluídos nas estruturas de dominação, quem não busca destruir a ordem imperante, mas reformar e melhorar o funcionamento de suas engrenagens.

Como evidência de tudo isso podemos ver, em novembro de 2020, a gestação de um “Grupo de iniciativa por la Liberación de los presos políticos”, que obviamente não se refere a todas as pessoas que poderiam ser consideradas presas políticas, mas somente, exclusiva e excludentemente aquelas presas durante a revolta. Aquela iniciativa está (ou estava) conformada por Agrupación de Familiares de Presos Políticos Santiago 1, Agrupación de Familiares y Amigos de Presos de Políticos, Agrupación de Familiares y Amigos de Prisioneros Políticos Guacoldas, Agrupación de Prisioneros Políticos de la Granja em conjunto com uma série de deputados do Partido Comunista, Revolución Democrático e Partido Progresista.

Já não se buscava mais forçar uma saída política, como ocorre com inumeráveis greves de fome, mobilizações de rua ou lutas intermediarias, mas diretamente ser parte do grupo e auxiliar os poderosos. Como boa negociação da mão do poder, muitos desses grupos foram se transmutando e acomodando suas posições a medida que foram caminhando com os poderosos, como veremos mais adiante.

Presxs da revolta

Como é sabido, a realidade dxs presxs da revolta é diversa e distinta, como o é e tem sido a própria revolta: estudantes, periféricxs, conscientes, posições revolucionárias, democratas, indignação, cidadanismo, apoio à nova constituição, contra todas as constituições etc.

Acreditar em uma identidade própria ou uma forma lógica das pessoas presas no contexto da revolta não somente é irreal e poderia implicar em uma falsificação histórica, mas gera continuamente o choque contra a muralha dos fatos. As contínuas petições/recomendações/sugestões para que xs presxs da revolta se organizem, buscando comparar com outros momentos de encarceramento massivo (ditadura ou durante a década de 1990) são completamente distantes da realidade. E isso não por uma mudança no grau de repressão e nem pelas modificações na realidade carcerária entre gendarmes e presxs, nem tampouco pelo tipo de prisão, mas justamente pelas diferentes trajetórias e posicionamentos das pessoas. Muitas vezes existindo posturas completamente distintas, contraditórias ou atém mesmo antagônicas tanto políticas como no cotidiano.

É esta a realidade dxs presxs da revolta e sua dinâmica a nível nacional. Da mesma forma existe uma série de particularidades em cada prisão e inclusive em cada módulo, onde muitas vezes existe um desconhecimento da história recente (ou inclusive atual) da prisão política ou até mesmo de outras realidades de prisioneirxs da revolta no mesmo território.

Em maio de 2020, “Algunos anarquistas presos en el módulo 14 de santiasco 1” alertavam sobre a “danosa ‘romantização’ que a rua e a luta deram a este módulo de ‘manifestantes’. Os ânimos da luta não somente se dissolveram na rua, houve um efeito real na capacidade de coordenação entre nós e o exterior”.

É dentro desta grande variedade que existem exceções que levantaram distintas iniciativas dentro, desde bibliotecas, barrotazos 2 e gestos que xs permite se posicionar de uma ou outra maneira.

Na atualidade, desde o plano prático, nos encontramos com pequenos grupos de presxs em regiões e uma quantidade maior em Santiago, principalmente na prisão/empresa (concedida) Santiago 1. Grande parte de quem caiu por ações associadas à revolta começou a habitar o módulo 14, destinado em um primeiro momento exclusivamente para elxs, e logo em seguida foram transferidxs para o módulo 12, onde estão até hoje. Quem caiu após a quarentena, durante o recrudescimento das manifestações, começou a habitar o módulo 3, isso sem falar dos vários casos de prisioneirxs da revolta que se encontram dispersos em outros módulos por distintas circunstâncias.

Ainda no sentido prático, várias pessoas conseguiram sair com a modificação de medida cautelar, outras aceitaram um julgamento abreviado e conseguiram cumprir sua pena em “liberdade vigiada”, há também aquelas que acabaram de ser presas e outras (até agora somente um punhado) foram condenadas à prisão. A realidade é sumamente dinâmica e versátil entre xs presxs da revolta.

Apesar de terem saído alguns textos escritos por elxs, alguns assinados, outros anônimos e alguns agrupados como “Presxs Subversivxs em Resistência”, a família adquiriu um papel relevante tanto como porta-voz como na integração de determinadas instâncias.

Indulto/Anistia

Antes de continuar, uma breve e simples definição a respeito destas medidas excepcionais do Estado de intervir em um processo jurídico: o Indulto “perdoa” a pena do delito, do já condenado; enquanto que a Anistia “perdoa” o próprio delito pelo qual a pessoa é processada. O Indulto assume que houve um delito e um castigo, mas é o castigo que se perdoa enquanto que a Anistia assume que realmente o delito não foi tal devido à condições especiais do contexto no qual ocorreram.

Apesar de inicialmente os distintos grupos começaram a avaliar a possibilidade de uma saída política, ela sempre foi pensada mediante mobilizações de rua, as denúncias e a agitação levariam o poder a um caminho no qual a Anistia parecia ser a saída mais adequada para a situação dxs presxs da revolta.

Ao que parece, a criação e as negociações no interior do “Grupo de iniciativa” fizeram com que, rapidamente, vários discursos e posições se transmutassem. Desse modo alguns grupos tiveram que abandonar a sua defesa da Anistia como também reescrever seus panfletos e/ou declarações. Agora a Anistia não serviria e nem seria possível, mas o melhor caminho seria o Indulto. E porque? Alguns setores das velhas organizações de Direitos Humanos, verdadeiros traficantes da memória e dxs mortxs, se incomodavam com o conceito de “Anistia” já que lhes recordava a aplicação de tal ferramenta durante a ditadura (com uma memória curta e repleta de lugares comuns). De igual maneira, o Indulto é menos lesivo ao Estado de direito, já que de uma ou outra forma reconheceria o funcionamento das investigações, das polícias, dos tribunais e somente se perdoaria a sentença.

Finalmente em 9 de dezembro de 2020 os senadores participantes do “Grupo de iniciativa” começaram a tramitação da lei de Indulto axs presxs do “estallido social”, projeto que finalmente, durante seu desenvolvimento, resultou ser um híbrido entre Anistia e Indulto.

No contexto destes debates públicos, em espaços de solidariedade, dentro da prisão e também em múltiplos conflitos quanto a participação ou vínculo de representantes de instituições, xs “Presxs subversivxs en resistencia”, desde Santiago 1 lançaram um comunicado listando uma série de requisitos “seja para a anistia ou indulto” e mostrando seu total rechaço a convivências com os poderosos.

Outros espaços decidiram seguir apostando na Anistia, ainda que, na prática, o único projeto existente fosse o de Indulto. Desenvolvendo desde então uma campanha e uma presença nas ruas pela “Liberdade imediata sem condições” sem necessariamente fazer referência ao Indulto.

Ao longo da história e em diferentes momentos históricos, ambas ferramentas (Indulto ou Anistia) foram utilizadas pelo Estado de acordo com o momento e com perspectivas históricas determinadas. Em alguns momentos essas possibilidades foram vistas e apoiadas por distintos grupos revolucionários, como exemplo podemos mencionar os Indultos do início de 2000 alcançados por meio de mobilização e luta por prisioneirxs subversivxs pertencentes a grupos armados dos anos 1990, condenadxs a altíssimas penas de prisão, o que lhes permitiu sair da prisão, alguns dxs quais caíram anos depois ao continuar lutando.

Por outro lado, houveram diferentes Anistias durante a ditadura que conseguiram liberar várixs prisioneirxs políticxs, como também assegurar a impunidade judicial de milicos.

Nos anos 1970 houve o Indulto fornecido pela Unidade Popular a miristas (integrantes do Movimiento de la Isquerda Revolucionária) e vopistas (integrantes da Vanguardia Organizada del Pueblo), como também uma série de Anistias decretadas pelo Estado após conflitos sociais, buscando refundar sua legitimidade e paz social. No plano internacional podemos lembrar das lutas dos Grupos Autónomos na Espanha pela Anistia total de todxs xs prisioneirxs revolucionárixs dos distintos grupos armados daquela época ou também das referências à “Anistia geral” feitas pelos setores mais radicalizados do ETA (Euskadi Ta Askatasuna) na prisão.

Isso somente para pincelar com um pouco de história, pois existem milhares de experiências mais. As críticas ao Indulto como ferramenta incidem no fato de ser considerada o pedido de perdão e clemência ao Estado; enquanto que as críticas à Anistia podem ser encontradas principalmente nos escritos de Alfredo Bonanno, que afirma que a apelação a tal medida é um chamado a pôr fim ao enfrentamento e inclusive negar a existência do antagonismo. O certo é que ambas são medidas do Estado, fórmulas que quando forem conseguidas por meio da luta, sem arrependimento, com dignidade e posições revolucionárias firmes, podem significar uma vitória parcial em determinadas lutas. Esta lógica é aplicável quando se pensa desde posições revolucionárias, situação que muda quando compreendemos que em uma revolta social, quem participa no combate de rua, a pessoa que está presa ou quem foi golpeada pela repressão não tem porque ser necessariamente companheira de luta e, portanto, as avaliações da realidade são muito diferentes. O principal risco está na crença, na fé no Estado, na justiça e em compartilhar o significado dos conceitos com o inimigo: o perdão, a paz, o arrependimento, a democracia, os direitos humanos e a clemência.

Por todas as pessoas sequestradas pelo poder

Reconhecemos a condição de reféns do Estado dxs presxs e nessa situação assumimos que as distintas batalhas que têm ocorrido e sempre ocorrerão implicam em negociar com inimigo desde a correlação de forças, assim têm sido as mobilizações, as greves de fome, o reconhecimento de “direitos prisionais”, incluindo alguns julgamentos ou tratamentos médicos. O equilíbrio entre arrancar uma decisão favorável seja mediante uma greve de fome ou intensas mobilizações de rua não é e nem será o mesmo que se sentar, forjar, administrar e engolir saídas políticas em conjunto e desde o próprio sistema. Mesmo quando possa existir um diálogo com o poder e o inimigo, este não será desde o mais baixo clientelismo político, convivência ou buscando sua validação.

A centralidade que a luta pela liberdade dxs presxs da revolta tem tido é importante e foi relevante sobretudo para a própria mobilização de rua. Instalar a prisão como uma realidade possível, viabilizar o invisível do cárcere e ir posicionando uma crítica aguda ao Estado e suas prisões é um desafio permanente no fecundo campo da inestabilidade social aberta desde outubro de 2019. Contudo, esta luta não deve esquecer das contínuas batalhas dxs demais companheirxs prisioneirxs, nos referimos pontualmente a Juan Aliste, Marcelo Villarroel, Joaquín García, Juan Flores, Mauricio Hernández, Pablo Bahamondes, Francisco Solar, Mónica Caballero e Felipe Ríos, para quem, em alguns espaços de solidariedade, parece haver uma separação tácita entre xs presxs “do bem” e “do mal”. Esquecer dos discursos vitimistas não é somente importante, como também uma necessidade para a sobrevivência da solidariedade revolucionária sem que seja asfixiada nos discursos democráticos de direitos humanos.

O projeto de Indulto seguirá seu caminho, se ele permite que algumas pessoas presas no contexto da revolta voltem às ruas, ótimo, se seu projeto fracassar (basta recordar a ameaça de veto ao projeto, expressa pelo governo) nossa disposição tem de conseguir ultrapassar as fórmulas e cálculos dos poderosos. Combater e se mobilizar pelxs presxs da revolta, subversivxs, anarquistas e mapuches é um contínuo que não cabe naqueles acordos entre senadores e aquelas paródias de movimentos revolucionários dos anos 1980-90. Assumir as reais possibilidades de tirar companheirxs da prisão tem de ser um desafio para ultrapassar a mera “assistência” à sua prisão ou as referências abstratas e etéreas que impedem a materialização das solturas

Lembrar que é na rua, na propaganda e na agitação multiforme onde subjaz nossa força e vitalidade. É justamente desde a oposição total a este mundo que podemos gerar estratégias para tirar xs companheirxs das prisões e enfrentarmos obstáculos concretos, como a modificação do decreto 321, que freia a “liberdade condicional”, ou a continuidade de penas por parte da procuradoria militar a prisioneirxs revolucionárixs (Marcelo Villaroel e Mauricio Hernandez), bem como os próximos julgamentos que virão a curto prazo contra prisioneirxs da revolta, axs quais são exigidas décadas de prisão.

Destruir e superar tais obstáculo serão conquistas específicas e palpáveis da luta, como têm sido a volta das visitas com um mínimo grau de dignidade. Tudo dependerá de nós e dxs companheirxs na prisão, as vontades e os gestos concretos.

Claro, podemos nos conformar com isso, com os ganhos mínimos, podemos situar que a mão do Estado está por trás de tudo, onde qualquer luta estará perdida de antemão ou simplesmente podemos combater tudo que temos a combater para continuar a batalha milimétrica dentro das prisões, tirar compas do cárcere para que das grades e das cadeias sobrem apenas ruínas.

Presxs da revolta para as ruas, ruas para a revolta!

A derrubar a modificação da 321! A combater a prisão perpétua encoberta!

Que a revolta arrebente os muros das prisões”

Publicación Refractario

Fevereiro de 2021


1 Nota de Tradução: apesar da expressão “presx políticx” ser utilizada poucas vezes no decorrer do texto, sendo priorizado mais os termos “presx subversivx” ou “presx da revolta”, a partir de uma perspectiva abolicionista penal nós consideramos importante ressaltar que toda prisão é política. Admiramos e saudamos o cuidado e sensibilidade com os quais essa discussão é apresentado no texto e o modo pelo qual este repercute as práticas em geral da luta anticarcerária que vem se fortalecendo no território dominado pelo Estado chileno, sobretudo ao tratar da continuidade da luta dentro do cárcere e da ação de algumas pessoas sequestradas pelo Estado de se assumirem enquanto presas subervisas. Por entendermos a importância deste debate e por buscarmos estimulá-lo permanentemente, tomamos a liberdade de escrever esta nota, pois em nossa perspectiva o uso de determinados termos não se limita a um preciosismo linguístico, mas possui efeitos concretos na luta pelo fim da sociedade carcerária e pela liberação total.

2 N.T.: tipo de manifestação ocorrida dentro das prisões que consiste em fazer ruído dentro das celas, batendo nas grades, barrotes em espanhol.

Democracia: a Tentação Patriótica

Nesse artigo, o anarquista e pesquisador Uri Gordon analisa os usos da palavra democracia e a aproximação do discurso democrático, como estratégia de alguns anarquismos contemporâneos. O texto enfatiza as diferenças entre as práticas libertárias e as democráticas – enquanto governo representativo – e os diferentes significados de palavras comuns a ambos, como liberdade e igualdade. Leia os artigos da coleção de críticas anarquistas à democracia clicando aqui.


Como a maioria dos conceitos políticos, democracia é uma noção “essencialmente contestável” — seu significado é, em si próprio, um campo de batalhas. O que as ideologias políticas fazem, como práticas vulgarizadoras de expressão política, é “desproblematizar” ou fixar o significado desses conceitos, situando-os em relações específicas. O termo “igualdade”, por exemplo, pode significar equitativo acesso às vantagens (liberalismo), equitativa responsabilidade para com a comunidade nacional (fascismo), ou equitativo poder em uma sociedade sem classes (anarquismo). Nessa leitura, não há como objetivamente determinar o significado desses conceitos — o que existe são usos distintos, cada um deles regularmente agrupado com outros conceitos, em uma ou outra enunciação ideológica.

Gostaria, portanto, de suspender a discussão a respeito da compreensão conceitual “apropriada” de democracia e, em vez disso, questionar as escolhas estratégicas do emprego desse termo. Vale a pena, para anarquistas, ressignificar “democracia” de modo a apontar para a eliminação do Estado e das formas de dominação? Indica-se dois argumentos. O primeiro é que as invocações anarquistas de democracia são um fenômeno relativamente novo e tipicamente estadunidense. O segundo é que essa invocação é problemática, porque sua estrutura retórica e a segmentação por públicos-alvo quase inevitavelmente terminam recorrendo a sentimentos patrióticos e mitos da origem nacional.

Até a mais democrática das democracias…

Historicamente, “democracia” não é uma palavra que anarquistas costumaram usar em referência a suas próprias perspectivas e práticas. Uma pesquisa nos escritos de proeminentes ativistas e teóricos anarquistas do século XIX e início do século XX revela que, nas raras ocasiões em que empregaram esse termo, ele foi usado em seu sentido convencional, estatista, para se referir às instituições democráticas e aos direitos efetivamente existentes no Estado burguês. Democracia significava governo representativo, como oposto à monarquia ou à oligarquia.

Pierre-Joseph Proudhon claramente viu a democracia nesses termos. No capítulo 1 de O que é a Propriedade, publicado em 1840, Proudhon escreveu:

“O povo, tanto tempo vítima do egoísmo monárquico, julgou libertar-se definitivamente ao declarar que só ele era soberano. Mas o que era a monarquia? A soberania de um homem. O que é a democracia? A soberania do povo ou, melhor dizendo, da maioria nacional. (…) mas afinal não há revolução no governo visto que o princípio continua a ser o mesmo. Ora, hoje mesmo temos a prova de que não se pode ser livre na mais perfeita democracia”[1].

A questão para Proudhon é a soberania em si, e não quem ou o que a legitima. No capítulo 7 de A Filosofia da Miséria, livro de 1847, Proudhon também objeta qualquer “sistema de autoridade, seja qual for sua origem, monárquica ou democrática”[2]. Em nenhum momento Proudhon faz distinções entre uma “real” e uma “assim chamada” democracia; o termo simplesmente se refere ao governo exercido por meio da representação política.

Essa abordagem atravessa a tradição anarquista. Em 1873, no livro Estatismo e Anarquia, Mikhail Bakunin ataca os marxistas afirmando que “por governo popular (…) entendem o governo do povo por meio de um pequeno número de representantes eleitos pelo povo (…) uma mentira que esconde o despotismo da minoria dirigente, mentira ainda mais perigosa por ser apresentada como a expressão da pretensa vontade popular”[3]. Alexander Berkman ressoou uma crítica semelhante no periódico Mother Earth, de outubro de 1917:

“A democrática autoridade do governo da maioria é o último pilar da tirania. O último, e o mais forte (…) o despotismo que é invisível porque não é personificado, poda a paixão de Sansão e o deixa sem vontade. Ai do povo onde o cidadão é um soberano cujo poder está nas mãos de seus mestres! É uma nação de escravos solícitos”[4].

E, finalmente, Errico Malatesta, em texto de 1924, também trata a “democracia” apenas em termos de um sistema de governo:

“Até mesmo na mais democrática das democracias, é sempre uma pequena minoria que domina e que impõe pela força a sua vontade e os seus interesses. (…) Assim, desejar realmente o ‘governo do povo’ no sentido em que cada um possa fazer valer sua própria vontade, suas próprias ideias, suas próprias necessidades, é fazer com que ninguém, maioria ou minoria, possa dominar os outros; dito de outra forma, é querer necessariamente a abolição do governo, isto é, de toda organização coercitiva, para substituí-la pela livre organização daqueles que têm interesses e objetivos comuns”[5].

Em todos esses casos, não há tentativa de alinhar o anarquismo à democracia, ou de construir esta última em quaisquer outros termos que não aqueles das instituições democráticas convencionais. A associação entre anarquismo e democracia vai aparecer somente por volta dos anos 1980, nos escritos do estadunidense Murray Bookchin.

A negação de Bookchin ao anarquismo no final de sua vida é irrelevante aqui, pois, desde o fim dos anos 1970, suas considerações sobre a democracia permaneceram consistentes, quando eram formuladas em termos de uma estratégia recomendada aos anarquistas. Ecoando a crítica de Martin Buber acerca da expansão do “princípio político” de poder descendente e da autoridade centralizada à custa do “princípio social” de relações horizontais e espontâneas[6], Bookchin vê como única via promissora para a resistência a “descoberta da comunidade, da autonomia, de uma relativa autossuficiência, autoconfiança e democracia direta” em nível local que, fomentada “pela sua própria lógica, se encontrem em oposição explícita às crescentemente invasoras instituições políticas”[7]. Essa visão é claramente de um localismo anarquista, baseado em “assembleias populares livres”, “coletivização dos recursos”, e delegação de funções limitadas a temas de coordenação administrativa. Entretanto, a questão permanece: deve ser esse arranjo promovido pela linguagem da democracia (tanto direta quanto participativa)? Qual é o apelo dessa linguagem, em primeiro lugar?

Vendendo o Anarquismo como Democracia

Colocado de forma bem direta, a associação do anarquismo com a democracia é uma manobra retórica de duas vias que visa aumentar a atração de públicos mainstream pelo anarquismo. O primeiro componente dessa manobra é carregar nas conotações positivas que a democracia contém no discurso político estabelecido. Em vez da imagem negativa (e falsa) do anarquismo como algo estúpido e caótico, reforça-se uma imagem positiva que pega carona na “democracia” como um termo amplamente aprovado na mídia de massa, no sistema educacional, e no discurso do dia a dia. A aprovação aqui não é a de um conjunto específico de instituições ou procedimentos de tomada de decisão, mas a da associação da democracia com liberdade, igualdade e solidariedade — a dos sentimentos que entram em ação quando a democracia é posta em oposição binária à ditadura, sendo celebrada como o que distingue os “países livres”, no Ocidente, dos outros regimes.

Já o segundo componente dessa manobra é subversivo: ele procura retratar as sociedades capitalistas atuais como não sendo democráticas de fato, uma vez que elas alienam o poder da tomada de decisão do povo para colocá-lo nas mãos da elite. Isso equivale a um argumento de que as instituições e procedimentos que o público mainstream associa à democracia — governo por representação — não são, de fato, democráticos, ou são, no máximo, a realização muito limitada e estanque dos valores que eles dizem incorporar. A verdadeira democracia, nesse sentido, só poderia ser local, direta, participativa e deliberativa, sendo viável, em última estância, em uma sociedade sem Estado e sem classes. O objetivo retórico dessa manobra, como um todo, é gerar no público um sentimento de indignação por ter sido enganado: enquanto o apego emocional à “democracia” é confirmado, a crença de que ela realmente existe é negada.

Há dois problemas com essa manobra, um conceitual e outro mais substancial. O problema conceitual é que ela introduz uma noção verdadeiramente idiossincrática de democracia, tão ambiciosa a ponto de desqualificar quase todas as experiências políticas que se enquadrem em um entendimento comum desse termo — incluindo todos os sistemas eleitorais nos quais os representantes não têm um mandato estrito e não são imediatamente revogados. Ao reivindicar que os regimes “democráticos” atuais não são de fato democráticos, e que a única democracia digna desse nome é uma versão de sociedade anarquista, os anarquistas estão pedindo para o povo reconfigurar seu entendimento da democracia de uma forma bastante extrema. Embora seja possível manter esse novo uso com coerência lógica, ele é tão rarefeito e contrário ao uso comum que seu potencial como pivô para a opinião pública é altamente questionável.

 “Ocupe a América: Somos os 99%”
“Ocupe a América: Somos os 99%”

O segundo problema é mais grave. Ao mesmo tempo em que a associação com a democracia pode buscar apelo apenas em suas conotações igualitárias e libertárias, ela também enreda o anarquismo com a natureza patriótica do orgulho na democracia, que ele próprio subverte. O apelo não é simplesmente o de um desenho abstrato para as instituições participativas, mas de instituições participativas recuperadas da tradição revolucionária estadunidense. Bookchin é bem explícito quanto a isso quando convida os anarquistas a “começarem a falar no vocabulário das revoluções democráticas”[8] ao passo em que desenterrariam e ampliariam seu conteúdo libertário:

“Esse passado burguês [americano] tem características libertárias: as town meetings [assembleias municipais] da Nova Inglaterra. Controle municipal e local, o mito americano de que quanto menos governo, melhor, a crença americana na independência e no individualismo. Todas essas coisas são antiéticas para uma economia cibernética, uma economia corporativa e um sistema político altamente centralizado (…). Eu sou a favor da democratização da república e da radicalização da democracia, e de que isso seja feito no nível da base: o que envolverá o estabelecimento de instituições libertárias que sejam totalmente consistentes com a tradição americana. Não podemos voltar à Revolução Russa ou Espanhola. Essas revoluções são alheias ao povo norte-americano”[9].

As formulações de Cindy Milstein em seu artigo “Democracia é Direta” funcionam explicitamente no sentido de preencher esse programa, procurando argumentar a partir dos mitos de origem estadunidenses:

“Dado que os Estados Unidos são mantidos como um pináculo da democracia, parece particularmente apropriado voltar às tensões de uma democracia radicalizada que lutou tão valentemente e perdeu tão esmagadoramente na Revolução Americana. Precisamos nos dedicar a essa projeto inacabado (…). Como todas as grandes revoluções modernas, a Revolução Americana gerou uma política baseada em ‘assembleias cara a cara’ confederadas dentro e entre cidades (…). Aquelas de nós que vivem nos Estados Unidos herdaram esse autoaprendizado em democracia direta, ainda que apenas em ecos vagos (…) [são] valores arraigados que muitos ainda consideram: independência, iniciativa, liberdade, igualdade. Eles continuam a criar uma tensão muito real entre autogestão de base e representação de cima para baixo”[10].

O apelo ao consenso de que a política estadunidense foi fundada em uma revolução popular e democrática, genuinamente animada pela liberdade e igualdade, está destinado a atingir sentimentos patrióticos existentes, mesmo quando enfatiza suas consequências subversivas. Milstein até invoca o Discurso de Gettysburg de Abraham Lincoln quando critica as agendas reformistas que “trabalham com uma noção de democracia circunscrita e neutralizada, na qual a democracia não é do povo, não vem do povo e nem é pelo povo, mas é apenas supostamente em nome do povo”[11]. Ainda assim, esse é um movimento perigoso, uma vez que se fundamenta em uma crítica limitada do patriotismo em si, e permite que os mitos de origem aos quais ele apela permaneçam intocados pelas críticas da identidade coletiva e da exclusão colonial. Ao notar a necessidade de não branquear as injustiças raciais, de gênero e outras que foram parte do “evento histórico que criou este país”, Milstein só pode oferecer uma exortação genérica para “lidar com a relação entre essa opressão e os momentos liberadores da Revolução Americana”[12].

Dado que esse apelo é voltado a participantes não-anarquistas, há pouca ou nenhuma garantia de que tal luta poderia realmente acontecer. O sentimento patriótico ao qual se apela aqui é mais frequente do que um componente de uma narrativa nacionalista maior, que dificilmente participa de uma crítica decolonial (que, por si só, deveria ter muitas dúvidas acerca das raízes iluministas ocidentais que marcam as noções de cidadania e esfera pública). A celebração da democracia nos termos que invocam diretamente aos primórdios da política estadunidense pode acabar reforçando, em vez de questionar, a fidelidade ao Estado-nação que reivindica, ainda que falsamente, ser a portadora da herança democrática do período colonial. Isso é especialmente pungente no contexto das recentes ondas de mobilização, que revelam precisamente essa mistura de quintessência de meios de organização e ação influenciados por anarquistas, e discursos claramente patrióticos e nacionalistas — da revolução egípcia que abraça as forças armadas, ao sentimento jeffersoniano que impregna o movimento Occupy, até o nacionalismo absoluto da revolução ucraniana.

“As recentes ondas de mobilização, que revelam precisamente essa mistura de quintessência de meios de organização e ação influenciados por anarquistas, e discursos claramente patrióticos e nacionalistas.”

Há, realmente, uma razão para perscrutar essa questão, qual seja, a dos sentimentos democráticos e nacionalistas que foram expressos por movimentos pelos quais os anarquistas, de fato, têm boas razões para sentir certa afinidade. O mais proeminente desses são as lutas comunitárias em Chiapas, no sudeste do México, conectadas ao Exército Zapatista de Libertação Nacional (EZLN), e o movimento revolucionário em Rojava (ou Curdistão Sírio). Ambos não apenas empregaram a linguagem da democracia para expressar formas de sociedade descentralizadas e igualitárias, mas também para avançar uma agenda explícita de libertação nacional. O movimento curdo endossou Bookchin publicamente como uma fonte de inspiração. Isso significa que os anarquistas estão errados ao manter a solidariedade ativa com esses movimentos? Minha resposta é “nã o” — mas devido a uma diferença crucial que também reclama o argumento geral acima. Usar a linguagem da democracia e de libertação nacional não é mesma coisa para as minorias sem Estado no Sul Global e para os cidadãos de países capitalistas avançados, nos quais a independência nacional já é um fato consumado. Os primeiros não apelam para mitos patrióticos de origem engendrados por um Estado-nação existente, com seus privilégios e injustiças, mas a uma possibilidade de descentralização radical, diferente e não experimentada, que engendra uma “libertação nacional” potencialmente sem Estado. Certamente, isso carrega seu próprio risco, mas os anarquistas no Norte não estão em posição de pregar sobre esses assuntos.

Assim, nós voltamos ao ponto principal: ao menos para anarquistas nos EUA e no Oeste Europeu, a escolha de usar a linguagem da democracia é baseada no desejo de mobilizar e subverter uma forma de patriotismo que é, em última análise, vinculada ao establishment. Com isso, corre-se o risco de fortalecer os sentimentos nacionalistas que pretende minar. Os anarquistas sempre tiveram um problema de imagem pública. Tentar desfazer isso através de uma conexão com o mainstream democrático e os sentimentos nacionalistas é um risco que não vale a pena.


Uri Gordon é professor na Faculdade de Ciências Sociais da Universidade de Nottingham, Reino Unido. Contato: uri.gordon@nottingham.ac.uk.


Notas:

  1. Pierre-Joseph Proudhon. What is Property?. Traduzido por Benjamin Tucker. New York, Humboldt, 1890 [1840].
  2. Pierre-Joseph Proudhon. The Philosophy of Poverty. Traduzido por Benjamin Tucker. Cambridge, Wilson, 1888 [1847].
  3. Mikhail Bakunin. Statism and Anarchy. Traduzido por Marshall S. Shatz. Cambridge, Cambridge University Press, 1990 [1873].
  4. Alexander Berkman. “Apropos” in Mother Earth Bulletin, 1.1, 1917. Disponível em https://libcom.org/library/mother-earth-bulletin (acesso em: 14/02/2017).
  5. Errico Malatesta. “Democracy and Anarchy” in The Anarchist Revolution: Polemical Articles 1924-1931. Traduzido por Gillian Fleming e Vernon Richards. London, Freedom, 1995 [1924].
  6. Martin Buber. “Society and the State” in Pointing the Way. Traduzido por Maurice Friedman. New York, Harper, 1957 (Reprinted in Anarchy, 54).
  7. Murray Bookchin. The American Crisis II. Comment 1.5. 1980. Disponível em http://dwardmac.pitzer.edu/Anarchist_Archives/bookchin/BookchinCW.html (acesso em: 14/02/2017).
  8. Murray Bookchin. “Radicalising Democracy (interview)” in Kick It Over, n. 14, 1985. Disponível em http://dwardmac.pitzer.edu/Anarchist_Archives/bookchin/raddemocracy.html (acesso em: 14/02/2017).
  9. Idem.
  10. Cindy Milstein. “Democracy is Direct” in Anarchism and its Aspirations. Oakland, AK Press, 2010 [2000], disponível em https://theanarchistlibrary.org/library/cindy-milstein-anarchism-and-its-aspirations.
  11. Idem.
  12. Ibidem.

Do Genocídio Pandêmico a Um Levante Fascista – O que Precisamos para Barrar Bolsonaro

Agentes de saúde antes de examinar o corpo de uma pessoa em durante o surto de coronavírus em Manaus.

A pandemia da Covid-19 no Brasil chega a números absurdos 210 mil pessoas mortas, cidades entrando em colapso. Sabíamos que o bolsonarismo deixaria um legado de repressão, violações e morte. Mas a crise sanitária está elevando as consequências ao extremo da devastação humana e ecológica. Em Manaus falta oxigênio e vítimas da Covid-19 e outras enfermidades morrem sufocadas enquanto o presidente e seus ministros dizem que “não podem fazer nada”. Não existe mais auxílio emergencial e os despejos seguem mesmo durante a pandemia, a letalidade policial aumentou 7% em relação à 2019 (cerca de 6 mil execuções) e o desemprego atinge índices históricos.

Para agravar o cenário, o presidente se isola entre a extrema-direita global, negando a pandemia, sabotando qualquer iniciativa e discursos médicos-científicos que viabilizem a vacinação e recomendando falsos “tratamentos precoce” da doença com hidroxicloroquina e vermífugos – ideia que até mesmo Donald Trump abandonou meses antes de perder as eleições.

Bolsonaro é o último chefe de Estado que segue como apoiador declarado, e ainda fiel, dos delírios de Trump, reproduzindo sua narrativa de fraude eleitoral e sendo o único líder mundial que apoia os discursos que justificam a invasão do Congresso estadunidense por uma multidão de fascistas no dia 6 de janeiro.

Multidão invade o Capitólio impulsionada por discurso de Trump com bandeiras racistas e neonazistas: serão eles a imagem do futuro?

E vai além: Bolsonaro é o único caso do mundo de um candidato que mesmo tendo ganho a eleição alegou, sem provas, que o sistema eleitoral brasileiro é fraudulento e que, caso o país não abandone as urnas eletrônicas, voltando as antigas cédulas para votação de papel, haverá manipulação também na eleição presidencial de 2022. Com isso, sinaliza que seria necessário haver uma reação à suposta fraude do futuro, nos moldes da invasão ao Capitólio que ele acaba de celebrar.

Por mais que certas mitologias insistam, a história não se repete. Mas é fácil encontrar padrões de atuação política e discursos entre grupos ou líderes mundiais que compartilham interesses e um mesmo momento histórico. Como o fracassado Trump, Bolsonaro surfa na mobilização de grupos sociais que transformam seu ressentimento em ação política autoritária, supremacista e estridente. Essa onda que garante uma base de apoio reduzida, mas fiel e ativista. Seus apoiadores funcionam por meio de uma lógica identitária onde fatos ou dados científicos não têm relevância se não reforçarem suas próprias crenças e nem favorecerem as políticas do seu líder. Nesse caso, seguir recomendações médicas não é uma questão de saúde e cuidado de si e dos outros, mas apenas uma polêmica na disputa limitada entre a extrema-direita reacionária e social-democracia gestora, identificada, no Brasil, com os anos de governo do PT.

Nessa lógica de identificação sectária e paranóica, sua base mais radical é inflamada para realizar nas ruas e outros locais o que o discurso do presidente e seu time (ainda) não podem fazer abertamente: a violência física e o assassinato direto da oposição. Embora saibamos que suas políticas são responsáveis pela morte de milhares de pessoas, seja na pandemia, nos desastres ambientais ou pela mão da polícia, o discurso de Bolsonaro e sua família ainda é tratado como uma “metáfora” ou como “mera brincadeira” por seus defensores mais poderosos da mídia ou em cargos públicos. Quando diz que a “ditadura matou pouco”, ou que o que o Brasil passou entre 1964 à 1985não foi uma ditadura”, ou mesmo quando diz que vai “metralhar a esquerda”, Bolsonaro se foge de qualquer responsabilidade alegando que não está falando literalmente ou está sendo mal interpretado. Mas, assim como Trump incentivando (e depois elogiando) neonazistas que atiraram e mataram manifestantes antirracistas em agosto 2020 e invadiram o Congresso em janeiro de 2021 para manter seu governo no poder, o comportamento de Bolsonaro abre caminho para que seus apoiadores se sintam ainda mais encorajados a agir no mundo real.

As políticas de liberação de armas no Brasil e propostas de isenção de impostos sobre elas caminham para facilitar o acesso a armamentos para quem tem dinheiro para isso e se identifica com o discurso reacionários do presidente. As 180 mil novas armas registradas em 2020 já são um recorde, representando um aumento de 91% em relação a 2019 e um aumento geral de 183% desde o início do governo.

Bolsonaro demonstra querer formar uma base radicalizada – e armada – para defender seus interesses nas ruas conforme o exemplo trumpista. No contexto estadunidense, onde a posse legal de armas como pistolas ou fuzis já é parte da cultura, Trump foi capaz de insuflar seus apoiadores até que um de seus apoiadores, membro de uma milícia supremacista, matou duas pessoas e feriu uma terceira com tiros de AR-15 em agosto de 2020, num protesto antirracista em Kenosha, com a conivência da polícia.

Com tantas novas armas nas mãos de pessoas que se influenciaram pela propaganda bolsonarista, não é difícil imaginar manifestações de onde partidários do presidente acabem abrindo fogo ou praticando outras formas de violência contra outros manifestantes ou minorias que já são alvo do racismo, sexismo e xenofobia.

E se há alguma dúvida quanto a atuação da polícia, os recentes esforços do governo federal em tirar o controle das Polícias Militar e Civil dos governos estaduais e transferi-lo para Brasília (revisão do Projeto de Lei nº 4.363, de 2001), revelam o interesse de centralizar o comando das forças policiais, assim como acontece com as Forças Armadas. Vale lembrar que o golpe de estado organizado pela extrema direita na Bolívia em 2019 foi executado pela polícia, sem que o Exército tentasse impedir.

Além disso, Bolsonaro concede agrados e praticamente se tornou um paraninfo oficial de formaturas em academias de polícia. A polícia é uma das bases políticas mais sólidas de Bolsonaro, e o presidente constantemente encaminha propostas que fortalecem esse apoio. Como a que amplia o excludente de ilicitude para a polícia, isentando policiais de punição por qualquer ato ilegal cometido em serviço, ou seja: estimulando para que matem ainda mais!

Sobre a Violência

O discurso armamentista da direita é baseado na antiga ideia de que o “cidadão de bem” deve ter o direito de defender sua propriedade. Numa sociedade capitalista e patriarcal, isso significa: homens brancos, possuidores de imóveis ou terras com liberdade para usar a violência contra quem não tem. O Estado, que detém o monopólio da violência legal, mas garante “legitimidade” para que o rico possa matar pobres quando se sentir ameaçado – mas jamais vai tolerar que pobres, pretos, mulheres, indígenas e outros grupos marginalizados possam se defender da mesma forma contra agentes do Estado ou do Capital. A autodefesa é negada para todos esses grupos. Em outras palavras, só pode se defender quem já tem a proteção do Estado, como uma extensão da defesa ao direito de propriedade. E quem já é alvo, deve permanecer sem defesa ou sofrer duras punições casto tente revidar.

Mas não é somente a direita que trabalha para manter esse monopólio da autodefesa. Quando parte da esquerda condena protestos “violentos”, os bloqueios, o vandalismo, a desobediência e o contra ataque à violência policial, ela está complementando o mesmo discurso armamentista de Bolsonaro e seus apoiadores. Mesmo sem uma intenção explícita, as consequências de seu discurso pacificador afirmam: esses corpos não têm o direito de se defender, não podem revidar, devem traduzir seu ódio e sua insatisfação para um canal “legítimo” dentro de instituições que foram criadas pela elite para controlá-los e silenciá-los. Desnecessário dizer que quem concede essa legitimidade é a mesma lei burguesa que acolhe a violência policial e criminaliza qualquer resistência.

Vamos nos defender: a polícia sempre estará do lado do fascismo!

É compreensível que líderes de movimentos e partidos de esquerda reproduzam esse discurso, pois precisam da legitimação do poder estatal para disputar seus cargos e o controle das instituições. Se candidatos como Guilherme Boulos, que mandou integrantes do movimento sem-teto agredir adeptos da tática Black Blocs em atos em São Paulo, estimularem a desobediência e o confronto com a polícia, como esperar que a mesma polícia vá obedecer suas ordens caso sejam eleitos? Ou pior, como convencerão as pessoas que elas não devem desobedecer ou atacar a polícia quando ela estiver cumprindo as suas ordens?

Assistimos ao fim da representatividade democrática, desgastada e ineficiente. Com a perda da confiança em seus processos, o fracasso em prover o bem-estar geral dentro do neoliberalismo, a violência e o autoritarismo se tornam os únicos recurso para manter o comando do Estado. Sendo assim, nenhuma pessoa ou grupo que almeja um dia controlar esses governos e polícias irá nos salvar do fascismo, pois nunca agirão contra essas instituições que sempre abriram caminho e sustentaram regimes fascistas.

Nossa Ação é Direta

Em meio a um cenário de radicalização e promessa de violência, é inútil esperar que polícias, leis ou exércitos impeçam a escalada do fascismo dentro e fora das instituições. A história recente nos mostra que todo aparato criado sob a justificativa de reprimir extremistas e fascistas, especialmente após os atentados de 11 de setembro, acabam sendo usados contra movimentos sociais e minorias. Nos EUA pós 2001, movimentos anticapitalistas, antifascistas e de libertação animal e da terra (Animal Liberation Front e Earth Liberation Front), se tornaram os principais alvos do combate ao “terrorismo doméstico”, mesmo nunca causando uma única morte ou atentado contra qualquer pessoa.

Fascistas e outros tipos de nacionalistas e populistas como Bolsonaro, Trump, Modi, Putin e Erdogan tendem a levar a balança do jogo político todo para a direita. Por isso pensar apenas numa polarização entre direita x esquerda nas urnas não é o suficiente, pois exclui do espectro político movimentos pela libertação real, anticapitalista e antiautoritária. Políticos e grupos neoliberais e conservadores reconhecem que a gestão genocida de Bolsonaro ou a tentativa fracassada de golpe com apoio de neonazistas orquestrada por Trump, são extremos perigosos. Como vemos no embate entre o governador de São Paulo e o governo federal, neoliberais como João Dória, que oferece ração para estudantes e pessoas em situação de rua e que manda a PM atirar para matar, vão se apresentar como a oposição moderada ao bolsonarismo. O risco que os fascistas nos apresentam é tornar o antifascismo um mero resgate das políticas assim como eram ontem, ou pior, que as mantenha como estão hoje. Com o medo do que pode ser pior, a esquerda se torna paralítica ou até mesmo reacionária diante de rupturas radicais.

Não é raro surgir na mídia ou na internet discursos de petistas – ou do próprio Lula – acusando os levantes de 2013 de serem os responsáveis pela escalada conservadora e fascistóide que levou ao impeachment de Dilma Rousseff em 2016 e elegeu Bolsonaro. Ao fazer isso, tentam garantir que qualquer ação política fora de sua gestão eleitoral/estatal seja suprimida e sugerem que na era PT o povo brasileiro viveu uma plena revolução, com igualdade para todas e fim da opressão – como se os bancos não tivessem lucros recordes, a reforma agrária tenha sido paralisada, os movimentos abafados e a população carcerária aumentado dramáticos 620%.

As recentes mobilizações no Chile, Argentina, México e Estados Unidos conseguiram vitórias e importantes avanços porque não esperaram para revidar à violência policial e das leis. Decidiram romper com a institucionalidade e o controle burocrático da esquerda acostumada com os palácios, reformas paralisadoras e a conciliação de classe. Mesmo quando a luta é por mudanças legais e institucionais, como a legalização do aborto na Argentina ou a derrubada da constituição chilena em vigor desde a ditadura de Pinochet, a pressão direta das pessoas nas ruas, tomando, ocupando e bloqueando a normalidade são muito mais eficientes. Se quisermos saúde de gratuita de qualidade, o fim dos despejos e acesso a recursos e alimentos durante e após a pandemia, não podemos esperar que governantes se antecipem, e sim tomar a iniciativa em nossas mãos.

Anarcafeministas com os escudos roubados da polícia da Cidade do México, em 28 de setembro.

As mobillizações no Brasil em 2020, durante a pandemia, provam que os maiores sindicatos, movimentos e partidos da oposição são os últimos a tomarem alguma inciativa no mundo real para mudar algo. Uma das maiores e mais importante paralisação de trabalhadores foi organizada por entregadores e entregadoras rompendo com o isolamento da informalidade forçada pelos aplicativos de delivery. As mais combativas manifestações que barraram fisicamente carretas e passeatas bolsonaristas foram puxadas por torcidas e movimentos antifascistas nos quatro cantos do país.

É fundamental impedir os encontros e marchas para que fascistas não tenham espaço para fazer propaganda e recrutar novos membros paras suas fileiras. No entanto, percebemos que quando a esquerda está nas ruas em busca de palanque eleitoral e em defesa da institucionalidade, ela vai aceitar recuar e protestar contra o fascismo distante dos fascistas – como foi o caso de movimentos em São Paulo que negociaram a paz com a Polícia Militar para protestar alternadamente com os movimentos de direita.

Nota de repúdio: manifestantes em frente ao 3º Distrito Policial de Minneapolis, onde trabalhavam os assassinos de George Floyd.

Para o dia 23 de janeiro estão marcados diversos atos pelo Brasil contra a política genocida de Jair Bolsonaro e sua equipe. No entanto, não são apenas movimentos de base e a esquerda que estão convidando pessoas para irem às ruas no momento em que a popularidade do presidente despenca – a direita conservadora que vem rompendo com o governo que ajudou a eleger também está determinada a tentar limpar sua imagem voltar ainda mais fortes. Não podemos deixar que neoliberais e fundamentalistas cristãos monopolizem as revoltas que estão por vir e se tornem a imagem da resistência ao bolsonarismo nas ruas. Se falharmos, em breve veremos cenas como a do dia 6 de janeiro nos EUA, com manifestantes tentando novamente invadir o Congresso ou o STF em nome de um regime ainda mais autoritário e assassino.

Organizar a solidariedade, revidar avanços fascistas, tomar as ruas, ocupar para morar e plantar e, não menos importante, impor consequências aos ricos e ao Estado para pressionar por mudanças estruturais é a única garantia de que não teremos nossas demandas amortecidas ou cooptadas por pretensas lideranças. Os levantes do dia 20 de novembro de 2020, dia da Consciência Negra, após a morte de João Alberto em uma loja do Carrefour em Porto Alegre já nos mostram o potencial da coordenação informal em escala nacional da revolta que trazemos latente contra toda essa política de morte impregnado nas estruturas desse sistema.

Somente formas de ação popular e radicais vão ser capazes de defender comunidades de ataques fascistas e impedir que seus movimentos ocupem as ruas com suas ideias vazias e cheias de ressentimento.

A luta é radical e pela vida. E só poder ser agora.

De Ferguson a Porto Alegre: FOGO NOS RACISTAS, NOS FASCISTAS E NOS CAPITALISTAS!

 

Lançamento: Revista Tormenta – 2020

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Neste ano, transformamos nossa modesta retrospectiva anual em uma publicação reunindo os principais conteúdos que publicamos em nosso blog em 2020.

A Revista Tormenta estará disponível para download em PDF livremente e vendida a preços módicos nos melhores infoshops e distribuidoras subversivas ao sul do equador.

Neste ano conturbado colaboramos, também, com algumas publicações para pensar e agir em nosso mundo. Dentre eles, o livro “Antifa: Modo de Usar”, que conta com artigos, entrevistas e traduções que fizemos e publicamos no site e estão inclusos nessa edição de lançamento.

Conteúdo:
  • 2020: um Ano que dispensa apresentação
  • A Revolta é a Vida, a Resignação é a Morte
  • Pandemia e Agronegócio: Entrevista com Rob Wallace
  • ANTIFA: Contra o Que e ao Lado de Quem Lutar – Entrevista com Mark Bray
  • 6 Críticas à Criminalização e ao Mito do “Manifestante Infiltrado”
  • O Fogo que Arde Desde a Cordilheira
  • Cartas de Presos Anarquistas em Solidariedade a Mónica Caballero e Francisco Solar
  • Lula só Fez Autocrítica Onde Estava Certo
  • ROJAVA: Entrevista com Tekoşîna Anarşîst
  • Brasil: Epicentro do Vírus do Populismo?
  • Leituras e Indicações

Abaixo, a apresentação da Revista Tormenta.

2020: um Ano que dispensa apresentação

Escrevemos estas linhas e organizamos esta compilação com alguns dos principais artigos que lançamos em 2020 enquanto janelas e gôndolas destruídas ainda são trocadas em várias unidades do Carrefour pelo Brasil. A revolta que emergiu por conta do assassinato racista de João Alberto em Porto Alegre na véspera do dia da Consciência Negra mostrou que existe uma insurreição latente de forças dispostas a contra-atacar os ricos e suas polícias racistas. Num episódio de retaliação e resposta imediata que nos obriga a lembrar da rebelião após morte de George Floyd nos EUA, corpos revoltados, sobretudo de pessoas pretas e periféricas, demonstraram que é possível se rebelar mesmo na época mais pacificadora das lutas: as eleições.

Entre o primeiro e o segundo turno da eleição para prefeitos, as cidades com os protestos mais combativos foram justamente as que enfrentam “dilemas” maiores nas urnas: Porto Alegre, São Paulo e Rio de Janeiro. As disputas eleitorais entre partidos de direita e de esquerda institucional – ou entre direita e mais direita no caso do Rio – não dão conta de responder a desejos tão profundos como ver lojas de uma empresa multimilionária em chamas, saqueadas com seus produtos e riquezas distribuídas livremente. O mais próximo que chegam é da discussão de políticas menos racistas dentro do capitalismo (que por essência, é racista, colonizador e promotor de extermínios). Costumamos repetir um enunciado bastante explícito: “ninguém é radical em ano par”. Revoltas, como as de 2013, podem ser rapidamente canalizadas e transformadas em capital político para quem quer “levar as demandas das ruas” para dentro dos palácios em ano de eleição, como em 2014. Se em 2018 foi a direita que deu ao seu mais escandaloso representante o cargo de presidente, é porque souberam canalizar desejos e as ferramentas que os produzem e controlam nas ruas e no mundo virtual. Dilma Roussef, a presidente que não sabia o que era meme enquanto era transformada em um, foi derrubada e perdeu lugar, por fim, para um presidente que faz seus próprios memes e atualiza as formas de governo com base no ressentimento e no orgulho ferido da figura do macho branco, adulto e heterossexual, que se sente ameaçado com a proliferação de práticas e corpos que escapem ao modelo de sua própria identidade dominante. Nesse caso, Narciso não apenas acha feio o que não é espelho. Ele manda matar. Seja pela miséria, seja pela torturas dentro e fora das cadeias, seja pela arma de um policial ou espancado até a morte no estacionamento de um supermercado.

Dentro deste cenário apocalíptico por si só, vimos chegar uma pandemia global inédita na modernidade. Governos viram nisso uma oportunidade de avançar medidas de isolamento e pacificação. Democratas esclarecidos, “progressistas” de toda a ordem, lançam mão dos aparatos jurídicos, policiais e militares para fortalecer os controles sobre as condutas, produzindo pilhas de corpos e um sufocamento ainda maior contra aqueles que se mantém vivos. E engana-se quem pensa que isso é a exceção, que é um desvio. O nome disso é justamente Estado Democrático de Direitos. Em simultâneo, bufões autoritários como Bolsonaro e o derrotado Trump se contentam em ver os efeitos da pandemia assumindo um contorno eugenista e genocida. Enquanto isso, aplaudem e estimulam o agronegócio e a expansão desenvolvimentista e colonial que incendeia a Amazônia e o Pantanal, nos alertando que é dessa destruição dos biomas que virão as próximas pandemias.

Em momentos de crises sobrepostas é que vemos quem são os inimigos da ordem, que são seus defensores e quem são seus falsos críticos – os quais vão se apropriar da rebelião para implementar reparos aos sistema e perpetuá-lo. Em meio a todas essas forma de pacificação, eleitoral e biológica, nos vimos em diversos dilemas que nos faziam pensar sobre quando é “a hora certa” de ir para as ruas e partir para ação, seja de solidariedade com os nossos ou em ataque contra os chefes do sistema que produz pandemias e ecocídios. Mas tanto a solidariedade quanto a revolta tomaram corpo entre os grupos explorados e excluídos com enorme potência. Alguns exemplos foram inspiradores como o do povo do território conhecido atualmente como Chile, que não deixou o vírus interromper de vez um ano de rebelião contra o neoliberalismo; e os movimentos negros e anticapitalistas dos EUA incendiando delegacias e prédios no país inteiro, organizando comunas e zonas livre de polícia quando autoridades mandavam todos “ficarem em casa”. Por aqui, antifascistas, motoboys, mulheres, indígenas e o povo preto periférico mostrou que também há disposição em nosso território para nos encontrar e revidar.

Carregamos a memória das 180 mil mortes pela Covid19, subnotificadas e concentradas na população negra e pobre. Assim como as 3.148 pessoas mortas pela polícia no Brasil apenas no primeiro semestre. Sabemos que a letalidade desse projeto genocida contabilizará ainda mais vítimas até o fim de dezembro. Uma segunda onda do vírus está a caminho e não existe uma vacina para um projeto de Estado e sua normalidade. Apenas a rebelião e a autodeterminação dos de baixo. É preciso acabar com a normalidade!

Internacional Fictícia,
26 de Novembro de 2020.