Neste ano, transformamos nossa modesta retrospectiva anual em uma publicação reunindo os principais conteúdos que publicamos em nosso blog em 2020.
A Revista Tormenta estará disponível para download em PDF livremente e vendida a preços módicos nos melhores infoshops e distribuidoras subversivas ao sul do equador.
Neste ano conturbado colaboramos, também, com algumas publicações para pensar e agir em nosso mundo. Dentre eles, o livro “Antifa: Modo de Usar”, que conta com artigos, entrevistas e traduções que fizemos e publicamos no site e estão inclusos nessa edição de lançamento.
Conteúdo:
2020: um Ano que dispensa apresentação
A Revolta é a Vida, a Resignação é a Morte
Pandemia e Agronegócio: Entrevista com Rob Wallace
ANTIFA: Contra o Que e ao Lado de Quem Lutar – Entrevista com Mark Bray
6 Críticas à Criminalização e ao Mito do “Manifestante Infiltrado”
O Fogo que Arde Desde a Cordilheira
Cartas de Presos Anarquistas em Solidariedade a Mónica Caballero e Francisco Solar
Lula só Fez Autocrítica Onde Estava Certo
ROJAVA: Entrevista com Tekoşîna Anarşîst
Brasil: Epicentro do Vírus do Populismo?
Leituras e Indicações
Abaixo, a apresentação da Revista Tormenta.
2020: um Ano que dispensa apresentação
Escrevemos estas linhas e organizamos esta compilação com alguns dos principais artigos que lançamos em 2020 enquanto janelas e gôndolas destruídas ainda são trocadas em várias unidades do Carrefour pelo Brasil. A revolta que emergiu por conta do assassinato racista de João Alberto em Porto Alegre na véspera do dia da Consciência Negra mostrou que existe uma insurreição latente de forças dispostas a contra-atacar os ricos e suas polícias racistas. Num episódio de retaliação e resposta imediata que nos obriga a lembrar da rebelião após morte de George Floyd nos EUA, corpos revoltados, sobretudo de pessoas pretas e periféricas, demonstraram que é possível se rebelar mesmo na época mais pacificadora das lutas: as eleições.
Entre o primeiro e o segundo turno da eleição para prefeitos, as cidades com os protestos mais combativos foram justamente as que enfrentam “dilemas” maiores nas urnas: Porto Alegre, São Paulo e Rio de Janeiro. As disputas eleitorais entre partidos de direita e de esquerda institucional – ou entre direita e mais direita no caso do Rio – não dão conta de responder a desejos tão profundos como ver lojas de uma empresa multimilionária em chamas, saqueadas com seus produtos e riquezas distribuídas livremente. O mais próximo que chegam é da discussão de políticas menos racistas dentro do capitalismo (que por essência, é racista, colonizador e promotor de extermínios). Costumamos repetir um enunciado bastante explícito: “ninguém é radical em ano par”. Revoltas, como as de 2013, podem ser rapidamente canalizadas e transformadas em capital político para quem quer “levar as demandas das ruas” para dentro dos palácios em ano de eleição, como em 2014. Se em 2018 foi a direita que deu ao seu mais escandaloso representante o cargo de presidente, é porque souberam canalizar desejos e as ferramentas que os produzem e controlam nas ruas e no mundo virtual. Dilma Roussef, a presidente que não sabia o que era meme enquanto era transformada em um, foi derrubada e perdeu lugar, por fim, para um presidente que faz seus próprios memes e atualiza as formas de governo com base no ressentimento e no orgulho ferido da figura do macho branco, adulto e heterossexual, que se sente ameaçado com a proliferação de práticas e corpos que escapem ao modelo de sua própria identidade dominante. Nesse caso, Narciso não apenas acha feio o que não é espelho. Ele manda matar. Seja pela miséria, seja pela torturas dentro e fora das cadeias, seja pela arma de um policial ou espancado até a morte no estacionamento de um supermercado.
Dentro deste cenário apocalíptico por si só, vimos chegar uma pandemia global inédita na modernidade. Governos viram nisso uma oportunidade de avançar medidas de isolamento e pacificação. Democratas esclarecidos, “progressistas” de toda a ordem, lançam mão dos aparatos jurídicos, policiais e militares para fortalecer os controles sobre as condutas, produzindo pilhas de corpos e um sufocamento ainda maior contra aqueles que se mantém vivos. E engana-se quem pensa que isso é a exceção, que é um desvio. O nome disso é justamente Estado Democrático de Direitos. Em simultâneo, bufões autoritários como Bolsonaro e o derrotado Trump se contentam em ver os efeitos da pandemia assumindo um contorno eugenista e genocida. Enquanto isso, aplaudem e estimulam o agronegócio e a expansão desenvolvimentista e colonial que incendeia a Amazônia e o Pantanal, nos alertando que é dessa destruição dos biomas que virão as próximas pandemias.
Em momentos de crises sobrepostas é que vemos quem são os inimigos da ordem, que são seus defensores e quem são seus falsos críticos – os quais vão se apropriar da rebelião para implementar reparos aos sistema e perpetuá-lo. Em meio a todas essas forma de pacificação, eleitoral e biológica, nos vimos em diversos dilemas que nos faziam pensar sobre quando é “a hora certa” de ir para as ruas e partir para ação, seja de solidariedade com os nossos ou em ataque contra os chefes do sistema que produz pandemias e ecocídios. Mas tanto a solidariedade quanto a revolta tomaram corpo entre os grupos explorados e excluídos com enorme potência. Alguns exemplos foram inspiradores como o do povo do território conhecido atualmente como Chile, que não deixou o vírus interromper de vez um ano de rebelião contra o neoliberalismo; e os movimentos negros e anticapitalistas dos EUA incendiando delegacias e prédios no país inteiro, organizando comunas e zonas livre de polícia quando autoridades mandavam todos “ficarem em casa”. Por aqui, antifascistas, motoboys, mulheres, indígenas e o povo preto periférico mostrou que também há disposição em nosso território para nos encontrar e revidar.
Carregamos a memória das 180 mil mortes pela Covid19, subnotificadas e concentradas na população negra e pobre. Assim como as 3.148 pessoas mortas pela polícia no Brasil apenas no primeiro semestre. Sabemos que a letalidade desse projeto genocida contabilizará ainda mais vítimas até o fim de dezembro. Uma segunda onda do vírus está a caminho e não existe uma vacina para um projeto de Estado e sua normalidade. Apenas a rebelião e a autodeterminação dos de baixo. É preciso acabar com a normalidade!
O texto a seguir foi escrito por Francisco Solar, companheiro anarquista sequestrado pelo Estado chileno em 24 de julho deste ano e mantido preso desde então. Recentemente publicamos um artigo no qual apresentamos um breve panorama sobre a luta anárquica no território dominado pelo Estado chileno e também sobre o contexto de repressão, que inclui tanto a prisão de Francisco e Mónica Caballero, como a perseguição às comunidades Mapuches em luta. Também traduzimos algumas cartas de anarquistas mantidos sequestrados nas prisões chilenas escritas em solidariedade a Mónica e Francisco.
SOLIDARIEDADECOMTODXS XS PRESXS DA GUERRASOCIAL! LIBERDADE!
NA CORDA BAMBA – Contribuições e Considerações Desde e Para o Combate Anárquico
Este texto pretende ser uma colaboração ao desenvolvimento e o aprofundamento do combate anárquico informal, levando em consideração os avances tecnológicos cada vez mais especializados no controle e na vigilância da população em geral e sobretudo para aqueles que se aventurem a se rebelar contra o estabelecido.
Nasce também da necessidade de desferir golpes mais fortes e contínuos ao poder que gerem brechas que podem ir se abrindo.
Não surpreende a ninguém o acelerado aumento da vigilância realizada com as câmeras de segurança, os múltiplos cartões que temos de utilizar para fazer quase tudo e o incipiente, mas rápido, aumento do uso de drones de televigiância. Se somamos a isso o controle que se realiza por meio dos celulares, o panorama se complica ainda mais. Essa engrenagem tecnológica, que é ativada quando nos conectamos, passa a tomar o controle quase absoluto da cidade, nosso campo de batalha. O cruzamento de imagens, horas e a utilização de esse ou aquele meio, seja de transporte ou outro, faz com que sejam possível detectar e registrar os movimentos de qualquer indivíduo. A cidade toda está sob uma lupa, este mundo é praticamente uma prisão de alta segurança a céu aberto e não é exagerado dizer isso. E se levamos em conta a presença policial e agora militar em cada esquina, o cenário se torna ainda mais limitado e controlado.
Contudo, se cada pessoa da sociedade se encontra monitorada pela dita interconexão da vigilância, para quem se declara inimigx desta sociedade e atua em consequência o controle aumenta de maneira considerável. A situação passa a ser ainda mais escabrosa se pensamos nas pessoas que já são conhecidas pelos aparatos repressivos por terem estado na prisão, por estarem vinculadas a espaços que apostam na confrontação ou por diversos outros motivos. O espaço para essa ação transgressora se estreita e faz que o ato de tomar a decisão de passar ao ataque se transforme em uma corda bamba na qual se está o tempo todo a ponto de cair. O que fazer para burlar os golpes repressivos? Ou melhor, o que fazer para dificultar o trabalho de captura dos aparatos policiais?
OPÇÕES E DECISÕES
Um dos aspectos da crítica da tendência informal do anarquismo aos grupos político-militares de esquerda é quanto a sua forte instrumentalização que os leva, entre outras coisas, a optar pela clandestinidade como estratégia de luta. Essa situação de clandestinidade traria consigo uma marcada divisão das funções que estaria diretamente ligada com a militarização presente nesses grupos. A clandestinidade, entendida desse modo, seria fundamental na engrenagem de uma organização que divide seus militantes em legais e ilegais, sendo essa última a ala oculta que se encarregaria de efetuar os golpes e a primeira seria a cara pública destinada a gerar redes de apoio, logística e propaganda, entre outros trabalhos. A vida na clandestinidade se caracterizaria por estar sumamente limitada a aspectos operativos; uma dinâmica de combate permanente que, segundo xs críticxs a ela, deixaria de lado aspectos tão essenciais e enriquecedores como a necessária troca de experiências, o compartilhamento de visões sobre a luta ou também a qualificação em âmbitos que, embora não se concentre no combate armado, são indispensáveis para a luta pela liberação total. As longas conversas onde se debate sobre diferentes assuntos que certamente ampliam a perspectiva são muito difíceis ou impossíveis de ocorrerem na clandestinidade, o que mostra os momentos ou experiências determinantes que se perdem por tal situação. Tentar se separar ou se afastar das lógicas de consumo (não me refiro com isso ao devaneio das “bolhas de liberdade”) também é complicado de se fazer clandestinamente, uma vez que exige seguir caminhos cidadãos, pois se pretende passar despercebidx. Essas e muitas outras são as restrições trazidas por essa vida que tem a solidão como o elemento principal. Entretanto, quero deixar explícito que me refiro a uma clandestinidade na e para a guerra, não a que, por mais válida e legítima que seja, se busca fugir do inimigo e, com isso, levar uma vida tranquila sem passar à ofensiva. Falo de uma opção pela clandestinidade – ainda que também exista quem se vê obrigadx a tal situação – como estratégia para a luta, como estratégia para golpear forte e constantemente o poder.
Outra crítica frequente a esses grupos e organizações que optam por esse caminho é que, finalmente, acabam desembocando todo o seu fazer político na manutenção da “estrutura clandestina”, que requer muitos recursos de todo tipo para se sustentar. Assim, deixam de lado tarefas importantes como a propaganda ou a geração de redes de apoio para conseguir manter xs clandestinxs, xs quais, obviamente, terminam sendo contraproducentes e fortalecendo o militarismo.
EXEMPLOSPARA SE LEVAR EM CONTA
Não apenas as organizações político-militares de esquerda optaram pela clandestinidade para enfrentar o poder. Grupos anarquistas e autônomos também recorrem a essa estratégia, experiências que são necessárias de levar em conta no momento de considerar essa opção.
Uma das experiências mais notáveis nesse sentido foi a do MIL (Movimiento Ibérico de Liberación) que lutou clandestinamente contra a ditadura franquista no início da década de 1970, na Catalunha. Evidentemente, a sufocante bota de Franco foi determinante para que o grupo tomasse essa decisão. Porém, seus membros, mesmo não identificados pelos aparatos repressivos, passaram automaticamente à clandestinidade assim que o grupo foi formado. A particularidade do MIL foi, sem dúvida, sua ampla produção teórica que souberam complementar com a luta armada. A constante elaboração de textos e reflexões, inclusive criando o Editorial “Maio de 37”, demonstra que a propaganda e a geração de reflexões políticas constituiu uma das principais preocupações do MIL, inclusive mais do que a luta armada.
Um caminho similar foi seguido pelos Grupos Autónomos que agiram principalmente em Barcelona, Valência e Madri de forma paralela e posterior ao MIL durante a transição democrática no reino da Espanha. No momento de tomar a decisão de formar um desses grupos, os indivíduos deviam ter armas, contato com algum local “seguro” e documentação falsa para, assim, passar para a ação. Segundo diversos relatos, essa situação de clandestinidade terminou por transformar sua prática política basicamente em expropriações bancárias para financiar a clandestinidade, o que impediu a ampliação de redes de apoio, entre outros aspectos. Não é demais assinalar que os aparatos repressivos do estado Espanhol – a Brigada Político Social – seguiu intacta na transição democrática, o que pode ter determinado que os Grupos Autónomos do final de 1960 e início de 1970 continuassem com a mesma dinâmica dos grupos que agiram durante a ditadura.
Também é preciso levar em conta a experiência da Conspiração de Células de Fogo (CCF), na Grécia, na medida em que se trata de um grupo anarquista informal de ação dos últimos anos que optou pela clandestinidade. Não tenho certeza se tal decisão esteve determinada pela identificação previa de seus membros ou de algum deles pelo aparatos repressivos. Mas o que sim é um fato é que seus ataques foram constantes, chegando a várias dezenas em um ano, o que, talvez, reflita uma vantagem da clandestinidade.
Outro grupo anarquista que levou a cabo a luta armada no mesmo território foi o “Luta Revolucionária”, que, empurrado pela perseguição policial, se tornou clandestino e nessa condição realizou duros e contundentes golpes ao poder. O caso da “Luta Revolucionária” é um exemplo explícito de clandestinidade em guerra, onde suas ações de envergadura colocaram em xeque o sistema em seu conjunto, segundo uma das sentenças judiciais contra o grupo. Todos os grupos mencionados tiveram a particularidade que não se constituíram como estruturas rígidas com uma marcada divisão de funções, como possuem as organizações político-militares de esquerda. Sua opção pela luta clandestina foi assumida livremente levando em conta os caminhos que implicavam. Sua prática política desembocou na luta armada; alguns realizando ações esporádicas de envergadura e outros ataques incessantes que não deram descanso ao poder. Porém, não descuidaram da reflexão nem da difusão dela, sendo uma contribuição para o desenvolvimento qualitativo das lutas anárquicas e demonstrando nos atos uma coerência entre o que se defende e o que se pratica.
SOBRE A NECESSIDADE DE GOLPEARCOM FORÇA
O ataque contra todo o estabelecido está plenamente legitimado desde o momento que existe Estado e capitalismo, e isso, creio, é compartilhado dentro da tendência informal anárquica. Todavia, a necessidade de que essas ações ganhem maior envergadura é algo colocado em diversas ocasiões, mas que encontra pouca materialização. Desde uma perspectiva anárquica de combate, são imprescindíveis os ataques que façam os poderosos tremerem, que façam o empresário que seca um rio para regar sua plantação de abacates saber que o seu ato trará consequências.
Ações que demonstrem força e decisão, e possam ser reproduzidas por qualquer pessoa que tenha por horizonte a liberdade. Seja para acompanhar, estender e aprofundar um contexto de revolta, para tentar gerar brechas e fissuras ao imposto como “normalidade”, ou como um ato de vingança, é necessário dar um salto qualitativo no combate anárquico informal que permita abrir possibilidades ainda desconhecidas por nós. Junto com isso, se pretendemos que nossas ações tenham maior impacto, elas devem, necessariamente, acontecer com uma relativa frequência, pois a memória é cada vez mais frágil e curta. Portanto, se nossos golpes são demasiado esporádicos, correm o risco de se converterem em “atos isolados” ou depoimentos. Como disse alguém, “quando os golpes fortes se repetem uma e outra vez, começa a poesia”.
Então é possível realizar ataques complexos e de envergadura com uma frequência considerável vivendo em uma situação de legalidade onde o inimigo sabe seus passos e onde te encontrar? A clandestinidade facilitaria a realização de ações desse tipo?
PALAVRASFINAIS
“Acontece uma ação contra o poder que alerta de alguma maneira a normalidade, a polícia começa a trabalhar imediatamente e consegue ter indícios ou uma forte presunção de quem é ou quem seriam responsáveis, porém não se sabe o paradeiro das pessoas e nem os lugares que frequentam e nem com quem se relacionam”.
Esse exemplo representa uma das vantagens trazidas pela clandestinidade. Dificultar o trabalho policial quanto à caça e captura. Nesse ponto, é necessário voltar ao tema dos avances tecnológicos de controle e vigilância; a cidade, ao estar quase totalmente monitorada, monitoramento que se aperfeiçoa no dia a dia, qualquer erro na execução da ação custa caro e xs realizadorxs são conhecidxs pela polícia, sua captura se torna iminente. Isso, por exemplo, foi o que ocorreu com os companheiros Alfredo Cospito e Nicola Gai quando atiraram contra o empresário nuclear Adinolfi. A clandestinidade faria, de algum modo, que a tecnologia para a vigilância perdesse, em parte, sua efetividade, pois no momento de encontrar quem realizou a ação, as pessoas já estariam na escuridão, conspirando para o próximo ataque. A vigilância policial permanente que se exerce sobre xs inimigxs conhecidxs do poder deixaria de ter efeito, o qual, sem dúvida, constitui outra vantagem da clandestinidade já que permite uma maior mobilidade. O fato de ter múltiplos olhos vigiando restringe enormemente a capacidade de ação em golpes esporádicos e mais ainda se eles se tornam recorrentes. A clandestinidade outorgaria, então, mais facilidade para levar a cabo uma prática de ataque sistemático e a geração de cumplicidades, portanto a ação política estaria voltada quase em sua totalidade à conspiração e ação.
Mas esse tipo de vida é o que realmente buscamos ou queremos? Poderemos levar essa dinâmica sem cair em condutas militaristas e instrumentalizadas? Sem dúvida, múltiplos aspectos indispensáveis na prática anarquista ficariam de lado no momento de optar pela clandestinidade. O questionamento permanente que se faz a nível individual e coletivo para tentarmos abandonar condutas autoritárias e/ou cidadãs é algo que seria dificultado levando em conta a dinâmica da clandestinidade que, como afirmado antes, exige adotar condutas que muitas vezes não se compartilham com o propósito de passar desapercebidx. A discussão e o debate longo e frutífero com companheirxs que tanto ajudam em nosso desenvolvimento individual também seriam impedidos, já que os contatos públicos seriam escassos ou praticamente inexistentes.
Além disso, a clandestinidade também nos leva a correr o risco de levantar hierarquias e relações verticais, nos transformando no que criticamos e atacamos, estabelecendo uma distância abismal entre meios e fins. A partir do momento em que isso ocorra, estamos perdidxs, começamos a utilizar métodos alheios e contrários ao que defendemos e, nesse caso, seria oportuno abandonar a opção pela clandestinidade.
Portanto, como combinar uma prática de ataque sistemático e de envergadura com o necessário desenvolvimento individual nos mais diversos âmbitos?
Somente o avance e a qualificação do combate anárquico informal e os caminhos que isso pode abrir é que nos darão essas respostas.
Francisco Solar¹
Seção de Segurança Máxima
Prisão de Alta segurança
setembro 2020
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Notas
1. Em 24 de julho de 2020, companheiros anarquistas Mónica Caballero e Francisco Solar foram detidos. Francisco é acusado de enviar pacotes bomba contra a 54ª delegacia de polícia e contra o Ex-ministro do Interior, Rodrigo Hinzpeter, em julho de 2019, ação reivindicada por “Cómplices Sediciosos / Fracción por la Venganza”. Enquanto isso, ambxs são acusadxs do duplo atentado explosivo contra o edifício Tânica, no endinheirado bairro de Vitacura, em 27 de fevereiro de 2020, em plena revolta, ação reivindicada por “Afinidades Armadas en Revuelta”. Ambxs são conhecidxs não somente pela repressão por terem enfrentado distintas operações repressivas no Chile e na Espanha, mas também pelos diferentes entornos de luta, sendo ativos em publicações, manifestações, programas de rádio e iniciativas contra o poder.
Em setembro de 2019, logo após o anúncio da invasão turca no norte da Síria em mais um ataque ao povo Curdo e a revolução em Rojava, enviamos entrevistas para grupos internacionalistas atuando por lá junto à revolução, com perguntas semelhantes sobre seu envolvimento no cotidiano do processo revolucionário. Em outubro publicamos uma inspiradora entrevista com a Comuna Internacionalistas de Rojava. Infelizmente, pelos óbvios obstáculos que uma guerra impõe, o coletivo Tekoşîna Anarşîst (Luta Anarquista/TA) não pode responder na época e precisamos esperar um melhor momento para retomar a proposta. Enquanto isso, traduzimos e lançamos uma excelente entrevista feita pela Federação Anarquista Uruguaia em julho de 2020.
Agora, em agosto de 2020, retomamos contato e, felizmente, nossos camaradas puderam ceder um pouco do seu tempo para responder sobre a atual situação dos povos e da revolução em Rojava sob invasão da Turquia de Erdoğan, especialmente no contexto da pandemia da Covid-19. Também abordamos a relação do coletivo com o anarquismo, a revolução em andamento e a luta dos povos no Norte da Síria mas em todo o mundo.
Esperamos seguir trocando e aprendendo com os desafios desse processo revolucionário, com suas grandes conquistas, desafios e contradições. Nos interessa, principalmente, compreender que papéis anarquistas podem desempenhar nesse processo, o que da prática e da teoria anarquista se materializam, contribuem ou mesmo se chocam com a realidade concreta de uma revolução no século XXI.
1. O que é e como vocês definem o trabalho da Tekoşîna Anarşîst? Onde vocês operam e como se dá a relação com as comunidades no território sírio?
Tekoşîna Anarşîst é um coletivo anarquista revolucionário composto de pessoas de diferentes partes do mundo que trabalham no Nordeste da Síria (Curdistão Ocidental) para apoiar a revolução em curso. O que nos conecta não é necessariamente um lugar ou uma região, nem uma prática particular. É mais nossa estratégia de longo prazo, formas de organização, métodos e compromisso para refletir sobre nós mesmos e nossa organização através do aprendizado constante – em outras palavras, nossa perspectiva. Viemos para o Nordeste da Síria inspirados pela revolução iniciada pelo movimento de libertação curdo, para colocar em prática nossas ideias e nosso compromisso de construir autonomia, de construir uma vida livre em uma sociedade sem Estado. Acreditamos que a luta do povo e, especialmente, das mulheres são a principal força para as mudanças revolucionárias, e o que está acontecendo aqui é algo com que anarquistas e outras revolucionárias de todo o mundo podem aprender muito. E que melhor maneira de aprender do que dividir o pão com o povo local e ficar ombro a ombro com eles quando se trata dos desafios que uma revolução traz? Seja pelas difíceis contradições que a sociedade enfrenta ao passar por grandes mudanças, seja pela luta armada contra os inimigos que tentam destruí-la, decidimos ficar aqui e defender a revolução. Tekoşîna Anarşîst não é um grande movimento – ao contrário, é uma gota no oceano da organização da população local.
No entanto, trabalhamos em diferentes áreas de atuação e nosso trabalho é dentro ou coordenado com as estruturas locais. Pode ser trabalho militar, médico de combate, saúde, diferentes formas de organização civil e, o mais importante, educação. Isso é algo fundamental que realmente falta, especialmente no Ocidente – ir mais fundo, aprender, progredir, compartilhar, ouvir, superar o ego, construir narrativas coletivas, redefinir termos e conceitos em um nível mais amplo de “sociedade”, não apenas individualmente em nosso cabeças. Para buscar pontos de conexão em vez de separação. A relação com as estruturas e pessoas locais é fundamental e em muitos níveis a nossa sobrevivência depende disso. Procuramos construir e manter boas ligações com diferentes grupos e organizações locais, com os quais aprendemos muito nesta sociedade repleta de diversidade. Queremos também ampliar essa diversidade, e nosso trabalho inclui criar um lugar na revolução para pessoas que talvez não se encaixem em outro lugar. Camaradas trans e não-conformes de gênero não são bem compreendidas por muitas estruturas aqui, e a sociedade tem relações de gênero muito particulares. Devemos, com cuidado e respeito, criar um lugar para que todos os tipos de camaradas se juntem à luta e também sejamos nós mesmas de uma forma revolucionária. Temos uma grande variedade de identidades de gênero em nossas fileiras e, mesmo que isso traga algumas situações desafiadoras, buscamos nos manter nessa linha, abrindo espaço para pessoas que têm experiências fora da classe privilegiada do patriarcado – ou seja, queremos convidar especialmente mulheres, camaradas trans e queer para trabalhar conosco.
Funeral do anarquista Lorenzo Orsetti membro da TA que caiu em Baghuz Fawqani durante o último ataque contra as forças restantes do Daesh no rio Tigre. Maio de 2019.
2. Vimos que vocês estavam muito envolvidos não apenas no combate em si, mas também no apoio e logística, como quando alguns de vocês estavam trabalhando com a ambulância resgatando pessoas no fronte. Quais são as principais formas de ação que vocês realizam e quais são elas?
No início, a Tekoşîna Anarşîst era principalmente uma estrutura militar para defender a revolução contra os ataques do Estado Islâmico, sempre com o objetivo de apoiar os movimentos locais e a população local. Percebemos a necessidade de apoiar as equipes médicas das forças militares e começamos a nos envolver nessa frente. Trabalhamos como médicos de combate em diferentes operações e linhas de frente, desde o fim do califado do Daesh em Deir Ezzor, até a resistência contra a invasão turca nas linhas de frente de Serekaniye e Til Tamer. No na área médica, há uma ampla gama de trabalhos que muitas vezes pode mudar da medicina de combate a pontos de triagem, transporte ou trabalho em hospitais. Diferentes pessoas ou grupos trabalham em várias áreas e muitas vezes a necessidade de mudar de uma tática para outra não é uma escolha, mas uma necessidade de acordo com a situação. Portanto, tentamos treinar de uma forma que nos permita ser flexíveis no modo como atuamos. Alguns de nós já tinham formação médica, mas aqueles que não, receberam educação aqui dos companheiros. A maior parte disso foi construída do zero, impulsionada pela necessidade e urgência da guerra, e todos podem ter que assumir um trabalho que não sabiam fazer antes – para se defender, defender seus companheiros e as pessoas. Quando camaradas falam em legítima defesa não se referem apenas a lutar com uma arma, porque lutamos pela vida, para defender e sustentar a vida.
Nossas equipes definitivamente não foram as primeiras nem as únicas atuando como médicos de combate no Nordeste da Síria, mas especialmente no início, isso era bastante raro. Quando olhamos para trás, vemos que havia três objetivos neste trabalho. Primeiro, para ser capaz de fazer este trabalho, de aprender e estar pronta sempre que necessário, para ganhar confiança através do nosso trabalho e fornecer ajuda aos camaradas feridos o mais rapidamente possível. Em segundo lugar, cooperar com as forças locais de uma maneira que mostre através da prática que este é um trabalho muito importante, pressionando para desenvolvermos este papel dentro das fileiras da SDF ( Forças Democráticas da Síria). E terceiro, para ver como podemos compartilhar conhecimentos e habilidades com alguns camaradas interessadas, para multiplicar o número de pessoas engajadas nessa atividade, organizando treinamentos com outros grupos para fornecer mais ajuda nas linhas de frente. Vimos que não basta ser um grupo de médicos de combate, cada pessoa deve ser capaz de ajudar seus companheiros se eles estiverem feridos e também de tratar a si mesmo. Temos treinado a nós mesmas e a companheiros de outras estruturas revolucionárias internacionalistas e, recentemente, pela primeira vez, demos uma educação de primeiros socorros às forças do SDF, o que foi um passo muito importante e também uma experiência agradável. Aqui todos são alunos e professores ao mesmo tempo, o que aprendemos passamos uns aos outros.
3. Vocês podem fazer uma breve atualização sobre a situação em Rojava após a invasão turca e seus aliados jihadistas e agora com a pandemia do coronavírus? Como esse novo fator afeta a luta e o cotidiano revolucionário? Existe um programa coordenado a esse respeito? Como o governo turco está se aproveitando dessa situação para entrar em ofensiva?
A ocupação turca, de Afrin em 2018 e sua continuação em outubro de 2019 com Serekaniye e Gire Spî, trouxe a guerra de volta a Rojava e com ela uma nova crise humanitária. Centenas de milhares foram forçados a fugir para salvar suas vidas, procurando abrigo em outras cidades ou campos de refugiados. Isso criou um alto risco de doenças infecciosas, devido às condições difíceis e superlotadas nos campos de refugiados. Além disso, com a atual escalada da crise do coronavírus aqui agora, isso está ficando especialmente perigoso. A guerra também trouxe outros problemas para o sistema de saúde: a maioria das ONGs médicas deixou o Nordeste da Síria quando a invasão começou, por isso perdemos o acesso a medicamentos e profissionais de saúde qualificados. O sistema de saúde de autogestão teve que fazer grandes esforços para cobrir as lacunas deixadas pela retirada das ONGs. Várias precauções foram adotadas em março para evitar um enorme surto de Covid-19 depois que alguns casos positivos foram detectados e por um tempo os esforços foram bem-sucedidos. Isso deu algum tempo para fazer mais preparativos, organizar espaços para atender os pacientes, garantir o fornecimento de suprimentos médicos que pudessem ser necessários e construir respiradores. No início de agosto, os hospitais começaram a detectar pacientes com o coronavírus em diferentes cidades, portanto, as restrições de viagens e outras medidas aumentaram. Ao mesmo tempo, do outro lado da fronteira, a Turquia está tendo grandes surtos de Covid-19 e eles têm enviado vários pacientes infectados a hospitais nos territórios ocupados no norte da Síria, especialmente em Serekaniye e Afrin. Com essas condições, o exército turco aproveitando o surto do vírus para lançar um ataque é uma ameaça muito real, e as forças de autodefesa estão tentando tomar todas as medidas possíveis para evitar um cenário catastrófico. Como antes, não é sobre se o exército turco vai atacar Rojava ou não, é sobre quando e onde eles o farão.
4. A solidariedade anarquista internacional é um aspecto importante da luta revolucionária na história. E a revolução em Rojava é conhecida por ter alguma influência de pensamentos e perspectivas anarquistas. Quanto dessa influência você vê lá no chão? Como poderia ser maior / mais forte?
Podemos encontrar claramente a influência de algumas perspectivas anarquistas nas ideias do confederalismo democrático. Muita gente já apontou as ligações com as ideias de Murray Bookchin, que fazia um apelo à organização de comunas e à construção de um poder dual, desenvolvendo autonomia e municipalismo com base na ecologia e na democracia direta. Também podemos encontrar influências de outros pensadores anarquistas, entendendo o Estado como o principal sistema de violência e opressão e a consequente determinação de construir uma sociedade sem Estado. Mas acima de tudo, as mudanças mais relevantes vêm do movimento das mulheres curdas, dizendo abertamente que temos que nos livrar do Estado para superar o capitalismo e que temos que derrubar o patriarcado para superar o Estado, trazendo a libertação das mulheres como a prioridade deste movimento.
Mas esses desenvolvimentos ideológicos nem sempre trouxeram uma mudança radical na forma como o movimento revolucionário curdo é organizado, e ainda vemos grande influência das velhas práticas marxista-leninistas que os movimentos anarquistas criticam, como centralização e organização hierárquica. Essas contradições são o principal desafio quando se trata de medidas práticas e muitas vezes há abordagens paternalistas em relação à sociedade – herança da mentalidade vanguardista dos partidos revolucionários. Enfrentar essas contradições e poder seguir avançando é um dos maiores desafios para anarquistas aqui. Permanecer em solidariedade crítica e cooperação com um movimento que, mesmo que não concordemos em alguns aspectos, é hoje um dos processos revolucionários mais relevantes em que podemos nos encontrar. Há muita coisa longe da sociedade utópica sonhamos: as comunas locais não são os conselhos revolucionários que gostaríamos de ver, os latifundiários ainda possuem grandes terras, os velhos ainda vendem suas filhas para casamento em troca de dinheiro ou mercadorias, as pessoas estão com fome e precisam unir forças militares para alimentar suas famílias, SDF está lidando com as forças imperialistas e fazendo acordos com empresas dos EUA para controlar os campos de petróleo, milhares de soldados do Daesh estão nas prisões à espera de uma oportunidade de escapar e reconstruir o sangrento califado, Afrin, Serekaniye e Tal Abyiad ainda estão sob Ocupação turca… É muito difícil desenvolver soluções estáveis para esses problemas, com ou sem perspectivas anarquistas.
Até agora, os movimentos organizados anarquistas não desempenharam um grande papel nesta revolução. Se olharmos para o número de anarquistas e outros internacionalistas revolucionários envolvidos na Revolução e Guerra Civil Espanhola em na década de 1930 e compará-los com o envolvimento no nordeste da Síria, não sentimos nada além de decepção. Fica pior se compararmos quantas pessoas de tantos lugares diferentes se juntaram ao Daesh na última década. Isso não quer dizer que todo revolucionário deva correr para o Nordeste da Síria agora mesmo, mas com certeza é algo que deve nos fazer refletir sobre qual é a atual situação da solidariedade internacional anarquista. No Ocidente, nossos movimentos que se autodenominam revolucionários são referentemente baseados em identidade e subcultura, influenciados pela modernidade capitalista em todos os aspectos de nossas vidas. O surgimento do YPJ/G tornou-se acessível para nós devido à atenção da mídia, às campanhas nas redes sociais e aos cartazes nas paredes. Essas coisas não são ruins em si mesmas, mas precisamos ir mais fundo do que isso. Precisamos nos perguntar por que essa revolução está avançando enquanto nossos movimentos estão paralisados, o que significa ser um revolucionário, que tipo de vida nos esforçamos para viver, que tipo de relações desejamos ter, o que significa liberdade para nós e como muito disso é influenciado pelo liberalismo e individualismo (“Eu faço o que quero”). Sabemos que também temos a responsabilidade de como a luta se apresenta no Ocidente, e não nos demos tão bem com nossa própria comunicação midiática no passado. Percebemos que apenas começamos a entender um pouquinho de todas essas perguntas e que encontrar respostas será uma luta de longo prazo, não algo que possamos resolver por meio de atalhos superficiais. Se queremos ter uma influência maior nos movimentos revolucionários internacionais, essas são questões e contradições que devemos refletir.
5. O que mudou no contexto da vida diária e das organizações populares desde a queda do ISIS como costumava ser?
Existem várias mudanças que podemos mencionar relacionadas com o fim do califado. Os primeiros são os desafios e contradições sociais que a autogestão enfrenta para integrar todas as áreas libertadas do Daesh. Cidades como Raqqa, Manbij e Tabqa, que viveram alguns anos sob o fascismo teocrático do Estado Islâmico, agora fazem parte da autogestão e têm que enfrentar não só a reconstrução das cidades depois da guerra, mas também os conflitos e contradições das mudanças sociais. Esses desafios são ainda maiores em territórios como Deir Ezzor, que também são terras árabes tradicionais com um sistema tribal e conservador profundamente enraizado, longe dos valores revolucionários da autogestão em temas como organização social, liberdade religiosa e principalmente a libertação da mulheres. Junto com os desafios sociais, existem também desafios econômicos, ecológicos e militares. Células adormecidas dos islamitas continuam atacando e desestabilizando a região e as forças leais ao governo de Bashar Al-Assad estão fazendo operações para retomar o controle do território, tentando derrubar a Autoadministração.
Claro que a invasão turca torna tudo ainda mais complicado, não só pela ocupação militar das regiões de Afrin, Serêkaniye e Gire Spî, mas também pela guerra especial em outros territórios, como cortar o acesso à água e focar ataques de drones em alvos selecionados . O Estado turco sempre utilizou o Estado Islâmico, fornecendo-lhes armas, cuidados médicos e ajuda para atravessar a fronteira com a Síria. Vários prisioneiros do Daesh que foram entrevistados falaram sobre o apoio contínuo da Turquia e, quando os combatentes do Daesh capturados conseguem escapar da prisão, eles correm de volta para as áreas controladas pela Turquia. Após a derrota do califado na primavera de 2019, os soldados do Estado islâmico se uniram às fileiras das forças de ocupação turcas, levando consigo sua ideologia fundamentalista. Esses grupos, sob a égide do TFSA (Exército Livre da Síria, apoiado pela Turquia), estão alimentando os sonhos imperialistas neo-otomanos de Erdogan, cometendo terríveis crimes de guerra sob a bandeira de um estado da OTAN. O mundo inteiro sabe disso, e a OTAN está lá para proteger os interesses e benefícios da indústria militar, corporações que lucram com a morte e a miséria, não para responsabilizar os Estados membros. Isso dá ao Daesh a oportunidade de continuar suas operações e reorganizar o fascismo teocrático para manter sua “guerra santa” contra a humanidade, não apenas no Oriente Médio, mas em todos os lugares onde possam expandir sua influência.
6. Quais são as suas perspectivas de futuro para a revolução? Vocês esperam que o trabalho da Tekoşîna Anarşîst possa inspirar outros revolucionários ao redor do mundo?
Depois de anos de guerra, muita coisa aqui está destruída. Em todas as cidades existem ruínas de casas antigas, bombardeadas e destruídas, cheias de buracos de bala. Mesmo assim, as pessoas vivem nessas ruínas, porque não têm para onde ir. Alguns deles tentam consertar aquelas ruínas, recolocando tijolos quebrados, construindo paredes novamente, montando o quebra-cabeça novamente. Outros decidem demolir as ruínas completamente e construir uma nova casa ao lado delas. Pegam o que ainda pode ser usado e recomeçam.
Sentimos que nossas vidas na sociedade patriarcal e capitalista são muito assim. Vivemos em lugares social e emocionalmente destruídos, desconectados de nossos vizinhos, sem muitas opções de como viver, mas também sem alternativa, sem para onde fugir. Qual é a melhor abordagem para uma revolução? Reconstruir dentro do sistema, usando o pequeno abrigo e segurança que ele oferece enquanto tenta reorganizar as peças até que algo melhor cresça a partir dele? Ou derrubando tudo, nos expondo ao espaço frio e vazio, onde tudo é possível? Esperando poder construir algo bonito, mas sempre sob o risco de que alguém construa algo terrível mais rápido.
Como fomos inspirados por outros camaradas ao redor do mundo e sua luta, é claro que esperamos que nossas histórias e nossas ações inspirem outras pessoas também. Às vezes é difícil saber se estamos construindo uma base estável ou apenas jogando algumas pedras ao redor. Portanto, desviando o olhar de nossas próprias obras e nos concentrando em nossos camaradas em todo o mundo, podemos ter uma visão mais ampla. Podemos encorajar umas às outras e dar força e perspectiva, trazer conselhos e encontrar inspiração, ajustando nossos planos para que um dia os resultados do nosso trabalho se encontrem e se conectem.
Aqui em Rojava temos o privilégio de aprender com esta revolução e este privilégio vem com o dever de traduzir as perspectivas e experiências que aqui estamos reunindo. Para que nossos companheiros possam entender o significado, aprender e se desenvolver.
Queremos construir pontes entre nossas pequenas casas revolucionárias, ajudar umas às outras na criação de comunidades mais saudáveis e estáveis, para que possamos juntos desafiar a ordem patriarcal e capitalista de nossas sociedades de todos os lados e ângulos, cada um de nós de seu próprio lugar e perspectiva, para que nossas batalhas individuais se tornem uma luta forte.
7. Agradecemos muito por compartilharem perspectivas neste momento delicado, esperamos que essa conversa possa ser útil para pessoas de todo o mundo trabalharem em solidariedade e apoio total às pessoas no norte da Síria. Alguma consideração final?
Obrigado pelo espaço e apoio. Talvez estejamos trazendo mais perguntas do que respostas, mas às vezes o caminho mais longo traz a experiência mais significativa, que não podemos medir com os passos que damos hoje. Acreditamos que a busca que iniciamos aqui nos levará a um lugar melhor e essa é a fé que nos torna capazes de lutar por um futuro melhor.
Há muito trabalho pela frente e muitos obstáculos no caminho. Faremos o nosso melhor para manter a promessa aos nossos camaradas caídos, para encontrar o caminho e a força que eles nos mostraram que nos ajuda a navegar nos momentos mais sombrios.
Basta de guerra no norte da Síria! – Vídeo editado pelo coletivo Antimídia para a campanha Rise Up 4 Rojava registrnado atos em embaixadas turcas no Brasil contra o início da invasão do norte da síria pela Turquia em 2019.
A ameaça a Rojava – Anarquista na Síria fala sobre o real significado da retirada das tropas estadunidenses da Síria por Donald Trump.
A Luta não é Pelo Martírio – Entrevista de 2017 com IRPGF (Forças Guerrilheiras do Povo Revolucionário Internacional) sobre luta armada e revolução em Rojava.
A solidariedade não reconhece fronteiras. Atravessa montanhas, matas, rios, oceanos. Encurta distâncias, aproxima corações incendiários, perfura muros, serra grades, destrói cercas. Hoje, dia 14 de agosto, se marca o dia internacional de agitação e propaganda com anarquistas presxs.
Publicamos essa semana um artigo contextualizando a prisão de Mónica e Francisco num quadro maior de repressão a anarquistas, ao povo Mapuche e toda a dissidência política no Chile. Abaixo um vídeo do coletivo Antimídia sobre a prisão de nossos companheiros:
Para somar nessa campanha, traduzimos 3 cartas dos companheiros libertários Joaquín García Chancks, Marcelo Villaroel Sepúlveda e Juan Aliste Vega, que vêm sendo mantidos encarcerados pelo Estado chileno. Chancks foi condenado a 10 anos de prisão por sua suposta participação em uma explosão na Escola de Gendarmería de San Bernado e outra na Delegacia de San Miguel em 2015. Marcelo e Juan foram sentenciados com 14 e 42 anos de prisão pela suposta participação em expropriações bancárias e pela morte de um policial durante uma fuga em outubro de 2007, no que ficou conhecido midiaticamente como Caso Security.
Um abraço forte e solidário à Mónica, Francisco, Joaquín, Marcelo e Juan.
LIBERDADE!
Carta de Joaquín García Chancks
Parece que a Negação não alcança nenhuma Verdade, Razão ou Lógica imóvel, que da luta contra a falsidade do existente só resulta um caminho semeado de dúvidas, no que o presente e o devir se borram, com uma tinta difusa, uma densa neblina na qual sempre será uma tarefa navegar, mas existe algo que traz novamente a claridade a esta trilha; é a bússola da confrontação que se apresenta como a razão consequente com a noção inseparável de uma simbiose teórico-prática, o ponto de vista de uma existência as vezes errante.
A dinâmica do combate sacode a existência para trazê-la de volta à vida, dotando-a da Fogosidade que o cansaço e a monotonia muitas vezes extingue; a construção de um existência antagonista carrega, então, a capacidade de viver longe da virtualidade imposta pela vida normalmente ditada, o golpe a golpe do ataque agradável, impulsor da mítica destruição criadora e o sofrimento de quando não somos quem golpeia, da prisão, a morte, que flerta com a subversão, são os sabores da vida, vida real, bebidas amargas e ambrosia.
Hoje bebemos desta bebida amarga; dois afetuosxs companheirxs são detidxs e acusadxs pela colocação de múltiplos artefatos explosivos, entre eles o enviado ao ex-Ministro do Interior Rodrigo Hinzpeter e um enviado à 54ª delegacia de Huechuraba. Inevegável que ambos belos ataques falam da continuidade histórica, do golpe da memória que não esquece. O poder transtornado e temeroso.
Festina, com a detenção dxs supostxs responsáveis, que recorde, a revolta não foi o ponto de culminante de um êxtase rebelde, é a criação, o ponto de inflexão de centenas de vidas em combate.
Um grande abraço à distância, cheio de amor, carinho e força para vocês, Mónica Caballero e Francisco Solar.
Viva a anarquia.
Joaquín García Chancks Carcel de Alta Seguridad Chile, 14 de agosto de 2020.
Carta de Juan Aliste Vega
Há pouco menos de um mês da detenção de nossxs companheirxs Mónica e Francisco pelas mãos do aparato policial de Estado, Guardas do poder e defensores dos interesses da casta burguesa política deste território.
Mónica e Francisco em prisão e reféns deste Estado capitalista que xs julga e sentencia desde o primeiro instante em que midiaticamente a administração fascista instala sua maquinaria jurídica servil em suas consequentes vidas.
São companheirxs que têm posição de caminhar livres e com férteis convicções. Abraço elxs com incondicional força e ternura, com o coração repleto de cumplicidade.
Como inimigo deste Estado, levantando a escrita pela bela insistência de reconhecermos na palavra transformada em ato e o pensar em ação subversiva. Juntxs no abraço de guerra que transcende muros e fronteiras, batida incansável que flui pela eliminação de toda forma de submissão.
E o combate diário frente a qualquer forma de poder. É a anarquia presente kom oxigênio libertário que não deixa de bombear, desde os negros corações, mais razões nesta luta contínua.
A prisão não é alheia a este caminhar, nossas vidas não são mensuráveis em custos, há aprendizado constante, há a decisão inquebrável de confrontação e ação direta, indicador tangível de que é possível não somente batalhar, mas também ser livres.
Juntxs no abraço de guerra que transcende muros e fronteiras nessa luta contínua.
Caminhando com dignidade rebelde e olhar subversivo, dentro e fora da prisão até a liberação total!
Enquanto houver miséria, haverá rebelião!!
Juan Aliste Vega, Prisionero subversivo Cárcel de Alta Seguridad Chile, 14 de agosto de 2020.
Carta de Marcelo Villaroel Sepúlveda
É nossa a konvicção!!
Indestrutíveis nossos desejos e infinitos os motivos e razões para seguir, nesta guerra, pela morte do estado, da prisão e do kapital.
Há 21 dias a notícia nos akordou batendo em nossas karas. Foram presxs Mónica e Francisco. Desta vez akusadxs de serem autorxs de diversos ataques explosivos em Santiago no último ano. Klaramente a ofensiva permanente do Estado por meio de seus aparatos repressivos, sua estrutura jurídica penitenciária e sua imprensa servil e empresarial desenha a karicatura sobre nossxs irmãxs komo xs culpadx perfeitxs para quem se espera todo o rigor da lei dominante.
A decisão do poder é o kastigo exemplar para servir de lição e de fase preliminar à resistência ofensiva komo prática insurrecional de ataque ao existente. Nossxs companheirxs hoje enfrentam uma dura luta. O poder, em bloco, fazendo uso de suas ferramentas, adianta duras condenações.
Nossas palavras nascidas de uma longa resistência à estadia forçada na prisão buscam assinalar certezas e convicções. Uma delas é a justeza de nossa ação rebelde e insurreta. Outra é que a luta pela destruição da sociedade carcerária é uma necessidade imperativa. De urgência vital nestes tempos de controle, repressão e morte.
O inimigo espalhado por todo o território atua com todos os capangas na rua, e nesta confrontação inevitável hoje nossxs kompanheirxs aparecem como destinatárixs inevitáveis de todo o peso da lei enquanto passam a formar parte deste contingente de kompanheirxs, que navegamos nesta paisagem sombria da prisão em um kontexto de permanente e interminável konflitividade.
A guerra social se torna comum e necessária por meio da legitimidade da violência multiforme como prática liberadora de rebelião, mas também vai parindo presxs, fugitivxs, fugidxs e mortxs. Esta é a realidade do konflito.
O que não podemos nunca esquecer: virão mais e mais kompas perseguidxs, kaídxs, fugidxs, mas, do mesmo modo, haverão companheirxs passando para a ofensiva, dando continuidade à esta luta pela liberdade, pela terra, kontra o kapital e tudo o que nos impede de viver.
Desta cela, onde meus pensamentos voam até as que habitam hoje, abraço xs kompanheirxs neste novo trajeto morro acima que seguramente saberemos seguir.
Mónika e Francisco e todxs x presxs da guerra social, da Revolta e da liberação mapuche para a rua!
Enquanto existir miséria, haverá rebelião!!
Marcelo Villaroel Sepúlveda Prisioneiro libertário Carcel de Alta Seguridad Chile, 14 de agosto de 2020.