Presenciamos a maior pandemia que o mundo viu em um século. No Brasil, com quase 600 mil mortos, uma crise econômica, desemprego, aumento da população em situação de rua, a fome crescente e uma crise institucional com ameaças de “ruptura” e golpe militar toda semana. O governo e os ricos parecem querer zombar de nós com lucros recordes para bancos e novos bilionários surgindo no país em meio a uma crise sanitária que acabou com mais de 4 milhões de vidas em todo o planeta – e segue matando – enquanto filas se formam em açougues onde pessoas esperam comprar ossos e outros restos para ter o que comer.
Ainda há pouco, países vizinhos na América Latina são tomados por revoltas e pressão popular nas ruas contra os custos de vida e a perda de direitos pelo modo de gestão neoliberal, enquanto por aqui prevalece um grande esforço dentro da própria esquerda para manter a ordem social e a paz nas ruas.
Motivos para revoltar-se nunca faltaram, mas agora eles transbordam! E muitos ainda se perguntam: por que a rebelião não tomou as ruas de todas as cidades, trancando vias, queimando carros, destruindo lojas e delegacias, incendiando carros e viaturas como fizeram companheiras e companheiros em Santiago, Bogotá e Minneapolis? Temos os mesmos ingredientes básicos: reformas econômicas sufocantes, ataques a direitos básicos, uma pandemia tornada plano de extermínio e violência policial racista com números de guerra.
Ainda assim, é possível que tenhamos jogado no lixo a única chance desde o início desse governo de massificar uma radicalização em escala nacional. Os únicos capazes de romper o cerco e demonstrar força e articulação são os povos indígenas ocupando Brasília de forma inédita e exemplar para defender seus territórios à espoliação capitalista. Mas estão lutando praticamente sozinhos.
A janela de oportunidade parece ter se fechado e pode ser que levará muito tempo para se abrir novamente. Porém, para além de colocar a culpa e a responsabilidade em um outro, ou apenas no que de fato está sendo feito por nossos inimigos, devemos pensar o que nós temos feito — ou deixado de fazer.
“Ao contrario do que alguns pensam, a gente não tem medo da morte. Se tivéssemos, não estaríamos aqui, armados de arco e flecha e sem colete à prova de balas… não estaríamos aqui de peito aberto em meio a esta cidade”
— Indígena em ato em São Paulo, quando STF ia julgar o Marco Temporal.
Inimigos da autonomia
Nas lutas contra o aumento das tarifas de transporte público em 2013 e contra a Copa em 2014, a organização autônoma de movimentos veteranos das lutas antiglobalização, como MPL e inúmeras assembleias horizontais, foram capazes de mobilizar pessoas em dezenas de cidades de forma inédita, passando longe do controle dos partidos e centrais sindicais pacificadas pelo governo do PT. As ocupações de escolas por secundaristas em 2015/16, mostrou que uma geração muito mais jovem se organizando pela primeira vez também pode adicionar elementos novos e uma diversidade de táticas (ocupações, marchas, eventos) em uma mesma luta e obter grande sucesso. Desde então, não conseguimos arrancar grandes vitórias dentro da perspectiva de uma luta autônoma.
Nas atuais lutas contra o governo Bolsonaro e a catástrofe da Covid-19, a centro-esquerda têm mantido sua hegemonia reformista e garantido seus interesses eleitorais nos chamados e na organização dos atos pelo Brasil.
Movimentos que se organizam por fora da agenda dos partidos ou das grandes centrais sindicais – especialmente sob o guarda-chuva petista como a CUT– são ainda minoritários e até grandes e importantes movimentos sociais como o MST se submeteram ao mesmo imobilismo reformista. Mesmo assim, os movimentos autônomos e independentes foram pioneiros e protagonizaram várias tentativas de radicalizar as lutas com diversos coletivos, movimentos e blocos autônomos tomando a iniciativa em diferentes cidades.
No início da pandemia em 2020, de Porto Alegre a Belo Horizonte, torcidas organizadas antifascistas foram as primeiras organizações a chamar atos para barrar e confrontar carreatas e eventos bolsonaristas enquanto todo resto da esquerda ainda só sabia repetir um “fique em casa” acrítico, fazendo de tudo para evitar o enfrentamento com a extrema-direita. Em 2021, de Londrina a Salvador, blocos de luta organizando anarquistas, comunistas e indígenas compuseram os atos chamados pelas centrais sindicais e suas coalizões.
Tais mobilizações tiveram mérito em levar pessoas para as ruas, divulgar as pautas e imagem da luta antifascista, além de reforçar o potencial de articulação e ação política das torcidas organizadas. Eles romperam o silêncio para dizer que a onda fascistóide é tão ou mais perigosa que o vírus. Muitas pessoas obrigadas a se aglomerar todo dia nos transportes públicos e no trabalho, ficar em casa para assistir fascistas tomarem as ruas para legitimar esse governo e sua crise parecia uma péssima ideia. Mas ainda é preciso avaliar os motivos que impediram tais mobilizações de manter o fôlego para se manter nas ruas e ampliar a adesão.
“Lutamos contra eles escrevendo cartas para que não tenhamos que enfrentá-los com os punhos. Lutamos com os punhos para que não tenhamos que enfrentá-los com facas. Lutamos com facas para que não precisemos enfrentá-los com armas. Lutamos com armas para que não tenhamos que enfrentá-los com tanques.”
— “Murray” de Baltimore, citado no livro Manual Antifa de Mark Bray.
Após apontar os caminhos para uma autocrítica autonomista ainda a ser desenvolvida, não podemos deixar de avaliar o contexto político e as organizações para além dos nossos círculos autônomos ou radicais. Nesses quesitos, as frentes amplas partidárias reformistas foram mais eficientes em mobilizar simultaneamente atos por todo o país. Muito disso é devido à sua enorme estrutura, tempo de atuação e recursos – os custos para divulgação, aluguel de carros de som, combustível, drones para filmagem, etc. chegaram à cifra dos 40 mil reais em Belo Horizonte e mais de 100 mil reais em São Paulo, segundo os próprios organizadores em assembleias. Recursos que, além de impossíveis de serem empregados por movimentos autônomos em uma única cidade, são também uma prova do imenso desperdício inerente às formas tradicionais de protesto organizado de cima para baixo, pensados de forma quantitativa onde uma estrutura com veicular e sonora cerca, dita o passo e abafa as vozes de corpos que poderiam ser ouvidos e enfrentar seus inimigos de classe com muito quase zero investimento do próprio bolso – e causando muito mais prejuízo aos patrões.
É importante analisar o papel das frentes amplas que foram formadas desde a luta contra o impeachment de Dilma Roussef e como esse tipo de organização tem funcionado como um grande entrave na luta. O Fora Bolsonaro™(reforçamos aqui ironicamente a exclusividade da marca) reuniu a Frente Povo Sem Medo(composta majoritariamente por MST, PSOL, UP, PCB, dentre outros), Frente Brasil Popular(PT, MST, CUT, dentre outros) e a Povo Na Rua, Fora Bolsonaro (uma tentativa de partidos como UP e PCB de darem novos rumos aos protestos), além dos poucos independentes e autonomistas.
Nas discussões e assembleias ficou claro que a ala Brasil Popular fez de tudo para arrefecer o que já não parecia caminhar para a radicalidade. A decisão de adiar os protestos para um a cada mês depois e seu boicote claro as datas tiradas para além do seu controle reforçam esse diagnóstico. As reuniões das Fora Bolsonaro Nacional™ demonstravam claramente que grande parte dos que compunham o movimento oficial não queriam que os protestos se massificassem e saíssem do seu controle.
Qual foi o papel da CUT, a maior central sindical da América Latina, nos últimos atos que foram construídos no Brasil, se não a sabotagem de alto nível, desarticulação profissional e desmobilização esforçada? Enquanto diversos setores como os Correios são privatizados, professores e funcionários públicos passam por uma precarização cada vez maior, a CUT permanece extremamente recuada.
Não havia motivos ou desculpas para que uma grande greve geral não fosse convocada desde o início da pandemia. Porém, sabemos por qual razão isso não foi nem será feito: optou-se esperar até que Lula eventualmente possa ser eleito em outubro de 2022. Quem pode esperar até lá? Quando a revolta estourar nas ruas e nem mesmo essa esquerda cúmplice dos patrões e da lei puder controlá-la, seremos nós que estaremos nas ruas.
Na luta contra esse governo, sua base fascista, o neoliberalismo e a vida no capitalismo em si, aqueles que, como fizeram membros MTST e PCB, desfazem barricadas e agridem quem as ergue, são inimigos de classe. Também o são aqueles que se sentaram com a polícia e os partidos de direita em São Paulo para negociar e combinar o que é permitido e legítimo fazer em um protesto, jogando na fogueira qualquer movimento organizado ou revoltas espontâneas que possam surgir. São falsos críticos do capitalismo pois não fazem sua crítica com ações concretas quando é a hora, apenas aguardam, tramam e agem quando convém à sua agenda por entrar na máquina estatal. E pior: se colocam no caminho de quem tem disposição para agir, declarando-os inimigos. Nossa leitura apenas aceita e reforça tal declaração.
Revolta, revolução e muita confusão
Do nosso lado das barricadas, é preciso reconhecer que perdemos também tempo e oportunidades em debates e confusões sobre a “conjuntura ideal para luta” ou as “condições para radicalização”. Muito se questionou sobre “o que a revolta constrói a longo prazo”, de “que adianta uma greve geral ou radicalizar agora” enquanto a população está “sem trabalho ou na total informalidade e precarização” — como se essa não fosse a realidade permanente da população. Os argumentos mais desonestos afirmam que “a ação direta combativa nas ruas daria o pretexto ideal para Bolsonaro dar um golpe” ou instaurar um estado de exceção — como se a elite precisasse de pretextos para explorar, escravizar reprimir ou agir na exceção e não o fizessem diariamente.
Muitas dessas avaliações derivam de uma análise dogmática ou ideológica das lutas, mais preocupadas em encontrar sinais de etapas revolucionárias em revoltas pontuais. Algo disso vem das narrativas que movimentos radicais compartilham, onde as mobilizações e levantes ocorrerão de forma crescente até que a ordem social venha abaixo por uma revolução. No primeiro caso, deixamos de enxergar o que as ruas dizem, as oportunidades imprevistas que se abrem para as pequenas vitórias. No segundo, ignoramos uma tendência em que as lutas avançam e sofrem refluxos, momentos de mobilizações e vitórias, momentos de repressão e também de reação – quando inimigos avançam sua agenda reacionária ou fascista. Algo que nossa geração conhece por experiência.
Quando falamos de revolta popular e vitórias pontuais, temos como exemplo as vitórias em 2013 contra a tarifa no Brasil e, mais recentemente, no Chile, quando em 2019 uma luta dos estudantes e trabalhadoras também contra aumento nas tarifas abriu caminho para uma onda de protestos contra o modelo neoliberal que culminou numa vitória histórica que derrubou a constituição da era Pinochet. Sejam nesses exemplos, ou nas lutas por George Floyd nos EUA ou contra a Lei de Extradição em Hong Kong, as ondas de revolta são exemplares e inspiradoras, mas muito distante de um verdadeiro processo revolucionário que pode promover uma mudança profunda nas estruturas de comando da sociedade.
Revolta, por mais que necessária, não é o mesmo que revolução — nem necessariamente conduz imediatamente a uma revolução. Não há motivos para gastarmos horas em análises de conjuntura se não for para nos engajar e apoiar uma luta dos de baixo, mesmo que pontual, por ela não corresponder ao “previsível” desenvolvimento das “etapas” para uma radicalização.
Sabemos muito bem que para levantes como de 2013 no Brasil ou 2020 no Chile e nos EUA abrirem caminho para uma revolução, será preciso um longo caminho de construção de estruturas comunais, articulando muito mais gente, recursos e territórios. Algo que, como ensinam os povos de Rojava a Chiapas, é custoso, contraditório, incompleto e atrai permanente embate com nossos inimigos.
Mas avaliar tendências históricas ou recentes e nos preparar para assumir posturas coerentes aos nossos princípios não significa nos limitar a uma rígida análise dogmática sobre as lutas e transformações sociais. Deixar de enxergar padrões e tendências na história, para acreditar em leis pretensamente científicas é um erro imobilizador.
Aqueles que esperam “a conjuntura ideal”, não reconhecem o papel da revolta e esperam pelas “leis naturais da revolução”, querem compreender as “leis” que regem a sociedade como quem avalia as propriedades dos astros ou dos minerais. Preferem não agir para não ter que apostar no desconhecido, imensurável ou previsível – aquilo que não podem controlar. Por isso, ao preferir as previsíveis “leis da revolução”, acabam do lado das previsíveis leis da polícia e da burguesia: vão atacar, sabotar, denunciar e entregar elementos que desafiam ambas.
“A ironia da história universal põe tudo de cabeça para baixo. Nós, os ‘revolucionários’, os ‘subversivos’, prosperamos muito melhor com os meios legais do que com os ilegais e a subversão.”
– Frederich Engels, Prefácio de ‘As Lutas de Classes em França’
É preciso abertura aos sinais de nossos tempos e apostar no que não conhecemos ou podemos controlar. Quem só quer encontrar uma “legalidade científica” para agir por transformação social, nunca luta de fato e apenas espera pela autorrealização da “dialética histórica”. Assim como os marxistas ortodoxos apenas esperam pelo resultado da contradição capitalista, abrindo mão da subversão e da ideia de revolução para respeitar a lei do estado e disputar seus cargos democraticamente, os novos sacerdotes “apreendendo” e “revelando” as regras dos movimentos sociais e dos protestos de rua nunca acreditam ser “a hora certa de radicalizar”. E quando o fascismo marcha com cada vez mais novos membros nas ruas e mais poder nas instituições, é porque, como já dissemos, seu relógio está mais do que atrasado.
Muito mais tragédias e muito mais oportunidades foram perdidas por quem teme o imprevisível do que por aqueles que acham que leis claras como as da termodinâmica poderiam ser aplicadas na sociedade, para prever e antecipar eventos. Talvez por isso que, de 1917 a 2020, radicais são quase sempre pegos de surpresa pelos levantes sociais.
Para momentos de efervescência nas ruas, precisamos de ideias e ferramentas práticas que deem suporte àquelas pessoas que, por sofrerem a perda e as sequelas de uma tragédia como a pandemia, a fome e a exclusão sistemáticas, se erguem e tomam iniciativa sem nada mais do que a disposição para negar e atacar materialmente essa ordem.
Se nenhuma conjuntura é favorável, ataque!
Se não ficou claro, diremos: uma das únicas “regras” que reconhecemos é que governos não recuam sem a pressão das ruas em chamas, das barricadas, dos bloqueios, das lojas saqueadas, palácios vandalizados e sem uma resposta proporcional à violência policial de forma generalizada. O maior protesto antiguerra da história, nos EUA em 2003, não surtiu efeito algum contra a invasão do Iraque pois se comportou e respeitou a lei e a ordem. Mas quando 200 cidades viram delegacias e prédios inteiros em chamas em 2020, as mídias e os políticos adicionaram até mesmo o fim da polícia na sua lista de debates — debate até então restrito aos movimentos mais radicais.
A única vez que a pauta única e imediata contra o aumento das tarifas dos transportes obteve uma vitória em escala nacional no Brasil nas últimas décadas foi quando, em 2013, movimentos autônomos chamaram o povo para as ruas sem pretensão de controlar ninguém, e confrontos e vandalismo tomaram centenas de cidades pelo país sem se submeter ao legalismo sindical e partidário.
O trabalho de base, a militância cotidiana que constrói laços e supre as necessidades imediatas da população não necessariamente são ameaçados quando há um levante em curso. Aliás, podem ser fundamentais para prover solidariedade, apoio material e convocar mais gente para manter as mobilizações por mais tempo. Mas não devem ser pretexto para algum movimento escolher o lado da lei, da polícia, da ordem e dos 1% no controle, assassinando com fome e bala os de baixo. Ninguém precisa estar em todas as formas de luta, ação e organização. Mas quando um black bloc, uma barricada, uma primera línea surge para revidar à agressão policial e atacar as estruturas de poder, cabe aos que se organizam previamente e se dizem revolucionárias apoiar e, no mínimo, prestar total solidariedade com a revolta dos de baixo.
Guy Debord ressaltou as revoltas no bairro negro de Watts, Los Angeles, em 1965, quando um incidente de trânsito culminou em dez dias de confrontos, saques e vandalismo. Segundo o autor, aquela foi “uma revolta contra a mercadoria, contra o mundo da mercadoria e do trabalhador-consumidor hierarquicamente submisso aos padrões da mercadoria. Os negros de Los Angeles […] tomam ao pé da letra a propaganda do capitalismo moderno […]. Querem possuir imediatamente todos os objetos expostos e abstratamente disponíveis porque querem usá-los. Desta maneira, recusam o valor de troca, a realidade mercantil que é seu molde […]. O homem que destrói as mercadorias demonstra sua superioridade humana sobre aquelas.” E continua: “a produção mercantil, assim que deixa de ser comprada, transforma-se em criticável e modificável em todas as suas formas particulares.”
Debord nos lembra que a revolta popular contra a opressão é, sem dúvida, a forma de crítica mais sofisticada possível. Onde ela surgir, devemos apoiar. Se não fisicamente, reforçando sua legitimidade e sua necessidade para uma transformação social.
Ainda assim, nem tudo é uma questão de quanta depredação ou quantas pessoas organizadas temos para lutar e arriscar suas vidas e sua liberdade para chegarmos a alguma mudança social. Da mesma forma, nem tudo que “vem do povo” também deve ser imediatamente aceito como desejável. O machismo e o fascismo podem vir do povo e podem ser o resultado de séculos de uma construção social e cultural. A revolta prática contra medidas impostas de cima para baixo, treina a organização e a ação de quem já se organiza, mas também convida novas pessoas a tomarem posição e avança debates: seja pelo fim da polícia, pelo acesso à cidade, seja sobre machismo dentro da esquerda ou os limites do reformismo.
Como disse Mark Bray sobre os protestos nos EUA em 2020, “não há nem longe membros suficientes ou grupos Antifa nos Estados Unidos para promover o que estamos vendo”. Essa é uma constatação básica que nos lembra que a revolta nos EUA foi uma revolta generalizada e do povo. Mas especialmente, da população negra e pobre. Por mais que gostemos de ver anarquistas, antifascistas e demais radicais marcando presença como uma força social potente, ela ainda é hoje uma força marginal capaz, quando muito, de influenciar e auxiliar as revoltas. Mas as pessoas que vão para as ruas em momentos como esse não são militantes experientes deliberando formalmente o que é “mais responsável” a se fazer.
Portanto, não existe “conjuntura favorável” para a luta dos oprimidos e todos os momentos oferecerão vantagens e desafios. Não existe momento em que a revolta pode acontecer sem “o risco de um golpe”, “de mais repressão” ou de “dar lugar a uma onda fascista”. Todos esses elementos estão sempre presente em maior ou menor grau. Não agir de forma combativa por “não ser essa a vontade da maioria” é esquecer que levantes e revoluções são trabalho de minorias da população. Nem 3% dos habitantes foram as ruas do Brasil em 2013 ou dos vários países durante a Primavera Árabe – e conhecemos bem o efeito devastador desse “pequeno número”. Não é por acaso que, da França em 1848 ao Chile de 2021, eleições e plebiscitos são uma ótima ferramenta para frear insurreições e transformar movimentações revolucionárias em reformas pacificadoras.
Nesse tema, ficamos com as palavras de camaradas da Teia dos Povos em agosto de 2021:
Nossos povos fizeram Palmares, os Redutos do Contestado, Canudos, Calderão de Santa Cruz do Deserto, a Balaiada, a Cabanagem… nossos povos são rebeldes e não esperam conjuntura boa para lutar. Zumbi, Antônio Conselheiro, Manuel Balaio não poderiam esperar a mudança de governantes para agirem. Isto é muito sério, minha gente. Se queremos que o derradeiro dia de luta chegue, precisamos hoje amolar as foices, hastear as bandeiras e fazer uma boa roça que nos dê sustança para a batalha. A palavra da hora é autodefesa! O derradeiro dia não chegará se não mostrarmos desde já que é possível, que já soubemos e ainda sabemos fazer. E para isto, não tenham dúvidas, é fundamental a aliança de povos. Nenhum partido, organização ou povo pode unificar tantos povos heterogêneos com sua forma de agir. Então, que tenhamos uma aliança heterogênea, desde baixo, à esquerda e por terra e território.
Esta não é uma carta, é um convite à resistência, um convite a se aprumar para a guerra!”
—Teia dos Povos, “Só nos resta a GUERRA”
Conclusão: 3 lados de um conflito global
A direita no poder dá aos movimentos radicais e anticapitalistas a chance de mostrarem formas de luta e objetivos que não dependem de relação com o estado. Rompendo o laço (ou a cooptação) que os movimentos sociais mantinham com a esquerda no governo e dificulta, mesmo que por um tempo, a identificação que os movimentos e muitas pessoas podem ainda ter com o aparato estatal e suas narrativas democráticas e institucionais.
No fim das contas, sabemos que nem a esquerda, nem muito menos a direita no comando do Estado serão capazes de minimizar os impactos de uma economia neoliberal globalizada, cada vez mais brutal e excludente. Se a luta indígena é a única a não recuar no Brasil hoje, é porque sabe que não adianta esperar por outro governo, o estado é sempre inimigo dos povos e das florestas e um aliado do capital. Não surpreende que nos governos petistas não houve demarcações que garantissem o acesso às terras indígenas hoje ameaçadas com a proposta do Marco Temporal, além de ter sido o governo de Dilma Rousseff que promoveu enormes ataques à Amazônia e seus povos com a construção de Belo Monte e um dos menores números de terras reconhecidas.
Não podemos deixar que a frustração com o governo Bolsonaro reabilite o projeto petista e pacifique as ruas novamente. Precisamos evitar esse pêndulo de atração e insatisfação que reúne a simpatia das massas hora à direita, hora à esquerda em períodos eleitoras.
Em momentos de crise neoliberal, pode ser útil para a elite assumir reformas apresentadas pela esquerda institucional para incluir os pobres nas linhas de crédito e consumo ou a um relativo bem-estar. Mas quando é o momento de retomar as rédeas e os lucros, neoliberais se aliam a fascistas para a retomada do controle total do estado.
Por isso é fundamental lembrar de lutamos e resistimos contra todos os que disputam pelo controle do Estado e do Capital, e que irão sempre usar seu aparato policial contra nós da base da pirâmide. Não esquecemos que foi no governo do PT que vimos um aparelho repressivo contra movimentos sociais e a ocupação das favelas serem levadas adiante como nunca. Tudo isso feito de forma a dar legitimidade para tais ações e instituições militarizadas que agora Bolsonaro herdou para usar contra movimentos sociais e toda a população.
O cenário dos conflitos sociais em escala global não se reduz apenas ao embate binário entre direita/esquerda, conservadores/progressistas, bolsonaristas/petistas. Existem ao menos três grande lados nos conflitos globais se delineando hoje, dentre os quais podemos nos situar de acordo com a perspectiva de ação e proposta para futuro:
1. Neoliberais de todos os tipos, dos Democratas nos EUA a partidos supostamente esquerdistas como o SYRIZA na Grécia, Podemos na Espanha e o Partido dos Trabalhadores no Brasil. Embora discordem dos detalhes, todos compartilham um objetivo comum de usar a governança estatal global em rede para estabilizar o mundo em prol do Capitalismo.
2. Nacionalistas como Trump, Erdogan, Bolsonaro e extremistas como o grupo Estado Islâmico ou o Talibã, que deixaram claro que não se incomodam com a construção de estados genocidas e a eliminação de povos – sejam indígenas, negros, LGBTTTQI, imigrantes, mexicanos, curdos ou palestinos. Essa categoria também inclui Assad, Putin e outros demagogos que – como os neoliberais – costumam estar em desacordo uns com os outros, mas todos buscam a mesma visão de um mundo pós-neoliberal de etnoestados concorrentes entre si.
3. Movimentos sociais radicais de libertação que buscam promover a autodeterminação pluralista e igualitária, com base na autonomia e na solidariedade. Anarquistas, Zapatistas e a revolução em Rojava são exemplos que se encaixam nessa categoria, mesmo que grande parte também tenha um caráter nacionalista.
Nesse cenário, onde o conflito social não é mais binário, mas se divide em três, movimentos sociais anticapitalistas precisam reunir forças e desenvolver suas próprias narrativas e estratégias para difundir conhecimento, apoio, solidariedade e coordenação. É nessa perspectiva que buscaremos manter e ampliar nosso campo de trabalho.
Movimentos autônomos, anarquistas, indígenas, antifascistas e outros fora da asa e da agenda eleitoral da centro-esquerda, devem romper o cerco, construir suas bases e estruturas para luta ou serão sempre usados como linha de frente quando for conveniente fazer oposição e rifados na hora de disputar a legitimidade necessária para ocupar cargos no estado.
Se compomos frentes amplas ou “unificadas” em luta contra Bolsonaro ou qualquer fascista no presente, não devemos nos iludir achando que nossa diferença de objetivos finais não trará contradições e conflitos agora. Se as bases do PCB ou MTST vão agredir manifestantes radicais nas ruas, Lula e seus iguais tampouco são aliados. São parte dos que querem amaciar as relações no capitalismo para perpetuá-lo ao máximo, tornando a sua queda ainda mais dura – seja com um golpe fascista, catástrofes climáticas ou, provavelmente, uma combinação de ambos.
Lula, que percorre o Brasil num clima de pré-campanha não oficial, não pronunciou nenhuma palavra em apoio a luta indígena contra a PL 490, o Marco Temporal e todos chamado Combo da Morte contra os povos e florestas. Seu compromisso, como já sabemos, é com a gestão “humanizada” do capital. Em declarações públicas e na internet, está mais preocupado em elogiar e fazer referências ao legado de Getúlio Vargas, ditador golpista que colaborou com a Alemanha de Hitler e fez de tudo para esmagar o movimento operário. O lado de Lula e do PT é o lado do estado e da polícia, das UPP’s, de Belo Monte, ocupação do Haiti, paralisação da reforma agrária, lucro recorde dos bancos e dos empresários.
Há 67 anos Getúlio Vargas dava um tiro no coração. Eu nasci no movimento sindical, era crítico de Getúlio, demorei muito tempo pra entender a importância dele. Um homem que foi responsável pela consolidação dos direitos trabalhistas do povo desse país.
— Lula (@LulaOficial) August 24, 2021
Não podemos esperar por um partido ou um único salvador para fazer recuar esse governo e sua base fascista e militarizada. Lula pode até vencer em 2022, mas a minoria de apoiadores de Bolsonaro, repleta de milicianos e neonazistas, não vão baixar a guarda nem se desfazer das milhares de novas armas em circulação graças às políticas e propaganda do presidente. Mas sem uma oposição de base, organizada nas ruas e em toda a sociedade, o fascismo nunca recua. E, como aponta Mark Bray, uma minoria fascista já é risco suficiente.
A linha está traçada nesse conflito de 3 lados. Apenas um quer liberdade dos povos, as florestas de pé e os rios limpos. Não há outra palavra: estamos em guerra pela vida.
Post Scriptum:
Enquanto escrevíamos esse breve texto, nos deparamos com mais uma reunião da esquerda de São Paulo, a direita e as forças policiais. As forças bolsonaristas e o próprio presidente vem encarando o 7 de Setembro como uma data central para demonstrar suas forças na rua, inclusive ventilando por muitos meios a possibilidade de um golpe, a esquerda novamente se finge de morta e decide organizar um ato imóvel no Vale do Anhagabau em São Paulo (colocando a culpa novamente na tática black bloc), em Belo Horizonte o Grito de Excluídos após reunião com a PM mudou o local de concentração para evitar conflitos com a direita, por todo o país a esquerda tem recuado em seus locais tradicionais de protesto para que a direita marche tranquilamente.
Dias atrás o conhecido deputado federal e ícone de esquerda Marcelo Freixo, disse que a esquerda não deveria dar mais motivos para que o Bolsonaro agisse com violência.
O próprio ex-presidente Lula afirmou que não iria nas manifestações de 7 de setembro, já que a cúpula do PT decidiu que é mais importante deixar Bolsonaro “derretendo” (e levando com ele o país) do que fazer uma real oposição.
De tanto fingir-se de morta, talvez essa esquerda já esteja!
Ilustrações por Francisco Papas Fritas — não deixe que a revolta seja apenas uma bela imagem como essas, ou apenas um retrato nos livros de história.
Mais informações:
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