Copa do Mundo: autoritarismo, nacionalismo e negócios

Cartaz na Alemanha convocando para o boicote à Copa do Mundo de Futebol no Catar.

A Copa do Mundo FIFA no Catar acabou, mas, infelizmente, outras virão. A próxima, em 2026, será dividida entre México, Canadá e EUA e já podemos prever os impactos para os pobres e minorias desses locais tão marcados pela segregação e ataques à comunidades indígenas e negras. Mas por agora, convidamos todo o mundo a relembrar a trajetória da Copa do Mundo desde sua estreia em 1930 no Uruguai, passando pela sua relação com a Itália de Mussolini e as ditaduras civis-militares na América Latina, como na Argentina e no Brasil, fazendo a ponte entre esporte, identidade nacional, racismo, polícias e, é claro, negócios.

Como abordamos em uma publicação de 2014, para a máfia internacional do esporte conhecida como FIFA, o torneio é o seu maior negócio, transmitido para metade da população do globo e gerando um faturamento de cerca de 40 bilhões de reais. Na sua última edição, a primeira em um país árabe, a Copa do Mundo ganhou manchetes e até documentários dedicados a expor os impactos sociais e os altos custos para trabalhadores e trabalhadoras em condições sub-humanas que ergueram e operaram as estruturas do maior megaevento do planeta no Catar.

O pequeno país do Sudoeste Asiático, de apenas 2,8 milhões de habitantes é considerado o mais rico do mundo devido à abundância de petróleo e gás natural, o que colabora para as suspeitas de suborno para que membros da FIFA votassem para que país árabe sediasse o evento. Governado pela monarquia absolutista (Emirado) hereditária, imperam a censura à imprensa, a supressão aos direitos da mulheres e a criminalização da homossexualidade e toda comunidade LGBTQIA+ pelo Direito Islâmico.

Mesmo sendo tão rico, Catar não contava com toda a mão de obra necessária para erguer uma cidade praticamente do zero e 7 estádios em menos de uma década. Com apenas 380 mil cidadãos nascidos no Qatar e 90% da população total composta por imigrantes, o governo impulsionou a contratação de mais de 5 milhões de imigrantes, principalmente da Índia, Paquistão, Nepal e Bangladesh para trabalhar na construção dessas megaestruturas, incluindo estradas, aeroportos, hotéis e muito mais sob o calor assassino de 52ºC, que matou ao menos 571 trabalhadores nepaleses, chegando à soma total de quase 7 mil trabalhadores mortos – muitos, devolvidos às suas famílias em uma caixa com o nome do falecido do lado de fora.

Trabalhadores em obras da Copa do Catar.

Esses milhares de trabalhadores imigrantes foram submetidos a um regime de trabalho conhecido como Kafala, uma forma escravidão moderna, muito semelhante com o que vemos no agronegócio brasileiro, onde trabalhadores já chegam endividados para pagar pelo transporte que os levou até o local de trabalho e têm seus documentos confiscados enquanto estiverem trabalhando. A maioria estava alojada em instalações imundas sem água ou esgoto apropriados, defecando em buracos no chão e tomando banho em baldes.

Apesar de parecer que apenas agora direitos humanos básicos e as comunidades pobres e minorias estejam sob ataque para uma Copa do Mundo, lembramos as absurdas consequências das Copas realizadas no Brasil e na África do Sul, em 2014 e 2010 respectivamente. No primeiro, serviu para vender uma falsa imagem de integração racial e superação do sistema de Apartheid, enquanto removia favelas, sem-tetos e prostitutas dos centros urbanos. No segundo, removeu cerca de 250 mil pessoas de suas casas nos governos Lula-Dilma do PT, de abrir caminho para operações de pacificação e as UPPs no Rio de Janeiro.

Em todos os megaeventos esportivos há oportunidade para governos e capitalistas reorganizarem suas atividades e a estrutura das cidades. No caminho, vemos a falta de consideração com os interesses da população e a resistência popular. A situação piora conforme as condições sociais e econômica do país. Em 2006, a Suécia se recusou a receber a Copa do Mundo FIFA por preferir investir os altos custos públicos necessários para construir moradias. Nas recentes Olimpíadas de Tóquio em 2020, protestos também foram abafados quando denunciavam os riscos de um torneio em meio à pandemia. Como alegou o Secretário-Geral da FIFA em 2013, governos autocráticos e menos transparentes são os mais ideais para a realização de uma copa do mundo, o que explica o desvio das democracias centrais do capitalismo na última década, como Japão e Alemanha, para desembocar em países marcados pela desigualdade como Brasil e África do Sul, passando por regimes autocráticos como Rússia e Catar. Mesmo assim, além da oportunidade de reorganização do espaço e das relações de trabalho no capitalismo global, é possível ver e aprender com as lutas populares e anticapitalistas em diferentes partes do planeta resistindo e denunciando os efeitos dos megaeventos.

Vou falar uma coisa que é loucura, mas menos democracia às vezes é melhor para organizar uma Copa do Mundo[…]. Quando você tem um chefe de Estado muito forte que pode decidir, como talvez Putin possa fazer em 2018… isso é mais fácil para nós organizadores do que um país como a Alemanha… onde você tem que negociar em diferentes níveis.”

Jerome Valcke, Secretário-geral da FIFA, 2013.

MEGAEVENTOS COMO DINAMIZADOR ECONÔMICO E POLÍTICO

Numa economia neoliberal cada vez mais globalizada e urbana, as cidades são os principais palcos da acumulação de capital. Para atrair investimentos para um país, é necessário tornar suas cidades polos atrativos para investidores. Isso inclui ter uma vasta mão de obra disponível, um mercado consumidor voraz inserido na linguagem publicitária global e, principalmente, dispor das estruturas de serviços e produtos necessários para ser competitiva a nível global: polos industriais e de pesquisa, aeroportos internacionais, hotéis de luxo, centros de convenção, complexos portuários, centros comerciais, etc. O país que quer competir por investimentos e uma posição de destaque na economia mundial deve usar suas cidades como instrumentos para tal competição.

A visibilidade é crucial nesse processo: os eventos da Copa são transmitidos para mais de 3 bilhões de pessoas em 204 países, abrindo caminho para a venda e a exploração de imagens e publicidade em escala global. Uma influência que as grandes corporações e governos não querem abrir mão. Por isso, em conjunto, eles vão trabalhar para aprimorar a estrutura urbana com o objetivo de concentrar mais poder e capitais. Essa dinâmica integra um novo processo pós-colonial de unificação e uniformização urbana e mercadológica da economia mundial, voltada para o benefício dos ricos e mascarada sob o discurso de “legado dos megaeventos”. Como se tais obras fossem para o uso e o benefício da população como um todo. Pelo contrário, vemos o aumento de uma infraestrutura voltada para a circulação de automóveis e privatização do uso do espaço público ao invés de melhorias no transporte coletivo e nas políticas de mobilidade e acesso à cidade. Vemos a expansão de um mercado imobiliário “financeirizado” e especulativo ao invés da garantia de moradia digna e o fim da concentração fundiária urbana e rural. Além de importar um modelo de urbanização elitista para cidades já marcadas pela desigualdade social, a imposição dessas políticas demanda uma implementação policial e legal para lidar com a instabilidade e os conflitos inerentes a esse sistema, e conter a resistência política dos setores sociais mais afetados que vão combater a tirania por trás dos eventos.

Uma Breve História da Copa do Mundo

Para entender um aparato ou instituição, é preciso olhar para trás, para sua origem, para identificar a que fins ele foi criado. Em nossos esforços para entender a Copa do Mundo, voltamos a 1930, quando a primeira Copa foi realizada no Uruguai. Aquele pequeno país, que completou 100 anos de nacionalidade naquele ano, fez de tudo para sediar a Copa do Mundo e usá-la como ferramenta para consolidar uma identidade nacional.

Esses esforços incluíram a construção de novas estradas, estruturas urbanas e o maior estádio do mundo, além de pagar as despesas de viagem e hospedagem de todas as equipes que iriam competir – algo que nunca mais ocorreu a nenhum país-sede. Através de um esquema de fraudes e ameaças, o Uruguai foi premiado com o campeonato mundial e colheu a recompensa desejada de um renovado espírito nacionalista. Em três anos, o presidente deu um golpe de estado apoiado pela polícia, pelo exército e pelo partido político nacionalista.

Quatro anos depois, o bicampeonato aconteceu na Itália de Mussolini. Com saudações fascistas antes das partidas e a ameaça de morte pairando sobre toda a seleção italiana, o campeonato voltou a ser concedido ao país-sede. A comodidade de ser anfitriã e campeã em uma ditadura, quando o clamor nacionalista é sempre bem-vindo, pôde ser percebida em 1978, quando a Argentina sediou e conquistou a Copa no auge de uma sangrenta ditadura que “desapareceu” cerca de 30 mil pessoas. Também marcou a primeira vez que os eventos foram transmitidos daquele país para televisões de todo o mundo, destacando a ligação entre Copas do Mundo, ditaduras (seja com ou sem eleições), publicidade e melhorias na infraestrutura empresarial e de consumo. Com o tempo não foi mais necessário que países-sede comprassem suas vitórias para conseguir mobilizar sentimentos nacionalistas e proporcionar mais controle sobre os fluxos de riqueza e a criação de novos mercados para as elites locais e multinacionais.

Cartazes promovendo o boicote à Copa na Argentina, em meio à ditadura militar que matava e torturava milhares de pessoas.

Mais tarde, na década de 1980, tanto a Copa do Mundo quanto os Jogos Olímpicos passaram a servir de motores para a expansão do neoliberalismo global. Os eventos esportivos internacionais começaram a refletir a presença e a influência de corporações multinacionais que queriam que suas marcas fossem vistas por bilhões de pessoas e vendidas em todo o mundo.

Há também uma relação mais direta com a transformação urbana no discurso que justifica a construção de uma estrutura a ser deixada como “legado urbano”, como forma de ingressar na lista global de cidades capazes de atrair investimentos, turismo e publicidade em uma economia cada vez mais globalizada. Isso coincide com a diminuição do papel do Estado na gestão das demandas urbanas e o surgimento de um superávit financeiro internacional em busca de novos terrenos para se materializar como expansão comercial.

As políticas habitacionais perdem espaço para um mercado especulativo em que estradas, conjuntos arquitetônicos, shopping centers, portos e aeroportos são financiados com dinheiro público, mas apenas para que empreiteiras, imobiliárias e outros cartéis possam lucrar. Consequentemente, os aluguéis e o valor financeiro das propriedades disparam, forçando os moradores de bairros inteiros a se mudarem – se já não tiverem sido deslocados por despejos forçados, que podem assumir a forma de operações militares de boa-fé quando os moradores estão ocupando sem o devido status legal .

No Brasil, como na maioria dos países subdesenvolvidos ou em desenvolvimento, as políticas de gentrificação e renovação urbana assumem uma forma particularmente violenta porque atingem regiões e populações em situação precária abaixo dos padrões mínimos de vida encontrados nos países ricos. Esses bairros e favelas geralmente compreendem a maior parte das áreas suburbanas das grandes cidades, crescendo sem infraestrutura estatal ou planejamento urbano, pois as pessoas constroem suas casas da maneira que podem – sem recursos básicos, como serviços de água ou esgoto, e em solo vulnerável a chuvas, inundações , e deslizamentos de terra. As únicas instituições estatais sempre presentes são as forças policiais e militares.

Quando um megaevento se aproxima, essas favelas, prédios de ocupação autônoma ou terrenos improdutivos ocupados por movimentos rurais serão desmatados por todos os meios necessários. No Rio de Janeiro, as portas dos prédios a serem despejados foram pintadas com um número de identificação por funcionários da prefeitura, assim como os nazistas faziam com as vítimas do Holocausto; os moradores tiveram um prazo para deixar suas casas e não puderam recorrer aos meios legais para buscar uma indenização justa.

Foi assim que o Brasil violou sistematicamente as leis internacionais de direito à moradia, das quais é signatário, negando às comunidades afetadas a oportunidade de discutir os projetos que as desalojaram. Se um megaevento como a Copa do Mundo traz ganhos para um país, a questão é quem vai se beneficiar. Certamente não serão populações pobres e desprivilegiadas. João Havelange, ex-presidente brasileiro da FIFA (1974-1998), afirmou “vender um produto chamado futebol”, argumentando que “política e futebol não se misturam”. Sabemos que há muita política e poder por trás desse “produto”.

Um agente do estado escrevendo na parede de uma casa marcada para ser despejada na Favela Vila Autódromo, no Rio de Janeiro.

O PT de Lula e a Copa do Mundo

Um mega-evento não acontece no vazio ou sem um contexto amplo. Desde sua origem carrega as intenções de grupos corporativos e das máfias no comando da máquina estatal que vão se aprimorando a cada edição, seja para implementar novas políticas e mudanças urbanísticas que, sem um bom pretexto, jamais se tornariam prioridade, seja para acelerar ou otimizar um processo de globalização econômica ou tecnológica ou mesmo para renovar e integrar uma protocolo global de policiamento e militarização. O fato de o Brasil ter se candidatado para sediar os três maiores megaeventos do planeta em menos de uma década nos alerta para o que está por trás de tamanha ambição. O país recebeu a Copa do Mundo em 2014 e as Olimpíadas em 2016 e foi um forte candidato a sediar a Expo 2020, perdendo para Dubai: respectivamente o primeiro, o segundo e o terceiro maior evento do mundo.

Quais as intenções e os verdadeiros beneficiados desses empreendimentos? Qual o contexto de tamanha disputa por visibilidade mundial? A FIFA e o COI (Comitê Olímpico Internacional) há muito tempo perceberam que seus eventos tem o potencial de atrair para um país grande visibilidade e investimentos de toda parte do mundo. Portanto, têm a cobiça de governantes locais que querem fazer história dispondo de popularidade e de pretextos para usar massivos recursos públicos para “modernizar” cidades e mercados imobiliários e alavancar empreendimentos privados, enquanto necessidades urbanísticas populares, como educação, saúde e qualidade de vida em geral são negligenciados. O Brasil foi eleito em 2007 para sediar a Copa do Mundo de 2014. Era o primeiro ano do segundo mandato do PT, com Lula como presidente. E seu governo, desde o início, desenhou projeções a longo prazo para se estabelecer como potência mundial, tanto econômica quanto militar.

Em 2004 Lula enviou 1200 soldados para o Haiti numa intervenção com o objetivo de “estabilizar” o país em crise desde a queda do presidente Aristide. Foi a primeira vez que o Brasil liderou uma intervenção militar internacional e se deu através dos pedidos dos EUA e da França. Lula esperava com isso obter apoio dos dois países para se candidatar a uma cadeira permanente no Conselho de Segurança da ONU quando esse passasse por uma reforma. Até hoje não aconteceu reforma e o Brasil não conseguiu a cadeira, mas se manteve presente em 9 das 16 operações de manutenções da paz da ONU ao redor do mundo. Mas o governo petista foi com sua missão no Haiti até o limite e levou a seleção brasileira de futebol para uma partida com a seleção haitiana na capital Porto Príncipe, num amistoso conhecido como “Jogo da Paz”, que comemorava o “sucesso” da ocupação e marcava o início de uma campanha de desarmamento da população. O evento contou com um desfile dos jogadores brasileiros em tanques de guerra enquanto eram ovacionados pela multidão.

A ambição e a megalomania de Lula eram tanta, que não se importou em dizer que a Copa seria do capital privado e em seguida abrir os cofres público para realizar o torneio mais caro de todos os tempos, que custou mais, inclusive, que as últimas três Copas juntas: Japão e Coreia do Sul em 2002, Alemanha em 2006 e África do Sul em 2010 custaram 30 bilhões de dólares. A Copa no Brasil em 2014 custou mais de 40 bilhões. A reforma de sete grande estádios e a construção de pelo menos cinco novos que não serão usados após o torneio (Brasília, Cuiabá, Manaus, Natal e Recife) foi quase inteiramente feita com dinheiro público. No total, foram disponibilizados 12 estádios de alto padrão, sendo que a própria FIFA exigia somente oito. Os planos de Lula e do Partido dos Trabalhadores eram muito grandiosos para caber em apenas dois mandatos, por isso houveram ainda desdobramentos de seus projetos no segundo mandato de Dilma, o quarto com o PT na Presidência da República.

Dilma foi ministra nos oito anos em que Lula foi presidente: primeiro como ministra das Minas e Energia e depois na Casa Civil. Foi também a mãe do PAC (Programa de Aceleração do Crescimento) que retomou investimentos dos capitais da especulação urbana. Agora, vai precisar lidar com a tremenda dívida pública deixada como parte do verdadeiro legado da Copa do Mundo enquanto se prepara para as Olimpíadas já em 2016, também conquistadas durante a gestão de Lula. Só para a Copa no Brasil, a FIFA fechou mais de 900 contratos comerciais com empresas parceiras e patrocinadoras que tiveram monopólios na venda de produtos ligados ao torneio na região dos estádios e Fan Fests, além de alimentos, bebidas e serviços. Mesmo assim, o governo isentou a FIFA de pagar mais de 1 bilhão em impostos para realizar a Copa mais cara da história, mas também a mais lucrativa: 9 bilhões de reais foram arrecadados pela entidade que diz não ter fins lucrativos. Para os governantes ligados à realização dos megaeventos, o maior lucro é político e eleitoral. Para a FIFA, as empresas que ela mesma indica para planejar as obras de infraestrutura e para as empresas e empreiteiras que, não por acaso, são parte dos grupos que financiam campanhas eleitorais do Partido dos Trabalhadores, há um lucro financeiro de cifras bilionárias garantido pelo investimento de recursos públicos locais e pela força da repressão policial.

Ou seja, é importante perceber que o PT não esteve nem poderia estar sozinho em seus projetos. Ele foi o partido que mais recebeu doações privadas nos últimos anos, chegando a 79 milhões de reais em 2013, enquanto o PSDB, PMDB e PSB juntos conseguiram apenas 46 milhões de reais. Em 2014, ano da reeleição de Dilma Rousseff, o PT recebeu 47 milhões de reais das empreiteiras investigadas pela Lava Jato antes do primeiro turno, enquanto PMDB obteve 38 milhões e o PSDB 28 milhões. Havia, obviamente, uma simbiose de poderes econômicos e políticos entre o Partido dos Trabalhadores e aqueles que controlam grandes capitais no país – a despeito do que esbravejam a direita partidária e organizada ou a classe média conservadora quando acusam o partido da presidente de querer instaurar uma “ditadura soviética” no país.

O verdadeiro legado da Copa: um estado de emergência para manter a desigualdade social.

Os maiores resultados e o real legado da Copa já foram contabilizados muito antes do primeiro jogo: 250 mil pessoas desalojadas para realização de obras de infraestrutura sem serem realocadas devidamente; inúmeras obras que já estão subutilizadas depois do evento à custos bilionários de mais corrupção e desvios de verbas públicas que podiam ir para outras áreas precarizadas, como saúde, moradia e educação; ao menos dez operários morreram nas obras e suas famílias seguem sem as devidas indenizações. Outras das consequências tomaram a cena durante as semanas antes e durante o evento, e provavelmente vão perdurar por muito tempo: como trabalhadoras ambulantes impedidas de trabalhar durante a Copa nas regiões próximas das zonas de exclusão da FIFA tiveram suas licenças canceladas indefinidamente, exploração sexual de menores, e a repressão intensa a quem se organiza e protesta para denunciar tudo isso – afinal, nenhuma dessas medidas poderiam ser aplicadas sem a força bruta policial. Com as revoltantes condições impostas pela FIFA, vimos o Estado brasileiro testando e implementando novas políticas e aparatos para controlar o inimigo interno, o questionamento e o protesto. Momentos como esse, um megaevento mundial que abala a economia e as paixões forjadas no espetáculo, no ufanismo e no nacionalismo de um país inteiro, servem de pretexto e experimento para a articulação de uma nova ordem de controle estatal e corporativo dentro de um Estado de Exceção permanente.

“Não vai ter Copa do Mundo!”

A Lei Geral da Copa (n. 12.663/2012) firmada em 2012 com o Governo Federal e a FIFA, uma instituição privada, foi a maior ofensiva legal contra o povo brasileiro com o objetivo de garantir que os “padrões FIFA” de organização de eventos viabilizassem a realização da Copa das Confederações 2013 e a Copa do Mundo 2014. Essa lei custou ao povo a suspensão de direitos e normas constitucionais que já são tão precárias para a maioria. Um tribunal de plantão foi armado para julgar em menos de 48 horas greves ocorridas durante a Copa. Enquanto trabalhadores perdiam o direito de denunciar suas condições e lutar por melhorias, a FIFA podia evadir riquezas e não pagar impostos por fazer seus negócios dentro do território brasileiro. Uma Secretaria Extraordinária de Segurança Pública para Grandes Eventos foi criada ferindo princípios federativos e democráticos. A privatização do espaço público também foi institucionalizada com a determinação do uso de “ruas exclusivas” para a FIFA e seus parceiros, onde até mesmo o comércio local seria obrigado a manter as portas fechadas dentro do perímetro de exclusão em torno dos estádios.

A autorregulação, também inconstitucional, permitiu que a própria FIFA atuasse no mercado sem qualquer intervenção estatal, estipulando o preço que quisesse para ingressos, suspendendo quase totalmente o direito à meia-entrada e qualquer aplicação do Código de Defesa do Consumidor. Além disso, foi permitido o trabalho voluntário de mais de 20 mil pessoas durante a Copa, que se sujeitaram a trabalhar sem a proteção de direitos trabalhistas básicos e fora das normas constitucionais, em situação análoga à escravidão. Sendo que o trabalho voluntário só é previsto por lei para instituições não-lucrativas que tenham fins “cívicos, culturais, educativos, recreativos ou de assistência social” – o que sabemos não ser nenhum dos casos da FIFA. Também foi permitido o uso do trabalho infantil em atividades ligadas ao jogos, como a de gandula, o que é proibido no Brasil desde 2004.

Polícia de choque no Brasil, junho de 2013.

Policiamento Global

Os megaeventos mundiais que forjam paixões no calor do espetáculo oferecem a oportunidade de experimentar levar o controle estatal e corporativo a um estado de exceção permanente, quando as leis e a Constituição podem ser quebradas em nome de mais segurança, mesmo quando violam os direitos dos cidadãos que dizem proteger.

O Estado montou um amplo aparato jurídico para criminalizar os movimentos sociais pautado em definições inteiramente subjetivas. Os movimentos sociais foram caracterizados como “forças opostas”; os protestos foram definidos como algo que “causaria pânico” ou “provocaria ou instigaria ações radicais e violentas”. Contra estes, o governo autorizou a atuação das Forças Armadas. O estado também estabeleceu tribunais especiais para lidar com casos relacionados à Copa do Mundo e aprovou novos regulamentos que permitem que os tribunais respondam a ações de protesto, como bloqueios de estradas, com leis antiterrorismo especialmente severas. Além disso, o governo brasileiro gastou bilhões de dólares em tanques com canhões de água, drones e outros robôs controlados à distância, e armas “menos letais” – ainda capazes de incapacitar e matar seus alvos – para conter a chamada “agitação civil” e proteger contra o “terrorismo”. Enquanto mísseis riscavam o céu em Gaza, depois que tiros e bombas israelenses mataram duas mil pessoas durante a ofensiva em território palestino em 2014, drones vendidos por Israel monitoravam os estádios da Copa do Mundo no Brasil.

Em 13 de julho, 1.500 policiais cercaram um protesto próximo ao Estádio do Maracanã, no Rio de Janeiro, atacando-o com bombas e balas de borracha; prenderam 30 manifestantes. Tanques cercaram as favelas. Caminhões do Exército estavam estacionados próximos aos estádios e às Fan Fests da FIFA, proporcionando um clima de repressão ostensiva. É claro que o Estado brasileiro vê seus pobres e movimentos sociais como seus próprios palestinos ou haitianos; as favelas são sua Faixa de Gaza ou Porto Príncipe.

No entanto, pode-se ver cartazes de apoio à resistência palestina exibidos juntamente com cartazes condenando a Copa do Mundo de 2014. Isso comunicou que a solidariedade, assim como a repressão, é “tão global quanto o capital”.

Armas fabricadas no Brasil foram usadas para reprimir a revolta do Parque Gezi na Turquia em 2013.

Durante a revolta do Parque Gezi, na Turquia, vimos imagens de pessoas exibindo cartuchos de gás lacrimogêneo e balas de borracha marcadas com a bandeira brasileira. Especulamos que fossem fabricados pela empresa Condor, uma das maiores produtoras mundiais de armas menos letais, localizada no estado do Rio de Janeiro. Em 2014, vimos 34 tanques alemães empregados na segurança da Copa do Mundo. Esses tanques blindados, com artilharia capaz de abater aeronaves, custaram ao Brasil 40 milhões de dólares. Enquanto isso, a empresa austríaca de armas de fogo Glock chegou a um acordo exclusivo para fornecer à polícia do Rio de Janeiro armas de fogo para as Olimpíadas de 2016. Segundo relatos de jornais,2a própria empresa financiou uma viagem da polícia brasileira a Viena. A FIFA atuou como assessor militar das Forças Armadas brasileiras, determinando quais equipamentos e armas deveriam ser adquiridos; foi a FIFA quem recomendou a compra de viaturas armadas.

A International Security and Defense Systems (ISDS) também forneceu equipamentos para vigilância e defesa durante as Olimpíadas. A ISDS é uma empresa israelense estabelecida em 1982; tem uma vasta experiência em massacrar e reprimir palestinos. Vários relatórios e documentos também apontam para o envolvimento do ISDS nos golpes e ditaduras na Guatemala, Honduras e El Salvador. Sua atuação no Brasil nas Olimpíadas de 2016 serviu como vitrine para seus produtos e serviços, além de um campo de testes de novas tecnologias e procedimentos de segurança em torno de megaeventos. Nas palavras do vice-presidente da ISDS, as Olimpíadas no Brasil seriam “uma incubadora de tecnologias israelenses nessas áreas”.

A utilização da Lei de Segurança Nacional (criada pela ditadura passada), a possível introdução de leis antiterrorismo, o Decreto de Lei e Ordem e a intensificação de outras leis mostram como os megaeventos servem para fortalecer as técnicas de controle do Estado. Ao impor essas regras, as corporações podem lucrar cada vez mais livremente. Tudo isso pode ser entendido como mais uma ofensiva do projeto neoliberal, centrado em uma grande cidade, mas com implicações globais. Serve como um meio de administrar a produção, o consumo e a circulação de bens e trabalho necessários para sua realização.

Ao herdar o projeto de Lula, o governo de Dilma Rousseff preparou o terreno para um policiamento militarizado e integrado que garantiria o sucesso da Copa. Os Centros Integrados de Comando e Controle (CICC), por exemplo, supervisionam 1.700 policiais: federais, militares, civis e rodoviários, além de equipes de trânsito e resgate, atuando em quatorze núcleos espalhados pelas doze cidades-sede dos jogos. O Ministério da Justiça de Dilma investiu cerca de US$ 100 milhões em tecnologia para operar esses centros; eles monitoram aeroportos, estágios, estações de metrô e outros pontos estratégicos em tempo real, e enviam reforços e apoios necessários a cada oito minutos. O plano de ação define uma resposta específica para cada tipo de ação; a polícia militar responde ao black bloc, a polícia federal responde a ocorrências no aeroporto, e assim por diante. O treinamento de habilidades para as forças armadas foi fornecido pelo FBI.

A tecnologia policial e militar criada para este evento permanecerá como legado permanente desses megaeventos. O Brasil, já militarizado e permeado por conflitos intermináveis, tornou-se agora ainda mais sofisticado em sua capacidade de conduzir a guerra interna. O intercâmbio de segurança entre os países tem sido fundamental para solidificar o papel do Brasil na economia global, trazendo treinamento, equipamentos e estratégias das forças policiais e militares mais violentas do mundo. Além da polícia e dos militares israelenses, eles incluíam a polícia francesa, o FBI e também empresas privadas como a Blackwater. A parceria Brasil-Israel continua trabalhando em conjunto contra o “terrorismo” e o narcotráfico. Acima de tudo, porém, eles se concentram no principal inimigo das economias e governos globalizados: seu próprio povo.

E a Copa Segue

Sim, porque é vergonhoso que os manifestantes contra a farra da FIFA sejam condenados, quando hoje grande parte dos próprios organizadores da Copa estão presos! Quando o ex-governador que nos reprimiu com selvageria está preso! Quando o país é levado à beira da fome e da devastação social pelos mesmos vampiros que tremeram de ódio quando a juventude tomou as ruas! Quando a Rede Globo, que nos perseguiu, ainda não explicou as suas negociatas em torno dos megaeventos!

Nota dos 23 ativistas condenados por conta das manifestações de 2013/2014

Esperávamos atingir um pico de atividade e mobilização durante a Copa do Mundo de 2014 comparável ao que havíamos alcançado em 2013. Mas descobrimos que as expectativas não contam muito no decorrer da história. Embora muitos gritassem “Não vai ter Copa!” e se organizassem para tomar  as ruas com as pessoas por ela impactadas, a Copa ocorreu sem grandes transtornos para os beneficiados.

Sabemos que as leis, os direitos legais e a constituição só atendem às nossas necessidades quando isso produz ganhos ainda maiores para o governo e os patrões. Entendemos que a soberania nacional como gestão das leis e da segurança de um país concentra nas mãos dos poderosos o monopólio da tomada de decisões que afeta a todos nós. Além disso, ficamos sabendo que até esse teatro democrático que promete direitos humanos e direitos trabalhistas aos precários é uma fraude: quase tudo que dizem ser inalienável está sujeito a suspensão arbitrária a qualquer momento. E com essa suspensão entramos nos estados de emergência e guerra preventiva, muitas vezes regidos por instituições transnacionais nada democráticas – como a FIFA, cujos dirigentes não foram eleitos.

Não são apenas os presos por participar de um protesto ou supostamente organizar manifestações; toda a população sofre as consequências de um estado de exceção cada vez mais permanente. As populações negras e periféricas, assim como pobres, rurais e sem-teto, sentirão o peso dessas mudanças.

A FIFA saiu do Brasil com o maior lucro de sua história. Em 2018, seguiu para a Rússia, um dos países mais repressores da atualidade em termos de liberdade de expressão e direitos civis. Em 2022, a Copa foi para o Catar, conhecido por utilizar a mão de obra escrava de imigrantes;  Desde a última década, quando a Copa do Mundo de 2002 aconteceu no Japão e na Coreia do Sul, vimos a FIFA voltar sua atenção para os países emergentes, democracias recentes (se é que são democracias) caracterizadas por profunda corrupção em seus governos e dispostas a se curvar a pressões externas para aprovar leis de emergência.

Se os meios legais e constitucionais de que dispomos para nos defendermos de nossos próprios políticos já são tão ineficientes, nosso poder de defesa contra instituições que sequer estão em nosso território é ainda mais tênue. Nesta situação, assim como as ocupações de florestas, parques e territórios para impedir a construção de aeroportos, barragens, complexos portuários, mineração, apenas a organização de base e radical pode oferecer alguma esperança na luta contra megaeventos e a constante reestruturação capitalista.

CONTRA A COPA E SEU MUNDO!

Protesto no Rio de Janeiro em 13 de julho de 2014.

Para saber mais:

LUTANDO NO BRASIL – Sobre grandes mobilizações e o que fazer quando a fumaça se dissipa: Em português | Em inglês

LUTANDO NO BRASIL – Parte II: RECIFE, SÃO ROQUE E RIO DE JANEIRO: Em português

Com Vandalismo – Documentário, Coletivo Nigéria, Fortaleza, 2013

Esquerda Eleitoral, Ações Diretas Fascistas e Resistência Antifascista As Eleições Brasileiras de 2022

As eleições de 2022 no Brasil colocaram em confronto o nacionalismo autoritário de Jair Bolsonaro ao esquerdismo institucional, Luiz Inácio Lula da Silva do PT. Cada uma dessas estratégias rivais de governança se apresentava como a única salvação possível para a democracia. Toda a campanha foi marcada por atos de violência fascista, e não apenas de eleitores: nas semanas finais, parlamentares aliados a Bolsonaro trocaram tiros com policiais e perseguiram adversários nas ruas com armas na mão.

Para dar um panorama sobre o fosso em que estamos e os possíveis desdobramentos futuros, apresentamos essa breve análise escrita em conjunto com camaradas do coletivo CrimethInc. sobre os protestos ao fim das eleições de 2022.

As eleições de 2022 colocaram em confronto o nacionalismo autoritário de Jair Bolsonaro ao esquerdismo institucional, Luiz Inácio Lula da Silva do PT. Cada uma dessas estratégias rivais de governança se apresentava como a única salvação possível para a democracia. Toda a campanha foi marcada por atos de violência fascista, e não apenas de eleitores: nas semanas finais, parlamentares aliados a Bolsonaro trocaram tiros com policiais e perseguiram adversários nas ruas com armas na mão.

Dia 30 de outubro, aconteceu o segundo turno da eleição para determinar o presidente e os governadores, e Bolsonaro perdeu para o ex-presidente Lula. Mas Lula venceu por apenas 1,8%, preparando o terreno para o conflito que continuará dividindo o Brasil, assim como as eleições de 2020 nos Estados Unidos não marcaram o fim da polarização política.

Após o resultado ser divulgado na noite de domingo, protestos de apoiadores do atual presidente de extrema-direita começaram pelas ruas nas cidades e bloqueando estradas do país. A esquerda institucional e seus movimentos de base se mantiveram recuados e, mais uma vez, coube a antifascistas, torcidas organizadas e moradores das periferias partir para a ação e começar ações de desbloqueio das vias. Essa pode ser uma amostra dos impasses e conflitos que veremos nos próximos anos de governo petista e de reorganização da extrema-direita.

Um problema global.

Não se Derrotada o Fascismo nas Urnas

As primeiras horas após a eleição deixaram claro que, longe de ser uma “derrota do fascismo”, o resultado nas urnas mostra que o projeto bolsonarista, abertamente autoritário, misógino, racista e que trabalhou para agravar a pandemia que matou mais de 700 mil pessoas, ainda tem apoio de metade do eleitorado – quase 60 milhões de pessoas. Parte considerável desse grupo está disposta a lutar por ele, nunca parando de se mobilizar e ocupar as ruas. Além disso, os aliados de Bolsonaro que conquistaram o governo de 13 estados e uma grande bancada nos parlamento darão continuidade à sua agenda criada pelos militares que o colocaram no poder junto de setores conservadores da burguesia, do cristianismo fundamentalista e dentro das forças de segurança.

Naquela noite, momentos após o resultado da eleição ser divulgado, um bolsonarista armado matou duas pessoas e baleou várias de uma mesma família que celebrava a vitória de Lula em Belo Horizonte. Na madrugada de segunda-feira, já haviam bloqueios em 221 pontos em estradas na metade dos estados do país, e em dois dias, 26 dos 27 estados contavam com estradas bloqueadas por bolsonaristas, chegando a um ápice de quase 900 pontos com bloqueios ou manifestações pelo país.

Os bloqueios no Brasil não surgiram do nada. Eles atendem à uma mobilização e radicalização reproduzida pelo presidente e seus apoiadores desde a vitória em 2018. Nos últimos anos, houveram outras paralizações os bloqueios de caminhões desempenharam um papel significativo na agitação da extrema-direita nas Américas. No Chile, caminhoneiros de direita organizaram bloqueios nas rodovias, colocando-os como uma resposta ao ativismo indígena mapuche. No México, os trabalhadores dos transportes são frequentemente usados ​​como tropas de choque para exercer pressão em nome do PRI (Partido Revolucionário Institucional). No inverno passado, no Canadá, caminhoneiros de extrema-direita montaram bloqueios em protesto contra as leis obrigando a vacinação. Provavelmente veremos mais bloqueios de caminhões no futuro.

Bolsonaro repetiu diversas vezes que temia ter o mesmo “destino que Jeanine Añez”, que assumiu o governo da Bolívia após um golpe de estado promovido pelas forças policiais enquanto os militares apenas observavam, e acabou condenada à prisão. O fato de que a direção da PRF decidiu atrasar eleitores no domingo e apoiar ativamente os bloqueios dos bolsonarista mostra que o caso boliviano serviu de inspiração para seus planos.

Derrotado, Bolsonaro levou quase 48 horas para se pronunciar. Em seu discurso de 2 minutos, não reconheceu abertamente o resultado, criticou o movimento que bloqueia estradas e recomendou que fizessem outras forma de “protesto pacífico”, mas fez o típico discurso ambíguo da extrema-direita que mantém inflamadas as suas bases militantes ao mesmo tempo em que tenta evitar implicações legais .

Longe de ser uma “derrota do fascismo”, o resultado nas urnas mostra que o projeto bolsonarista, abertamente autoritário, misógino, racista e que trabalhou para agravar a pandemia que matou mais de 700 mil pessoas, ainda tem apoio de metade do eleitorado – quase 60 milhões de pessoas. Parte considerável desse grupo está disposta a lutar por ele, nunca parando de se mobilizar e ocupar as ruas. Além disso, os aliados de Bolsonaro conquistaram a maioria dos cargos nos estados e nos parlamentos e darão continuidade à sua agenda criada pelos militares que o colocaram no poder junto de setores conservadores da burguesia, do cristianismo fundamentalista e dentro das forças de segurança.

Para além dos aliados de Bolsonaro que se perpetuarão no poder, é importante lembrar que seus milhões de eleitores e, especialmente, sua base radicalizada não vão mudar de ideia de um dia para o outro. Como os recentes atos e bloqueios mostram, eles estarão dispostos a levar suas ideias adiante mesmo sem Bolsonaro. O silêncio do presidente após a derrota trouxe à superfície uma articulação radical que se articulou sem um chamado central do líder, de seus filhos ou apoiadores diretos e figuras públicas conhecidas. Os chamados se deram nos grupos de Whatsapp e Telegram responsáveis por criar e difundir notícias falsas, discursos de ódio e conspiracionistas.

Diferente das greves de caminhoneiros durante o governo Temer e as de 2018, essa não é uma paralisação da categoria como um todo, mas de alguns setores patronais e relativamente poucos militantes radicalizados. E não é preciso muito para fechar as estradas. Apenas um veículo e algumas pessoas.

Manifestantes clamando por um golpe de estado militar.

Durante o domingo de eleição a PRF (Polícia Rodoviária Federal) fez uma megaoperação ilegal de blitz e apreensões de veículos que impediram milhares de eleitores de chegar nos postos de votação, especialmente nas regiões onde Lula era mais popular. No entanto, quando começaram as ações de apoiadores de bolsonaro revoltados com sua derrota, a PRF nada fez para impedir ou acabar com os bloqueios bolsonaristas.

No dia 1 de novembro, o acesso ao aeroporto internacional de Guarulhos, o principal da cidade de São Paulo, contou com ajuda direta de agentes da PRF que foram filmados rompendo as grades de acesso ao aeroporto.

Em algumas cidades, como no estado de Santa Catarina, manifestantes adotaram um tom abertamente nazi-fascista, com saudações nazistas e frases racistas.

Ao longo de quatro anos de resistência popular, incluindo a revolta por George Floyd, Donald Trump manteve o apoio inabalável da polícia e do Departamento de Segurança Interna (Department of Homeland Security), mas perdeuo apoio de grande parte da hierarquia militar dos EUA. Em contrapartida, Bolsonaro ainda pode contar com a fidelidade de parte considerável dos militares brasileiros. Após o pronunciamento de Bolsonaro em 2 de novembro, muitos dos manifestantes pró-Bolsonaro dirigiram suas demandas aos militares, exigindo “intervenção federal” – em outras palavras, um golpe militar. Nos Estados Unidos de Trump e no Brasil de Bolsonaro, as eleições não terminam com o anúncio dos resultados nas urnas; eles são, em última análise, determinados pelo equilíbrio de poder dentro do Estado.

Essa “base bolsonarista sem Bolsonaro” pode estar agora à deriva e esperando um novo líder. E sua primeira aposta está sendo nos militares que, ao longo de 4 anos, infiltraram mais de 6 mil oficiais no governo, sendo 2.600 indicados diretamente para cargos de confiança.

Essa foi a recompensa paga por Bolsonaro por ter sido colocado como representante desse “partido militar” informal que é anterior e pode sobreviver ao fim do bolsonarismo. Outro representante dessa classe é o recém-eleito governador do estado de São Paulo, Tarcísio de Freitas. O mais populoso estado do país, com maior orçamento público, estará agora sob a gestão de um ex-militar presente nas operações de ocupação do Haiti, comandadas pelos governos Lula-Dilma nas oeprações da MINUSTAH, da ONU. Agentes das forças de segurança ganharam eleições para muitos cargos no congresso, avançando uma “politização das polícias”, usando, inclusive, candidaturas coletivas aos moldes daquelas criadas por ativistas que vieram de movimentos de rua dispostos a “renovar a democracia”.

Ações autônomas e antifascistas

Durante pandemia torcidas organizadas, antifascistas e anarquistas e moradores de favelas organizaram redes de apoio mútuo e, ao mesmo tempo, promoveram atos para demandar direito à moradia, saúde, suprimentos e vacinas. Além disso, as torcidas de esquerda foram as primeiras a convocar contramanifestações para barrar carreatas e ações de apoiadores do presidente em São Paulo, Porto Alegre e Belo Horizonte.

Por outro lado, a esquerda tornou o “fique em casa” como um mandamento para sua prática política e preferiu recuar e desmobilizar as ações de rua com receio de que isso desse “pretextos para mais repressão”, alegando que era “isso o que Bolsonaro queria” e precisava para um golpe. Antes das eleições, a estratégia era esperar o governo se queimar para eleger Lula mais uma vez – o único capaz de fazer oposição ao projeto bolsonarista. No entanto, ficou claro que essa política recuada e passiva é uma estratégia permanente, pois mesmo com Lula eleito e o presidente acuado, a esquerda institucional e os movimento sob a influência petista se negaram a convocar atos e contramanifestações. Por exemplo, quando o MSTS (Movimento dos Trabalhadores Sem Teto) convocou seus militantes a abrir as estradas, o MST (Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra) contestou, argumentando que a desobstrução das rodovias era papel do Estado.

Vale ressaltar aqui que até o New York Times, um dos mais veementes defensores da passividade nos Estados Unidos antes das eleições de 2020, apontou que o levante de George Floyd de fato contribuiu para mobilizar uma parcela significativa dos eleitores que permitiram a Joe Biden vencer as eleições de 2020. A verdadeira razão pela qual o editorial do New York Times, a liderança do Partido dos Trabalhadores e outras autoridades liberais e de esquerda desencorajam as mobilizações de rua não é porque acreditam que isso lhes custará eleições, mas porque desejam manter o controle total da situação em todos os níveis da sociedade e estão preparados para correr o risco de perder o poder por causa disso.

Se para eleger Lula a esquerda preferiu ficar em casa, agora com o petista eleito é que parece que vão ficar lá para sempre, aguardando a gestão estatal e policial resolver problemas como o fascismo na ruas. O problema é que os mesmos fascistas estão se mobilizando dentro da polícia e do próprio Estado.

Felizmente, nem todos estavam comprometidos com a passividade.

Logo no dia 1 de novembro, torcedores da Galoucura, do Atlético Mineiro, passaram pela BR-318 que liga Belo Horizonte a São Paulo para ver uma partida e romperam sozinhos os bloqueios bolsonaristas, desmobilizando manifestantes. No dia 2, torcedores da Gaviões, do Corinthians, fizeram o mesmo na Marginal Tietê, importante via de São Paulo, ainda jogaram fogos e perseguiram carros dos golpistas. Ainda em São Paulo, antifascistas perseguiram militantes bolsonaristas saindo dos atos de rua.

No feriado do dia 2 de novembro, militantes antifascistas do Rio de Janeiro fizeram um chamado para uma contramanifestação com 50 pessoas para enfrentar mais de 50 mil manifestantes pedindo golpe militar no centro da cidade, sem qualquer apoio dos maiores movimentos ou partidos. Ao chegarem, foram revistados pela Polícia Militar mais preocupada com a segurança da extrema-direita.

A ação direta e radical nunca deveria ter sido o plano B, uma vez que a rua ainda é fundamental ponto de encontro e articulação e as autoridades não tem o menor interesse em barrar o ressurgimento de hordas pro-fascistas. Quando anarquistas e antifascistas perdem batalha pela a narrativa e aceitam a estratégia da esquerda hegemônica, aceitamos que as ruas se tornem palco para ação e recrutar membros. Qualquer resistência à extrema-direita e a um novo governo petista deve levar em conta o papel central das ruas e da organização popular.

Antifascistas no Rio de Janeiro desafiando manifestação golpista: 50 contra 50.000.

Brilha a luz de uma estrela morta

Ao invés de uma derrota do fascismo pela esquerda, a eleição de 2022 significou a reconstituição do centro – um retorno a um 2013 sem esperança de mudança positiva, em que toda oposição radical será tratada como se estivesse ajudando a extrema direita. Resta saber se alguém ficará satisfeito com essa nova gestão, cujo aspecto mais radical é a nostalgia dos avanços moderados ocorridos há mais de uma década.

A campanha eleitoral de 2022 ressaltou algo que já estava evidente na eleição de 2018 que deu a vitória para Bolsonaro: a esquerda petista e sua base militante e eleitoral só conseguem prometer uma imagem do passado, de 2003 a 2012, quando Lula e Dilma governaram uma nova fase extrativista do capitalismo latino, compensando os impactos da extração violenta de recursos como minério, celulose, carne, grãos e petróleo com benefícios sociais. Essa política foi necessária para incluir as novas classes despossuídas, removidas de seus territórios para dar lugar ao agronegócio, barragens e usinas, e empobrecidas pela urbanização forçada e pela marginalização do trabalho. A escolha para os gestores era bem fácil: era isso ou esperar que mais gente fosse recrutada para o crime organizado ou aderisse à revolta popular.

Agora que o ciclo se fechou, uma extrema direita mais encorajada observa uma nova coalizão de centro-esquerda pacificando sua base eleitoral para ela saia das ruas e desista de lutar por uma sociedade igualitária, alegando que movimentos sociais como o levante de 2013 só ajudarão os “extremistas” distantes do centro.

Enquanto isso, Bolsonaro e sua seita ousam prometer um futuro pretensamente revolucionário, de “ruptura com o sistema”, “contra tudo” e contra a “velha política” – de ele mesmo que foi parte por 3 décadas como deputado. A imagem de futuro do bolsonarismo e do partido militar é uma reedição de diversos projetos da extrema-direita que vemos pelo mundo, que busca num passado distante uma revisão para seus sonhos autoritários, racistas e misóginos. A bandeira do império brasileiro, carregada por alguns setores da direita brasileira, tem o mesmo efeito que a bandeira dos confederados nos Estados Unidos, resgatando uma narrativa bandeirante de conquista do oeste, quando não existiam leis nem poderes que, em tese, regulam o mandatário, como seria no estado democrático de direito. Para ambos, o cenário perfeito é o da lei do seu monopólio da força armada usada contra o negro, o indígena, a mulher, as florestas e todo o território.

Torcida corinthiana a caminho do Rio de Janeiro exibem faixas que capturaram de bolsonaristas.

Em 2008, a América Latina via uma chamada “Onda Rosa” de governos progressistas que canalizaram décadas de levantes populares – iniciados com o Caracazo de 1989 e a redemocratização brasileira – para vencer nas urnas com o discurso de “mudar o mundo de cima para baixo”. Mas se tornaram apenas gestores humanizados do neoliberalismo. A opção pela conciliação de classe do PT não conseguiu incluir os pobres e satisfazer os ricos por muito tempo. E muito menos lidar com as classes médias, brancas, especialmente masculinas, que se sentiram pela primeira vez sendo alcançados por pobres, negros e mulheres no acesso a estudo e mercado de trabalho. O resultado foi a revolta popular estourar ao mesmo tempo em que o ressentimento reacionário, que conseguiu capturar melhor a energia das ruas, derrubar um governo petista e colocar um ex-militar no poder.

Ao contrário dos liberais e da direita tradicional, Bolsonaro e seus aliados não buscam realmente governar ou administrar o Brasil, apenas tomar o poder e gerir para poucos aliados e para suas bases radicalizadas. Em vez de comprar vacinas, exigir passaportes de sanitários e controlar o movimento das pessoas em nome da saúde pública, por exemplo, ele simplesmente deixou as pessoas morrerem para manter a economia funcionando.

Tanto Trump quanto Bolsonaro não conseguiram se reeleger como a maioria de seus predecessores. E agora o pêndulo da democracia volta para o lado progressista. É uma questão de tempo até que os novos governos da social-democracia decepcionem mais uma vez as bases exploradas e excluídas e a revolta exploda, como já vemos se desenhar no Chile e nos Estados Unidos. E o fascismo estará a espreita mais uma vez para reunir seu exército.

Uma oposição à esquerda que quer esperar pelas instituições, pelos direitos humanos e internacionais, por um julgamento no Tribunal de Haia, que se compromete com a paz e os ritos democráticos, está naturalmente desarmada e despreparada para enfrentar um inimigo disposto a matar ou morrer enquanto delira pelo seu líder, por deus e sua imagem de futuro glorioso. Assim como esperar que o Estado acabe com os protestos e puna militantes golpistas, ou demandar que faça isso com discursos que criminalizam o protesto, os bloqueios e a ação nas ruas apenas vão dar mais armas e legitimidade às polícias e aos justiceiros que vão nos enfrentar quando formos nós nas ruas protestando por motivos reais, como moradia, comida e dos territórios que sustentam nossa vida.

Também e notório que o uso das fake news e do sensacionalismo podem ter ajudado a desestabilizar a propaganda bolsonarista na reta final, mas alimentar a máquina de desinformação, confusão e a mediação da realidade por corporações como Meta e Google é preparar um terreno para uma luta que estamos condenados a perder. A extrema direita tem uma vantagem fundamental no sensacionalismo da mídia, pois não tem nenhum escrúpulo em mentir e a confusão geralmente serve à sua agenda.

Como fizeram nos anos que antecederam a revolta de 2013, a esquerda institucional voltou a optar por um governo aliado ao centro e à direita. Desta vez, podemos esperar resultados ainda piores em um contexto muito menos favorável. Ou retomamos as ruas e nos organizamos com base em bairros, ocupações, cooperativas, quilombos, aldeias, assentamentos e centros sociais, ou acabaremos descobrindo que somos obrigados a lutar em terreno inimigo, seja virtual ou institucional, quando for tarde demais.

Nenhuma mudança virá de cima. Ninguém está vindo para nos salvar. Tudo depende de nós.

 

PUBLICAÇÃO EM HOMENAGEM À COMPANHEIRA LUISA TOLEDO

Apresentamos uma versão em português do zine que foi publicado no território dominado pelo Estado chileno no dia 29 de março de 2022, no marco do primeiro dia dx jovem combatente após a morte da companheira Luisa Toledo Sepúlveda.

Baixe aqui em pdf


Este ano marca 38 anos do assassinato de Rafael e Eduardo Vergara Toledo, da execução de Paulina Aguirre fora de sua casa e também o dia do sequestro dos professores Manuel Guerrero e José Miguel Parada, que mais tarde foram degolados. É mais um ano de comemoração da luta ativa da juventude combatente, mas ao mesmo tempo não é mais um ano, pois é a primeira comemoração sem a presença física de Luisa. Ao tentar escrever essas letras, a sua memória não deixa de estar presente em nossas mentes, sua força e suas palavras penetram profundamente em nossos corações, porque foi ela, Luisa junto com Manuel, que não desistiu, que resistiu e lutou contra o esquecimento, a indiferença, trilhando seu próprio caminho para fazer justiça através da memória, aquela memória que foi transmitida em cada dia 29 de março, ano após ano, no memorial aos irmãos Vergara, na Villa Francia, na entrega do pão da solidariedade, da fraternidade e do empenho na luta permanente para acabar com essa sociedade podre. Foi Luisa que não nos deixou esquecer dxs jovens combatentes assassinadxs, mas também nos convidou a fazer parte da luta contra toda opressão, nos convidou a perder o medo e nos ensinou a usar a força do ódio para lutar contra nossos inimigos.

A transmissão de sua força por meio de suas sábias palavras em cada atividade, nas universidades, em cada local que a convidou. Cada vez que ele ia abraçar e conter outra mãe que teve umx filhx tiradx pelo Estado, pela polícia ou por qualquer guardião da propriedade, a mãe de Rodrigo Cisterna, de Marco Ariel Antonioletti, Claudia López, Matías Catrileo, Jonny Cariqueo, Sebastián Oversluij, Kevin Garrido, entre muitxs outrxs assassinadxs impunemente por lacaios do sistema Estado/capital.

É o exercício da memória, a nossa memória negra, do sangue dxs nossxs mortxs, das nossas façanhas de não ter nada e dar tudo, é que a nossa história é contada e alimentada e nisso Luisa Toledo foi/é aquela mulher sábia que plantou milhares de sementes rebeldes, que foram regadas com lágrimas de raiva e ódio, mas também com o abrigo de um imenso amor por todos xs jovens combatentes, pelxs encapuchadxs que hoje continuam a nascer em todo o território.

A melhor homenagem da juventude combatente é não esquecer, é o compromisso permanente do qual Luisa falava, “com a força do ódio, de alguma forma atacá-los, mesmo que seja com um cuspe, mas esteja lá e sempre contra eles”

POR TODXS XS JOVENS COMPANHEIRXS ASSASSINADXS,
POR TODXS XS JOVENS SEQUESTRADXS NAS PRISÕES,
POR TODXS XS JOVENS MUTILADXS DURANTE A REVOLTA,
GUERRA SOCIAL CONTRA O ESTADO E O CAPITAL.!

Como Mudar o Curso da História Humana – David Graeber e David Wengrow

O anarquista e antropólogo David Graeber nos deixou prematuramente em setembro de 2020 vítima da Covid-19. Em 2021 foi lançado seu último livro escrito em parceria dom David Wengrow, “The Dawn of Everything”, onde abordam de forma inovadora e crítica os estudos do surgimento da desigualdade social e sua relação com a ascensão da agricultura e das civilizações.

Graeber e Wengrow apontam que anarquistas e antitautoritários em geral, socialistas partidários de um estado centralizado e ideólogos do liberalismo burguês têm muito mais em comum do que gostariam de admitir quando recorrem a narrativas derivadas do cristianismo e de mitos como o “bom selvagem” de Rousseau para justificar suas posições políticas e suas propostas para o futuro. Partindo de uma crítica ao que célebres autores como Jared Diamond e Francis Fukuyama tomam como verdade, Graeber e Wengrow argumentam que há suficientes evidências para concluir que o surgimento da agricultura e das cidades não levou necessariamente à tirania e estados totalitários. Assim, também combatem a visão que condena anarquistas e outros revolucionários a se contentar com perspectivas de sociedades igualitárias reduzidas a pequenos bandos dispersos.

Nem nossa história nem o nosso futuro estão escritos para sempre em pedra.

Assim como fez no livro “Dívida: os primeiros 5.000 anos”, David Graeber propõe, junto com Wengrow, uma visão da história baseada em evidências concretas que não se deixa dobrar pelos preconceitos ou expectativas do pensamento social ocidental, tampouco apenas buscar utopias naquilo que convém à sua ideologia política – como fizeram anarquistas críticos da civilização ou marxistas com sua idealização de um comunismo primitivo.

Se queremos dar a fim a toda opressão e fazer surgir uma sociedade realmente emancipada, não há porque achar que estamos condenados a fazer o que algumas sociedades complexas fizeram, como se houvesse um “curso natural” para toda humanidade determinado de antemão. Nossos camaradas nos lembram, com seu trabalho de investigação que atualiza os saberes sobre nosso passado, que nem a história nem o nosso futuro estão escritos para sempre em pedra.

Facção Fictícia,
março de 2022.


Como Mudar o Curso da História Humana – David Graeber e David Wengrow

No começo havia a palavra

Por séculos temos contado a nós mesmos uma história simples sobre as origens da desigualdade social. Durante a maior parte de sua história, os humanos viveram em minúsculos bandos igualitários de caçadores-coletores. Então veio a agricultura, que trouxe com ela a propriedade privada e, então, o surgimento das cidades, que significou a emergência da civilização propriamente dita. Civilização significava muitas coisas ruins (guerras, impostos, burocracia, patriarcado, escravidão…), mas também tornou possível a literatura, a ciência, a filosofia e muitos outros grandes feitos humanos.
Quase todo mundo conhece essa história em seus traços gerais. Desde pelo menos os dias de Jean-Jacques Rousseau, ela moldou o que acreditamos ser a forma geral e a direção da história humana. Isso é importante porque essa narrativa também define o nossa percepção do que é possível politicamente. A maioria das pessoas veem civilização e, portanto, a desigualdade como uma necessidade trágica. Alguns sonham com o retorno a alguma utopia do passado, a descoberta de um equivalente industrial do “comunismo primitivo”, ou mesmo, em casos extremos, a destruição de tudo e a volta à condição de caçador-coletor. Mas ninguém desafia a estrutura básica daquela história.

Há um problema fundamental com essa narrativa.
Ela não é verdadeira.

Evidências esmagadoras da arqueologia, da antropologia e de disciplinas afins estão começando a nos dar uma ideia bem clara de como realmente teriam sido os últimos 40.000 anos da história humana e, em quase nada, ela lembra a narrativa convencional. Nossa espécie, de fato, não passou a maior parte de sua história em minúsculos bandos; a agricultura não marcou um limite irreversível na evolução social; as primeiras cidades frequentemente eram robustamente igualitárias. Ainda assim, mesmo quando pesquisadores chegam gradualmente a um consenso sobre essas questões, eles permanecem estranhamente relutantes em anunciar suas descobertas para o público – ou mesmo para estudiosos de outras disciplinas – para não falar da ausência de reflexões sobre suas implicações políticas mais amplas. Como resultado, aqueles escritores que estão pensando sobre as “grandes questões” da humanidade – Jared Diamond, Francis Fukuyama, Ian Morris e outros – ainda tomam a pergunta de Rousseau (“qual é a origem da desigualdade social?”) como seu ponto de partida, e assumem que a narrativa maior vai começar com algum tipo de queda da inocência primordial.
Propor a questão desta forma simplesmente significa fazer uma série de suposições, como a de que (1) existe algo chamado “desigualdade”, (2) que isso é um problema, e (3) que houve um tempo em que ela não existia. Desde o crash financeiro de 2008, evidentemente, e dos levantes sociais que se seguiram, o “problema da desigualdade social” esteve no centro do debate político. Parece haver um consenso entre classes políticas e intelectuais de que os níveis de desigualdade social entraram numa espiral de descontrole e que, de uma forma ou de outra, a maior parte dos problemas é resultado disso. Apontar isso tem sido visto como um desafio às estruturas globais de poder, mas é possível comparar essa situação com a forma com que questões similares teriam sido discutidas em uma geração anterior. Diferentemente de termos como “capital” ou “poder de classe”, é quase como se a palavra “igualdade” tivesse sido concebida para conduzir a medidas parciais e a compromissos. Pode-se imaginar a derrubada do capitalismo ou a quebra do poder do Estado, mas é muito difícil imaginar a eliminação da “desigualdade”. De fato, não fica óbvio até mesmo o que fazê-lo significaria, uma vez que as pessoas não são todas idênticas e ninguém particularmente gostaria que fossem.

Desigualdade é uma forma de conceber os problemas sociais apropriada para reformadores tecnocratas, o tipo de gente que presume que qualquer visão real de transformação social foi retirada da mesa de negociação política há muito tempo. O conceito permite brincar com números, argumentar a respeito de coeficientes de Gini [1] e limites de disfunção, reajustar regimes fiscais ou mecanismos de bem-estar social, ou mesmo chocar o público com cifras mostrando quão ruins as coisas estão (“vocês podem imaginar? 0,1% da população mundial controla acima de 50% da riqueza!”); tudo isso sem lidar com qualquer dos fatores dos quais as pessoas realmente reclamam no que diz respeito a tais arranjos sociais desiguais: por exemplo, que alguns conseguem transformar sua riqueza em poder sobre outros; ou que algumas pessoas são ensinadas que suas necessidades não são importantes e que suas vidas não tem nenhum valor intrínseco. Esse último caso, nós somos levados a acreditar, é somente o efeito inevitável da desigualdade e que a desigualdade é o resultado inevitável de se viver em qualquer sociedade grande, complexa, urbana e tecnologicamente sofisticada. Essa é a real mensagem política enviada pelas invocações sem fim de uma era de inocência imaginária, anterior à invenção da desigualdade: de que se nós quisermos nos livrar inteiramente de tais problemas, nós teríamos de nos livrar de alguma maneira também de 99,9 % da população da Terra e retornar a sermos minúsculos bandos de caçadores-coletores. Por outro lado, o melhor que podemos esperar é ajustar o tamanho da bota que vai pisar em nossos rostos eternamente, ou talvez forçar um pouco mais de espaço de manobra para que pelo menos alguns de nós fiquemos, temporariamente, fora do caminho dela.

As correntes dominantes das Ciências Sociais parecem agora mobilizadas para reforçar essa sensação de falta de esperança. Quase mensalmente somos confrontados com publicações que tentam projetar a atual obsessão com distribuição de renda de volta até a Idade da Pedra, nos encaminhando para uma busca por “sociedades igualitárias” definidas de tal forma que elas nunca poderiam ter existido fora de um minúsculo bando de caçadores-coletores (e possivelmente, nem mesmo ali). O que vamos fazer neste ensaio será, então, duas coisas. Primeiro, nós vamos passar um tempo selecionando o que parecem ser opiniões fundamentadas sobre tais questões, de forma a revelar como o jogo tem sido jogado, como mesmo os mais sofisticados estudiosos aparentemente terminam reproduzindo ideias convencionais, ainda no mesmo formato com que foram produzidas, digamos, na França e na Escócia de 1760. Em seguida, vamos tentar estabelecer as fundações iniciais para uma narrativa inteiramente diferente. Este será quase inteiramente um trabalho de limpeza de terreno.

As questões com as quais estamos lidando são tão enormes e os assuntos tão importantes que anos de pesquisas e debates serão necessários para se começar a entender as suas totais implicações. Mas insistimos em uma coisa. Abandonar a narrativa da queda de uma inocência primordial não significa abandonar os sonhos de emancipação da humanidade – isto é, de uma sociedade em que ninguém pode transformar seu direito à propriedade numa forma de escravizar outros, e na qual ninguém terá de ouvir que sua vida ou necessidades não importam. Pelo contrário. A História Humana se torna um lugar muito mais interessante, apresentando muitos momentos mais de esperança do que fomos levados a imaginar, uma vez que aprendemos a jogar fora nossas correntes conceituais e a perceber o que realmente está ali.

Visões de autores contemporâneos sobre as origens da desigualdade social – ou, o eterno retorno de Jean-Jacques Rousseau

Comecemos com um esboço da sabedoria convencional no que diz respeito ao curso em linhas gerais da história humana. Ele se parece mais ou menos com o que se segue:

Conforme as cortinas se abrem para a história humana – digamos, por volta de aproximadamente duzentos mil anos atrás, com o aparecimento do Homo sapiens anatomicamente moderno – nós encontramos nossa espécie vivendo em minúsculos bandos móveis que tinham de vinte a quarenta indivíduos. Eles buscavam territórios ótimos para a caça e a coleta, seguindo rebanhos, colhendo nozes e frutas silvestres. Se os recursos se tornavam escassos, ou se tensões sociais cresciam, eles reagiam por meio do abandono do lugar e da ida para outra área. A vida para estes humanos iniciais – nós podemos pensar esse momento como a infância da humanidade – é cheia de perigos, mas também de possibilidades. As posses materiais são poucas, mas o mundo é um lugar convidativo e imaculado. A maioria trabalha apenas algumas horas por dia e o tamanho pequeno dos grupos sociais lhes permite manter um tipo de fácil companheirismo, sem estruturas formais de dominação. Rousseau, escrevendo no século XVIII, referiu-se a isso como “O Estado de Natureza”, mas hoje em dia se pressupõe que ele abrangeu realmente a maior parte da história da nossa espécie. Também é pressuposto que foi a única época em que os seres humanos conseguiram viver em genuínas sociedades de iguais, sem classes, castas, líderes hereditários ou governos centralizados.

Infelizmente, esse estado das coisas tinha de chegar ao fim. Nossa versão convencional da história do mundo coloca esse momento por volta de 10.000 anos atrás, com o encerramento da última Idade do Gelo.

Neste ponto, nós encontramos nossos atores humanos imaginários espalhados ao redor dos continentes do mundo, começando a cultivar suas próprias plantações e a criar seus próprios rebanhos. Quaisquer que sejam as causas locais (que são bastante discutidas), os efeitos são decisivos e, basicamente, os mesmos em toda parte. Anexações territoriais e a posse privada de propriedade se tornam importantes em formas previamente desconhecidas e, com elas, também os conflitos esporádicos e as guerras. A agricultura garante um excedente de alimentos, o que permite a alguns acumular riquezas e influência para além do seu grupo imediato de parentesco. Outros usufruem a liberdade de não ter de procurar comida para desenvolver novas habilidades, como a invenção de ferramentas, veículos, fortificações e armas mais sofisticadas, ou a busca pela política e pela religião organizada. Consequentemente, estes “agricultores neolíticos” rapidamente entenderam o caráter de seus vizinhos caçadores-coletores e começaram a eliminá-los ou a absorvê-los em seu novo e superior – embora menos igual – estilo de vida.

Para tornar as coisas ainda mais difíceis, ou assim segue a narrativa, a agricultura garante um aumento global nos níveis populacionais. Conforme as pessoas adentram concentrações populacionais cada vez maiores, nossos ancestrais involuntariamente dão mais um passo irreversível em direção à desigualdade, e, por volta de 6.000 anos atrás, as cidades aparecem – e nosso destino fica selado. Com as cidades vêm a necessidade de governo centralizado. Novas classes de burocratas, sacerdotes e guerreiros-políticos se instalam permanentemente em seus cargos de forma manter a ordem e garantir o suave fluxo de recursos e serviços públicos. As mulheres, tendo outrora usufruído um papel preponderante nos feitos da humanidade, são sequestradas ou aprisionadas em haréns. Prisioneiros de guerra são reduzidos a escravos. A desigualdade plena chegou e não há como se livrar dela. Mesmo assim, os contadores de histórias sempre nos asseguram, nem tudo que diz respeito ao desenvolvimento da civilização urbana é ruim. A escrita foi inventada, primeiro para manter a contabilidade estatal, mas isso permitiu que avanços excepcionais ocorressem na ciência, tecnologia e artes. Pelo preço da inocência, nós nos tornamos nossas versões modernas e agora só podemos observar com pena e inveja aquelas poucas sociedades “primitivas” e “tradicionais” de que alguma forma perderam o barco.

Essa é a narrativa que, como dissemos, forma a fundação de todo o debate contemporâneo sobre a desigualdade. Se, digamos, um expert em relações internacionais, ou um psicólogo clínico deseja refletir sobre essas questões, é provável que eles simplesmente tomem como certo que, durante a maior parte da história humana, nós vivemos em minúsculos bandos igualitários ou que o aparecimento das cidades significou também o aparecimento do Estado. O mesmo é verdade para a maioria dos livros recentes que tentam esboçar um olhar panorâmico da pré-história, de forma a tirar conclusões políticas pertinentes à nossa vida contemporânea. Consideremos The Origins of Political Order: From Prehuman Times to the French Revolution de Francis Fukuyama:

Em seus estágios iniciais, a organização política humana é similar à sociedade no nível dos bandos observável nos primatas mais avançados, como os chimpanzés. Isso pode ser considerado como uma forma pré-definida de organização social… Rousseau apontou que a origem da desigualdade política estaria no desenvolvimento da agricultura e nisso ele estava bastante correto. Uma vez que as sociedades em nível de bando são pré-agrárias, não há propriedade privada em qualquer sentido moderno. Como os bandos de chimpanzés, os caçadores-coletores habitam uma extensão territorial que guardam e pela qual ocasionalmente têm de lutar. Mas eles têm menos incentivos do que os agricultores para demarcar um pedaço de terra e dizer “isto é meu”. Se o território deles é invadido por outro grupo, ou se é infiltrado por predadores perigosos, as sociedades em nível de bando podem ter a opção de simplesmente se mudar para outro lugar por causa das baixas densidades populacionais. Sociedades em nível de bando são altamente igualitárias… A liderança é investida em indivíduos com base em qualidades como força, inteligência e confiabilidade, mas isso tende a migrar de um indivíduo para outro.

“Desde o início, os seres humanos estavam experimentando de forma consciente com diferentes possibilidades sociais.”

Jared Diamond, em O Mundo Até Ontem: O que podemos aprender com as sociedades tradicionais?, sugere que tais bandos (nos quais ele acredita que humanos ainda viviam “até um período tão recente quanto 11.000 anos trás”) incluíam “apenas algumas dúzias de indivíduos”, a maior parte deles biologicamente aparentada. Eles levavam uma existência bastante pobre, “caçando e coletando quaisquer animais e plantas selvagens que eventualmente vivessem em um acre de floresta” (Por que apenas um acre, ele nunca explica). E suas vidas sociais, de acordo com Diamond, eram invejavelmente simples. Chegava-se às decisões por meio de “discussões cara-a-cara”; havia “poucas posses pessoais” e não havia “nenhuma liderança política formal ou especialização econômica forte”. Diamond conclui que, infelizmente, é apenas dentro de tais agrupamentos primordiais que humanos alguma vez alcançaram algum grau significativo de igualdade social.

Para Diamond e Fukuyama, assim como para Rousseau alguns séculos antes, o que põe um fim naquela igualdade – em toda a parte e para sempre – foi a invenção da agricultura e dos níveis populacionais mais altos que ela sustentou. A agricultura causou a transição de “bandos” para “tribos”. A acumulação de excedente de alimentos sustentou o crescimento populacional, levando algumas “tribos” a se desenvolver em sociedades hierarquizadas conhecidas como “chefaturas”. Fukuyama pinta um quadro quase bíblico, um abandono do Éden: “Conforme minúsculos bandos de seres humanos migraram e se adaptaram a diferentes ambientes, eles começaram a sair do estado de natureza ao desenvolver novas instituições sociais”. Eles fizeram guerras por recursos. Aquelas sociedades, desengonçadas e púberes, estavam à procura de encrenca.

Era o momento de crescer, o tempo certo para escolher uma liderança adequada. Em pouco tempo, chefes se declararam reis, até mesmo imperadores. Não havia sentido em resistir. Tudo isso se tornou inevitável assim que os humanos adotaram formas complexas e grandes de organização. Mesmo quando os líderes começaram a agir de formas ruins – surrupiar o excedente agrícola para favorecer seus parentes e asseclas, fazer com que os estatutos sociais se tornassem permanentes e hereditários, coletar como troféus crânios e haréns de meninas escravas, ou arrancar o coração de rivais com facas de obsidiana – não haveria retorno. “As grandes populações”, opina Diamond, “não podem funcionar sem líderes que tomem decisões, executivos que as implementam e burocratas que administram as decisões e as leis. Infelizmente, para todos vocês leitores que são anarquistas e sonham em viver sem qualquer Estado governante, estas são as razões pelas quais seu sonho é irreal: vocês terão de encontrar um minúsculo bando ou tribo disposto a aceitá-los, onde ninguém é um estranho e onde reis, presidentes e burocratas são desnecessários”.

Uma conclusão deplorável, não apenas para anarquistas, mas para qualquer um que algum dia se perguntou se haveria alguma alternativa para o atual status quo. Mas a coisa mais notável é que, a despeito do tom arrogante, tais pronunciamentos não se baseiam em qualquer tipo de evidência científica. Não há razão para acreditar que grupos em pequena escala sejam especialmente dispostos a serem igualitários, ou que os de grande escala devam necessariamente ter reis, presidentes ou burocracias. Esses são apenas preconceitos apresentados como fatos.

No caso de Fukuyama e Diamond, pode-se, pelo menos, notar que ambos nunca receberam treinamento nas disciplinas relevantes (o primeiro é um cientista político, o outro tem um doutorado em fisiologia da vesícula biliar). Ainda assim, quando antropólogos e arqueólogos se arriscam a compor narrativas “em um quadro geral”, eles têm a estranha tendência a concluir seus ensaios com alguma pequena variação daquela de Rousseau. Em The Creation of Inequality: How our Prehistoric Ancestors Set the Stage for Monarchy, Slavery, and Empire, Kent Flannery e Joyce Marcus, dois acadêmicos eminentemente qualificados, apresentam cerca de quinhentas páginas com estudos de caso etnográficos e arqueológicos tentando resolver o enigma. Eles admitem que nossos ancestrais da Idade do Gelo tinham alguma familiaridade com instituições hierárquicas e servidão, mas insistem que eles as vivenciaram principalmente em suas relações com o sobrenatural (espíritos ancestrais e coisas afins). A invenção da agricultura, eles propõem, levou à ascensão de “clãs” demograficamente extensos ou “grupos de parentesco” e, conforme isso foi feito, o acesso aos espíritos e aos mortos se tornou uma rota para poder terreno (como exatamente, nunca fica claro). De acordo com Flannery e Marcus, o próximo grande passo no caminho da desigualdade veio quando certos membros dos clãs de talento ou renome incomuns – curandeiros e guerreiros habilidosos, ou outros tipos de figuras super esforçadas – conseguiram o direito de transmitir seus estatutos para seus descendentes, independentemente dos talentos e habilidades desses últimos. Isso definitivamente plantou as sementes e significou que, daí para frente, era só uma questão de tempo até que surgissem as cidades, a monarquia, a escravidão e o império.

A coisa curiosa sobre o livro de Flannery e Marcus é que apenas com o nascimento de Estados e impérios eles realmente apresentam alguma evidência arqueológica. Todos os momentos realmente cruciais em seu relato sobre a “criação da desigualdade” se apoiam, contrariamente, em descrições relativamente recentes de grupos de pequena escala de caçadores-coletores, pastores e agricultores, como os hadzas da Grande Fenda na África oriental, ou os nambiquaras da Floresta Amazônica. Relatos sobre tais “sociedades tradicionais” são tratados como se fossem janelas para o passado paleolítico ou neolítico. O problema é que eles não são nada do tipo. Os hadzas ou os nambiquaras não são fósseis vivos. Eles estiveram em contato com Estados e impérios, saqueadores e comerciantes por milênios, e as instituições sociais deles foram decisivamente moldadas pelas tentativas de se relacionar com eles ou evitá-los. Apenas a Arqueologia pode nos dizer o que, se houver algo, eles têm em comum com sociedades pré-históricas. Assim, enquanto Flannery e Marcus oferecem vários tipos de intuições interessantes a respeito de como as desigualdades podem ter aparecido em sociedades humanas, eles nos dão poucas razões para acreditar que essa foi a forma que isso de fato aconteceu.

Finalmente, vamos levar em consideração Foragers, Farmers, and Fossil Fuels: How Human Values Evolve de Ian Morris. Morris persegue um projeto intelectual levemente diferente: colocar os achados da Arqueologia, da História Antiga e da Antropologia em diálogo com o trabalho de economistas, como Thomas Pikety, sobre as causas da desigualdade no mundo moderno, ou o trabalho mais orientado para políticas governamentais de Sir Tony Atkinson, Inequality: What can be Done?. O “tempo profundo” da história humana, Morris afirma, tem algo a nos dizer sobre tais questões – mas apenas se nós estabelecermos primeiro uma medida uniforme de desigualdade aplicável através de todo a duração desse tempo. Ele consegue isso por meio da tradução dos valores dos caçadores-coletores da Idade do Gelo e agricultores neolíticos para termos familiares aos economistas dos dias de hoje, e em seguida os usa para estabelecer coeficientes de Gini, ou índices formais de desigualdade. No lugar das desigualdades espirituais ressaltadas por Flannery e Marcus, Morris nos dá uma visão inapelavelmente materialista, dividindo a história humana nos três grandes F’s do título do livro [2]. Todas as sociedades, ele sugere, tem um nível ótimo de desigualdade social – um “nível espiritual” embutido para usar o termo de Pickett e Wilkinson – que é apropriado para seus modos predominantes de extração de energia.
Em um artigo de 2015 para o New York Times, Morris, na verdade, nos dá números, receitas primordiais quantificadas em dólares americanos e fixadas em relação aos valores correntes de 1990 [3]. Ele também pressupõe que os caçadores-coletores da primeira Idade do Gelo vivessem em sua maior parte em minúsculos bandos móveis. Como resultado, eles consumiam muito pouco, o equivalente, ele sugere, a cerca de U$1,10 por dia. Consequentemente, eles também apresentariam um coeficiente de Gini de cerca de 0,25 – isto é, um nível quase tão baixo quanto é possível ir – uma vez que há pouco excedente ou capital que pudesse ser tomado por alguma possível elite. Sociedades agrárias – e para Morris isso inclui tudo, desde Çatalhöyük, a aldeia neolítica de 9.000 anos atrás, até a China de Kublai Khan ou a França de Luís XIV – eram mais populosas e bem sucedidas, com um consumo médio entre U$1.50-$2.20 por dia por pessoa, e uma propensão à acumulação de excedentes de riqueza. Mas a maioria das pessoas trabalhava ainda mais duro, sob condições claramente inferiores, de forma que sociedades agrárias tenderiam a níveis muito maiores de desigualdade.

Sociedades com combustível fóssil deveriam ter transformado tudo isso ao nos libertar dos esforços do trabalho manual e ao nos levar de volta na direção de coeficientes de Gini mais razoáveis, mais próximos daqueles dos ancestrais caçadores-coletores – e, por um tempo, pareceu que isso estava começando a acontecer, mas por alguma estranha razão, que Morris não entende completamente, as coisas entraram novamente em marcha ré, e a riqueza está novamente sendo sugada e caindo nas mãos da minúscula elite global.

Se os desdobramentos da história econômica nos últimos 15.000 anos e a vontade popular servem de algum tipo de guia, o nível “correto” de desigualdade após o imposto de renda parece se localizar entre 0,25 e 0,35, e o nível de desigualdade de riqueza entre 0,70 e 0,80. Muitos países estão neste momento no limite superior destas faixas ou acima delas, o que sugere que o senhor Piketty está de fato correto ao prever problemas futuros.

Está claramente na ordem do dia invencionices tecnocráticas!

Deixemos as prescrições de Morris de lado e olhemos apenas para uma cifra: a renda paleolítica de U$ 1,10 por dia. De onde exatamente ela veio? Aparentemente, o cálculo está baseado no valor calórico de consumo alimentar diário. Mas se estamos comparando isso às rendas diárias de hoje, não deveríamos também incluir na conta todas as outras coisas que os caçadores-coletores conseguiam de graça, mas pelas quais nós mesmos temos de pagar: segurança, resolução de litígios, educação primária, cuidado dos mais velhos, medicina, todos gratuitos, sem mencionar os custos do entretenimento, da música, da narrativa de histórias, e dos serviços religiosos? Mesmo quando se trata de comida, nós devemos considerar a qualidade: afinal, nós estamos falando de uma produção 100% orgânica [4], lavada com a mais pura água mineral de fontes naturais. Muito da renda contemporânea é absorvida por hipotecas e aluguéis, mas se considerarmos os preços das melhores áreas reservadas para acampamento no Paleolítico ao longo da Dordonha ou do Vézère, sem mencionar as valiosíssimas aulas de pintura em rochas murais e de escultura em marfim – e todos aqueles casacos de pele! Certamente tudo isso deve custar insanamente acima daqueles U$ 1,10 por dia, mesmo em dólares de 1990. Não é por acaso que Marshall Sahlins se referia aos caçadores-coletores como “a sociedade afluente original”. Uma vida dessas hoje não seria barata.

Isso tudo é assumidamente um pouco tolo, mas é esse mesmo o nosso ponto: ao se reduzir a história do mundo a coeficientes de Gini, necessariamente se sucederão coisas tolas. E também coisas deprimentes. Morris ao menos demonstra que algo está fora do lugar com os recentes aumentos crescentes da desigualdade global. Em contraste, Walter Scheidel levou o estilo Piketty de interpretações da história humana até as últimas e infelizes consequências em seu livro de 2017, The Great Leveler: Violence and the History of Inequality from the Stone Age to the Twenty-First Century, chegando à conclusão de que não há realmente nada que se possa fazer com relação à desigualdade. A Civilização invariavelmente coloca uma pequena elite no poder que vai comendo cada vez mais e mais do bolo. A única coisa que em qualquer época foi capaz de os derrubar foi a catástrofe: guerras, doenças, alistamento em massa, sofrimento e morte indiscriminados. Medidas parciais nunca funcionaram. Então, se não se deseja voltar a viver em cavernas, ou morrer em um holocausto nuclear (que também se pressupõe que resulte nos sobreviventes vivendo em cavernas), é necessário aceitar a existência de Warren Buffet e Bill Gates.

A alternativa liberal? Flannery e Marcus, que abertamente se identificam com a tradição de Jean-Jacques Rousseau, terminam sua investigação com a seguinte sugestão benéfica:

Uma vez, tratamos deste assunto com Scotty McNeish, um arqueólogo que passou 40 anos estudando evolução social. Perguntamos como a sociedade poderia se tornar mais igualitária? Depois de uma breve consulta a seu velho amigo Jack Daniels, McNeish respondeu: “Coloque os caçadores e coletores no comando”.

Mas nós realmente corremos para nossas correntes de ferro?

A coisa realmente estranha no que diz respeito a essas invocações sem fim do inocente Estado de Natureza de Rousseau e à queda do estado de graça é que Rousseau nunca afirmou que o Estado de Natureza realmente aconteceu. Era tudo um experimento intelectual. Em seu Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens (1754), de onde se origina a maior parte da narrativa que estamos contando (e recontando), ele escreveu:

As pesquisas com as quais nós vamos nos debruçar nesta ocasião não devem ser vistas como verdades históricas, mas apenas como raciocínios hipotéticos e condicionais, mais adequados a ilustrar a natureza das coisas do que a mostrar a sua origem verdadeira.

O “Estado de Natureza” de Rousseau nunca foi pensado para ser um estágio do desenvolvimento. Não era para ser o equivalente da “Selvageria”, que inicia os esquemas evolucionários dos filósofos escoceses como Adam Smith, Ferguson, Millar, ou, mais tarde, de Lewis Henry Morgan. Estes estavam interessados em definir níveis de desenvolvimento social e moral, correspondendo a transformações históricas nos modos de produção: caça e coleta, pastoralismo, agricultura, indústria. O que Rousseau apresentou foi, em contraste, mais próximo de uma parábola. Como ressaltou Judith Shklar, a renomada cientista política de Harvard, Rousseau estava realmente tentando explorar o que ele considerava ser o paradoxo da Política humana: que, de alguma forma, nosso impulso inato para a liberdade nos leva, repetidamente, a uma “marcha espontânea em direção à desigualdade”. Nas palavras do próprio Rousseau: “Todos correram para suas correntes de ferro, acreditando assegurar sua própria liberdade, pois, embora tivessem razão suficiente para ver as vantagens das instituições políticas, eles não tinham a experiência necessária para prever os perigos que dali viriam”. O imaginário Estado de Natureza é apenas uma forma de ilustrar o argumento.

Rousseau não era um fatalista. O que os seres humanos fazem, assim pensava, eles podem desfazer. Poderíamos nos libertar das correntes, só não seria fácil. Shklar sugere que a tensão entre “possibilidade e probabilidade” (a possibilidade da emancipação dos seres humanos, a probabilidade de que nós nos coloquemos novamente sob alguma forma de servidão voluntária) era a força impulsora central dos escritos sobre desigualdade de Rousseau. Tudo isso pode parecer um pouco irônico uma vez que, depois da Revolução Francesa, muitos críticos conservadores responsabilizaram pessoalmente Rousseau pela guilhotina. O que trouxe o Terror, eles diziam, foram precisamente a sua fé ingênua na bondade inata da humanidade e sua crença que uma ordem social mais igualitária poderia simplesmente ser imaginada por intelectuais e imposta sobre a “vontade geral”. Mas pouquíssimos dentre aqueles personagens do passado, agora ridicularizados como românticos e utópicos, eram realmente ingênuos. Karl Marx, por exemplo, afirmava que o que nos faz humanos é nosso poder de reflexão imaginativa – diferentemente das abelhas, nós imaginamos as casas nas quais gostaríamos de viver e só então começamos a construí-las – mas ele também acreditava que não se poderia fazer o mesmo com a sociedade, tentando impor sobre ela um modelo arquitetônico. Fazer isso seria cometer o pecado do “socialismo utópico”, pelo qual ele só nutria desprezo. Em lugar disso, revolucionários deveriam apreender o sentido das forças estruturais mais amplas que moldavam o curso da história mundial e fazer uso das suas contradições subjacentes: por exemplo, o fato de que indivíduos proprietários de fábricas precisam desfalcar seus trabalhadores para competir, mas se todos eles forem muito bem sucedidos ao fazê-lo, ninguém será capaz de pagar pelo que as fábricas produzem. Ainda assim, tamanho é o poder de dois mil anos de Escrituras que, mesmo quando realistas teimosos começam a falar sobre o vasto panorama da história humana, eles retornam a alguma variação do Jardim do Éden – a Queda do Estado de Graça (usualmente, como no Gênesis, por causa de uma busca inconsequente pelo Conhecimento); a possibilidade de Redenção. Os partidos políticos marxistas rapidamente desenvolveram sua própria versão da narrativa, fundindo o Estado de Natureza de Rousseau e a ideia de desenvolvimento por etapas do Iluminismo escocês. O resultado foi uma fórmula para a história do mundo que começa com o “comunismo primitivo”, superado pela aurora da propriedade privada, mas que está destinado a retornar algum dia.

Devemos concluir que os revolucionários, mesmo com todos os seus ideais visionários, não tenderam a ser particularmente imaginativos, especialmente quando se tratou de vincular o passado, o presente e o futuro. Todos insistem em continuar contando a mesma narrativa. Provavelmente não é coincidência que, hoje, os movimentos revolucionários mais vitais e criativos na aurora do novo milênio – os zapatistas de Chiapas e os Curdos de Rojava são apenas os exemplos mais óbvios – são aqueles que simultaneamente se enraízam em um passado profundamente tradicional. Em lugar de imaginar alguma utopia primordial, eles podem se alimentar de uma narrativa mais complexa e mista. De fato, parece haver um reconhecimento crescente, em círculos revolucionários, de que liberdade, tradição e imaginação sempre estiveram e estarão entrelaçadas de maneiras que nós não entendemos completamente. É hora do resto de nós os alcançarmos e começarmos a considerar o que seria uma versão não-bíblica da história da humanidade.

Como o curso da história (passada) pode mudar agora

O que, então, a pesquisa arqueológica e antropológica realmente nos ensinou do tempo de Rousseau até agora?

Bom, a primeira coisa é que perguntar-se sobre “as origens da desigualdade social” é provavelmente o lugar errado para se começar. Com efeito, nós não temos nenhuma ideia de como era a maior parte da vida social humana antes do início do chamado Paleolítico superior. Muito da evidência disponível inclui fragmentos dispersos de rochas, ossos e alguns outros materiais duráveis trabalhados. Diferentes espécies de hominídeos coexistiam; não está claro se qualquer analogia etnográfica seria aplicável. A imagem começa a ficar um pouco mais focalizada durante o próprio Paleolítico superior, que começa por volta de 45.000 anos atrás e engloba o ápice da glaciação e do esfriamento global (c. 20.000 anos atrás) conhecido como Último Máximo Glacial. Esta última grande Era do Gelo foi seguida pelo início de condições mais quentes e pela retração gradual das camadas de gelo, levando à nossa atual época geológica, o Holoceno. Condições mais clementes se seguiram, criando o estágio no qual o Homo Sapiens – tendo já colonizado muito do Velho Mundo – completou sua marcha para o Novo, alcançando as costas meridionais das Américas por volta de 15.000 anos atrás.

E o que realmente sabemos sobre este período da história humana? Muito das evidências substanciais mais remotas sobre a organização social humana no Paleolítico deriva da Europa, onde nossa espécie se estabeleceu ao lado do Homo neanderthalensis, antes da extinção deste último, por volta de 40.000 a.C. (muito provavelmente a concentração de dados nesta parte do mundo reflete mais uma distorção histórica da investigação arqueológica, do que qualquer coisa de excepcional no que diz respeito à própria Europa). Naquela época, e durante o Último Máximo Glacial, as partes habitáveis da Europa na Idade do Gelo pareciam mais como o Parque Nacional de Serengeti na Tanzânia do que qualquer habitat europeu atual. Ao sul das camadas de gelo, entre a tundra e os litorais florestais do Mediterrâneo, o continente estava dividido entre vales e estepes cheios de animais para caça, atravessados sazonalmente por rebanhos migratórios de veados, bisões e mamutes lanosos. Estudiosos da pré-história vêm há décadas chamando a atenção – com, aparentemente, pouco efeito – que os grupos humanos habitando esses ambientes não tinham nada em comum com aqueles bandos alegremente simples, igualitários, de caçadores-coletores, ainda rotineiramente imaginados como sendo nossos ancestrais remotos.

Para começar, há a existência incontestável de alguns ricos sepultamentos, datando desde as profundezas da Idade do Gelo. Alguns destes, como as covas de 25.000 anos de idade de Sungir, a leste de Moscou, são conhecidas há muitas décadas e são correspondentemente famosas. Felipe Fernandez-Armesto, que resenhou Creation of Inequalty para o Wall Street Journal [5], expressa um compreensível espanto com a omissão: “embora eles saibam que o princípio hereditário precede a agricultura, o Sr. Flannery e a Sra. Marcus não conseguem se livrar da ilusão rousseauniana de que ele teria começado com a vida sedentária. Consequentemente, eles desenham um mundo sem herança de poder antes de cerca de 15.000, ignorando, ao mesmo tempo, um dos mais importantes sítios arqueológicos para esse propósito”. Pois, enterrado no permafrost sob o assentamento paleolítico de Sungir estava a cova de um homem de meia idade, como observa Fernandez Armesto, com “sinais estonteantes de honra: braceletes de marfim de mamute polido, uma diadema ou chapéu de dentes de raposa e quase 3.000 contas de marfim laboriosamente esculpidas e polidas. Alguns metros dali, em uma cova idêntica, “estavam duas crianças, com cerca de 10 e 13 anos de idade, respectivamente, adornadas com presentes funerários comparáveis – incluindo, no caso da mais velha, 5.000 contas tão finas quanto as do adulto (embora levemente menores) e uma lança maciça esculpida a partir de marfim”.

Tais achados parecem não ter um lugar significativo em quaisquer dos livros considerados até agora. Menosprezá-los, ou reduzi-los a notas de rodapé, seria mais perdoável se Sungir fosse um achado isolado. Mas não é. Sepultamentos ricos comparáveis são agora verificados desde os abrigos nas rochas e assentamentos abertos do Paleolítico superior através de toda a Eurasia ocidental, do rio Don até a Dordonha. Entre eles, encontramos, por exemplo, a Dama de Saint-Germain-la-Rivière, com 16.000 anos de idade, revestida de ornamentos feitos de dentes de jovens cervos caçados a 300 km de distância, no país Basco; e os sepultamentos da costa ligúria – tão antigos quanto Sungir – incluindo “O Príncipe”, um jovem homem cujos enfeites incluem um cetro de pederneira exótica, bastões de chifres de alce e um cocar ornado com conchas perfuradas e dentes de veado. Tais achados apresentam estimulantes desafios de interpretação. Fernandez-Armesto está correto ao dizer que estas são provas de “poder hereditário”? Qual seria o estatuto social desses indivíduos durante suas vidas?

Não menos intrigante é a evidência esporádica mas tentadora de que a arquitetura monumental data do Último Máximo Glacial. A ideia de que alguém possa medir a “monumentalidade” em termos absolutos é certamente tão tola quanto a ideia de quantificar o gasto em dólares e centavos na Idade do Gelo. É um conceito relativo, que faz sentido apenas dentro de uma escala particular de valores e experiências anteriores. O Pleistoceno não tem equivalentes diretos na escala das Pirâmides de Gizé ou do Coliseu romano. Mas ele tem edifícios que, pelos padrões da época, só poderiam ser considerados trabalhos públicos, implicando projetos sofisticados e a coordenação do trabalho em uma escala impressionante. Entre eles estão as chocantes “casas mamute”, construídas com couro estendido sobre armações feitas de presas, exemplos – datando desde 15.000 anos atrás – que podem ser encontrados ao longo do transepto da franja glacial que alcança todo o caminho da atual Cracóvia até Kiev.

Ainda mais espantosos são os templos rochosos de Göbekli Tepe, escavados ao longo de 20 anos atrás na fronteira entre a Turquia e a Síria e ainda objetos de um furioso debate científico. Datados de cerca de 11.000 anos atrás, precisamente no final da Idade do Gelo, eles incluem pelo menos 20 recintos megalíticos construídos sobre os agora desérticos flancos das planícies de Harã. Cada um deles era construído com pilares de pedra calcária com mais de 5m de altura e pesando até uma tonelada (padrões dignos de Stonehenge, mas 6.000 anos antes). Quase todos os pilares em Göbekli Tepe são notáveis obras de arte, com inscrições em relevo de animais ameaçadores se projetando da superfície, com seus genitais masculinos ferozmente expostos. Aves de rapina esculpidas aparecem combinadas com imagens de cabeças humanas decapitadas. As esculturas comprovam habilidades escultóricas, sem dúvida elaboradas num meio mais maleável que seria a madeira (outrora amplamente disponível nas bases das Montanhas Tauro), antes de serem aplicadas ao leito rochoso de Harã. Intrigantemente e a despeito do seu tamanho, cada uma dessas estruturas maciças teve um tempo de vida relativamente curto, concluído com um grande banquete e o preenchimento rápido de suas paredes: hierarquias elevadas aos céus, só para serem imediatamente demolidas. E os protagonistas neste desfile pré-histórico com banquetes, construções e destruições, eram caçadores-coletores, de acordo com nossos melhores conhecimentos, vivendo apenas com recursos selvagens.

O que, então, devemos tirar disso tudo? Uma resposta dos estudiosos tem sido abandonar completamente a ideia de uma Idade do Ouro igualitária, e concluir que o autointeresse racional e a acumulação de poder são forças duradouras por trás do desenvolvimento social humano. Mas isso também não funciona. As evidências para desigualdade institucional nas sociedades da Idade do Gelo, seja na forma de grandes sepultamentos, seja na de construções monumentais, é apenas esporádica. Os sepultamentos aparecem separados literalmente por séculos e por centenas de quilômetros. Mesmo se responsabilizarmos a irregularidade da evidência por isso, ainda temos de nos perguntar por que a evidência é tão irregular, afinal, se qualquer um desses “príncipes” da Idade do Gelo tivessem se comportado como, digamos, os “príncipes” da Idade do Bronze, estaríamos encontrando fortificações, armazéns, palácios – todos os aparatos de Estados emergentes. Em lugar disso, ao longo de dezenas de milhares de anos, nós vemos monumentos e magníficos sepultamentos, mas pouca coisa que indique o desenvolvimento de sociedades hierarquizadas. Além disso, há outros fatores, ainda mais estranhos, como o fato de que a maior parte desses funerais “principescos” incluem indivíduos com notáveis anomalias físicas, que hoje seriam considerados gigantes, corcundas ou anões.

Uma observação mais ampla da evidência arqueológica sugere uma chave para desvendar o dilema. Ela está nos ritmos sazonais da vida social pré-histórica. A maior parte dos sítios paleolíticos discutidos até aqui estão associados a evidências de períodos anuais ou bienais para reuniões, conectados à migração dos rebanhos dos animais de caça – sejam mamutes lanosos, bisões das estepes, renas, ou (no caso de Göbekli Tepe) gazelas – assim como ciclos de pesca e colheita de nozes. Em momentos menos favoráveis do ano, sem dúvida, pelo menos alguns dos nossos ancestrais da Idade do Gelo realmente viviam e caçavam e coletavam em bandos minúsculos. Mas há evidências esmagadoras mostrando que em outros momentos eles se congregavam em massa dentro do tipo de “micro-cidades” encontradas por Dolní Věstonice na bacia da Morávia ao sul de Brno, banqueteando-se com a superabundância de recursos selvagens, e praticando complexos rituais, empreendimentos artísticos ambiciosos e comércio de longa distância com minerais, conchas marinhas e peles de animais. Os equivalentes europeus ocidentais destes sítios de reuniões sazonais seriam os grandes abrigos rochosos do Périgord francês e da costa da Cantábria, com suas famosas pinturas e inscrições, que similarmente formavam parte de uma rota anual de encontro e dispersão.

Tais padrões de vida social persistiram até muito tempo depois da “invenção da agricultura” supostamente ter mudado tudo. Novas evidências têm mostrado que alternações desse tipo podem ser a chave para entender os famosos monumentos neolíticos das planícies de Salisbury, e não apenas em termos do simbolismo do calendário. Stonehenge, ao que parece, era apenas a última em uma sequência bem longa de estruturas rituais, erigidas em madeira assim como em pedra, conforme as pessoas convergiam para a planície vindo de cantos remotos das Ilhas Britânicas, em momentos significativos do ano. Escavações cuidadosas têm mostrado que muitas dessas estruturas – agora plausivelmente interpretadas como monumentos aos progenitores de poderosos dinastias neolíticas – eram desmontadas depois de poucas gerações de suas construções. Ainda mais espantosamente, esta prática de erigir e desmontar grandes monumentos coincide com um momento em que os povos da Britânia, tendo adotado a economia agrária neolítica da Europa continental, parecem ter deixado para trás pelo menos um aspecto crucial dela, abandonando a produção de cereais e revertendo – por volta de 3.000 a.C. – para a coleta de castanhas como fonte básica de alimentos. Mantendo seus rebanhos de gado, com os quais eles se banqueteavam sazonalmente na região próxima de Durrington Walls, os construtores de Stonehenge provavelmente não eram nem caçadores-coletores, nem agricultores, mas sim um tipo de meio-termo. E, se algum tipo de corte real tinha domínio sobre a temporada festiva, quando eles se encontravam em grandes números, ela necessariamente teria de estar dissolvida durante a maior parte do ano, quando as mesmas pessoas retornavam ao estado de dispersão por toda a ilha.

Por que essas variações sazonais são importantes? Porque elas revelam que, desde o início, os seres humanos estavam experimentando de forma consciente com diferentes possibilidades sociais. Antropólogos descrevem sociedades desse tipo como possuindo uma “morfologia dupla”. Marcel Mauss, escrevendo no começo do século XX, observou que a sociedade dos inuítes circumpolares, “assim como muitas outras sociedades…possui duas estruturas sociais, uma no verão, outra no inverno, e que ela tem paralelamente dois sistemas de leis e de religião”. Nos meses de verão, os inuítes se dispersavam em pequenos bandos patriarcais em busca de pesca em água fresca e renas, cada um deles sob a autoridade de um único ancião homem. A propriedade era possessivamente demarcada e os patriarcas exerciam um poder coercitivo, algumas vezes até mesmo tirânico, sobre seus semelhantes. Mas durante os longos meses de inverno, quando as focas e as morsas se arrebanhavam pelos litorais do Ártico, outra estrutura social inteira assumia o controle conforme os inuítes se reuniam para construir grandes casas de encontro de madeira, ossos de baleias e pedras. Dentro delas, as virtudes da igualdade, altruísmo e vida coletiva prevaleciam; a riqueza era compartilhada; maridos e esposas trocavam de parceiros sob a égide de Sedna, a Deusa das Focas.

Outro exemplo eram os caçadores coletores nativos da costa noroeste do Canadá, para quem o inverno – não o verão – era o tempo em que a sociedade se cristalizava em sua forma mais desigual, de forma espetacular. Palácios feitos de placas de madeira apareciam ao longo da costa da Columbia Britânica, com nobres hereditários sendo cortejados por pessoas comuns e escravos, organizando os grandes banquetes conhecidos como potlatch. Contudo, essas cortes aristocráticas se dispersavam para o trabalho na temporada de pesca durante o verão, se transformando em formações menores de clãs, ainda com hierarquias, mas com uma estrutura diferente e menos formal. Neste caso, as pessoas ainda adotavam nomes diferentes durante o verão e o inverno, literalmente se transformando em outras pessoas, dependendo da época do ano.

Talvez o mais impressionante, em termos de reversões políticas, sejam as práticas das confederações tribais do século XIX nos Grandes Planaltos Americanos – ex-agricultores ou agricultores ocasionais que adotavam uma vida nômade de caçadores. No fim do verão, pequenos e móveis bandos de Cheyenne e Lakota iriam se congregar em grandes assentamentos para organizar as preparações logísticas para a caçada de búfalos. Nesse momento mais sensível do ano, eles escolhiam uma força policial que detinha plenos poderes coercitivos, incluindo o direito de aprisionar, chibatar, ou multar quaisquer ofensores que pusessem os procedimentos em perigo. E ainda assim, como o antropólogo Robert Lowie observou, esse “inequívoco autoritarismo” operava em uma base estritamente temporária e sazonal, sendo substituído por formas mais ‘anárquicas’ de organização uma vez que a temporada de caça – e os rituais coletivos que a seguiam – estivesse encerrada.

A academia nem sempre avança. Algumas vezes ela anda para trás. Cem anos atrás, a maior parte dos antropólogos entendia que aqueles que vivem principalmente de recursos naturais e selvagens não estavam, normalmente, restritos a “bandos” minúsculos. Essa ideia é realmente um produto dos anos 1960, quando bosquímanos Kalahari e pigmeus Mbuti se tornaram a imagem preferida da humanidade primordial tanto para a audiência da televisão quanto para pesquisadores. Como resultado, nós vimos o retorno das etapas evolucionárias, não tão diferentes da tradição do Iluminismo escocês: essa é, por exemplo, a fonte de onde vem a inspiração de Fukuyama, quando eles escreve que a sociedade está evoluindo estavelmente de “Bandos”, para “Tribos”, “Chefaturas” e finalmente o tipo de “Estados” complexos e estratificados em que nós vivemos hoje – usualmente definidos pelo monopólio “do uso legítimo da força coercitiva”. Por essa lógica, contudo, os Cheyenne e os Lakota deveriam estar “evoluindo” de bandos diretamente em Estados a cada novembro, e então “involuindo” outra vez na primavera. A maior parte dos antropólogos agora reconhece que essas categorias são inadequadas, e ainda assim, ninguém propôs uma forma alternativa para pensar sobre a história mundial em termos mais amplos.

De forma bem independente, as evidências arqueológicas sugerem que nos ambientes altamente sazonais da última Idade do Gelo, nossos ancestrais remotos estavam se comportando de formas amplamente similares: alternando entre diferentes arranjos sociais, permitindo o aparecimento de estruturas autoritárias durante certas épocas do ano, sob a condição de que elas não poderiam durar; a partir do entendimento de que nunca qualquer ordem social em particular seria fixa ou imutável. Dentro da mesma população, seria possível, às vezes, viver no que pareceria ser, à distância, um bando ou uma tribo, e outras vezes, uma sociedade com muitas das características que nós identificamos agora com os Estados. Com tal flexibilidade institucional vem a capacidade de sair das fronteiras de qualquer estrutura social dada; de fazer e desfazer os mundos políticos em que vivemos. Se nada mais, isso ao menos explica os “príncipes” e “princesas” da última Idade do Gelo, que aparecem, em seu magnifico isolamento, como personagens de algum tipo de conto de fadas ou drama de época. Talvez eles fossem isso mesmo de forma quase literal. Se eles realmente reinaram, talvez tenha sido com os reis e rainhas de Stonehenge, apenas durante uma temporada.

Tempo para repensar

Os autores modernos tem a tendência de usar a pré-história como uma tela para trabalhar problemas filosóficos: os humanos são fundamentalmente bons ou maus, cooperativos ou competitivos, igualitários ou hierárquicos? Como resultado, eles também tendem a escrever como se 95% da história da nossa espécie, as sociedades humanas tivessem sido essencialmente iguais. Mas mesmo 40.000 anos é um período de tempo muito, muito longo. Parece inerentemente possível, e a evidência confirma, que os mesmos humanos pioneiros que colonizaram a maior parte do planeta também experimentaram uma enorme variedade de arranjos sociais. Como frequentemente era apontado por Claude Levi-Strauss, os Homo sapiens iniciais não eram apenas fisicamente iguais aos humanos modernos, eles também eram nossos pares intelectuais. Na verdade, a maioria era provavelmente mais consciente dos potenciais da sociedade do que as pessoas são em geral hoje em dia. Em lugar de ficar inertes em algum tipo de inocência primordial, até que de alguma forma o gênio da desigualdade fosse retirado da lâmpada, nossos ancestrais pré-históricos parecem ter tido sucesso em trazê-lo para fora e para dentro regularmente, restringindo a desigualdade a encenações de época, construindo deuses e reinos da mesma forma que faziam com seus monumentos, e então alegremente os desconstruindo uma vez mais.
Se é assim, então a questão real não é “quais são as origens da desigualdade social?”, tendo vivido tanto tempo de nossa história variando entre diferentes sistemas políticos, mas sim “como foi que ficamos tão presos?”. Isso é bem distante da ideia de que as sociedades pré-históricas vagaram cegamente em direção a correntes institucionais que as aprisionaram. Também está bem longe das profecias desanimadoras de Fukuyama, Diamond, Morris e Scheidel, nas quais qualquer forma “complexa” de organização social significa necessariamente que elites minúsculas assumam o controle dos recursos fundamentais e comecem a espezinhar todas as outras pessoas. A maior parte das ciências sociais trata estes prognósticos sombrios como verdades auto-evidentes. Mas elas claramente não têm base. Então é razoável que nos perguntemos: quais outras preciosas verdades devem ser agora atiradas na lata de lixo da história?

Um bom número, na verdade. Nos anos 1970, o brilhante arqueólogo David Clarke predisse que, com a pesquisa moderna, quase todos os aspectos do velho edifício da evolução humana, “as explicações sobre o desenvolvimento do homem moderno, domesticação, metalurgia, urbanização e civilização – podem se revelar como armadilhas semânticas e miragens metafísicas”. Aparentemente ele estava certo. Informações agora transbordam de todos os cantos do globo, baseada em cuidadosos trabalhos de campo com caráter empírico, técnicas avançadas de reconstrução climática, datação cronométrica e análises científicas de restos orgânicos. Os pesquisadores estão examinando materiais etnográficos e históricos a partir de uma nova luz. E quase toda essa nova pesquisa vai contra a narrativa familiar da história mundial. Ainda assim, as mais notáveis descobertas permanecem restritas ao trabalho de especialistas, ou têm de ser expostas à força por meio da leitura nas entrelinhas das publicações científicas. Vamos então concluir com algumas das nossas próprias manchetes: apenas algumas, para apresentar um pouco daquilo com que a nova, a emergente, história mundial está começando a se parecer.

A primeira bomba na nossa lista diz respeito às origens e à difusão da agricultura. Não há mais qualquer apoio à visão de que ela marcou uma transição maior para as sociedades humanas. Naquelas partes do mundo em que animais e plantas foram inicialmente domesticados, não houve de fato qualquer “troca” discernível do caçador-coletor paleolítico para o agricultor neolítico. A “transição” de uma vida a partir de recursos naturais e selvagens para uma vida baseada na produção de alimentos levava, tipicamente, um período de tempo da ordem de três mil anos. Enquanto a agricultura permitia a possibilidade de uma concentração mais desigual de riqueza, na maioria dos casos, isso só começou a acontecer milênios depois do seu início. Nesse meio tempo, as pessoas em áreas tão distantes como a Amazônia e o Crescente Fértil, no Oriente Médio, experimentavam com diferentes amplitudes de práticas agrícolas, um “jogo agrário” se vocês quiserem, alternando anualmente entre modos de produção, da mesma forma que eles alternavam suas estruturas sociais. Além disso, a “difusão da agricultura” para áreas secundárias, como a Europa – tão frequentemente descrita em termos triunfalistas, como o início de um declínio inevitável na caça e na coleta – parece ter sido um processo altamente tênue, que algumas vezes falhava, levando ao colapso demográfico dos agricultores, não dos caçadores-coletores.

Claramente não faz mais sentido usar sentenças como “a Revolução Agrária” ao lidar com processos com duração e complexidade tão desmedidas. Uma vez que não houve um estado edênico, do qual os primeiros agricultores teriam dado seus primeiros passos no caminho da desigualdade, faz ainda menos sentido falar da agricultura como a demarcação das origens da hierarquia e da propriedade privada. Pelo contrário, é entre as populações – os povos mesolíticos – que recusaram a agricultura ao longo dos séculos quentes do Holoceno inicial que nós encontramos um fortalecimento da estratificação; ao menos, se sepultamentos opulentos, guerras predatórias e a construção de monumentos são sinais de alguma coisa. Em alguns dos casos, como no Oriente Médio, os primeiros agricultores parecem ter conscientemente desenvolvido formas alternativas de comunidade, que acompanhassem os modos de vida com trabalho mais intensivo. Essas sociedades neolíticas pareciam notavelmente igualitárias quando comparadas às dos vizinhos caçadores coletores, com um aumento dramático na importância econômica e social das mulheres, claramente refletida na vida ritual e na arte (contraste-se aqui as representações femininas de Jericó e Çatalhöyük com as esculturas hiper-masculinas de Göbekli Tepe).

Outra bomba: “civilização” não chega em um pacote fechado. As primeiras cidades do mundo não emergiram simplesmente em um punhado de lugares, junto com sistemas de governo centralizado e controle burocrático. Na China, por exemplo, sabemos agora que, por volta de 2500 a.C., assentamentos de 300 hectares ou mais existiram nas partes inferiores do rio Amarelo, mais de mil anos antes da fundação da primeira dinastia real (Shang). Do outro lado do Pacífico, e mais ou menos na mesma época, centro cerimoniais de magnitude impressionante foram descobertos no vale do Rio Supe no Peru, notavelmente no sítio de Caral: restos enigmáticos de plazas e plataformas monumentais submergidas, quatro milênios mais antigas do que o Império Inca. Tais descobertas recentes indicam quão pouco ainda se sabe realmente sobre a distribuição e a origem das primeiras cidades, e quão mais antigas essas cidades podem ser em relação aos sistemas de governo autoritário e de administração letrada que outrora se presumiu serem necessárias para sua fundação. E nas terras mais estabelecidas do coração da urbanização – Mesopotâmia, o Vale do Indo, a Bacia do México – há evidências crescentes de que as primeiras cidades foram conscientemente organizadas em linhas igualitárias, com conselhos municipais mantendo autonomia significativa em relação aos governos centrais. Nos primeiros dois casos, cidades com sofisticadas infraestruturas cívicas floresceram durante mais de meio milênio, sem qualquer traço de sepultamentos reais ou monumentos, exércitos permanentes ou quaisquer outros meios de coerção em larga escala, nem qualquer sugestão de controle burocrático direto sobre as vidas da maioria dos cidadãos.

Apesar do que diz Jared Diamond, não há absolutamente qualquer evidência de que estruturas de governo de cima para baixo são a consequência necessária de organizações em larga-escala. Apesar do que diz Walter Scheidel, simplesmente não é verdade que classes governantes, uma vez estabelecidas, só podem ser retiradas do poder por meio de catástrofes. Para tomar apenas um exemplo bem documentado: por volta de 200 d.C. a cidade de Teotihuacan no vale do México, com uma população de 120.000 (uma das maiores do mundo na época), parece ter passado por uma transformação profunda, abandonando templos-pirâmides e sacrifícios humanos e se reconstruindo como uma vasta coleção de villas confortáveis, todas quase do mesmo tamanho. Ela permaneceu assim talvez por cerca de 400 anos. Mesmo na época de Cortés, o México central era ainda residência de cidades como Tlaxcala, governada por um conselho eleito no qual os membros eram periodicamente chibatados pelos cidadãos para serem lembrados de quem estava no comando em última instância.

As peças estão todas aí para se criar uma história mundial inteiramente diferente. Na maior parte do tempo, nós estamos excessivamente cegos por nossos preconceitos para ver as implicações. Por exemplo, quase todo mundo hoje em dia insiste que a democracia participativa ou a igualdade social pode funcionar em uma pequena comunidade ou em um grupo de ativistas, mas não pode ser ampliada para qualquer coisa como uma cidade, uma região ou um Estado-nacional. Mas a evidência ante nossos olhos, se escolhermos olhar para ela, sugere o oposto. Cidades igualitárias, ou mesmo confederações regionais são lugares comuns do discurso histórico. Famílias e unidades domésticas [6] igualitárias não são. Uma vez que se tome o veredito histórico, nós veremos que as perdas mais dolorosas de liberdades humanas começaram em pequena escala – no nível das relações de gênero, de grupos etários, da servidão doméstica – o tipo de relações que contém de uma vez só a maior intimidade e as formas mais profundas de violência estrutural. Se realmente queremos entender como inicialmente se tornou aceitável para alguns transformarem riqueza em poder e para outros terem de escutar que suas necessidades e suas vidas não importam, é aqui que devemos procurar. Aqui, também, nós prevemos, é onde vai ter de ser realizado o mais difícil trabalho para criar uma sociedade emancipada.

Baixe o pdf do livro completo aqui.

David Graeber foi um dos mais influentes anarquistas da virada do século, antropólogo e autor de diversos textos e livros relevantes como “Trabalhos de Merda”, “Dívida” e “Ação Direta”. Participante ativo do Movimento Occupy nos EUA, foi um dos primeiros a chamar a atenção internacional para a experiência revolucionária em Rojava, visitando o território diversas vezes. Faleceu em 2020 vítima da Covid-19.

David Wengrow é arqueólogo e professor de Arqueologia Comparada no Instituto de Arqueologia da University College London e co-autor do livro “The Dawn of Everything”, junto de Graeber, lançado em 2021 após o falecimento do colega.

Tradução para português por de Uiran Gebara da Silva, revisão e edição por Facção Fictícia.


Notas:

[1]: NE: O Índice de Gini, criado pelo matemático italiano Conrado Gini, é um instrumento para medir o grau de concentração de renda em determinado grupo.Ele aponta a diferença entre os rendimentos dos mais pobres e dos mais ricos.

[2]: NT: em português perde-se o trocadilho: Caçadores-coletores, Agricultores e Combustíveis fósseis.

[3]: ‘To Each Age Its Inequality’ by Ian Morris. New York Times, 9 July 2015. Cf.

[4]: NT: “organic Free range produce” no original.

[5]: ‘It’s Good To Have a King’ by Felipe Fernández-Armesto. Wall Street Journal, 10 May 2012. Cf.

[6]: NT: household, ou lar, que não tem uma tradução convencional na língua portuguesa.