A REVOLTA POPULAR NO PERU – Anarquistas Discutem a Revolta Contra a Violência Policial e o Estado de Emergência

Em dezembro de 2022, uma onda de protestos populares liderados por camponeses e os movimentos indígenas varreram o Peru depois que o ex-presidente Pedro Castillo sofreu impeachment após uma tentativa fracassada de dissolver o legislativo e sua vice-presidente, a conservadora Dina Boluarte, assumiu o governo. Em 14 de dezembro, o ministro da Defesa, Alberto Otárola, decretou estado de emergência, suspendendo a liberdade de reunião, a liberdade de ir e vir, a inviolabilidade do lar e outros direitos. No entanto, os protestos só aumentaram de intensidade. Em 18 de janeiro, movimentos populares do sul do Peru marcharam até a capital em uma mobilização conhecida como “Tomada de Lima”. Estudantes e sindicatos os receberam, juntando-se aos protestos para exigir novas eleições para a presidência e o legislativo. Em resposta, a polícia matou mais de 60 pessoas e feriu milhares. Para uma visão direta desses acontecimentos, conversamos com anarquistas peruanos, na esperança de obter uma perspectiva sobre os aspectos desse movimento que ultrapassam a política de estado.


O Peru tem uma longa história de golpes de estado no poder e violência estatal e paramilitar no campo. Após uma crise envolvendo a falta da última página de um contrato entre o governo peruano e a Companhia Internacional de Petróleo, o general Juan Velasco Alvarado derrubou o presidente eleito Fernando Belaúnde Terry em 1968. A partir da década de 1980, o grupo armado maoísta Sendero Luminoso conduziu uma guerra de guerrilha no campo que ceifou dezenas de milhares de vidas. O presidente Alberto Fujimori dissolveu o Congresso em 1992 para obter o poder absoluto, que manteve por meio de uma vasta rede de atividades secretas coordenadas pelo chefe do serviço de inteligência do Peru, Vladimiro Montesinos – até ser derrubado em 2000 após uma eleição fraudulenta. Em novembro de 2020, protestos generalizados forçaram o presidente interino Manuel Merino a renunciar após apenas cinco dias no cargo.

Mais recentemente, o vizinho Equador viu revoltas em 2019 e 2022, nas quais grupos de base ligados à Confederação de Nacionalidades Indígenas do Equador (CONAIE) desempenharam um papel central na resistência às medidas de austeridade impostas pelo Estado. Algo semelhante ocorre hoje no Peru, onde um movimento composto principalmente por camponeses e indígenas interrompeu o funcionamento do capitalismo extrativista, afirmando seus próprios interesses e estruturas organizacionais fora do quadro do poder estatal.

À medida que uma nova série de tentativas de golpe ocorre nas Américas, do 6 de janeiro de 2021 nos Estados Unidos ao 8 de janeiro de 2023 no Brasil, é importante aprender como os movimentos populares podem manter a resistência diante da repressão policial – especialmente movimentos envolvendo os explorados e excluídos.

Conversamos com participantes do Periodico Libertária, publicação anarquista que surgiu como parte da resistência ao regime peruano. Seu objetivo, como eles dizem, é “a libertação total dos Andes e de todo o território dominado pelo estado assassino chamado ‘Peru’”.

Capa da primeira edição do Periodico Libertária, com o slogan “Espalhamos a anarquia quando podem”. O balão diz “Um misantropo que também é filantropo, é um pouco difícil de entender” e a legenda diz “Oxímoro: Protesto dos trabalhadores do IPC em Lima, 29 de junho de 1956”.

Em outros países, são muito escassas as informações que recebemos sobre a revolta que ocorre neste momento nas ruas peruanas. A mídia noticia de forma superficial que há manifestações e greves, com repressão policial que já matou dezenas de pessoas e feriu milhares. Ainda assim, pouco se discute sobre o contexto e quando se fala, mantém-se o binário: apoio a Pedro Castillo, presidente que tentou dissolver o Congresso e aplicar um golpe, ou a destituição de Dina Boluarte, sua vice que assumiu o cargo depois do Impeachment do presidente, e também a demanda popular pela realização de uma nova eleição. Mas sabemos que as revoltas estão sempre para além dessas simplificações e, por isso, é preciso entender o contexto e as lutas recentes nos territórios onde as insurreições acontecem. Sendo assim, gostaríamos que você escrevesse uma história de uma perspectiva anarquista sobre o que está acontecendo lá no momento e quais são as possíveis conexões com outras insurreições que ocorreram na chamada América Latina?

Normalmente, os meios de comunicação de massa cobrem os protestos no exterior como algo isolado e localizado, mesmo que o que está acontecendo esteja a apenas alguns quilômetros de distância. Nos meios de “comunicação” existe o receio de expor problemas estruturais e analisá-los em profundidade. Sabe-se que no Peru vivemos um processo antiautoritário que poderia ocorrer em qualquer país latino-americano, especialmente considerando a coincidência e a origem dos problemas – racismo estrutural, pobreza extrema, corrupção institucionalizada e uma violenta democracia neoliberal.

Nesse caso, a repressão do atual governo tem sido caracterizada pelo racismo desenfreado. Houve massacres em cidades dos Andes e do Altiplano [as montanhas e planaltos do Peru]. Obviamente, a desprezível imprensa amarela não tem apresentado uma representação fiel da realidade. Enquanto a militarização continua em várias cidades – como Ica, no litoral, e Puno, no altiplano – o último assassinado em Lima (28/01/23) foi descrito pela mídia como mero delinquente quando sua morte foi transmitida no um canal a cabo no país. Há um constante confronto assimétrico entre as armas do Estado e as lutas dos povos em busca da liberdade.

No que diz respeito às conexões com outros eventos, sem esquecer os problemas específicos deste território e o caráter camponês da revolta peruana, as referências mais próximas são as experiências antiautoritárias de outubro de 2019 da Confederação de Nacionalidades Indígenas do Equador (CONAIE). A diferença está na ausência de grandes organizações indígenas, já que a Confederación Campesina del Perú (a Confederação Campesina do Peru fundada em 1947) sofreu o violento assédio do Sendero Luminoso (grupo marxista) e também a perseguição do ditador Alberto Fujimori, resultando em sua atual desintegração. Para compensar esta ausência existem as organizações camponesas de base , tanto provinciais como distritais.

Isso também explica o fracasso da esquerda política em direcionar os protestos para seus interesses. Vimos confrontos abertos com parlamentares nas ruas e até ações diretas contra suas propriedades.

Confrontos em Lima.

Você pode falar sobre a participação dos camponeses e indígenas nas manifestações?

Deve-se afirmar abertamente que os grupos camponeses estão à frente dos levantes neste território. Existem diferentes grupos étnicos no Peru que resistiram à maquinaria colonial (em todas as suas formas) e mantêm uma longa tradição antiautoritária. Nessas circunstâncias, diferentes etnias ou nações se uniram para enfrentar diretamente a açougueiro Dina Boluarte.

Embora alguns dos partidos políticos tenham contribuído para organizar os protestos por meio de suas bases, eles estão tentando se posicionar como vanguarda; isso não é mais sustentável, pois as pessoas não aceitam mais os apelos à não violência vindos desses partidos. É por isso que as pessoas queimaram prédios estatais, incluindo delegacias de polícia.

Por outro lado, essas ações também nascem de uma justa sede de vingança contra a capital Lima, porque dirige toda a maquinaria legal colonialista que, através do extrativismo e outras atividades econômicas, esmaga as populações das províncias, usando a violência do estado e força privada para expulsá-los, prendê-los e até matá-los sempre que se opõem a um projeto – ou simplesmente quando exigem o cumprimento dos termos com os quais concordaram como condições para aceitar um projeto estatal ou privado.

A isto se somam as lembranças do comportamento de muitas pessoas de Lima que alugavam quartos, apartamentos ou casas a gente do interior e que não queriam abater o aluguel (ou baixar o valor ou adiá-lo) durante a primeira fase da pandemia, e ainda começou a expulsá-los de suas casas, causando um êxodo de pessoas dos Andes e da selva de volta aos seus lugares de origem por causa da quarentena. Da mesma forma, algumas pessoas foram expulsas de suas casas “por medo de contágio”, porque a imprensa (irresponsavelmente como sempre) espalhou o medo sobre o COVID-19. Além disso, como eles viajavam em grandes grupos a pé porque o transporte era proibido por medo de contágio – e eles nem podiam usar o próprio transporte – a polícia começou a reprimi-los em todos os postos de controle da estrada. E também, os habitantes de algumas localidades, temendo a exposição ao vírus, também participaram dessa repressão e do fechamento das estradas de seus territórios.

É perigoso generalizar esse ódio a todos que moram em Lima, algo que pouco se tem falado nas redes sociais, talvez porque muitas pessoas já tenham família, amigos ou moradia nas províncias para onde possam ir se essa situação tornar-se mais aguda e as províncias tomam a decisão de bloquear o envio de alimentos para Lima. Lima quase não produz alimentos in natura, apenas alimentos processados ​​– mas sem matéria-prima importada de fora, nem isso seria possível.

É por isso que, há alguns dias, circulou um vídeo da caminhada de Ancón ao centro de Lima (que dizem ser 20 quilômetros) em que uma senhora do Sul agradeceu aos lxs desactivadorxs [os “desativadores”, os grupos que se organizam para neutralizar as armas químicas da polícia] pelo esforço e disseram (embora eu acredite que de brincadeira) que terão um espaço na Grande República do Sul. Parece que essa ideia de dividir o Peru em duas repúblicas, que surgiu durante as eleições presidenciais (primeiro entre a direita, quando viram que grande parte do Sul votaria em Pedro Castillo, e depois nos meios de esquerda, que acredita isso é do interesse de seu governo), ganhou força como resultado dos assassinatos de cidadãos. Isso pode ser aproveitado pelos esquerdistas que – com Evo Morales à frente e o apoio da China por meio de sua Cúpula da CELAC [Comunidade de Estados Latino-Americanos e Caribenhos] – aspiram a governar os novos pactos comerciais extrativistas com a China, especialmente do lítio presente na cidade de Puno, no sul do Peru e na fronteira com a Bolívia. Até os Estados Unidos pretendem obter o controle dessa área, por isso apoia o modelo de exportação mineral para aquela região – não só com a presença de seu embaixador, mas também apoiando o governo do Peru e suas forças armadas e policiais, militarmente e taticamente. É por isso que eles enviaram forças militarizadas para Puno.

Diante de várias propostas de “independência” ou de saída para esta crise, é preciso analisar cada uma delas, pois atrás de cada uma há aspirantes a opressores querendo puxar os cordelinhos em benefício próprio. Os irmãos e irmãs no Chile já estão nos alertando sobre os perigos ou a ilusão de uma Assembléia Constituinte, até mesmo do próprio processo. [Para mais contexto, veja nossa cobertura de como o movimento no Chile se perdeu na tentativa de introduzir uma nova constituição por meios institucionais.] A esquerda, com seus partidos políticos e parlamentares, está tentando se fazer passar por aliada desses protestos em um esforço que só pode ser descrito como oportunismo político; em alguns lugares, os manifestantes os expulsaram ou vaiaram. A esquerda tenta fingir que se importa com seus irmãos e irmãs nas províncias, mas eles apenas os veem e os tratam como possíveis votos a seu favor.

Para concluir, foram os camponeses que colocaram seus corpos em risco nesses protestos – que, com suas huaracas feitas à mão, trocaram projéteis com a tombería [tropa de choque], repelindo as covardes forças repressivas do sangrento regime de Dina Boluarte. Eles sabem que é uma questão de vitória ou morte; a democracia nunca resolveu nada para eles, ao contrário daqueles que se venderam a um partido. Essas marchas trouxeram à tona o racismo velado no Peru.

Também nos preocupamos com os recursos para o autocuidado e as possibilidades de voltarem para casa quando tudo passar. Já existe um precedente infeliz desde 2000, quando o povo indígena Shipibo-Konibo foi abandonado e marginalizado após os protestos maciços da “Marcha de los 4 Suyos” contra o ditador Fujimori. [A “Marcha dos Quatro Quartos” em julho de 2000 foi uma mobilização de massas organizada por esquerdistas, partidos social-democratas e movimentos sociais contra as eleições fraudulentas e a posse de Fujimori]. Com a queda do ditador e o parlamento cheio de políticos contrários ao antigo regime, toda a esquerda, centro e liberais se esqueceram dessas pessoas, que ainda sofrem com a pobreza extrema.

A mídia corporativa sempre vê os eventos da perspectiva da polícia.

Vimos imagens de terrorismo de Estado no Peru, incluindo assassinatos, tortura e prisão em massa, bem como outras formas de agressão da polícia peruana. Sabemos que estes não são eventos isolados – a repressão é algo comum em todos os estados, especialmente quando uma mobilização ataca a ordem e a paz dos ricos. Como está estruturada a polícia peruana? Qual é a história da repressão policial contra os protestos no Peru?

A moderna polícia peruana foi fundada em 1988, a partir da unificação de três agências estatais anteriores. Sabemos que a formação de policiais é um fenômeno transnacional, ou seja, no desenvolvimento da instituição do policiamento, houve vários modelos que serviram de ideal para outros países (em um momento, foi o modelo francês, em outro, o modelo espanhol e, atualmente é uma mistura de várias instituições repressivas em todo o planeta).

No início, a polícia peruana só dispunha de bastões, apitos e coisas do gênero para estabelecer a ordem municipal; então seu armamento aumentou: pistolas, rifles, pinochios (conhecidos no Chile como guanacos, são carros blindados usados ​​para atacar manifestações), caminhões, motocicletas, gás lacrimogêneo, spray de pimenta, drones e computadores.

Eles sempre estiveram do lado do poder. Eles fizeram greve apenas uma vez, durante a ditadura de Velasco Alvarado, que os reprimiu com força militar, deixando um número desconhecido de mortos.

Nos anos 1980 e 1990, as autoridades deram à polícia imunidade legal e moral para assassinar a fim de eliminar o Sendero Luminoso (partido maoísta). Foi então que cometeram as piores injustiças: assassinar, torturar, estuprar, desaparecer, extorquir em todas as cidades e vilas do Peru.

Em 2000 [quando o presidente Alberto Fujimori fugiu para o Japão, substituído por Alejandro Toledo], eles tiveram que se adaptar à ideologia do novo presidente; porém, carregavam no DNA o autoritarismo e o racismo, junto com o montesinism. [Vladimiro Lenin Ilich Montesinos Torres, ex-oficial de inteligência do exército e espião dos EUA, foi conselheiro do ditador Fujimori e serviu como chefe do serviço de inteligência do Peru sob seu comando.]

A história recente da polícia é um exemplo claro da impunidade do setor político Fujimontesinista, que nunca foi expulso do aparato institucional do Estado, apenas acomodado nele. Hoje, as práticas repressivas vêm dos ex-quadros de Vladimiro Montesinos e também de seus aprendizes.

Polícia se mobiliza para atacar manifestantes no Peru.

Como o chamado Brasil, Argentina, Chile e muitos outros lugares, a região peruana viveu uma ditadura civil-militar. É um território com uma longa história de golpes, como o do presidente peruano Alberto Fujimori em 1992. Fale da resistência e da memória combativa contra os legados da ditadura e a continuidade da repressão e do extermínio na democracia.

É verdade que nesta região houve seguidas interrupções da democracia representativa (o que, obviamente, como anarquistas, não queremos de qualquer maneira) e, consequentemente, houve vários períodos de resistência ao autoritarismo e às ditaduras. No entanto, e um tanto contraditoriamente, também houve ditadores apreciados pelos setores populares – por exemplo, o militar nacionalista Juan Velasco Alvarado, que é celebrado por um setor da esquerda conservadora ou kitsch.

Outro ponto a destacar é que o antifascismo dos anos 1930 e 1940 e suas experiências de resistência foram esquecidos no Peru – goste ou não, quem participou do confronto foram anarquistas, comunistas, apristas [membros a APRA, Aliança Popular Revolucionária Americana, um partido socialista fundado em 1924] e progressistas.

A memória antiautoritária das esquerdas dos anos 1970 e 1980 se perdeu com as perseguições sofridas pelo ditador Fujimori e pelos genocidas do Sendero Luminoso – comunistas dogmáticos que assassinaram camponeses, líderes esquerdistas e qualquer outro que se opusesse a eles. Tudo isso contribuiu para uma despolitização nos anos 1990 e para a aceitação da narrativa neoliberal delirante sobre o “empreendedorismo” em 2000, que grande parte da população dessa região ainda hoje aceita.

Apesar de tudo isso, no dia 5 de abril, aniversário do golpe do genocida Fujimori, marcham contra tudo o que representa a atual ditadura: o neofujimorismo, o neoliberalismo, a corrupção em massa, o narcotráfico e o genocídio. É preciso reconhecer que os partidos de esquerda procuram monopolizar o “anti-fujimorismo” para ganhos políticos e que, seguindo as vicissitudes da política peruana, alguns “anti-fujimoristas” revelaram sua verdadeira face a ponto de ingressar nas fileiras do pos-fascistas (por exemplo, o autor conservador Mario Vargas Llosa, [ex-ministro do Interior] Fernando Rospigliosi e [presidente em exercício] Dina Boluarte, entre outros).

Em todo caso, é o antifujimorismo que entregou o trono da presidência ao atual governo. E embora alguns se orgulhem disso (por ter impedido que Keiko Fujimori, filha mais velha do ex-presidente peruano Alberto Fujimori, chegasse ao poder), é preciso dizer claramente que isso só contribuiu para consertar um abominável sistema político que foi brutalmente nos explorando – sob o qual há massacres contínuos nos Andes, graças a políticos, bandidos e empresários.

Agora, vemos ressurgir essa memória combativa; muitas pessoas pararam de se censurar e estão falando sobre o que sofreram por resistir à ditadura de Fujimori. Ao mesmo tempo, o ataque da extrema-direita tem indignado as pessoas pela forma como usam a acusação de “terrorismo” contra quem se opõe a eles e aos seus ídolos. O famoso “terruqueo” é um conceito que nasceu na década de 1980: é o adjetivo usado para definir quem pode ser morto impunemente. Se você é um terruco(suposto terrorista), pode queimar na fogueira ou ser executado – como fizeram sistematicamente os militares em Ayacucho nas décadas de 1980 e 1990.

Por isso, hoje, o mais próximo da memória combativa é o esforço para desarmar os partidários do ditador genocida Fujimori de sua arma semântica: o “terruqueo”. E é assim que as pessoas estão procedendo nas regiões do sul (lugar onde tanto os militares quanto o Sendero Luminoso massacraram os camponeses). Sem falar em confrontá-los implacavelmente nas ruas até que o fascismo seja destruído!

Os restos de um edifício histórico que pegou fogo perto da Plaza San Martin em Lima durante as manifestações de janeiro de 2023. Segundo o filho do proprietário, o incêndio foi causado por bombas de gás lacrimogêneo lançadas pela polícia para dispersar manifestantes.

Há debates sobre legítima defesa nas ruas? Existe alguma discussão por parte dos movimentos e coletivos sobre a abolição da polícia?

Nesta região, ouvimos vários discursos diferentes sobre a polícia. O primeiro é o desrespeito da polícia pelos assassinatos de manifestantes, o que é compatível com o repugnante “princípio da proporcionalidade” (teoria imbecil que tem origem no pacifismo do século passado e justifica guerras, massacres, etc., com base em igualar o uso de armas). A maioria das pessoas que promovem essa ideia são cidadãos e esquerdistas moderados (obviamente não vão atacar a instituição pela qual querem disciplinar quando estiverem no poder). O segundo é o discurso da extrema-direita que dá desculpas ao gatilho (apoiando tomberìa e militares em matar sem repercussão legal ou moral) e até mesmo paramilitarismo fascista.

Dentro da esquerda radical, não há quase nada sobre abolir a polícia, embora as pessoas odeiem a instituição por sua corrupção, sua inutilidade em responder a feminicídios, crimes antissociais e outras questões e, finalmente, pelo papel que a polícia desempenha na proteção do empresariado extrativista.

Como anarquistas, acreditamos que é urgente pedir a destruição dessa instituição assassina. Há alguns dias, no blog, um camarada compartilhou alguns artigos não anarquistas discutindo a origem da polícia, a fim de imprimi-los e compartilhá-los na linha de frente.

Ele nos convidou a compartilhar o seguinte fragmento:

“Desde a formação das primeiras cidades, quem as governou teve necessariamente de criar forças repressivas para resguardar os seus domínios dos ataques externos daqueles que procuravam reclamar o que estes governantes lhes arrebataram nas zonas rurais onde viviam, e contra os ataques internos dos aqueles que estavam insatisfeitos com esses governos, reinos ou impérios. Toda a história da civilização e de suas cidades e outros domínios sempre foi dividida entre governantes e governados. A questão é que a direita ama a polícia porque, para ela, os policiais se comportam como servidores que garantem a segurança de seus domínios e privilégios. Por outro lado, o problema é que seu suposto adversário, a esquerda, não busca a abolição da polícia porque isso enfraqueceria seu controle quando chegar ao poder. A abolição da polícia é um passo necessário para uma vida em plena liberdade, encontrar outras formas de convivência equilibrada e respeito é mais um passo necessário para não depender para sempre da existência da polícia. De fato, as comunidades indígenas viveram outrora sem a instituição da polícia ou sua lógica. Hoje, em várias dessas comunidades, essas lógicas e práticas estão sendo impostas como parte do processo civilizatório do sistema e dificultam nosso caminho.

Contracapa da primeira edição do Periodico Libertária. “Mais de 300 assassinados sob a democracia (2003-2020), graças a políticos e policiais. Fogo eterno para os assassinos tomberìa [polícia] e seus símbolos!”

Por fim, estamos interessados ​​nas diferentes expressões do anarquismo na região conhecida como América do Sul. Por favor, fale sobre os envolvidos nas lutas anárquicas na região peruana.

O anarquismo é muito humilde nesta região. Existem diferentes organizações e indivíduos com diferentes abordagens: anarco-sindicalismo, insurgentes, plataformistas e anarquistas sem adjetivos. Não há “black bloc” como observado em outras regiões, ou talvez haja, mas apenas muito pequeno. Tampouco existem “grandes organizações” – admitamos isso como uma forma de autocrítica – mas existem indivíduos que resistem nas diversas províncias do Peru.

A repressão em Lima que o açougueiro Manuel Merino supervisionou em 2020, que representou para muitos jovens anarquistas seu primeiro encontro com a verdadeira face do estado assassino, destacou a urgência de autocuidado e autodefesa agudos, bem como um retorno à realidade (o resultado da situação foi um governo de transição, o enfraquecimento dos protestos e injustiça permanente para os caídos).

Atualmente, com um levante em curso, os anarquistas que não vivem na capital (especialmente no sul do Peru) experimentaram suas consideráveis ​​limitações para enfrentar as forças repressivas e as armas letais da ditadura cívico-militar de Dina Boluarte.

Apesar disso, não desanimamos. A tarefa dos anarquistas hoje, desde nossa humilde posição, é acompanhar os camponeses em todas as ações diretas. Como nossas famílias camponesas , vamos junto com elas em qualquer posição possível, seja resistindo na linha de frente, desativando gás lacrimogêneo, dando assistência médica, coletando doações para nossas irmãs, divulgando medidas de autocuidado, debatendo todas as questões políticas e sociais de nossa região e, finalmente, conhecer sua experiência de resistência. Sem intermediários, políticos de esquerda e influenciadores legalistas, marchamos juntos para a destruição da ditadura cívico-militar e não descansaremos enquanto não vermos a justiça que nos foi roubada séculos atrás.

Manifestação em Puno.

PORQUE 2013 AGORA? – Novo vídeo por Antimídia

É cada vez mais comum ver pessoas e organizações de esquerda defenderem uma narrativa que busca responsabilizar as Jornadas de Junho de 2013 pela ascensão do fascismo bolsonarista, traçando paralelos entre o uso da tática black bloc e os ataques fascistas em Brasília no dia 8 de janiero de 2023. Há quem defenda que junho de 2013 teria sido orquestradas por forças ocultas para desestabilizar o governo de esquerda.  Mas essa versão não se sustenta quando analisamos o contexto de greves e movimentos sociais no período.
Assista ao vídeo editado por Antimídia, compatilhe, difunda e debata:

Não começou em 2013, não vai terminar em 2023

2013 foi o auge de uma série histórica de protestos, paralisações e ocupações que vão de 2011 a 2016, segundo uma expressão local e tendências globais derivadas da crise de 2008. Foi um ano de lutas populares, no qual houve o maior número de greves desde o fim da ditadura civil-militar (1964-1985). Foram mais de duas mil greves. Mil e cem apenas no setor privado. Aderiam a essas manifestações trabalhadores que não viam mais os sindicatos como seus representantes e que procuravam deixar manifesta sua insatisfação com a situação e a precariedade das condições de trabalho e vida. Várias categorias entraram em greve de forma autônoma, contrariando seus próprios sindicatos.

Os governos petistas alimentaram uma insatisfação popular ao gastar bilhões em megaempreendimentos, como a hidrelétrica de Belo Monte e as obras do Programa de Aceleração do Crescimento, da Copa do Mundo e das Olimpíadas, que levaram à remoção de comunidades periféricas e povos indígenas de suas terras. A esquerda vivia seu delírio de grande nação desenvolvimentista. E para garantir que a nação se desenvolvesse em direção ao progresso foi mobilizada a presença cada vez mais militarizada do Estado nas favelas, periferias e regiões onde habitam povos tradicionais. Muitas dessas obras incentivaram ainda mais o uso do automóvel, o que impulsionou movimentos orgânicos em defesa do transporte público e livre de tarifas e catracas, por mobilidade urbana e em defesa dos espaços públicos.

E enquanto a gestão do PT levou alguns movimentos sociais para dentro das instituições, por meio de conselhos participativos que nada decidem, tirando deles o papel de pressionar o Estado por mudanças, a característica autônoma e horizontal desses novos movimentos os tornou mais atraentes para a atuação política das pessoas, seguindo uma onda global do período de recusa da representação. Em todo planeta se dizia; “Não nos representam!”. Eles ganharam corpo e adesão popular por abordar o que era esquecido pela esquerda no governo, que a solução não era uma mera questão de gestão do neoliberalismo, e exigiam mudanças mais radicais.

Repressão e violência de Estado

Ao se confrontar com manifestações horizontais, sem lideranças definidas e que se recusavam a ser assimiladas, as organizações da esquerda brasileira descobriram que estavam desconectadas das demandas populares e começaram a atacar e deslegitimar a revolta. A maior parte dos partidos de esquerda lançou notas se desvinculando e criticando a ação de supostos anarquistas. Alguns inclusive ajudaram os aparatos de repressão do Estado e entregando pessoas à polícia.

O governo do Partido dos Trabalhadores e seus aliados não hesitaram em responder à indignação popular com criminalização através do aparelhamento das polícias e da aprovação de uma lei antiterrorista. Lei que tem pouco sentido em um país cuja única prática terrorista foi, e continua sendo, o terrorismo do Estado. No entanto, respondia-se a mais uma demanda internacional para a realização dos megaeventos.

Um povo que se volta contra aquele que diz ser o “governo do povo” não poderia ser um povo. A filósofa Marilena Chaui disse numa palestra para Policiais Militares do Rio de Janeiro que quem aderia à tática Black Bloc era fascista. Para tais intelectuais, até hoje, 2013 não foi uma revolta popular, mas o início do fascismo brasileiro.

Dentro dessa lógica, parte da esquerda vê 2013 como o início de uma reação das classes médias privilegiadas às conquistas sociais alcançadas durante os governos do PT, manipuladas para servir aos interesses dos inimigos imperialistas de sempre. Para inserir esses contratempos em uma narrativa global, se adotou a noção de “guerra híbrida”.

Guerra híbrida?

Guerra híbrida é um conceito, cunhado por militares estadunidenses. Uma primeira referência à expressão aparece em um artigo de 2005 escrito pelo general James Mattis e pelo tenente-coronel Frank Hoffman, ambos das forças armadas dos EUA, cujo objetivo era projetar cenários de guerras futuras. A expressão-conceito foi popularizada ao descrever as ações da Rússia durante a anexação da Crimeia em 2014. A intenção era criar na esquerda uma repulsa a mobilizações populares. Para isso difunde-se a ideia de que todas as manifestações e lutas contra opressões, como as lutas antirracista, feminista e da comunidade LGBTQIA+, assim como manifestações autônomas e contra a política representativa e as instituições, seriam na verdade demandas implantadas por governos imperialistas para desestabilizar governos.

Essa narrativa vem do livro Guerras Híbridas, que fez sucesso com a esquerda brasileira depois de 2013. Seu autor, Andrew Korybko, é um analista politico que se alinha às políticas do Estado russo e seus interesses geopolíticos. Ele defende o regime fascista de Viktor Orbán na Hungria e o AfD, partido alemão de extrema direita. Em 2016 apoiou a candidatura de Donald Trump à presidência dos Estados Unidos, para “acabar com o totalitarismo do politicamente correto”.

Korybko estrutura seu livro no pensamento geopolítico de Aleksandr Dugin, intelectual russo, conservador e cristão, que é uma das principais influências do Presidente russo Vladimir Putin. Foi Dugin que fundou o Partido Nacional-Bolchevique depois do fim da União Soviética, uma vertente do fascismo conhecida como nazbol. O nome é homenagem ao nazismo e ao comunismo bolchevique, que um dia, segundo ele, serviram de contraponto à expansão dos Estados Unidos. O símbolo do partido é similar à bandeira nazista, mas com uma foice e martelo pretos em vez da suástica no centro.

Misturando elementos do comunismo com outros da extrema-direita, busca seduzir pessoas da esquerda para um projeto político que é essencialmente fascista. Muito de seu programa pode parecer atraente para pessoas libertárias e de esquerda – pois é anticapitalista e anti-imperialista; elogia aspectos de sociedades e tradições não-ocidentais e pré-coloniais ao mesmo tempo em que condena o Estado-Nação. Essas posições – por mais necessárias que possam ser para um programa radical de esquerda – não são nem boas nem más em si mesmas; antes, são instrumentos, ferramentas para a criação de um novo mundo.

A influência de Dugin vai desde o coordenador de campanha de Trump, Steve Bannon, até o filósofo do Bolsonarismo, Olavo de Carvalho, com o qual colaborou.

Guerra midiática

As jornadas de junho de 2013 contaram com a presença popular massiva. As pessoas que protestavam em peso eram, claramente, das camadas excluídas, camelôs, moradoras de rua, faveladas, trabalhadoras precarizadas e, claro, boa parte da chamada classe média.

Ao perceber a escala das manifestações, a grande mídia considerou que a insatisfação popular poderia ser manipulada discursiva e midiaticamente. Mas mesmo com os ataques diários da imprensa corporativa, o apoio popular não parava de crescer em solidariedade contra brutalidade da violência Estatal. A tática black block, que embora não fosse novidade, ganhou destaque em meio aos protestos e teve amplo apoio popular. As mídias digitais e as redes sociais ajudaram nesse sentido, desmentindo a constante desinformação da imprensa corporativa, e permitiram que as imagens da violência Estatal fossem mostradas diretamente à população.

Quando a guerra da informação fracassou em domesticar a revolta, o Estado iniciou o processo de mobilização intensa das forças de repressão com protagonismo militar, criação de inquéritos policiais para perseguir manifestantes, arrancando pessoas de suas casas para prendê-las e treinamento para policiais atuarem em manifestações em países como Inglaterra e França. Com a repressão, as forças da ordem obtiveram mais êxito em gerir e abafar a revolta.

Fracasso da esquerda, vitória da direita

A esquerda institucional fracassou em aproveitar essas mobilizações para avançar suas pautas mais radicais (considerando que seu objetivo deveria ser esse, mas estava evidente que não era). Nem mesmo suas pautas reformistas avançaram. E até hoje se recusa em reconhecer que 2013 foi produto de uma insatisfação com o modelo de o inclusivo promovido pelos governos petistas e reação ao seu limite que havia chegado com o fim do ciclo das commodities pós crise de 2008. Até ali acreditava-se que era possível integrar a população ao mercado de consumo através de uma economia baseada no extrativismo. E não ousou perturbar as estruturas que sustentam a desigualdade no país.

Continuar a negar a legitimidade dessas manifestações é garantir a permanente criminalização do protesto e das dissidências.

Por outro lado a direita soube tirar proveito da insatisfação popular. E pela primeira vez desde 1964, voltou com força às ruas. Enquanto isso, tudo o que os setores majoritários de esquerda fizeram foi clamar pela legalidade e pela ordem. Inúmeras pessoas e organizações que se dizem de esquerda abriram mão de apoiar lutas sociais contra as opressões para defender as próprias instituições opressivas do Estado burguês.

Daqui pra frente

A volta de Lula ao jogo político é uma forma do sistema restabelecer a fé nas instituições burguesas como a democracia representativa. De certa maneira, está se tentando restabelecer os acordos entre elites econômicas, políticas e militares que fundaram a nova república e foram abaladas pelas manifestações de junho de 2013. Mas agora num arranjo ainda mais à direita e até mesmo com amplos setores da esquerda defendendo o fortalecimento de polícias, tribunais e prisões em nome da defesa do chamado “Estado democrático de direito”.

O novo governo petista precisará de alianças cada vez mais amplas para defender avanços sociais cada vez mais tímidos, ao mesmo tempo em que as condições econômicas e políticas que no passado permitiram sua governabilidade agora tendem a se deteriorar.

A estabilidade que buscam não virá apenas através de bolsas, auxílios ou políticas de inclusão. Veremos cada vez mais o aumento da vigilância e do controle, com dispositivos de segurança que multiplicam o encarceramento em massa e o genocídio dos povos pretos, indígenas e marginalizados, seja na cidade ou no campo.

O retorno de Lula e do PT ao governo pode ser uma conjuntura favorável, mas não vai durar muito. O Estado jamais extinguirá completamente o fascismo, pois depende dele para restabelecer o controle quando perde legitimidade política.

Enquanto os povos não ocuparem e tiverem autonomia sobre seus territórios e suas vidas, a pacificação e a conciliação de classes do lulismo apenas abafarão as revoltas populares, enquanto legitimam e fortalecem as instituições do Estado. E quando a esquerda perder o poder novamente, uma nova tomada fascista voltará a ser uma ameaça.


Mais sobre o tema:

A REVOLTA – essa ingovernável que perturba o sono dos governantes – artigo de 2020.

2013: memórias e resistências,  de Camila Jourdan

NÃO EXISTE OPOSIÇÃO INSTITUCIONAL AO FASCISMO: Análises sobre a escalada da violência da extrema-direita no Brasil

Com Vandalismo! – Documentário de 2014 que vai à “linha de frente” para registrar os confrontos e entrevistar os manifestantes para mostrar as motivações dos atos de desobediência civil.

O 8 de Janeiro no Brasil – A Escalada Fascista do Capitólio ao Planalto

Em 8 de janeiro de 2023, manifestantes apoiadores do ex-presidente derrotado Jair Bolsonaro invadiram prédios do governo em Brasília, numa imitação grotesca do fiasco que os eleitores de Donald Trump fizeram na capital dos EUA, Washington, no 6 de janeiro de 2021 . A seguir, analisamos partes um pouco da trajetória que levou a esses eventos e discutem o que antifascistas enfrentam por lá como consequência desses protestos.

Estas ações da extrema-direita brasileira coloca questões que anarquistas e outros antifascistas devem enfrentar em todo o mundo.

Quem está conduzindo os esforços da extrema-direita para escalar o conflito civil e transformar as instituições estatais em um campo de batalha? Embora muitos nos Estados Unidos tenham sugerido o envolvimento de Steve Bannon, o Brasil e a América Latina em geral têm uma longa história de golpes liderados por militares locais e forças de direita e apoiados por centristas e conservadores dentro do governo dos Estados Unidos. Ao contrário de Trump, o próprio Bolsonaro esteve ausente do Brasil durante o assalto aos prédios, tendo fugido antes do fim de seu mandato presidencial. Provavelmente é um erro reduzir esses eventos às maquinações de alguns autocratas.

Quem quer que esteja por trás da incursão, por que o desastre de 6 de janeiro de 2021 foi considerado bem-sucedido o suficiente para valer a pena ser repetido? O objetivo dos participantes era tomar o poder, exercer pressão sobre o novo governo ou provocá-lo a uma reação exagerada, legitimar táticas extralegais como um passo para a construção de um movimento fascista? Ou não há objetivo racional aqui, apenas os efeitos colaterais das estratégias de campanha dos demagogos de extrema-direita, a crescente polarização de uma sociedade fragmentada e a atração irresistível dessas táticas meméticas?

Como as populações marginalizadas que são alvo dos movimentos fascistas podem se mobilizar para se defender sem legitimar as mesmas instituições de Estado que tanto fascistas quanto centristas empregam contra elas? Como os anarquistas e outros que investem em mudanças sociais profundas podem impedir que os “rebeldes” de extrema-direita monopolizem a maneira como o público em geral vê as táticas que nós também precisaremos usar, embora em busca da libertação?

Esperamos que a seguinte contribuição ajude nossos camaradas a refletir sobre essas questões.


As Eleições Não Param o Fascismo

Desde a derrota de Jair Bolsonaro para o cargo de presidente do Brasil e a vitória de Luís Inácio Lula da Silva por uma margem de menos de 2% em 30 de outubro de 2022, as mobilizações da extrema-direita foram escalando em proporção e em violência nas ruas. Logo após o anúncio da vitória petista, manifestantes se mantiveram acampados diante de quartéis do Exército, fechando parte de vias, contestando o resultado das eleições e clamando por intervenção militar. Muitos desses acampamentos, que contavam com banheiros químicos, barracas e cozinha, eram financiados por empresários e políticos alinhados ao bolsonarismo e à extrema-direita que, posteriormente, tiveram contas bloqueadas e mandados de busca e apreensão ordenadas pelo Superior Tribunal Federal em novembro.

Como já tratamos, muitos caminhoneiros organizados por grupos patronais realizaram bloqueios em centenas de estradas pelo país, com a total conivência da Polícia Rodoviária Federal. Quando os bloqueios foram desmobilizados, movimentações urbanas passaram a prevalecer, com acampamentos diante de quartéis. Os acampamentos que começaram um caráter mais diverso, contando com idosos e crianças, passou para um perfil predominantemente masculino, marchando pela noite e dispostos a agir de forma mais contundente. Ações como linchamentos de pessoas que tentavam atravessar bloqueios, sequestros e até casos tortura de qualquer um que discordasse de suas táticas ou visões se tornaram comuns.

Uma ocupação pró-Bolsonaro. Os interesses de classe dos participantes são bem claros.

Na noite de 12 de dezembro, durante a diplomação do presidente Lula e seu vice Alckimin, a base de rua radicalizada do bolsonarismo avançou mais um passo: grupos que estavam acampados em Brasília, atacaram uma Delegacia e a sede da Polícia Federal, cinco ônibus e três carros foram incendiados como resposta à prisão de um homem indígena, também pastor evangélico e bolsonarista. Serere Xavante foi acusado de organizar atos golpistas, praticar ameaças e promover ataques ao Estado Democrático de Direito, teve a prisão decretada pelo ministro do Supremo Tribunal Federal, Alexandre de Moraes. Ainda assim, evidências já apontaram a imensa permissividade das autoridades policiais com a ação criminosa de bolsonaristas.

A mídia e diversos juristas acreditaram que bastaria chamar o que está acontecendo de terrorismo e tratar com prisões e penas duras seus participantes para barrá-los. Tal iniciativa é parte do processo pacificador que professa a fé nas leis e nas instituições que nada fizeram até agora para interromper de fato tais ações, deixando as ruas livres para o fascismo. O STF tentou responder mais uma vez com a prisão de dezenas de envolvidos nos atos e no financiamento dos acampamentos. A esquerda, como de costume, voltou a apostar que as instituições e a repressão policial e jurídica bastariam para fazer os protestos recuar.

A imagem de ônibus em chamas, antes o símbolo da luta contra a repressão do estado e a exploração capitalista, vista nos atos contra aumento da tarifa em 2013, contra a Copa da FIFA em 2014 ou tão comum contra ações da polícia nas periferias, agora está prestes a se tornar o retrato do “terrorismo de direita”. O papel de “defensor da lei e da ordem” passa então a ser adotado pela esquerda legalista e institucional que sob a tutela de um novo governo petista.

Como Trump em janeiro de 2021, Bolsonaro não suportou uma derrota em sua reeleição, porém, não estava no país no dia dos protestos e abandonou seus apoiadores para lutarem sozinhos por seu sonho golpista. Partiu no dia 30 de dezembro, com comitiva e familiares, o avião presidencial parte (com tudo pago com dinheiro público) para sua última viagem em direção a Orlando nos EUA. No Brasil, o General Mourão, vice-presidente, passa a ser o presidente em exercício. Esse fez um pronunciamento enaltecendo a alternância de poder, relativizando o papel central das Forças Armadas em duvidar das eleições e nas tensões institucionais provocados. Ambos são vistos por parte da extrema-direita como traidores, o que apenas deixou os bolsonaristas sem Bolsonaro ainda mais enraivecidos e dispostos a radicalizar ainda mais.

Na véspera do Natal de 2022, um episódio quase acelerou a escalada de violência fascista: um motorista de um caminhão de combustível encontrou um artefato explosivo no veículo e alertou a polícia – vale ressaltar que não houve investigação que levasse à ameaça de bomba, se não fosse o motorista, os policiais nunca encontrariam nada. O autor da tentativa de atentado, George Washington de Sousa, de 54 anos, foi preso e confessou ter a intenção de explodir o veículo perto do aeroporto de Brasília antes da posse de Lula, forçando então o ainda presidente Bolsonaro a instaurar um estado de sítio. No apartamento do autor ainda foram encontradas uma coleção de armas pesadas que o homem alegou ter adquirido ao longo de anos, motivado pelos discursos de Bolsonaro, além de mais explosivos oriundos de garimpos para outros atentados. Tudo isso chamou atenção das autoridades policiais e jurídicas, além da equipe de Lula para como os acampamentos bolsonaristas estavam servindo para o recrutamento e radicalização da extrema-direita.

No dia 01 de janeiro de 2023, Lula foi empossado sob forte esquema de segurança e se tornou o único presidente eleito três vezes pelo voto democrático no Brasil – e Bolsonaro o primeiro presidente a não conseguir se reeleger, também o primeiro na era democrática a se recusar a passar a faixa presidencial em cerimônia de posse. As imagens de representantes dos povos indígenas, trabalhadores, negros, deficientes e excluídos passando a faixa para Lula percorreram o mundo com otimismo, como se paliativos para uma sociedade capitalista em franco declínio e desagregação social não fossem apenas uma breve melhora superficial antes do colapso.

Mas a sensação de calmaria e otimismo após a “vitória do fascismo nas urnas” não duraria nem mesmo uma semana.

8 de janeiro de 2023, em Brasília.

O Motim dos Escoltados

Os protestos e acampamentos da extrema-direita diminuiram em número, mas continuaram por mais de dois meses. Nos primeiros dias do ano, um ato foi chamado para o domingo, dia 08 de janeiro. Cerca de 100 ônibus levaram 4 mil pessoas que estavam nas portas dos quartéis em diversas cidades do país seguiram em ônibus fretados para a capital Brasília, somando forças para um grande ato de repúdio à posse de Lula como presidente. Eles argumentam que, além das eleições terem sido fraudadas, Lula seria o chefe de uma quadrilha de criminosos que quer roubar o Brasil para “financiar o comunismo”.

Com a chegada dos ônibus à capital, os fascistas com a camisa da seleção e bandeiras do Brasil seguiram em marcha tranquilamente no início da tarde, sem nenhum tipo de interferência ou incômodo policial em um local que comumente é fortemente policiado e de difícil acesso , rumo aos prédios do Congresso Nacional, STF e Palácio do Planalto (sedes dos três poderes federais, legislativo, judiciário e executivo do Brasil). Lá destruíram janelas, equipamentos e mobiliário, danificando ou roubando objetos históricos e raríssimas obras de arte de Portinari, Di Cavalcanti, Brecheret e outros avaliados em milhões de dólares. Roubaram documentos e armas dentro do Gabinete de Segurança Institucional (GSI), no térreo do Palácio do Planalto, sede do poder executivo, o que levanta a hipótese de terem acesso previamente a informações sobre a localização desses objetos.

Como nos eventos do Capitólio em 6 de Janeiro de 2020 nos EUA, os manifestantes filmaram tudo o que faziam eles mesmos, mostrando o rosto e postando ao vivo nas redes sociais sem nenhum tipo de preocupação com a possível atribuição de crime posteriormente. Ironicamente, conseguiram atacar os prédios e humilhar as autoridades dos 3 Poderes da República, poderes esses em que muitos confiaram que livrariam a sociedade do fascismo após as eleições deu um governo de esquerda e progressista.

A invasão contou com a total conivência e colaboração da Polícia Militar do Distrito Federal, comandada pelo governador Ibaneis Rocha (antigo aliado de Bolsonaro), não havendo qualquer oposição ou repressão policial por pelo menos 3 horas. Policiais facilitaram a entrada dos invasores, e somente às 18h a polícia decidiu tomar alguma iniciativa e cercar os prédios. Diversos vídeos mostram policiais tirando selfies e rindo enquanto manifestantes invadiam o Congresso e outros flagram policiais sendo elogiados e confraternizando com os “manifestantes” dentro dos prédios invadidos.

8 de janeiro, 2023, Brasília.

Somente após as 20h é que as polícias incluindo a Força Nacional, tão eficiente em atacar professores, estudantes ou povos indígenas protestando no mesmo local, conseguiu “conter” pacificamente o protesto e prender entre cerca de 200 pessoas. Nos vídeos podemos ver a polícia retirando os bolsonaristas pacificamente, sem feridos ou mortos, sendo a policia brasileira a mais letal do mundo.

A reação institucional aos fascistas só começou, de fato, quando o presidente eleito Lula, que estava em uma cidade no interior de São Paulo, fez um pronunciamento condenando os atos e emitindo um decreto de Intervenção Federal na Segurança Pública do Distrito Federal, nomeando o Secretário de Segurança Pública do Ministério da Justiça, Ricardo Cappelli, como interventor até o dia 31 de janeiro de 2023. Na prática, isso significa tirar as polícias do governo do estado do caso (Polícia Militar e Polícia Civil) e entregar o caso para as polícias do governo federal (Força Nacional de Segurança e Polícia Federal). Pela noite, o Ministro da Justiça e Segurança Pública, fez um pronunciamento dizendo que investigações foram abertas, os financiadores dos ônibus foram identificados e que cerca de 200 pessoas haviam sido detidas.

O Ministro da Justiça Flávio Dino, ex-juiz e ex-governador do estado do Maranhão, também se pronunciou, fazendo uma fala comedida onde tentou resguardar a institucionalidade, tratando os atos e as pessoas envolvidas como radicais isolados que seriam tratados como criminosos, esvaziando o conteúdo político do evento (embora o tenha chamado de tentativa de golpe de Estado). O ministro da Suprema Corte, Alexandre de Moraes, muito atuante durante toda gestão de Bolsonaro como uma espécie de “guardião da ordem institucional democrática”, também se pronunciou de forma dura e determinou o afastamento do governador do DF, conhecido quadro político do bolsonarismo.

No dia seguinte aos eventos, o quadro era de certa perplexidade da imprensa e das autoridades, apesar de tais ações estarem há meses anunciadas nas redes bolsonaristas, que estão apostando que a situação será pacificada pela atuação das instituições e pela persecução criminal aos golpistas envolvidos na ação, o que nós duvidamos.

Uma Manifestação Local de Uma Onda Fascista Global

Há muitas semelhanças com o aconteceu nos Estados Unidos em 6 de janeiro de 2021, a chamada “Invasão do Capitólio”, porém, também há diferenças significativas, começando pela liderança política dos fascistas.

Jair Bolsonaro sempre se posicionou como apoiador de Donald Trump, alinhando-se com movimentos globais de extrema direita, como os da Polônia e da Hungria. A família Bolsonaro tem conexões com Steve Bannon, que orientou filhos de Jair Bolsonaro durante a campanha presidencial de 2018 e em 2022 alegou que a eleição de Jair Bolsonaro era a segunda mais importante para o seu movimento. Após a derrota, Bannon e Trump, aconselharam Bolsonaro a contestar o resultado das eleições. Ainda assim, não é possível afirmar que haja interferência direta de Bannon ou da extrema-direita internacional.

A motivação para as duas invasões de prédios do governo também é semelhante no conteúdo da suposta conspiração: apoiadores de Bolsonaro alegam que as eleições foram fraudadas em favor de uma elite globalista simpática ao comunismo e à China, com o objetivo de desestabilizar governos nacionalistas para disseminam o que chamam de “ideologia de gênero”, incentivam o uso de drogas e promovem os interesses de cartéis criminosos internacionais. Seguindo o exemplo da alt-right em outras partes do mundo, eles se declaram liberais em seu programa econômico e conservadores em seu programa cultural. Assim, eles afirmam defender a família cristã tradicional como meio de espalhar a supremacia branca, o ódio às pessoas LGBTQI+ e a ansiedade sobre uma suposta ameaça comunista.

A forma de ação também guarda semelhança coma invasão do Capitólio nos EUA, uma turba fascista que não reconhecem a legitimidade das instituições e do processo eleitoral que derrotou o candidato deles, reivindicam ser representantes do povo e invadiram as sedes físicas dos poderes constituídos para depredar, gerar caos e enfrentamento com a esperança de suspender o resultado das eleições. Usam slogans associados ao que se chama de populismo de direita, dizendo que as instituições estão sendo manipuladas por uma elite globalista contra os interesses do povo que, no caso, são eles.

Tanto em 6 de janeiro de 2021 quanto em 8 de janeiro de 2023, uma turba fascista que se dizia a verdadeira representante do povo e se recusava a reconhecer a legitimidade do processo eleitoral que derrotou seu candidato invadiu a sede física dos poderes constituídos para gerar o caos na esperanças de suspender o resultado das eleições.

Após décadas de gestão democrática, durante as quais praticamente todos os partidos a aceitaram como a única forma possível de fazer política na era da globalização capitalista, a extrema direita recolocou a política no campo da disputa e do confronto. Está cada vez mais claro que o consenso construído no pós-Segunda Guerra Mundial em torno da fórmula capitalismo + democracia liberal + direitos humanos, que ignorava as contradições e desigualdades inerentes ao sistema capitalista e estatal, foi rompido. Significativamente, é a direita que aposta nessa ruptura, endossando explicitamente a insurgência e guerra civil, enquanto a maior parte da esquerda ainda se apega às instituições democráticas e à gestão de uma paz cada vez mais precária.

Os acontecimentos no Brasil diferem dos ocorridos nos Estados Unidos na medida em que os bolsonaristas se concentravam em algo mais antigo que o culto a Trump, algo que é próprio da história política brasileira: a nostalgia da ditadura que se instalou por um golpe civil-militar com a ajuda dos Estados Unidos em 1964 e fidelidade a todos os aspectos da ditadura que persistem na sociedade brasileira.

Na formulação do psicanalista Aziz Ab’Sáber: “O que resta da ditadura no Brasil? Tudo, menos a ditadura.”

Bolsonaristas golpistas aproveitando a conivência da polícia para posarem como rebeldes.

Além disso, diferente do que se passou nos EUA após a eleição de Biden, as Forças Armadas Brasileiras, composta por oficiais formados em escolas militares permeadas pelo discurso anticomunista do contexto de Guerra Fria e pelo revisionismo histórico que chama o golpe civil-militar de “revolução de 64”, são parte fundamental dos movimentos golpistas. O bolsonarismo (podendo ser chamado assim o atual neofascismo brasileiro e as movimentações de extrema direita no país) social e eleitoral é composto por inúmeros oficiais da reserva do exército, marinha e aeronáutica, além disso, os oficiais da ativa mal disfarçam seu apoio aos manifestantes e fazem, desde 2014, declarações públicas de sua oposição aos partidos e candidatos de esquerda. A prova mais evidente do apoio das Forças Armadas aos movimentos golpistas é a tolerância aos acampamentos nas portas dos quartéis de todo país, algo que não seria admitido se o teor das manifestações fosse outro.

A coalizão liderada pela esquerda institucional que ganhou as eleições em outubro, como temos repetido, acreditou novamente na institucionalidade e em um acordo nomeou para o Ministério da Defesa, José Múcio, um político de direita amigo dos militares cujo partido PTB tem como lema: “Deus, Família, Pátria e Liberdade” . O resultado foi que o próprio presidente Lula em sua declaração sobre os atos admitiu que o Ministro da Defesa não agiu como deveria para desocupar a porta dos quartéis.

Anarquistas e outros antifascistas marcham em 9 de janeiro de 2023 em várias cidades contra a ameaça do fascismo no Brasil.

O que se passa hoje no Brasil é uma manifestação inequívoca e radical da força que a extrema-direita tem ganhado no mundo nos últimos anos, impulsionada por um fascismo social difuso que sempre existiu na sociedade brasileira mas que a democracia instalada com a Constituição de 1988 não soube ou não quis combater, a começar pela participação dos militares no próprio processo de retomada retomada democrática nos anos 1980 e o seu “papel constitucional” como supostos garantidores dos poderes do Estado.

A maior vergonha para a esquerda como um todo – e especialmente para aqueles que se consideram radicais – é que o governo de Jair Bolsonaro e suas milícias reorganizaram toda a estrutura do Estado, desmantelando a saúde pública, a educação e as proteções ambientais enquanto miravam negros e indígenas pessoas, mulheres e pessoas LGBTQI+, tudo em meio a uma pandemia global que matou no Brasil mais pessoas do que a média per capita mundial. No entanto, fomos incapazes de responder a esses eventos – nem com uma greve geral, nem fechando cidades e rodovias, nem invadindo o palácio do presidente.

Agora, todas essas ações, que deveríamos ter tomado para nos defender contra a extrema direita, estarão associadas à extrema direita. Isso contribui para um discurso que pode nos paralisar, impossibilitando a alavancagem necessária contra os fascistas fora e dentro das instituições estatais, sem falar nos outros partidos que também usarão as instituições do governo para continuar impondo os piores efeitos do capitalismo sobre nós.

Nosso desafio agora é continuar fomentando a revolta e, principalmente, não sabotar o caminho da insurreição quando o aparato do estado está na mão da centro-esquerda e as ruas estão nas mãos dos fascistas e forças de segurança. Para isso, será , será preciso saber provocar a desordem sem ceder as chantagens dos mantenedores da ordem, com seu eterno moralismo defensor da propriedade privada ou estatal.

Ato em Belo Horizonte, 9 de janeiro de 2023 contra a ameaça fascista no Brasil.

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Copa do Mundo: autoritarismo, nacionalismo e negócios

Cartaz na Alemanha convocando para o boicote à Copa do Mundo de Futebol no Catar.

A Copa do Mundo FIFA no Catar acabou, mas, infelizmente, outras virão. A próxima, em 2026, será dividida entre México, Canadá e EUA e já podemos prever os impactos para os pobres e minorias desses locais tão marcados pela segregação e ataques à comunidades indígenas e negras. Mas por agora, convidamos todo o mundo a relembrar a trajetória da Copa do Mundo desde sua estreia em 1930 no Uruguai, passando pela sua relação com a Itália de Mussolini e as ditaduras civis-militares na América Latina, como na Argentina e no Brasil, fazendo a ponte entre esporte, identidade nacional, racismo, polícias e, é claro, negócios.

Como abordamos em uma publicação de 2014, para a máfia internacional do esporte conhecida como FIFA, o torneio é o seu maior negócio, transmitido para metade da população do globo e gerando um faturamento de cerca de 40 bilhões de reais. Na sua última edição, a primeira em um país árabe, a Copa do Mundo ganhou manchetes e até documentários dedicados a expor os impactos sociais e os altos custos para trabalhadores e trabalhadoras em condições sub-humanas que ergueram e operaram as estruturas do maior megaevento do planeta no Catar.

O pequeno país do Sudoeste Asiático, de apenas 2,8 milhões de habitantes é considerado o mais rico do mundo devido à abundância de petróleo e gás natural, o que colabora para as suspeitas de suborno para que membros da FIFA votassem para que país árabe sediasse o evento. Governado pela monarquia absolutista (Emirado) hereditária, imperam a censura à imprensa, a supressão aos direitos da mulheres e a criminalização da homossexualidade e toda comunidade LGBTQIA+ pelo Direito Islâmico.

Mesmo sendo tão rico, Catar não contava com toda a mão de obra necessária para erguer uma cidade praticamente do zero e 7 estádios em menos de uma década. Com apenas 380 mil cidadãos nascidos no Qatar e 90% da população total composta por imigrantes, o governo impulsionou a contratação de mais de 5 milhões de imigrantes, principalmente da Índia, Paquistão, Nepal e Bangladesh para trabalhar na construção dessas megaestruturas, incluindo estradas, aeroportos, hotéis e muito mais sob o calor assassino de 52ºC, que matou ao menos 571 trabalhadores nepaleses, chegando à soma total de quase 7 mil trabalhadores mortos – muitos, devolvidos às suas famílias em uma caixa com o nome do falecido do lado de fora.

Trabalhadores em obras da Copa do Catar.

Esses milhares de trabalhadores imigrantes foram submetidos a um regime de trabalho conhecido como Kafala, uma forma escravidão moderna, muito semelhante com o que vemos no agronegócio brasileiro, onde trabalhadores já chegam endividados para pagar pelo transporte que os levou até o local de trabalho e têm seus documentos confiscados enquanto estiverem trabalhando. A maioria estava alojada em instalações imundas sem água ou esgoto apropriados, defecando em buracos no chão e tomando banho em baldes.

Apesar de parecer que apenas agora direitos humanos básicos e as comunidades pobres e minorias estejam sob ataque para uma Copa do Mundo, lembramos as absurdas consequências das Copas realizadas no Brasil e na África do Sul, em 2014 e 2010 respectivamente. No primeiro, serviu para vender uma falsa imagem de integração racial e superação do sistema de Apartheid, enquanto removia favelas, sem-tetos e prostitutas dos centros urbanos. No segundo, removeu cerca de 250 mil pessoas de suas casas nos governos Lula-Dilma do PT, de abrir caminho para operações de pacificação e as UPPs no Rio de Janeiro.

Em todos os megaeventos esportivos há oportunidade para governos e capitalistas reorganizarem suas atividades e a estrutura das cidades. No caminho, vemos a falta de consideração com os interesses da população e a resistência popular. A situação piora conforme as condições sociais e econômica do país. Em 2006, a Suécia se recusou a receber a Copa do Mundo FIFA por preferir investir os altos custos públicos necessários para construir moradias. Nas recentes Olimpíadas de Tóquio em 2020, protestos também foram abafados quando denunciavam os riscos de um torneio em meio à pandemia. Como alegou o Secretário-Geral da FIFA em 2013, governos autocráticos e menos transparentes são os mais ideais para a realização de uma copa do mundo, o que explica o desvio das democracias centrais do capitalismo na última década, como Japão e Alemanha, para desembocar em países marcados pela desigualdade como Brasil e África do Sul, passando por regimes autocráticos como Rússia e Catar. Mesmo assim, além da oportunidade de reorganização do espaço e das relações de trabalho no capitalismo global, é possível ver e aprender com as lutas populares e anticapitalistas em diferentes partes do planeta resistindo e denunciando os efeitos dos megaeventos.

Vou falar uma coisa que é loucura, mas menos democracia às vezes é melhor para organizar uma Copa do Mundo[…]. Quando você tem um chefe de Estado muito forte que pode decidir, como talvez Putin possa fazer em 2018… isso é mais fácil para nós organizadores do que um país como a Alemanha… onde você tem que negociar em diferentes níveis.”

Jerome Valcke, Secretário-geral da FIFA, 2013.

MEGAEVENTOS COMO DINAMIZADOR ECONÔMICO E POLÍTICO

Numa economia neoliberal cada vez mais globalizada e urbana, as cidades são os principais palcos da acumulação de capital. Para atrair investimentos para um país, é necessário tornar suas cidades polos atrativos para investidores. Isso inclui ter uma vasta mão de obra disponível, um mercado consumidor voraz inserido na linguagem publicitária global e, principalmente, dispor das estruturas de serviços e produtos necessários para ser competitiva a nível global: polos industriais e de pesquisa, aeroportos internacionais, hotéis de luxo, centros de convenção, complexos portuários, centros comerciais, etc. O país que quer competir por investimentos e uma posição de destaque na economia mundial deve usar suas cidades como instrumentos para tal competição.

A visibilidade é crucial nesse processo: os eventos da Copa são transmitidos para mais de 3 bilhões de pessoas em 204 países, abrindo caminho para a venda e a exploração de imagens e publicidade em escala global. Uma influência que as grandes corporações e governos não querem abrir mão. Por isso, em conjunto, eles vão trabalhar para aprimorar a estrutura urbana com o objetivo de concentrar mais poder e capitais. Essa dinâmica integra um novo processo pós-colonial de unificação e uniformização urbana e mercadológica da economia mundial, voltada para o benefício dos ricos e mascarada sob o discurso de “legado dos megaeventos”. Como se tais obras fossem para o uso e o benefício da população como um todo. Pelo contrário, vemos o aumento de uma infraestrutura voltada para a circulação de automóveis e privatização do uso do espaço público ao invés de melhorias no transporte coletivo e nas políticas de mobilidade e acesso à cidade. Vemos a expansão de um mercado imobiliário “financeirizado” e especulativo ao invés da garantia de moradia digna e o fim da concentração fundiária urbana e rural. Além de importar um modelo de urbanização elitista para cidades já marcadas pela desigualdade social, a imposição dessas políticas demanda uma implementação policial e legal para lidar com a instabilidade e os conflitos inerentes a esse sistema, e conter a resistência política dos setores sociais mais afetados que vão combater a tirania por trás dos eventos.

Uma Breve História da Copa do Mundo

Para entender um aparato ou instituição, é preciso olhar para trás, para sua origem, para identificar a que fins ele foi criado. Em nossos esforços para entender a Copa do Mundo, voltamos a 1930, quando a primeira Copa foi realizada no Uruguai. Aquele pequeno país, que completou 100 anos de nacionalidade naquele ano, fez de tudo para sediar a Copa do Mundo e usá-la como ferramenta para consolidar uma identidade nacional.

Esses esforços incluíram a construção de novas estradas, estruturas urbanas e o maior estádio do mundo, além de pagar as despesas de viagem e hospedagem de todas as equipes que iriam competir – algo que nunca mais ocorreu a nenhum país-sede. Através de um esquema de fraudes e ameaças, o Uruguai foi premiado com o campeonato mundial e colheu a recompensa desejada de um renovado espírito nacionalista. Em três anos, o presidente deu um golpe de estado apoiado pela polícia, pelo exército e pelo partido político nacionalista.

Quatro anos depois, o bicampeonato aconteceu na Itália de Mussolini. Com saudações fascistas antes das partidas e a ameaça de morte pairando sobre toda a seleção italiana, o campeonato voltou a ser concedido ao país-sede. A comodidade de ser anfitriã e campeã em uma ditadura, quando o clamor nacionalista é sempre bem-vindo, pôde ser percebida em 1978, quando a Argentina sediou e conquistou a Copa no auge de uma sangrenta ditadura que “desapareceu” cerca de 30 mil pessoas. Também marcou a primeira vez que os eventos foram transmitidos daquele país para televisões de todo o mundo, destacando a ligação entre Copas do Mundo, ditaduras (seja com ou sem eleições), publicidade e melhorias na infraestrutura empresarial e de consumo. Com o tempo não foi mais necessário que países-sede comprassem suas vitórias para conseguir mobilizar sentimentos nacionalistas e proporcionar mais controle sobre os fluxos de riqueza e a criação de novos mercados para as elites locais e multinacionais.

Cartazes promovendo o boicote à Copa na Argentina, em meio à ditadura militar que matava e torturava milhares de pessoas.

Mais tarde, na década de 1980, tanto a Copa do Mundo quanto os Jogos Olímpicos passaram a servir de motores para a expansão do neoliberalismo global. Os eventos esportivos internacionais começaram a refletir a presença e a influência de corporações multinacionais que queriam que suas marcas fossem vistas por bilhões de pessoas e vendidas em todo o mundo.

Há também uma relação mais direta com a transformação urbana no discurso que justifica a construção de uma estrutura a ser deixada como “legado urbano”, como forma de ingressar na lista global de cidades capazes de atrair investimentos, turismo e publicidade em uma economia cada vez mais globalizada. Isso coincide com a diminuição do papel do Estado na gestão das demandas urbanas e o surgimento de um superávit financeiro internacional em busca de novos terrenos para se materializar como expansão comercial.

As políticas habitacionais perdem espaço para um mercado especulativo em que estradas, conjuntos arquitetônicos, shopping centers, portos e aeroportos são financiados com dinheiro público, mas apenas para que empreiteiras, imobiliárias e outros cartéis possam lucrar. Consequentemente, os aluguéis e o valor financeiro das propriedades disparam, forçando os moradores de bairros inteiros a se mudarem – se já não tiverem sido deslocados por despejos forçados, que podem assumir a forma de operações militares de boa-fé quando os moradores estão ocupando sem o devido status legal .

No Brasil, como na maioria dos países subdesenvolvidos ou em desenvolvimento, as políticas de gentrificação e renovação urbana assumem uma forma particularmente violenta porque atingem regiões e populações em situação precária abaixo dos padrões mínimos de vida encontrados nos países ricos. Esses bairros e favelas geralmente compreendem a maior parte das áreas suburbanas das grandes cidades, crescendo sem infraestrutura estatal ou planejamento urbano, pois as pessoas constroem suas casas da maneira que podem – sem recursos básicos, como serviços de água ou esgoto, e em solo vulnerável a chuvas, inundações , e deslizamentos de terra. As únicas instituições estatais sempre presentes são as forças policiais e militares.

Quando um megaevento se aproxima, essas favelas, prédios de ocupação autônoma ou terrenos improdutivos ocupados por movimentos rurais serão desmatados por todos os meios necessários. No Rio de Janeiro, as portas dos prédios a serem despejados foram pintadas com um número de identificação por funcionários da prefeitura, assim como os nazistas faziam com as vítimas do Holocausto; os moradores tiveram um prazo para deixar suas casas e não puderam recorrer aos meios legais para buscar uma indenização justa.

Foi assim que o Brasil violou sistematicamente as leis internacionais de direito à moradia, das quais é signatário, negando às comunidades afetadas a oportunidade de discutir os projetos que as desalojaram. Se um megaevento como a Copa do Mundo traz ganhos para um país, a questão é quem vai se beneficiar. Certamente não serão populações pobres e desprivilegiadas. João Havelange, ex-presidente brasileiro da FIFA (1974-1998), afirmou “vender um produto chamado futebol”, argumentando que “política e futebol não se misturam”. Sabemos que há muita política e poder por trás desse “produto”.

Um agente do estado escrevendo na parede de uma casa marcada para ser despejada na Favela Vila Autódromo, no Rio de Janeiro.

O PT de Lula e a Copa do Mundo

Um mega-evento não acontece no vazio ou sem um contexto amplo. Desde sua origem carrega as intenções de grupos corporativos e das máfias no comando da máquina estatal que vão se aprimorando a cada edição, seja para implementar novas políticas e mudanças urbanísticas que, sem um bom pretexto, jamais se tornariam prioridade, seja para acelerar ou otimizar um processo de globalização econômica ou tecnológica ou mesmo para renovar e integrar uma protocolo global de policiamento e militarização. O fato de o Brasil ter se candidatado para sediar os três maiores megaeventos do planeta em menos de uma década nos alerta para o que está por trás de tamanha ambição. O país recebeu a Copa do Mundo em 2014 e as Olimpíadas em 2016 e foi um forte candidato a sediar a Expo 2020, perdendo para Dubai: respectivamente o primeiro, o segundo e o terceiro maior evento do mundo.

Quais as intenções e os verdadeiros beneficiados desses empreendimentos? Qual o contexto de tamanha disputa por visibilidade mundial? A FIFA e o COI (Comitê Olímpico Internacional) há muito tempo perceberam que seus eventos tem o potencial de atrair para um país grande visibilidade e investimentos de toda parte do mundo. Portanto, têm a cobiça de governantes locais que querem fazer história dispondo de popularidade e de pretextos para usar massivos recursos públicos para “modernizar” cidades e mercados imobiliários e alavancar empreendimentos privados, enquanto necessidades urbanísticas populares, como educação, saúde e qualidade de vida em geral são negligenciados. O Brasil foi eleito em 2007 para sediar a Copa do Mundo de 2014. Era o primeiro ano do segundo mandato do PT, com Lula como presidente. E seu governo, desde o início, desenhou projeções a longo prazo para se estabelecer como potência mundial, tanto econômica quanto militar.

Em 2004 Lula enviou 1200 soldados para o Haiti numa intervenção com o objetivo de “estabilizar” o país em crise desde a queda do presidente Aristide. Foi a primeira vez que o Brasil liderou uma intervenção militar internacional e se deu através dos pedidos dos EUA e da França. Lula esperava com isso obter apoio dos dois países para se candidatar a uma cadeira permanente no Conselho de Segurança da ONU quando esse passasse por uma reforma. Até hoje não aconteceu reforma e o Brasil não conseguiu a cadeira, mas se manteve presente em 9 das 16 operações de manutenções da paz da ONU ao redor do mundo. Mas o governo petista foi com sua missão no Haiti até o limite e levou a seleção brasileira de futebol para uma partida com a seleção haitiana na capital Porto Príncipe, num amistoso conhecido como “Jogo da Paz”, que comemorava o “sucesso” da ocupação e marcava o início de uma campanha de desarmamento da população. O evento contou com um desfile dos jogadores brasileiros em tanques de guerra enquanto eram ovacionados pela multidão.

A ambição e a megalomania de Lula eram tanta, que não se importou em dizer que a Copa seria do capital privado e em seguida abrir os cofres público para realizar o torneio mais caro de todos os tempos, que custou mais, inclusive, que as últimas três Copas juntas: Japão e Coreia do Sul em 2002, Alemanha em 2006 e África do Sul em 2010 custaram 30 bilhões de dólares. A Copa no Brasil em 2014 custou mais de 40 bilhões. A reforma de sete grande estádios e a construção de pelo menos cinco novos que não serão usados após o torneio (Brasília, Cuiabá, Manaus, Natal e Recife) foi quase inteiramente feita com dinheiro público. No total, foram disponibilizados 12 estádios de alto padrão, sendo que a própria FIFA exigia somente oito. Os planos de Lula e do Partido dos Trabalhadores eram muito grandiosos para caber em apenas dois mandatos, por isso houveram ainda desdobramentos de seus projetos no segundo mandato de Dilma, o quarto com o PT na Presidência da República.

Dilma foi ministra nos oito anos em que Lula foi presidente: primeiro como ministra das Minas e Energia e depois na Casa Civil. Foi também a mãe do PAC (Programa de Aceleração do Crescimento) que retomou investimentos dos capitais da especulação urbana. Agora, vai precisar lidar com a tremenda dívida pública deixada como parte do verdadeiro legado da Copa do Mundo enquanto se prepara para as Olimpíadas já em 2016, também conquistadas durante a gestão de Lula. Só para a Copa no Brasil, a FIFA fechou mais de 900 contratos comerciais com empresas parceiras e patrocinadoras que tiveram monopólios na venda de produtos ligados ao torneio na região dos estádios e Fan Fests, além de alimentos, bebidas e serviços. Mesmo assim, o governo isentou a FIFA de pagar mais de 1 bilhão em impostos para realizar a Copa mais cara da história, mas também a mais lucrativa: 9 bilhões de reais foram arrecadados pela entidade que diz não ter fins lucrativos. Para os governantes ligados à realização dos megaeventos, o maior lucro é político e eleitoral. Para a FIFA, as empresas que ela mesma indica para planejar as obras de infraestrutura e para as empresas e empreiteiras que, não por acaso, são parte dos grupos que financiam campanhas eleitorais do Partido dos Trabalhadores, há um lucro financeiro de cifras bilionárias garantido pelo investimento de recursos públicos locais e pela força da repressão policial.

Ou seja, é importante perceber que o PT não esteve nem poderia estar sozinho em seus projetos. Ele foi o partido que mais recebeu doações privadas nos últimos anos, chegando a 79 milhões de reais em 2013, enquanto o PSDB, PMDB e PSB juntos conseguiram apenas 46 milhões de reais. Em 2014, ano da reeleição de Dilma Rousseff, o PT recebeu 47 milhões de reais das empreiteiras investigadas pela Lava Jato antes do primeiro turno, enquanto PMDB obteve 38 milhões e o PSDB 28 milhões. Havia, obviamente, uma simbiose de poderes econômicos e políticos entre o Partido dos Trabalhadores e aqueles que controlam grandes capitais no país – a despeito do que esbravejam a direita partidária e organizada ou a classe média conservadora quando acusam o partido da presidente de querer instaurar uma “ditadura soviética” no país.

O verdadeiro legado da Copa: um estado de emergência para manter a desigualdade social.

Os maiores resultados e o real legado da Copa já foram contabilizados muito antes do primeiro jogo: 250 mil pessoas desalojadas para realização de obras de infraestrutura sem serem realocadas devidamente; inúmeras obras que já estão subutilizadas depois do evento à custos bilionários de mais corrupção e desvios de verbas públicas que podiam ir para outras áreas precarizadas, como saúde, moradia e educação; ao menos dez operários morreram nas obras e suas famílias seguem sem as devidas indenizações. Outras das consequências tomaram a cena durante as semanas antes e durante o evento, e provavelmente vão perdurar por muito tempo: como trabalhadoras ambulantes impedidas de trabalhar durante a Copa nas regiões próximas das zonas de exclusão da FIFA tiveram suas licenças canceladas indefinidamente, exploração sexual de menores, e a repressão intensa a quem se organiza e protesta para denunciar tudo isso – afinal, nenhuma dessas medidas poderiam ser aplicadas sem a força bruta policial. Com as revoltantes condições impostas pela FIFA, vimos o Estado brasileiro testando e implementando novas políticas e aparatos para controlar o inimigo interno, o questionamento e o protesto. Momentos como esse, um megaevento mundial que abala a economia e as paixões forjadas no espetáculo, no ufanismo e no nacionalismo de um país inteiro, servem de pretexto e experimento para a articulação de uma nova ordem de controle estatal e corporativo dentro de um Estado de Exceção permanente.

“Não vai ter Copa do Mundo!”

A Lei Geral da Copa (n. 12.663/2012) firmada em 2012 com o Governo Federal e a FIFA, uma instituição privada, foi a maior ofensiva legal contra o povo brasileiro com o objetivo de garantir que os “padrões FIFA” de organização de eventos viabilizassem a realização da Copa das Confederações 2013 e a Copa do Mundo 2014. Essa lei custou ao povo a suspensão de direitos e normas constitucionais que já são tão precárias para a maioria. Um tribunal de plantão foi armado para julgar em menos de 48 horas greves ocorridas durante a Copa. Enquanto trabalhadores perdiam o direito de denunciar suas condições e lutar por melhorias, a FIFA podia evadir riquezas e não pagar impostos por fazer seus negócios dentro do território brasileiro. Uma Secretaria Extraordinária de Segurança Pública para Grandes Eventos foi criada ferindo princípios federativos e democráticos. A privatização do espaço público também foi institucionalizada com a determinação do uso de “ruas exclusivas” para a FIFA e seus parceiros, onde até mesmo o comércio local seria obrigado a manter as portas fechadas dentro do perímetro de exclusão em torno dos estádios.

A autorregulação, também inconstitucional, permitiu que a própria FIFA atuasse no mercado sem qualquer intervenção estatal, estipulando o preço que quisesse para ingressos, suspendendo quase totalmente o direito à meia-entrada e qualquer aplicação do Código de Defesa do Consumidor. Além disso, foi permitido o trabalho voluntário de mais de 20 mil pessoas durante a Copa, que se sujeitaram a trabalhar sem a proteção de direitos trabalhistas básicos e fora das normas constitucionais, em situação análoga à escravidão. Sendo que o trabalho voluntário só é previsto por lei para instituições não-lucrativas que tenham fins “cívicos, culturais, educativos, recreativos ou de assistência social” – o que sabemos não ser nenhum dos casos da FIFA. Também foi permitido o uso do trabalho infantil em atividades ligadas ao jogos, como a de gandula, o que é proibido no Brasil desde 2004.

Polícia de choque no Brasil, junho de 2013.

Policiamento Global

Os megaeventos mundiais que forjam paixões no calor do espetáculo oferecem a oportunidade de experimentar levar o controle estatal e corporativo a um estado de exceção permanente, quando as leis e a Constituição podem ser quebradas em nome de mais segurança, mesmo quando violam os direitos dos cidadãos que dizem proteger.

O Estado montou um amplo aparato jurídico para criminalizar os movimentos sociais pautado em definições inteiramente subjetivas. Os movimentos sociais foram caracterizados como “forças opostas”; os protestos foram definidos como algo que “causaria pânico” ou “provocaria ou instigaria ações radicais e violentas”. Contra estes, o governo autorizou a atuação das Forças Armadas. O estado também estabeleceu tribunais especiais para lidar com casos relacionados à Copa do Mundo e aprovou novos regulamentos que permitem que os tribunais respondam a ações de protesto, como bloqueios de estradas, com leis antiterrorismo especialmente severas. Além disso, o governo brasileiro gastou bilhões de dólares em tanques com canhões de água, drones e outros robôs controlados à distância, e armas “menos letais” – ainda capazes de incapacitar e matar seus alvos – para conter a chamada “agitação civil” e proteger contra o “terrorismo”. Enquanto mísseis riscavam o céu em Gaza, depois que tiros e bombas israelenses mataram duas mil pessoas durante a ofensiva em território palestino em 2014, drones vendidos por Israel monitoravam os estádios da Copa do Mundo no Brasil.

Em 13 de julho, 1.500 policiais cercaram um protesto próximo ao Estádio do Maracanã, no Rio de Janeiro, atacando-o com bombas e balas de borracha; prenderam 30 manifestantes. Tanques cercaram as favelas. Caminhões do Exército estavam estacionados próximos aos estádios e às Fan Fests da FIFA, proporcionando um clima de repressão ostensiva. É claro que o Estado brasileiro vê seus pobres e movimentos sociais como seus próprios palestinos ou haitianos; as favelas são sua Faixa de Gaza ou Porto Príncipe.

No entanto, pode-se ver cartazes de apoio à resistência palestina exibidos juntamente com cartazes condenando a Copa do Mundo de 2014. Isso comunicou que a solidariedade, assim como a repressão, é “tão global quanto o capital”.

Armas fabricadas no Brasil foram usadas para reprimir a revolta do Parque Gezi na Turquia em 2013.

Durante a revolta do Parque Gezi, na Turquia, vimos imagens de pessoas exibindo cartuchos de gás lacrimogêneo e balas de borracha marcadas com a bandeira brasileira. Especulamos que fossem fabricados pela empresa Condor, uma das maiores produtoras mundiais de armas menos letais, localizada no estado do Rio de Janeiro. Em 2014, vimos 34 tanques alemães empregados na segurança da Copa do Mundo. Esses tanques blindados, com artilharia capaz de abater aeronaves, custaram ao Brasil 40 milhões de dólares. Enquanto isso, a empresa austríaca de armas de fogo Glock chegou a um acordo exclusivo para fornecer à polícia do Rio de Janeiro armas de fogo para as Olimpíadas de 2016. Segundo relatos de jornais,2a própria empresa financiou uma viagem da polícia brasileira a Viena. A FIFA atuou como assessor militar das Forças Armadas brasileiras, determinando quais equipamentos e armas deveriam ser adquiridos; foi a FIFA quem recomendou a compra de viaturas armadas.

A International Security and Defense Systems (ISDS) também forneceu equipamentos para vigilância e defesa durante as Olimpíadas. A ISDS é uma empresa israelense estabelecida em 1982; tem uma vasta experiência em massacrar e reprimir palestinos. Vários relatórios e documentos também apontam para o envolvimento do ISDS nos golpes e ditaduras na Guatemala, Honduras e El Salvador. Sua atuação no Brasil nas Olimpíadas de 2016 serviu como vitrine para seus produtos e serviços, além de um campo de testes de novas tecnologias e procedimentos de segurança em torno de megaeventos. Nas palavras do vice-presidente da ISDS, as Olimpíadas no Brasil seriam “uma incubadora de tecnologias israelenses nessas áreas”.

A utilização da Lei de Segurança Nacional (criada pela ditadura passada), a possível introdução de leis antiterrorismo, o Decreto de Lei e Ordem e a intensificação de outras leis mostram como os megaeventos servem para fortalecer as técnicas de controle do Estado. Ao impor essas regras, as corporações podem lucrar cada vez mais livremente. Tudo isso pode ser entendido como mais uma ofensiva do projeto neoliberal, centrado em uma grande cidade, mas com implicações globais. Serve como um meio de administrar a produção, o consumo e a circulação de bens e trabalho necessários para sua realização.

Ao herdar o projeto de Lula, o governo de Dilma Rousseff preparou o terreno para um policiamento militarizado e integrado que garantiria o sucesso da Copa. Os Centros Integrados de Comando e Controle (CICC), por exemplo, supervisionam 1.700 policiais: federais, militares, civis e rodoviários, além de equipes de trânsito e resgate, atuando em quatorze núcleos espalhados pelas doze cidades-sede dos jogos. O Ministério da Justiça de Dilma investiu cerca de US$ 100 milhões em tecnologia para operar esses centros; eles monitoram aeroportos, estágios, estações de metrô e outros pontos estratégicos em tempo real, e enviam reforços e apoios necessários a cada oito minutos. O plano de ação define uma resposta específica para cada tipo de ação; a polícia militar responde ao black bloc, a polícia federal responde a ocorrências no aeroporto, e assim por diante. O treinamento de habilidades para as forças armadas foi fornecido pelo FBI.

A tecnologia policial e militar criada para este evento permanecerá como legado permanente desses megaeventos. O Brasil, já militarizado e permeado por conflitos intermináveis, tornou-se agora ainda mais sofisticado em sua capacidade de conduzir a guerra interna. O intercâmbio de segurança entre os países tem sido fundamental para solidificar o papel do Brasil na economia global, trazendo treinamento, equipamentos e estratégias das forças policiais e militares mais violentas do mundo. Além da polícia e dos militares israelenses, eles incluíam a polícia francesa, o FBI e também empresas privadas como a Blackwater. A parceria Brasil-Israel continua trabalhando em conjunto contra o “terrorismo” e o narcotráfico. Acima de tudo, porém, eles se concentram no principal inimigo das economias e governos globalizados: seu próprio povo.

E a Copa Segue

Sim, porque é vergonhoso que os manifestantes contra a farra da FIFA sejam condenados, quando hoje grande parte dos próprios organizadores da Copa estão presos! Quando o ex-governador que nos reprimiu com selvageria está preso! Quando o país é levado à beira da fome e da devastação social pelos mesmos vampiros que tremeram de ódio quando a juventude tomou as ruas! Quando a Rede Globo, que nos perseguiu, ainda não explicou as suas negociatas em torno dos megaeventos!

Nota dos 23 ativistas condenados por conta das manifestações de 2013/2014

Esperávamos atingir um pico de atividade e mobilização durante a Copa do Mundo de 2014 comparável ao que havíamos alcançado em 2013. Mas descobrimos que as expectativas não contam muito no decorrer da história. Embora muitos gritassem “Não vai ter Copa!” e se organizassem para tomar  as ruas com as pessoas por ela impactadas, a Copa ocorreu sem grandes transtornos para os beneficiados.

Sabemos que as leis, os direitos legais e a constituição só atendem às nossas necessidades quando isso produz ganhos ainda maiores para o governo e os patrões. Entendemos que a soberania nacional como gestão das leis e da segurança de um país concentra nas mãos dos poderosos o monopólio da tomada de decisões que afeta a todos nós. Além disso, ficamos sabendo que até esse teatro democrático que promete direitos humanos e direitos trabalhistas aos precários é uma fraude: quase tudo que dizem ser inalienável está sujeito a suspensão arbitrária a qualquer momento. E com essa suspensão entramos nos estados de emergência e guerra preventiva, muitas vezes regidos por instituições transnacionais nada democráticas – como a FIFA, cujos dirigentes não foram eleitos.

Não são apenas os presos por participar de um protesto ou supostamente organizar manifestações; toda a população sofre as consequências de um estado de exceção cada vez mais permanente. As populações negras e periféricas, assim como pobres, rurais e sem-teto, sentirão o peso dessas mudanças.

A FIFA saiu do Brasil com o maior lucro de sua história. Em 2018, seguiu para a Rússia, um dos países mais repressores da atualidade em termos de liberdade de expressão e direitos civis. Em 2022, a Copa foi para o Catar, conhecido por utilizar a mão de obra escrava de imigrantes;  Desde a última década, quando a Copa do Mundo de 2002 aconteceu no Japão e na Coreia do Sul, vimos a FIFA voltar sua atenção para os países emergentes, democracias recentes (se é que são democracias) caracterizadas por profunda corrupção em seus governos e dispostas a se curvar a pressões externas para aprovar leis de emergência.

Se os meios legais e constitucionais de que dispomos para nos defendermos de nossos próprios políticos já são tão ineficientes, nosso poder de defesa contra instituições que sequer estão em nosso território é ainda mais tênue. Nesta situação, assim como as ocupações de florestas, parques e territórios para impedir a construção de aeroportos, barragens, complexos portuários, mineração, apenas a organização de base e radical pode oferecer alguma esperança na luta contra megaeventos e a constante reestruturação capitalista.

CONTRA A COPA E SEU MUNDO!

Protesto no Rio de Janeiro em 13 de julho de 2014.

Para saber mais:

LUTANDO NO BRASIL – Sobre grandes mobilizações e o que fazer quando a fumaça se dissipa: Em português | Em inglês

LUTANDO NO BRASIL – Parte II: RECIFE, SÃO ROQUE E RIO DE JANEIRO: Em português

Com Vandalismo – Documentário, Coletivo Nigéria, Fortaleza, 2013