Os Mais de 40 Dias de Greve de Fome dxs presxs Anarquistas e Subversivxs em Santiago

[tradução de texto de La Zarzamora]

No dia 22 de março deste ano, um total de 8 companheiros e 1 companheira em privação de liberdade por ações políticas iniciaram uma greve de fome líquida nas prisões de CPF San Miguel, Santiago 1 e Cárcere de Alta Segurança (CAS). Isso, por um lado, como forma de protesto contra as últimas modificações no decreto de lei 321, referente aos requerimentos exigidos pelo sistema carcerário para o acesso à Liberdade Condicional, e por outro para exigir a liberdade de Marcelo Villaroel, preso autônomo subversivo, que recebeu o castigo do estado e de seus mecanismos d e controle durante grande parte de sua vida por se posicionar e lutar contra o poder.

Hoje, há mais de 40 dias, continuam com a ação: Mónica Caballero, Marcelo Villarroel, Juan Flores, Joaquín García, Pablo Bahamondes e Francisco Solar. Do mesmo modo, o companheiro Juan Aliste Vega continua aderindo sem greve de fome por conta de seus graves problemas de saúde.

Essa ação de protesto, na qual desde a prisão se estabelece o próprio corpo como território de luta e resistência, a primeira trincheira de combate, irrompe para instalar com força a existência do problema gerado com as modificações dos anos 2016 e 2018 no DL 321, modificações impostas desde o poder político com absoluto desconhecimento da realidade dos centros de tortura e castigo do estado/capital.

Como objetivo da ação, a e os companheiros estabeleceram os seguintes pontos:

● Revogação do artigo 9 e a restituição do artigo 1 do DL 321.

● A liberdade do companheiro Marcelo Villarroel, preso subversivo autônomo libertário, perseguido e encarcerado por sua luta contra o poder.

● A liberdade de todos os presos políticos da revolta, mapuche e de longas penas sequestrados pelo estado do $hile.

● O fim da perpetuidade das prisões.

A saúde da e dos companheiros em greve

Já entrando nos 40 dias da manifestação, a perda de peso corporal, as tonturas e náuseas são parte do dia a dia de nossa companheira e de nossos companheiros.

Até o momento foram registradas as seguintes variações de peso: Mónica Caballero com perda total de 8 kg; Francisco Solar com perda de 10,5 kg; Marcelo Villarroel com perda de 10kg; Joaquín García com perda de 11 kg; Juan Flores com perda de 10,5 kg e Pablo Bahamondes que registra uma perda de 12 kg.

Mediante os boletins semanais da Coordinadora 18 de Octubre, foi informado que o INDH já visitou as pessoas em greve, assim como o Colégio Médico. Da mesma forma, apontam que foram acrescentados obstáculos para o ingresso de líquidos para a e os grevistas, uma forma de amedrontamento que não terá resultado na decisão dos companheiros e da companheira.

A situação de Mónica Caballero

Uma situação preocupante é o que está vivendo a companheira Mónica Caballero, que está sendo diretamente hostilizada com medidas de desgaste, como o traslado semanal para o Hospital Penal que a Gendarmeria realizava para fazer controles de sangue. Mesmo assim, após ter cumprido 38 de greve, foi ameaçada com ser enviada novamente ao Hospital Penal.

Tal ameaça foi repudiada pela companheira, que se negou rotundamente a esta transferência, motivo pelo qual no último 28 de abril foi realizada uma audiência na qual a defesa de Mónica rechaçou esta imposição, argumentando o desgaste físico e emocional que significam os mais de 40 dias de greve, assim como o controle diário de pressão e peso por parte de uma enfermeira da prisão de San Miguel, bem como a visita semanal de um médico externo.

Esses controles são suficientes para manter uma noção concreta de seu estado de saúde, porém as redes de apoio já advertiram sobre o perigo de que Mónica fosse trasladada à força nos próximos dias, por isso a tensão está presente e o chamado é para ficar alerta.

Em solidariedade com a situação de Mónica, os companheiros decidiram em sua totalidade rechaçar as mostras de sangue por “constituir uma evidente estratégia de desgaste e em solidariedade com Mónica e seus traslados semanais ao hospital penal para realizar essas amostras desnecessárias”.[1]

As modificações no DL 321

Para compreender mais a fundo o atual problema (uma expressão a mais da crise carcerária), revisaremos como e porque se originam estas modificações e como tem sido aplicadas.

No ano de 2016 se efetua uma modificação que incide brutalmente no tempo da pena cumprido para poder optar pela Liberdade Condicional (LC).

Essa modificação surgiu logo após um grande escândalo feito pelos meios hegemônicos, que alarmaram a população por um “suposto perigo” que significava a saída para a liberdade condicional de 1800 pessoas privadas de liberdade de diferentes cárceres do território, em sua maioria da V região. Isso significou, como de costume, uma assimilação social desse “perigo”, que ao mesmo tempo justificava convenientemente uma reforça na lei que permitisse manter o crescimento da população penal.

Como resultado se gera a lei 20.931, que indica em seu artigo 7 a modificação do artigo 3 do DL 321 para consolidar aspectos como o cumprimento de 2/3 da pena para poder optar pela LC em delitos como roubo, furto, receptação e outros crimes de maior violência.

Chama atenção como o punitivismo jurídico iguala os delitos antes mencionados com os de máxima gravidade como: feminicídio, parricídio, estupro e infanticídio. Assim mesmo incorpora nesta lista de delitos o “homicídio de membros das Polícias e da Gendarmeria do Chile em exercício de suas funções”[2], entregando mais uma vez a proteção privilegiada do sistema jurídico/prisional aos executores dos mecanismos de controle, no caso os Carabineros do Chile e a PDI.

Já com esta modificação em curso, os tempos necessários para optar pela LC aumentaram para a maioria da população penal. Todavia, dois anos depois outro fato de comoção social abriria caminho para a modificação seguinte.

Em Junho de 2018 é outorgada a liberdade condicional para 7 criminosos de lesa-humanidade. Essa situação fez com que o poder legislativo e executivo acordassem para “subir o padrão de requisitos para adquirir a liberdade condicional a criminosos de guerra, genocidas ou quem tenha cometido crimes de lesa humanidade”³ derivando isso na lei 21.124 ditada em 18 de janeiro de 2019.

Como já era de se esperar, essa nova modificação que pela primeira vez estabelecia a existência dos crimes de lesa-humanidade, longe de manter estes em privação de liberdade, foi utilizada e aplicada a todos os condenados sem distinção, isso considerando que em nenhum parte se menciona que tais padrões seriam aplicados à população penal comum ou social, ou seja, todos que tenham cometido delitos comuns e que não são e nem foram agentes do estado.

O Observatório Social Penitenciário diferencia a população penal em dois setores, por uma parte a população penal social que seria toda “persona de a pie” e os criminosos de lesa-humanidade, que seriam todos os agentes de estado que executaram ou executam violência política contra a população civil.

“É indispensável ter em conta que em nenhuma parte da mensagem se faz referência aos delitos comuns nem à necessidade de subir os padrões para acesso aos benefícios penitenciários para as pessoas que cometem esses delitos. Logo, toda a discussão no Tribunal Constitucional se centrou na necessidade de modificar a legislação interna para os crimes de lesa-humanidade e nunca se sugeriu sequer que essas normas se aplicariam aos presos condenados por delitos comuns” (Liberdade Condicional e uma modificação imensamente necessária. Observatório Social Penitenciário).[3]

Ambas as modificações antes mencionadas serviram como um coringa para a reprodução do sistema carcerário em um período de pleno auge das prisões concessionadas, assim como para frear a suposta “queda da população penal” que ainda se estabelece como “argumento” em contradição à superlotação denunciada diariamente por presas e presos no $hile.

Novamente podemos presenciar o jogo do poder político e judicial movendo peças sob os discursos “democráticos” adequados às abordagens internacionais de DDHH, para esconder os verdadeiros objetivos que vão aparecendo a medida que essas modificações são aplicadas.

Solidariedade ativa e propaganda pelo fato

Sem dúvida esta greve fez pulsar mais uma vez as forças solidárias do anarquismo em diferentes e também distantes territórios, onde a propaganda pelo fato irrompeu no controle social implantado desde a pandemia.

Graças a coordenação da rede de apoio à greve se desenrolou um potente trabalho de difusão, por meio da plataforma Buscando la Kalle somado aos meios livres e da Coordinadora 18 de Octubre, que possibilitou romper com o cerco midiático e com as fronteiras para coletivizar a informação do porque e de como vai a greve.

Desta maneira se registraram ações solidárias no Peru, Costa Rica, Grécia, Colômbia, Argentina, México, Suécia, Uruguai, Brasil, Espanha e no território dominado pelo estado do $hile do norte até o gelado sul.

Também se realizou 2 fóruns informativos, 2 coletivas de imprensa, um cadenazo radial (transmissão simultânea em vários meios) convocado pela Rádio 31 de Enero em solidariedade com a greve que contou com a participação de rádios livres de diferentes latitudes (entre elas La Zarzamora), dois shows online, um ciclo de cinema anticarcerário e transmissões radiais solidárias de diversas rádios, como as realizadas por Sin Fronteras Ni Naciones e Rádio 1 de Mayo.

Um fato a se destacar tem sido o apoio de outros presos, tal como foi o caso de Luis Castillo, preso político da revolta na cárcere de Huachalalume, de La Serena (norte do $hile), que começou uma greve de fome em 29 de março, se somando às demandas e exigindo sua liberdade.

As ações solidárias de outras e outros companheiros na prisão política em diferentes partes do mundo tampouco tardaram a acontecer, e desta forma chegaram as mensagens combativas da companheira Pola Roupa e Nikos Maziotis, ambxs presxs na Grécia e membros da guerrilha urbana anarquista “Luta Revolucionária”, que mediante um comunicado público mencionaram como o estado e o capital mantêm, mediante suas leis, a prisão política de quem luta contra o poder.

Do mesmo modo, em 12 de abril nos inteiramos da decisão Juan Sorroche, anarquista espanhol preso político na prisão de Terni, Itália, de iniciar uma greve de fome que durará até quando ele “considerar oportuno”, mencionando, entre outras razões, a “solidariedade com as lutas de prisioneirxs nas cárceres chilenas”.

Essas ações vão potencializando as forças de Mónica e dos companheiros para resistir à longa luta contra as modificações no DL 321, que conta com amplo rechaço desde sua aplicação. Não podemos deixar de mencionar as mobilizações geradas por presas e presos sociais em 2019, paralisando dezenas de centros de extermínio por dias.

É importante insistir que este decreto de lei afeta toda a população pena, não somente em seu artigo 9 com arbitrariedades terríveis, mas também com o artigo 3 referente às mulheres e corpos gestantes, no qual se incita a gerar uma gravidez intracarcerária por meio do qual as presas poderiam optar pela liberdade condicional somente com o cumprimento de metade da pena (como antes das modificações) e não com os dois terços.

Em relação a este ponto é necessário mencionar que a gravidez forçada é considerada um crime de lesa-humanidade e está qualificado dentro do que se compreende como “violência político-sexual”. À parte desse ponto ser um atentado à autonomia dos corpos e um controle aberrante da “capacidade” reprodutiva das mulheres e corpos gestantes em privação de liberdade, que só perpetua o ciclo carcerário, reproduzindo vidas dentro do cativeiro para no futuro alimentar o negócio sujo da prisão.

Derrubar as limitações para o acesso à liberdade condicional e que ela volte a ser um direito é uma luta difícil que foi assumida pela companheira e pelos companheiros, que com o apoio sem fronteiras podem chegar a alcançar uma mudança histórica na realidade das pessoas privadas de liberdade no $hile.


[1] Boletim informativo. Coordinadora 18 de Octubre.

[2] https://leyes-cl.com/decreto_ley_n_321_que_establece_la_libertad_condicional_para_las_personas_condenadas_a_penas_privativas_de_libertad.htm

[3] Liberdade Condicional e uma modificação imensamente necessária. Observatório Social Penitenciário.

Solidariedade à Greve de Fome nas Prisões Chilenas – vídeo por Antimídia e Insurrectas

 


Desde o dia 22 de março 2021, um grupo de pessoas subversivas e anarquistas, presas em 4 cárceres chilenas, está fazendo uma greve de fome contra as medidas repressivas realizadas pelo Estado do Chile. A reivindicação central é a Revogação das últimas modificações feitasna lei 321, que desde 1925 regulamenta o acesso à chamada liberdade condicional no território dominado pelo estado chileno.

Em linhas gerais, com essas modificações, a liberdade condicional, que antes era um direito de todas as pessoas presas, se transformou em um benefício. Os critérios para esse acesso foram ainda mais endurecidos, incluindo a exigência de uma ótima conduta da pessoa presa, avaliada pelos próprios agentes do Estado, e o aumento para a necessidade de ser cumprir 2/3 da pena atrás da grades e não mais metade do tempo, como era antes. Como se não bastasse, as alterações na lei foram aprovadas de forma retroativa, ou seja, todas as pessoas condenadas antes mesmo de sua aprovação passam a ser submetidas a ela.

Como a liberdade condicional deixa de ser um direito e se torna um benefício, como um ato de graça e benevolência da autoridade, isso cria, na prática, um tipo de prisão perpétua encoberta, que atingirá principalmente  as pessoas presas no contexto da guerra social e da insurreição permanente.

A mobilização e a greve de fome também têm como outra reivindicação a liberdade imediata para Marcelo Villaroel, companheiro subversivo que já soma mais de 25 anos atrás das grades. Antes, ele poderia ter acessado à liberdade condicional em 2019, mas com a alteração no decreto de lei 321 a data foi alterada para 2036. Soma-se a isso o fato de que ele é atualmente o único prisioneiro mantido atrás das grades que foi condenado pela justiça militar.

CUMPLICIDADE E SOLIDARIEDADE IRRESTRITA COM COMPAS EM GREVE DE FOME NAS PRISÕES CHILENAS!

PELA REVOGAÇÃO DAS ÚLTIMAS MODIFICAÇÕES NO DECRETO DE LEI 321!

LIBERDADE IMEDIATA PARA MARCELO VILLAROEL!

QUE A SOLIDARIEDADE ATRAVESSE AS FRONTEIRAS DOS ESTADOS E OS MUROS DAS PRISÕES!
NINGUÉM FICA PRA TRÁS!


Mais informações:

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A versão em espanhol está disponível em Buscandolakalle.

CONTRA A RESIGNAÇÃO — Entrevista Sobre a Situação de Mónica Caballero e Francisco Solar

Em julho de 2020 a polícia do Chile prendeu Mónica Caballero e Francisco Solar com acusações que os ligam a atentados a bomba. Mónica e Francisco já são perseguidos pelos estados chilenos e espanhóis com acusações semelhantes por mais de 10 anos. Suas detenções ocorrem em um momento no qual o Estado acentua a perseguição e os golpes contra iniciativas anárquicas, sobretudo após a insurreição que toma as ruas do Chile desde 2019 e atravessam o período de pandemia.

Mónica e Francisco durante julgamento.

A solidariedade a todas as pessoas que lutam por um mundo livre do estado e do capitalismo é, por definição uma luta internacionalista. Primeiramente, por princípios, mas também porque a colaboração e o intercâmbio entre as forças policiais e militares para reprimir movimentos e indivíduos rebeldes é também uma luta global. Como apontam camaradas da rede CrimethInc.:

“O caso contra Mónica e Francisco no Chile oferece um vislumbre de um possível futuro após as revoltas anti-polícia em andamento. Podemos ter certeza de que o governo dos Estados Unidos prestou muita atenção às estratégias que governos como da França, de Hong Kong, e do Chile usaram para reprimir rebeliões dentro de suas fronteiras — e podemos acreditar que o governo brasileiro está buscando aprender as mesmas lições. Quando um estado democrático como o Chile consegue empregar uma estratégia de repressão, isso representa um passo à frente para todos os outros governos democráticos que também buscam subjugar sua população.”

Portanto, para dar continuidade às publicações em solidariedade permanente com Mónica e Francisco, realizamos uma entrevista com Familiares y Amigxs de Presxs Subversivxs y Anarquistas da região chilena. Para além da atualização sobre o processo, tratamos da importância da solidariedade ativa com as pessoas presas e as recentes lutas no território dominado pelo Estado chileno.


Nos últimos anos, Mónica e Francisco foram alvo de acusações e prisões tanto no território dominado pelo Estado chileno em 2010 (no que ficou conhecido como “Caso bombas”) quanto no espanhol alguns anos depois. Gostaríamos que vocês comentassem um pouco sobre esse histórico de perseguição e qual foi o impacto nos espaços e na luta em geral.

Para contextualizar um pouco e contar brevemente sobre os casos repressivos nos quais ambxs compas estiveram envolvidxs, é necessário começar em 2010. O Estado buscou dar um ponto final aos diferentes ataques com explosivos por parte de grupos anarquistas e anticapitalistas, e assim lançou uma arremetida contra distintxs companheirxs anarquistas sob acusações de formar parte de uma “Associação Ilícita Terrorista”, golpeando distintas expressões antiautoritárias. Após passar muitos meses na prisão, uma longa greve de fome e mobilizações, xs companheirxs conseguiram ser soltxs para enfrentar um extenso julgamento do qual foram posteriormente absolvidxs.

Um pouco depois, Mónica e Francisco partiram para a Espanha e em 2013 foram detidxs pelo ataque explosivo à basílica de Pilar. A colaboração entre os Estados foi evidente desde o primeiro momento e cabe observar que durante a investigação pelo ataque e antes das detenções, diferentes informes policiais e agentes de inteligência viajavam de um lado a outro, dando recomendações de por onde direcionar a investigação e confirmando as suspeitas em torno axs companheirxs.

Após um rápido julgamento, foram condenadxs a 12 anos de prisão, para logo conseguirem baixar sua pena para 4 anos e meio, conseguindo ser expulsxs para o Chile em 2017, com o correspondente circo midiático e perseguição policial que durou vários meses.

Em 24 de julho de 2020, dia em que foram sequestradxs pelo Estado chileno, Mónica e Francisco tiveram suas prisões preventivas decretadas por 6 meses para investigação. Recentemente, esgotado esse tempo, um novo prazo foi estipulado e a prisão foi prorrogada sem que tenha havido uma sentença. Qual é a situação do processo? Existe alguma previsão de data para que seja realizado o julgamento?

A situação processual é a seguinte: Francisco é acusado pelo envio de dois pacotes explosivos para a 54ª Delegacia de polícia e ao ex-ministro do interior Rodrigo Hinzpeter (cúmplice de uma brutal repressão durante o seu mandato), o artefato enviado para a polícia conseguiu explodir enquanto que o destinado ao ex-Ministro por acaso não foi aberto e conseguiram descobrí-lo logo após a primeira explosão; Mónica e Francisco são acusadxs do duplo atentado explosivo em uma imobiliária no bairro dos ricos durante a revolta.

Ambxs estão formalizadxs sob a lei de controle de armas, além de várias acusações de homicídios frustrados. Quando foram detidxs, o tribunal lhes deu um prazo de 6 meses de investigação, data que foi renovada agora em fevereiro de 2021. É possível que se prolongue esse período investigativo por 2 anos antes de acontecer o julgamento.

Acreditamos que se a procuradoria quisesse já poderia realizar o julgamento, mas também ao que parece esta demora teria a ver com a participação da equipe de investigação em outros julgamentos ou talvez com a revisão minuciosa do processo judicial para que nenhum erro seja cometido, como ocorreu no “Caso bombas”.

Sob o argumento sanitário de combate ao Covid-19, tanto Mónica e Francisco como as demais pessoas presas foram impedidas de receber visitas, o que as deixou em uma espécie de isolamento ainda mais severo dentro da prisão. Como está a situação no momento? As visitas já voltaram a ocorrer? Como Mónica e Francisco se encontram neste momento?

A situação segue restrita basicamente a uma visita, somente uma pessoa durante 2 horas a cada três semanas. Cada prisão e regime tem suas particularidades. No caso da Mónica, ela tem de escolher esta semana se deseja ter uma visita ou se receber uma encomenda (alimento que entra na prisão, entregue por pessoas solidárias), enquanto que no caso de Francisco as limitações o obrigam a receber somente visitas de sua família “sanguínea”. Desde “Familiares y amigxs de Presxs Subversivxs y anarquistas” temos participado informando e lutando, com diferentes formas de agitação, pela volta das visitas.

Concretamente, ambxs se encontram bem, vivendo diferentes realidades da prisão. Francisco, por sua vez, se encontra sob estrito isolamento, grande parte do dia trancado, com escassa ou nenhuma luz solar, enquanto que Mónica está na _Sección de Connotación Pública_, isolada do resto da população penal, tendo de conviver com presas que estão isoladas das demais por serem acusadas de crimes considerados intoleráveis e que podem ser alvo de vingança das outras presas.

Apesar das distintas realidades, ambxs se encontram bem de ânimo, têm acesso a telefones da gendarmeria para poder se comunicar com amigxs e companheirxs, sempre perguntando sobre o exterior e por demais compas que estão na prisão.

O território dominado pelo Estado chileno é muito convulsivo e tem um histórico intenso de insurreições e lutas anárquicas. Das que mais temos notícias são a intensificação do levante mapuche dos últimos anos, sobretudo com as recuperações territoriais, e a revolta de 18 de outubro de 2019. Nos chegam informações de várixs mapuches presxs e assassinadxs (como foi o caso mais recente da compa Emília BAU, morta por sicários de um condomínio privado em Panguipulli), assim como outras mais de 2 mil pessoas detidas, muitas feridas e outras assassinadas por carabineiros. Nos parece muito evidente que a prisão das pessoas envolvidas nas lutas é um golpe dos Estados para tentar apagar a chama insurreta que arde nas ruas. Gostaríamos que vocês comentassem um pouco sobre a situação atual das lutas por aí e como analisam essa reação das forças repressivas.

O panorama repressivo é amplo, assim como a luta. Sem dúvida, desde 18 de outubro, quando começou a revolta no Chile, por um lado marcou um antes e depois, mas ao mesmo tempo uma continuidade e agudização. É inegável que muita gente está na prisão por relação com a luta, em dezembro de 2019 se chegou ao número de 2500 presxs da revolta, cifra que logo foi caindo paulatinamente. É uma realidade ampla e diversa, mais do que um grupo homogêneo e com posições claras.

Sobre xs presxs da revolta, igual que xs mortxs e multiladxs, produto da repressão naquele pocesso, é necessário assinalar que nem todxs são companheirxs revolucionárixs, mas sim pessoas que se levantaram contra a ordem imperante, pelos motivos mais variados.

É uma realidade ampla e diversa, com muitas posições políticas, desde as mais anárquicas e irreconciliáveis até posturas cidadãs e de gente desejosa de integrar o sistema, passando por muitas outras que simplesmente estavam cansadas e saíram a protestar espontaneamente com muita raiva. É importante assumir essa diversidade para não cair em romantizações, idealizar situações ou forçar dinâmicas que não são assim.

É justamente considerando essa realidade que surgiram diferentes iniciativas solidárias com xs presxs da revolta, como também em memória e vingança axs mortxs e multiladxs, assim como contra o Estado.

Mesmo com a perseguição constante por parte do Estado, Mónica e Francisco se mantiveram em combate com a cabeça erguida , sobretudo na prisão. Inclusive escreveram um comunicado que aborda a necessidade de sintonia entre as lutas dentro e fora das prisões. Ela e ele conseguem ter contato com as outras pessoas subersivas que também estão na prisão? E com as que estão fora? Está permitido o acesso a libros e cartas, por exemplo?*

Mónica e Francisco têm feito parte de um entorno de proximidade com xs companheirxs na prisão há anos, ambxs eram visitas frequentes de compas subversivxs presxs. Portanto, essa relação se mantém inquebrantável, mas simplesmente mudou de forma e modalidade. Francisco, apesar de estar na mesma unidade penal, tem pouco contato direto com quem se encontra na Segurança Máxima e quase nenhum contato direto (cara a cara) com quem está na Alta Segurança, mas mesmo assim redes e vínculos são fortalecidos, existindo comunicação fluída entre todxs xs companheirxs.

Como uma amostra se pode observar o escrito em conjunto entre distintxs companheirxs, escrito desde dentro, chamado “Ante la revuelta, el plebiscito y la situación judicial: Comunicado de prisionerxs de la guerra social por la destrucción de la sociedad carcelaria

Como vocês analisam a importância da solidariedade transpassar tanto os muros das prisões quanto a fronteira entre os Estados?

Esse é um dilema necessário e interessante, um desafio para a luta anárquica. No caso dxs companheirxs, já nos deparamos com a questão da solidariedade internacionalista em 2010 com o “Caso bombas” onde se forjaram informalmente belas redes e sintonia internacional com xs detidxs. Por outra parte, quando foram presxs na Espanha essa pergunta se dirigia a nós, sobre nossa capacidade de articulação e de transpassar as fronteiras. Hoje xs compas estão presxs aqui, existe um monte de cotidianidade de urgência para resolver, desde o doméstico, a encomenda, o dinheiro, o legal etc., que sempre se requer ajuda.

Mas esse é somente um aspecto da solidariedade, existindo por outra parte a difusão e agitação do caso e talvez mais importante e nutritivo são os debates públicos em torno das prisões dxs companeirxs. Trazer para as ruas, deixar que falem somente e exclusivamente desde sua condição de prisioneirxs e ir contribuindo na luta.

Em outra dimensão, existe um temor que a solidariedade com ambxs esteja cheia de resignação, de que não valha a pena lutar e que somente sobraria aceitar com resignação uma possível condenação para logo ter de se encarregar dos gastos da vida dxs companheirxs na prisão. Esse cenário é realmente o pior.

Por fim, como as pessoas solidárias podem apoiar a campanha pela liberdade de Mónica e Francisco? Exite algum canal no qual se pode acompanhar as informações e comunicados?

Os textos e informativos nós subimos nas páginas de contrainformação, tratamos de ser bem explicitxs e regularmente publicar atualizações e informações relevantes. Nos distanciamos das posturas que buscam passar desapercebidas ou baixar a cabeça diante disso. Xs companheirxs estão presxs por ações na luta, são parte da luta há anos e corresponde manter um diálogo e informação com todxs que estejam deste lado da barricada.

Sobre as formas com as quais se pode apoiar, essa resposta radica na capacidade criativa de cada pessoa, desde a difusão e agitação, até a coleta de dinheiro, como também a comunicação direta com elxs mediante cartas, xs contemplar em projetos ou simplesmente levantar uma iniciativa solidária própria.


PARA SABER MAIS:

O FOGO QUE ARDE DESDE A CORDILHEIRA

CHILE: CARTAS DE PRESOS ANARQUISTAS EM SOLIDARIEDADE A MÓNICA E FRANCISCO

Uma Nova Onda de Repressão no Chile – CrimethInc.

Poster em Solidariedade a Mónica e Francisco para imprimir – A.N.A.

Democracia: a Tentação Patriótica

Nesse artigo, o anarquista e pesquisador Uri Gordon analisa os usos da palavra democracia e a aproximação do discurso democrático, como estratégia de alguns anarquismos contemporâneos. O texto enfatiza as diferenças entre as práticas libertárias e as democráticas – enquanto governo representativo – e os diferentes significados de palavras comuns a ambos, como liberdade e igualdade. Leia os artigos da coleção de críticas anarquistas à democracia clicando aqui.


Como a maioria dos conceitos políticos, democracia é uma noção “essencialmente contestável” — seu significado é, em si próprio, um campo de batalhas. O que as ideologias políticas fazem, como práticas vulgarizadoras de expressão política, é “desproblematizar” ou fixar o significado desses conceitos, situando-os em relações específicas. O termo “igualdade”, por exemplo, pode significar equitativo acesso às vantagens (liberalismo), equitativa responsabilidade para com a comunidade nacional (fascismo), ou equitativo poder em uma sociedade sem classes (anarquismo). Nessa leitura, não há como objetivamente determinar o significado desses conceitos — o que existe são usos distintos, cada um deles regularmente agrupado com outros conceitos, em uma ou outra enunciação ideológica.

Gostaria, portanto, de suspender a discussão a respeito da compreensão conceitual “apropriada” de democracia e, em vez disso, questionar as escolhas estratégicas do emprego desse termo. Vale a pena, para anarquistas, ressignificar “democracia” de modo a apontar para a eliminação do Estado e das formas de dominação? Indica-se dois argumentos. O primeiro é que as invocações anarquistas de democracia são um fenômeno relativamente novo e tipicamente estadunidense. O segundo é que essa invocação é problemática, porque sua estrutura retórica e a segmentação por públicos-alvo quase inevitavelmente terminam recorrendo a sentimentos patrióticos e mitos da origem nacional.

Até a mais democrática das democracias…

Historicamente, “democracia” não é uma palavra que anarquistas costumaram usar em referência a suas próprias perspectivas e práticas. Uma pesquisa nos escritos de proeminentes ativistas e teóricos anarquistas do século XIX e início do século XX revela que, nas raras ocasiões em que empregaram esse termo, ele foi usado em seu sentido convencional, estatista, para se referir às instituições democráticas e aos direitos efetivamente existentes no Estado burguês. Democracia significava governo representativo, como oposto à monarquia ou à oligarquia.

Pierre-Joseph Proudhon claramente viu a democracia nesses termos. No capítulo 1 de O que é a Propriedade, publicado em 1840, Proudhon escreveu:

“O povo, tanto tempo vítima do egoísmo monárquico, julgou libertar-se definitivamente ao declarar que só ele era soberano. Mas o que era a monarquia? A soberania de um homem. O que é a democracia? A soberania do povo ou, melhor dizendo, da maioria nacional. (…) mas afinal não há revolução no governo visto que o princípio continua a ser o mesmo. Ora, hoje mesmo temos a prova de que não se pode ser livre na mais perfeita democracia”[1].

A questão para Proudhon é a soberania em si, e não quem ou o que a legitima. No capítulo 7 de A Filosofia da Miséria, livro de 1847, Proudhon também objeta qualquer “sistema de autoridade, seja qual for sua origem, monárquica ou democrática”[2]. Em nenhum momento Proudhon faz distinções entre uma “real” e uma “assim chamada” democracia; o termo simplesmente se refere ao governo exercido por meio da representação política.

Essa abordagem atravessa a tradição anarquista. Em 1873, no livro Estatismo e Anarquia, Mikhail Bakunin ataca os marxistas afirmando que “por governo popular (…) entendem o governo do povo por meio de um pequeno número de representantes eleitos pelo povo (…) uma mentira que esconde o despotismo da minoria dirigente, mentira ainda mais perigosa por ser apresentada como a expressão da pretensa vontade popular”[3]. Alexander Berkman ressoou uma crítica semelhante no periódico Mother Earth, de outubro de 1917:

“A democrática autoridade do governo da maioria é o último pilar da tirania. O último, e o mais forte (…) o despotismo que é invisível porque não é personificado, poda a paixão de Sansão e o deixa sem vontade. Ai do povo onde o cidadão é um soberano cujo poder está nas mãos de seus mestres! É uma nação de escravos solícitos”[4].

E, finalmente, Errico Malatesta, em texto de 1924, também trata a “democracia” apenas em termos de um sistema de governo:

“Até mesmo na mais democrática das democracias, é sempre uma pequena minoria que domina e que impõe pela força a sua vontade e os seus interesses. (…) Assim, desejar realmente o ‘governo do povo’ no sentido em que cada um possa fazer valer sua própria vontade, suas próprias ideias, suas próprias necessidades, é fazer com que ninguém, maioria ou minoria, possa dominar os outros; dito de outra forma, é querer necessariamente a abolição do governo, isto é, de toda organização coercitiva, para substituí-la pela livre organização daqueles que têm interesses e objetivos comuns”[5].

Em todos esses casos, não há tentativa de alinhar o anarquismo à democracia, ou de construir esta última em quaisquer outros termos que não aqueles das instituições democráticas convencionais. A associação entre anarquismo e democracia vai aparecer somente por volta dos anos 1980, nos escritos do estadunidense Murray Bookchin.

A negação de Bookchin ao anarquismo no final de sua vida é irrelevante aqui, pois, desde o fim dos anos 1970, suas considerações sobre a democracia permaneceram consistentes, quando eram formuladas em termos de uma estratégia recomendada aos anarquistas. Ecoando a crítica de Martin Buber acerca da expansão do “princípio político” de poder descendente e da autoridade centralizada à custa do “princípio social” de relações horizontais e espontâneas[6], Bookchin vê como única via promissora para a resistência a “descoberta da comunidade, da autonomia, de uma relativa autossuficiência, autoconfiança e democracia direta” em nível local que, fomentada “pela sua própria lógica, se encontrem em oposição explícita às crescentemente invasoras instituições políticas”[7]. Essa visão é claramente de um localismo anarquista, baseado em “assembleias populares livres”, “coletivização dos recursos”, e delegação de funções limitadas a temas de coordenação administrativa. Entretanto, a questão permanece: deve ser esse arranjo promovido pela linguagem da democracia (tanto direta quanto participativa)? Qual é o apelo dessa linguagem, em primeiro lugar?

Vendendo o Anarquismo como Democracia

Colocado de forma bem direta, a associação do anarquismo com a democracia é uma manobra retórica de duas vias que visa aumentar a atração de públicos mainstream pelo anarquismo. O primeiro componente dessa manobra é carregar nas conotações positivas que a democracia contém no discurso político estabelecido. Em vez da imagem negativa (e falsa) do anarquismo como algo estúpido e caótico, reforça-se uma imagem positiva que pega carona na “democracia” como um termo amplamente aprovado na mídia de massa, no sistema educacional, e no discurso do dia a dia. A aprovação aqui não é a de um conjunto específico de instituições ou procedimentos de tomada de decisão, mas a da associação da democracia com liberdade, igualdade e solidariedade — a dos sentimentos que entram em ação quando a democracia é posta em oposição binária à ditadura, sendo celebrada como o que distingue os “países livres”, no Ocidente, dos outros regimes.

Já o segundo componente dessa manobra é subversivo: ele procura retratar as sociedades capitalistas atuais como não sendo democráticas de fato, uma vez que elas alienam o poder da tomada de decisão do povo para colocá-lo nas mãos da elite. Isso equivale a um argumento de que as instituições e procedimentos que o público mainstream associa à democracia — governo por representação — não são, de fato, democráticos, ou são, no máximo, a realização muito limitada e estanque dos valores que eles dizem incorporar. A verdadeira democracia, nesse sentido, só poderia ser local, direta, participativa e deliberativa, sendo viável, em última estância, em uma sociedade sem Estado e sem classes. O objetivo retórico dessa manobra, como um todo, é gerar no público um sentimento de indignação por ter sido enganado: enquanto o apego emocional à “democracia” é confirmado, a crença de que ela realmente existe é negada.

Há dois problemas com essa manobra, um conceitual e outro mais substancial. O problema conceitual é que ela introduz uma noção verdadeiramente idiossincrática de democracia, tão ambiciosa a ponto de desqualificar quase todas as experiências políticas que se enquadrem em um entendimento comum desse termo — incluindo todos os sistemas eleitorais nos quais os representantes não têm um mandato estrito e não são imediatamente revogados. Ao reivindicar que os regimes “democráticos” atuais não são de fato democráticos, e que a única democracia digna desse nome é uma versão de sociedade anarquista, os anarquistas estão pedindo para o povo reconfigurar seu entendimento da democracia de uma forma bastante extrema. Embora seja possível manter esse novo uso com coerência lógica, ele é tão rarefeito e contrário ao uso comum que seu potencial como pivô para a opinião pública é altamente questionável.

 “Ocupe a América: Somos os 99%”
“Ocupe a América: Somos os 99%”

O segundo problema é mais grave. Ao mesmo tempo em que a associação com a democracia pode buscar apelo apenas em suas conotações igualitárias e libertárias, ela também enreda o anarquismo com a natureza patriótica do orgulho na democracia, que ele próprio subverte. O apelo não é simplesmente o de um desenho abstrato para as instituições participativas, mas de instituições participativas recuperadas da tradição revolucionária estadunidense. Bookchin é bem explícito quanto a isso quando convida os anarquistas a “começarem a falar no vocabulário das revoluções democráticas”[8] ao passo em que desenterrariam e ampliariam seu conteúdo libertário:

“Esse passado burguês [americano] tem características libertárias: as town meetings [assembleias municipais] da Nova Inglaterra. Controle municipal e local, o mito americano de que quanto menos governo, melhor, a crença americana na independência e no individualismo. Todas essas coisas são antiéticas para uma economia cibernética, uma economia corporativa e um sistema político altamente centralizado (…). Eu sou a favor da democratização da república e da radicalização da democracia, e de que isso seja feito no nível da base: o que envolverá o estabelecimento de instituições libertárias que sejam totalmente consistentes com a tradição americana. Não podemos voltar à Revolução Russa ou Espanhola. Essas revoluções são alheias ao povo norte-americano”[9].

As formulações de Cindy Milstein em seu artigo “Democracia é Direta” funcionam explicitamente no sentido de preencher esse programa, procurando argumentar a partir dos mitos de origem estadunidenses:

“Dado que os Estados Unidos são mantidos como um pináculo da democracia, parece particularmente apropriado voltar às tensões de uma democracia radicalizada que lutou tão valentemente e perdeu tão esmagadoramente na Revolução Americana. Precisamos nos dedicar a essa projeto inacabado (…). Como todas as grandes revoluções modernas, a Revolução Americana gerou uma política baseada em ‘assembleias cara a cara’ confederadas dentro e entre cidades (…). Aquelas de nós que vivem nos Estados Unidos herdaram esse autoaprendizado em democracia direta, ainda que apenas em ecos vagos (…) [são] valores arraigados que muitos ainda consideram: independência, iniciativa, liberdade, igualdade. Eles continuam a criar uma tensão muito real entre autogestão de base e representação de cima para baixo”[10].

O apelo ao consenso de que a política estadunidense foi fundada em uma revolução popular e democrática, genuinamente animada pela liberdade e igualdade, está destinado a atingir sentimentos patrióticos existentes, mesmo quando enfatiza suas consequências subversivas. Milstein até invoca o Discurso de Gettysburg de Abraham Lincoln quando critica as agendas reformistas que “trabalham com uma noção de democracia circunscrita e neutralizada, na qual a democracia não é do povo, não vem do povo e nem é pelo povo, mas é apenas supostamente em nome do povo”[11]. Ainda assim, esse é um movimento perigoso, uma vez que se fundamenta em uma crítica limitada do patriotismo em si, e permite que os mitos de origem aos quais ele apela permaneçam intocados pelas críticas da identidade coletiva e da exclusão colonial. Ao notar a necessidade de não branquear as injustiças raciais, de gênero e outras que foram parte do “evento histórico que criou este país”, Milstein só pode oferecer uma exortação genérica para “lidar com a relação entre essa opressão e os momentos liberadores da Revolução Americana”[12].

Dado que esse apelo é voltado a participantes não-anarquistas, há pouca ou nenhuma garantia de que tal luta poderia realmente acontecer. O sentimento patriótico ao qual se apela aqui é mais frequente do que um componente de uma narrativa nacionalista maior, que dificilmente participa de uma crítica decolonial (que, por si só, deveria ter muitas dúvidas acerca das raízes iluministas ocidentais que marcam as noções de cidadania e esfera pública). A celebração da democracia nos termos que invocam diretamente aos primórdios da política estadunidense pode acabar reforçando, em vez de questionar, a fidelidade ao Estado-nação que reivindica, ainda que falsamente, ser a portadora da herança democrática do período colonial. Isso é especialmente pungente no contexto das recentes ondas de mobilização, que revelam precisamente essa mistura de quintessência de meios de organização e ação influenciados por anarquistas, e discursos claramente patrióticos e nacionalistas — da revolução egípcia que abraça as forças armadas, ao sentimento jeffersoniano que impregna o movimento Occupy, até o nacionalismo absoluto da revolução ucraniana.

“As recentes ondas de mobilização, que revelam precisamente essa mistura de quintessência de meios de organização e ação influenciados por anarquistas, e discursos claramente patrióticos e nacionalistas.”

Há, realmente, uma razão para perscrutar essa questão, qual seja, a dos sentimentos democráticos e nacionalistas que foram expressos por movimentos pelos quais os anarquistas, de fato, têm boas razões para sentir certa afinidade. O mais proeminente desses são as lutas comunitárias em Chiapas, no sudeste do México, conectadas ao Exército Zapatista de Libertação Nacional (EZLN), e o movimento revolucionário em Rojava (ou Curdistão Sírio). Ambos não apenas empregaram a linguagem da democracia para expressar formas de sociedade descentralizadas e igualitárias, mas também para avançar uma agenda explícita de libertação nacional. O movimento curdo endossou Bookchin publicamente como uma fonte de inspiração. Isso significa que os anarquistas estão errados ao manter a solidariedade ativa com esses movimentos? Minha resposta é “nã o” — mas devido a uma diferença crucial que também reclama o argumento geral acima. Usar a linguagem da democracia e de libertação nacional não é mesma coisa para as minorias sem Estado no Sul Global e para os cidadãos de países capitalistas avançados, nos quais a independência nacional já é um fato consumado. Os primeiros não apelam para mitos patrióticos de origem engendrados por um Estado-nação existente, com seus privilégios e injustiças, mas a uma possibilidade de descentralização radical, diferente e não experimentada, que engendra uma “libertação nacional” potencialmente sem Estado. Certamente, isso carrega seu próprio risco, mas os anarquistas no Norte não estão em posição de pregar sobre esses assuntos.

Assim, nós voltamos ao ponto principal: ao menos para anarquistas nos EUA e no Oeste Europeu, a escolha de usar a linguagem da democracia é baseada no desejo de mobilizar e subverter uma forma de patriotismo que é, em última análise, vinculada ao establishment. Com isso, corre-se o risco de fortalecer os sentimentos nacionalistas que pretende minar. Os anarquistas sempre tiveram um problema de imagem pública. Tentar desfazer isso através de uma conexão com o mainstream democrático e os sentimentos nacionalistas é um risco que não vale a pena.


Uri Gordon é professor na Faculdade de Ciências Sociais da Universidade de Nottingham, Reino Unido. Contato: uri.gordon@nottingham.ac.uk.


Notas:

  1. Pierre-Joseph Proudhon. What is Property?. Traduzido por Benjamin Tucker. New York, Humboldt, 1890 [1840].
  2. Pierre-Joseph Proudhon. The Philosophy of Poverty. Traduzido por Benjamin Tucker. Cambridge, Wilson, 1888 [1847].
  3. Mikhail Bakunin. Statism and Anarchy. Traduzido por Marshall S. Shatz. Cambridge, Cambridge University Press, 1990 [1873].
  4. Alexander Berkman. “Apropos” in Mother Earth Bulletin, 1.1, 1917. Disponível em https://libcom.org/library/mother-earth-bulletin (acesso em: 14/02/2017).
  5. Errico Malatesta. “Democracy and Anarchy” in The Anarchist Revolution: Polemical Articles 1924-1931. Traduzido por Gillian Fleming e Vernon Richards. London, Freedom, 1995 [1924].
  6. Martin Buber. “Society and the State” in Pointing the Way. Traduzido por Maurice Friedman. New York, Harper, 1957 (Reprinted in Anarchy, 54).
  7. Murray Bookchin. The American Crisis II. Comment 1.5. 1980. Disponível em http://dwardmac.pitzer.edu/Anarchist_Archives/bookchin/BookchinCW.html (acesso em: 14/02/2017).
  8. Murray Bookchin. “Radicalising Democracy (interview)” in Kick It Over, n. 14, 1985. Disponível em http://dwardmac.pitzer.edu/Anarchist_Archives/bookchin/raddemocracy.html (acesso em: 14/02/2017).
  9. Idem.
  10. Cindy Milstein. “Democracy is Direct” in Anarchism and its Aspirations. Oakland, AK Press, 2010 [2000], disponível em https://theanarchistlibrary.org/library/cindy-milstein-anarchism-and-its-aspirations.
  11. Idem.
  12. Ibidem.