Revolta na região peruana: Entrevista com companheir@s da Editorial Ande 

 

“Mais do que misturar espontaneidade com a defesa de Castillo, ou independência política de classe com sua subordinação a um caudilho, parece-nos que o processo atual, com todas as suas limitações, é um momento crucial. Não tanto pelos propósitos do movimento, mas pelo que ele representa em termos de experiência e aprendizado para a classe trabalhadora.”   

Em 7 de dezembro de 2022, Pedro Castillo foi afastado do cargo de presidente do Peru, após tentar fechar o Congresso, em meio a disputas entre a casta política e suas diferentes instituições, assumindo em seu lugar a então vice-presidente Dina Boluarte (que pertence ao mesmo partido político de esquerda  do presidente deposto, Peru Libre). Ao longo dos dias, isso desencadeou uma onda de protestos que até hoje mantêm um nível muito alto de conflito social, deixando já mais de 60 pessoas assassinadas nas mãos de uma repressão estatal extremamente brutal, com vários massacres em suas mãos (a mais violenta até agora, a de Juliaca, ocorreu em 9 de janeiro, e custou a vida de pelo menos 18 manifestantes).

Seria um grave erro classificar o atual movimento somente a partir da defesa exclusiva do ex-presidente: a agudização da luta de classes na região peruana expressa, com seus limites, o cansaço pelas sufocantes condições de vida em geral da população e da institucionalidade política.

 Nesse sentido, compartilhamos esta entrevista com o grupo Editorial Ande [1] – a quem agradecemos por ter tempo para nos responder- que fornece informações cruciais e uma análise lúcida da situação naquela região, contextualizando nacional e internacionalmente a situação atual ciclo de protestos, explicando sua gênese, avaliando seus limites e projeções, esclarecendo o panorama da luta de classes em geral, incluindo as lutas internas da classe capitalista e seus representantes políticos à direita e à esquerda.

Incentivamos a sua leitura, discussão e divulgação.                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                 

1- No Chile, os setores antagônicos têm acompanhado de perto as notícias vindas do Peru,  que impressiona pela massividade das mobilizações e pelo alto nível de repressão estatal. Em particular, há algumas semanas aconteceu a chamada Marcha de los Cuatro Suyos. Em que consistia, quais eram os seus objetivos e alcance, e como tem sido a repressão?

Saudamos o interesse em querer desvendar o processo de luta de classes que vem se desenvolvendo nos últimos meses no Peru e agradecemos também pela entrevista. É bem verdade que o nível de repressão se tornou mais agudo, sendo maior do que o registrado nos últimos anos em outros países latino-americanos. A repressão no Peru, ao que nos parece, só é superada pela ocorrida na Colômbia, no contexto dos protestos de 2021 contra a reforma tributária de Iván Duque. Embora seja importante destacar que no Peru beiramos 2.000 feridos e mais de 60 mortos em apenas 2 meses, enquanto o massacre na Colômbia durou mais de 1 ano quando os membros da primera línea ainda estavam reprimidos. Se a repressão estatal continuar ou se intensificar como se tem visto até agora, isso poderia ser facilmente comparado ao que foi exercido pelas ditaduras latino-americanas dos anos 1970.

Um esclarecimento, a  Marcha de los Cuatro Suyos foi realizada em 2000 contra a ditadura cívico-militar de Alberto Fujimori. Justamente por isso, a atual marcha de 19 de janeiro foi chamada de 2ª Marcha de los Cuatro Suyos. A razão é muito geral: em ambas as datas houve uma concentração massiva de mobilizações desde regiões do interior do Peru até a capital Lima e lutaram contra políticos que assumem explicitamente a gestão do poder estatal de forma autoritária. Também foi chamada de “Toma de Lima”, embora nos interesse apontar que os aspectos fundamentais da luta não têm muito a ver com tais rótulos.

A marcha foi antes de tudo diversificada, massiva e desorganizada. Era formado essencialmente pela classe trabalhadora do campo e da cidade, e também estudantes. O proletariado das regiões de Puno, Ayacucho, Arequipa, Cusco, Apurímac, viajaram para Lima dias antes da marcha, sendo interceptado e intimidado pela polícia nas estradas ou bairros a caminho da capital. Apesar desses obstáculos, a grande maioria das delegações chegou ao seu destino. Aproximadamente 50.000 manifestantes se mobilizaram em Lima. Havia pelo menos três rotas de marcha. Uma que se mudou para o Kennedy Park, ou seja, para Miraflores, bairro conhecido por ser o centro de operações e residência tradicional de um amplo setor da burguesia de Lima. Outro caminho traçado pela Confederación General de Trabajadores del Perú (CGTP), que consistia em realizar um desfile pelas avenidas Grau, Abancay e Nicolás de Piérola para finalmente retornar à praça 2 de Mayo. Outro grande fluxo de manifestantes autoconvocados se dirigiu ao Congresso, que estava protegido pela polícia nacional, e por isso acabou enfrentando a polícia no cruzamento das avenidas Abancay e Nicolás de Piérola.

O baixo nível de organização refletiu-se na dispersão das marchas e dos diferentes percursos, mas sobretudo porque não foi formulada uma estratégia ou objetivo comum. Em muitos casos os grupos limitaram-se a cumprir os percursos traçados; em outros, os manifestantes se aproximaram das dependências dos meios de comunicação, ou perto das casas de políticos, ou burgueses para demonstrar seu descontentamento. Um contingente maior buscava chegar ao Congresso.

Em relação à repressão, é importante destacar que ela se concentra e tem se concentrado no parte sul do país. Em Lima houve uma forte repressão, mas não houve aniquilação direta da classe trabalhadora como em Juliaca, Ayacucho ou Andahuaylas. Sim, houve dezenas de detidos. Em outras regiões como Cusco, Puno e Arequipa houve tentativas de tomar o aeroporto. E nesta última região houve até um óbito.

 

2- Qual é o pano de fundo dessa onda de protestos que parece estar em ascensão? Como avalia este movimento no contexto global de crise, atualmente marcado pela guerra e pelo recente ciclo de revoltas?

 O cenário das lutas atuais no Peru se desenvolve como um momento de luta de classes em todo o mundo, determinado pela crise do capital. Observamos uma recessão técnica por dois trimestres consecutivos, principalmente nos ramos produtivos de países imperialistas como Estados Unidos, Alemanha e Inglaterra. Da mesma forma, a taxa de desemprego é gerada em ramos específicos dos setores de hidrocarbonetos, mineração, gás e plantas de petróleo, tendo em conta o aumento do emprego no setor de serviços. Há também altas taxas de inflação, principalmente nos setores de alimentação e habitação, aspectos que mais atingem a classe trabalhadora. Atrelado a isso, a guerra interimperialista, imanente à crise, Leva a um aumento no preço do petróleo e do gás gerando um efeito dominó nos preços dos produtos em todo o mundo. A escassez de fertilizantes se traduz em menor produção nos setores agrícolas em todo o mundo, enquanto as grandes empresas ligadas ao processamento e venda de combustíveis e aos bancos quebram ou entram em crise.

O Peru é um país que depende da importação de combustíveis, fertilizantes e alimentos; por outro lado, sua economia primário-exportadora o torna sensível a choques econômicos externos. Assim, todo esse aumento de preços vem afetando diretamente o custo de vida de sua população. Por exemplo, quando o custo do transporte aumenta, todas as mercadorias transportadas aumentam seus preços. A falta de fertilizantes leva a uma produção menor e seus altos custos aumentam o preço dos produtos agrícolas. Juntos, sua moeda é desvalorizada, entre outros fatores, pelo aumento da inflação e pela elevação dos juros pelo Reserva Federal dos Estados Unidos, tendo seus efeitos mais agudos nos últimos meses. A isto podemos acrescentar que o impacto da guerra teve um efeito contrário ao esperado, reduzindo o preço dos metais. Tudo isso gerou um aumento da inflação de mais de 2 pontos, atingindo o maior nível em 26 anos com 8,46% e mais de 15% nos alimentos. Isso faz com que produtos básicos para o consumo da classe trabalhadora, como a batata, por exemplo, aumentem seu preço em mais de 100%. O crescimento do Produto Interno Bruto em 2022 vem diminuindo, com queda de 3,8% para 1,7% no último trimestre.

Nesse cenário se localiza o processo de lutas interburguesas dentro do Estado que se desenrola de forma mais transparente desde 2016. Isso é muito bem visualizado com a destituição de presidentes e no confronto entre os poderes do Estado. Esse processo arrasta a classe trabalhadora a se posicionar pelas frações burguesas. No entanto, 2020 apresentou um cenário em que o proletariado da agroexportação do litoral sul e norte do país se levantou em greve. Foi um passo dos enfrentamentos interburguesas para um claro processo de luta de classes. A causa direta foi a tentativa de ampliação de um regime trabalhista para agroexportadores que foi instalado no governo Fujimori (2000) e que só flexibiliza e precariza o proletariado. Contratos temporários, utilização de services, estabilidade zero no emprego, salários reduzidos, etc., são características desse sistema de trabalho. No entanto, esse processo esteve ligado à pandemia, onde vimos claramente como o Estado beneficiou abertamente a burguesia e, da mesma forma, as disputas interburguesas no Peru que revelaram a corrupção e os interesses dos representantes da burguesia no Estado. Não se tratava apenas de uma eclosão da luta de classes, vinculada de forma temporária, mas de forma essencial. Essas disputas entre a burguesia abrem um cenário propício para que as lutas do proletariado explodam. Um cenário semelhante se apresenta agora. Passamos dos conflitos interburgueses para a luta de classes, onde o proletariado busca derrubar representantes da burguesia no Estado, embora no momento seja apenas uma mudança de tais representantes.

 

3- Nos primeiros dias, o movimento parecia se expressar com intensidade diferente nas províncias em relação a Lima. O que explicaria isso? Como esse fenômeno se desenvolveu?

As lutas foram mais ativas nas regiões fora de Lima, no começo e agora mesmo. Os trabalhadores das regiões mais agitadas, como Apurímac, mantêm uma renda mensal de S/. 714 de Puno com uma renda média de S/. 805. Isso equivale a 189 e 213 dólares por mês, respectivamente, embora sendo a média é certo que esse rendimento é ainda menor para os mais pobres. Na região sul peruana, destaca-se também o alto índice de anemia em crianças, com incidência em torno de 50% em Apurímac e Ayacucho e 70% em Puno. São esses trabalhadores explorados e precários no processo de acumulação do capital imperialista vinculados às mineradoras que saem às ruas para lutar. A indignação cresceu de sul a norte, impulsionada pelos trabalhadores da cadeia de montanhas da região sul, que tem uma grande história de luta, aos poucos foram convocados diferentes setores e regiões, o movimento se expandiu para incluir a própria Lima, tradicionalmente conservadora.

 

4- Vimos que a imprensa burguesa tem sido particularmente hostil às manifestações (“Isto é terrorismo”, “A polícia defende o Peru”, “É violência política, não é protesto social”, são algumas das manchetes que viram depois da marcha para Lima). Existem elementos específicos que explicam esse comportamento ou é apenas uma continuação de seu tradicional papel criminalizador?

A imprensa atual no Peru, como em grande parte da América Latina, é controlada e concentrada por um punhado de famílias. O Grupo El Comercio da família Miró Quesada controla aproximadamente 80% da imprensa escrita e um domínio na imprensa digital com 28% da mídia disponível nesse setor. Em dois de seus jornais mais populares, como Peru 21 e Trome, os trabalhadores que se manifestaram foram diretamente acusados de serem terroristas. O veículo de extrema-direita Willax, que pertence a corporação Erasmo Wong, é ainda mais obstinado no “terruquear”, pedindo abertamente para “atirar na cabeça” dos manifestantes. A partir desses grupos de imprensa constituinte e intimamente ligados à grande burguesia do Peru, que vem se espalhando a ideia de que quem se manifesta é vândalo ou terrorista. Esta posição nada mais é do que a expressão de seus “tradicionais” interesses de classe em um momento de agudização da luta de classes. Assim como os níveis repressivos se agudizaram diante da irrupção do proletariado, o papel da grande imprensa teve um movimento semelhante, tentando dar legitimidade à repressão estatal diante da opinião pública. Assim, o principal elemento para explicar a posição da grande imprensa é o próprio processo de luta e o medo gerado nos setores burgueses pela ação direta dos trabalhadores.

 

5- Qual tem sido a participação das minorias revolucionárias, anarquistas ou comunistas, durante o desenrolar destes dias?

 Em Lima verificamos a participação de anarquismos libertários, comunismo tradicional dos PCs e organizações social-democratas em geral. Certamente, existem minorias de ex-trotskistas, maoístas da velha guarda que deixaram suas antigas posições e assumiram uma posição revolucionária. Além disso, há novas organizações mais próximas das leituras da esquerda comunista alemã, holandesa e italiana, refeitas com a influência da Neue Marx-Lektüre e suas diversas vertentes. Mais tarde, anarquistas individualistas e marxistas com posição de classe, mas amplamente dispersos, têm participado também. Embora em geral, infelizmente, o grosso das organizações em marcha seja de tendência reformista e proclame como medida máxima a Assembleia Constituinte.

 

6- Qual tem sido o papel desempenhado pelas organizações mais tradicionais, como partidos de esquerda, sindicatos ou organizações indígenas?

 A maioria dos partidos de esquerda no Peru há muito se caracteriza por uma prática e um programa parlamentarista e reformista. Este procedimento se refletiu no apoio constante ao governo Castillo, que em nenhum momento representou alternativa alguma — como toda alternativa burocrática e parlamentar— para a classe trabalhadora. Basta recordar as lutas de março-abril que aconteceram em Junín, Ica, Cajamarca e outras regiões, devido à crise econômica desencadeada pela guerra russo-ucraniana e o correspondente aumento dos preços dos combustíveis e fertilizantes. O ex-presidente ignorou as reivindicações dos trabalhadores, chamando-os de valentões pagos pela direita, o que foi seguido por alguns partidos de esquerda como o Izquierda Socialista; enquanto isso, a maioria deles — como Patria Roja, ML 19 e Movimiento por la Unidad Popular— entenderam os acontecimentos como uma “traição” por parte de Pedro Castillo rumo as promessas de uma Assembleia Constituinte e de uma verdadeira alternativa popular e de esquerda, com uma menção tangencial ou nula ao contexto econômico mundial e muito menos ao proletariado como sujeito revolucionário.

Essa visão estreita da esquerda voltou a se manifestar nas lutas atuais. No plano teórico, encontram como motor das lutas atuais um processo de democratização que emergiu “de baixo”, cujos objetivos são a inclusão total de todos os membros da sociedade no jogo da democracia, cuja expressão seria a convocação a novos eleições e a tão aclamada — de maneira mais eufórica e repetitiva por esses partido  exclusivamente— a Assembléia Constituinte. No nível prático, eles têm divulgado suas proclamações parlamentares nas marchas e querendo se apropriar e direcionar à vontade o impulso subversivo dos trabalhadores. Como pode ser visto nos processos políticos do Chile e da Colômbia, a canalização das lutas para uma solução parlamentar — por meio de uma Assembleia Constituinte ou por meio da eleição de um novo presidente de esquerda, respectivamente — não faz mais do que atenuar e apaziguar os esforços dos trabalhadores, essa é a sua verdade natureza: são a esquerda do capital, reformistas, conciliadores de classes — quando não negam justamente a existência das classes —, não buscam a emancipação dos trabalhadores

Quanto aos sindicatos, eles têm uma relação estreita com os partidos de esquerda descritos acima. É o caso da Confederación General de Trabajadores del Perú (CGTP), que ao longo desses processos de luta manteve o mesmo discurso da Assembleia Constituinte e inclusive explorou a possibilidade de participar de uma Reunião de Acordo Nacional com a Presidenta Dina Boularte, que muito provavelmente teria sido realizado se não fosse o massacre de 18 manifestantes em Juliaca, Puno. É evidente o radicalismo dos trabalhadores, que se levantaram e se organizaram pelos seus próprios meios, ao qual pela mesma força das circunstâncias se somam a esquerda reformista e os sindicatos a ela alinhados.

7- Qual é a composição do movimento? Quão heterogêneo é? Tem traços de autonomia e espontaneidade ou limita-se a apoiar Pedro Castillo? Ou até que ponto as duas coisas se misturam?

 Em termos geográficos, o movimento é liderado principalmente por trabalhadores do campo da cidade de Central Sierra e do sul do país. A mobilização na capital é bastante pequena e tende a ser composta por universitários e setores mobilizados pelos partidos políticos da esquerda reformista, além de pequenos grupos de orientação diversa e autoconvocados. Estes últimos são os mais ativos nas tarefas de autodefesa que ocorrem nos confrontos com a polícia. Em termos gerais, a maioria dos manifestantes são trabalhadores (empregados ou desempregados, rurais ou urbanos). Onde uma certa heterogeneidade se manifesta é nos vários slogans que se agitam e na perspetiva estratégica que se defende. Os principais slogans são: a convocação de novas eleições, o que significaria uma mudança de poder executivo e legislativo; a convocação de uma Assembléia Constituinte e a renúncia de Dina Boluarte. Inicialmente, houve setores mais ligados ao antigo governo que agitaram —e continuam agitando— o pedido de libertação de Pedro Castillo e sua reintegração como presidente da república. Com o passar do tempo, esse pedido foi perdendo força, pois a tendência predominante é um descontentamento generalizado com o funcionamento das instituições burguesas. A principal limitação reside no fato de que a crítica do quadro institucional e dos partidos políticos burgueses ainda não foi capaz de reconhecer o papel desempenhado pelo reformismo e pela esquerda do capital na reprodução da miséria. Isso dá a políticos como Pedro Castillo alguma margem de manobra enquanto tentam capitalizar o descontentamento dos trabalhadores. Mas de forma alguma se pode dizer que a mobilização se limita a apoiá-lo. Essa confusão ocorre porque a saída de Pedro Castillo foi efetivamente o estopim das mobilizações. Mas seria um erro limitar-se a este evento e não analisar o contexto geral marcado pela crise e pela crescente decomposição das instituições burguesas. Mais do que misturar espontaneidade com a defesa de Castillo, ou independência política de classe com sua subordinação a um caudilho, parece-nos que o processo atual, com todas as suas limitações, é um momento crucial. Não tanto pelos propósitos do movimento, mas pelo que ele representa em termos de experiência e aprendizado para a classe trabalhadora.

 

8- Para onde é mais provável que o movimento se dirija? Quais são suas projeções? Tem perspectivas comunistas que poderiam ser desenvolvidas?

Falar de uma perspectiva comunista dirigindo o atual processo no Peru é um exagero e uma impossibilidade a curto prazo, devido às condições ideológicas da classe trabalhadora e à feroz criminalização contra o comunismo e as ideias revolucionárias. No entanto, o Peru é um país de extremos, se por um lado a direita parasitária tomou o poder por mais décadas do que em outros países latino-americanos, não deixando espaço para ação — mesmo para soluções reformistas —; por outro lado, nossa história de lutas foi marcada por grupos radicais que se levantaram contra o Estado. O terreno político peruano não tem sido propício ao desenvolvimento de um progressismo duradouro, entre outras coisas, devido ao nível de vínculos entre a burguesia e o imperialismo e porque a violência capitalista é muito profunda. Esse panorama desanimador foi revertido nas últimas marchas no Peru porque o que acaba sendo questionado, além das aspirações reformistas, é o Estado e a própria propriedade burguesa. Ou seja, o movimento da luta de classes no Peru expressa vozes conscientes do essencial. Nesse contexto, nasceu nosso grupo, sólido em princípios e com objetivos claros; acreditamos, por nossa experiência, que a classe trabalhadora exige e precisa do necessário desenvolvimento de um caminho revolucionário que só é possível por meio de sua associação como classe.

 

9- Em relação à casta política, como ela está enfrentando a crise? Está dividida? Existem partidos ou grupos que apoiam as manifestações? Existe uma clara diferenciação pontual entre esquerda e direita?

A casta política no Peru está aparentemente dividida. Ou seja, embora existam setores da direita e até mesmo da “extrema direita” fujimorista que apoiam as eleições antecipadas e a saída de Dina Boluarte, na prática todos eles, inclusive os partidos de esquerda, querem canalizar a mobilização dos trabalhadores para canais institucionais. Enquanto uns propõem uma Assembleia Constituinte e outros apenas eleições, e se envolvem em “grandes polémicas” no parlamento sobre essas diferenças que se apresentam como antagonismos irreconciliáveis; em termos reais, todos os partidos políticos querem restabelecer a calma política que garanta a plena continuidade da acumulação do capital. Assim, explica-se que não só a esquerda apoia as manifestações e que há centristas e até liberais participando da mobilização. Claro, enfatizando a necessidade de não violar a propriedade privada e o respeito à autoridade. Neste sentido, pode dizer-se que não existem diferenças substantivas, embora a nível imediato existam.

11- Como a solidariedade internacional poderia ser efetiva contra a repressão brutal e o eventual desenvolvimento de perspectivas anticapitalistas dentro do movimento na região peruana?

A luta de classes é um fenômeno mundial porque o próprio modo de produção capitalista o é; a ofensiva desse modo de produção vem crescendo e transformando em elementos de acumulação todas as esferas em que nos desenvolvemos. Estamos cientes de que a luta do proletariado está eclodindo em diferentes espaços e regiões, dadas as consequências da crise mundial. Tal solidariedade internacional deve se expressar na unidade dos trabalhadores em seus países e na formação de vínculos entre seus setores mais organizados, porque, apesar de existirem mediações concretas nas nações, as causas de nossa luta encontram-se nas tendências e contratendências do modo de produção capitalista. O proletariado peruano vem se esclarecendo no processo de luta com o aperfeiçoamento de seus métodos de luta e o aperfeiçoamento de suas organizações; no entanto, o reformismo ainda se impôs como a principal saída da crise devido à continuidade difusa das tarefas democrático-burguesas que desempenharam durante os últimos 50 anos. Diante disso, uma verdadeira solidariedade internacional dos grupos revolucionários deve ajudar a revelar o fracasso da social-democracia em suas tentativas de instalar e difundir soluções ilusórias para a classe proletária e, por outro lado, posicionar-se contra a violência policial e as políticas intervencionistas dos imperialismos. Colocar as coisas em seus termos reais é contribuir para o caminho necessariamente revolucionário dos trabalhadores em todo o mundo.

[1]     O grupo se apresenta como “uma editora comunista que traduz, edita, imprime e publica livros de diversos gêneros e saberes de diversas partes do mundo, sempre vinculado a pensar a sociedade e buscar transformá-la”.

 

Entrevista retirada do site dos companheiros do Vamos hacia la vida, realizada em 14 de fevereiro de 2023.