Mal terminou o processo eleitoral mais acirrado da história do país, com uma vitória apertada, e por meio de uma frente ampla, de Luiz Inácio Lula da Silva, por apenas 1,8% sobre Jair Bolsonaro, e protestos de apoiadores da extrema-direita, certamente organizados e financiados por forças empresariais e do agronegócio, tomaram as ruas de várias cidades do país. Primeiramente, com bloqueios de estradas e, sucessivamente, com acampamentos em frente aos quartéis, pedindo intervenção militar ao som do hino nacional, tais bolsonaristas, fomentados por uma enxurrada de notícias fakes e muitas vezes insuflados pelo fanatismo religioso, questionam o resultado das urnas.
Não é de agora no Brasil que a nossa variante pentecostal e miliciana da alt-right norte-americana se traveste de antissistêmica para surfar na onda da falência representacional. Desde a ascensão do bolsonarismo, vimos o sistema tomando vida própria se apresentar sob a máscara de uma alternativa que seria diferente e fora da democracia representativa. Vimos, por exemplo, um político com vários mandatos como deputado se eleger como sendo “o novo na política”. Vimos caminhoneiros trancar estradas com barricadas pedindo golpe militar (sim, não é a primeira vez1), e assistimos protestos contra o direito à livre manifestação, como se a contradição evidente não fosse um absurdo precisamente pela compreensão de que vivemos uma ordem sustentada por sucessivos e continuados estados de suspensão da ordem dita normal, e pela manutenção de um estado permanente de emergência.
Mas é claro que nem mesmo diante disso talvez imaginássemos a quantidade de mobilização que temos diante de nossos olhos por mais de 15 dias continuados, com milhares fazendo saudações nazistas, catársis coletivas nas ruas, guerra social em cada esquina, construções de realidades paralelas. Já faz tempo que os anarquistas apontam para o perigo de se confiar numa política feita apenas pelas instituições e com foco no processo eleitoral. Mas a falência da representação não se cura com uma vitória nas urnas, o jogo de forças não acaba com o final de uma apuração apertada, na qual um dos lados reúne multiplicidades discordantes (cuja única unidade parece ser a exclusão do bolsonarismo) contra um projeto político delimitado e crescente por dentro e por fora das instituições.
Quando Bolsonaro venceu as eleições em 2018, alguns setores da esquerda apontaram para a necessidade de se retomar as ruas, ocupar os espaços de construção de base, fazer a política que de fato pode transformar a sociedade, mas os setores majoritários da esquerda institucional preferiram apostar as fichas apenas no processo eleitoral, na negociação com os de cima, que não poderia ser atrapalhada por uma cidade insurgente. O discurso era: não é a hora, vamos ganhar em 2022, deixem ele sangrar. E todos nós sangramos. E o risco sempre foi, como ainda é: ganhar e não se levar. Ou ainda: até ganhar, mas em péssimas circunstâncias. Pois eles perderam a presidência, mas se consolidam como maior projeto político unificado no país. E se ganhou sim, não queremos dizer aqui que a derrota de Bolsonaro não significa nada (momento faz o L e agradece ao nordeste2). Mas o ponto é: isso não é suficiente, desde que não apenas se ganhou perdendo-se muito do caráter à esquerda, mas este caráter continuará tendo que ser negociado cada vez mais para se manter a governabilidade durante os próximos anos.
Diante de uma direita que não recua, nem mesmo com a derrota eleitoral, nossa resposta não pode ser recuar cada vez mais, inclusive de nossos valores mais importantes. O capital político que agora ocupa as ruas é capaz de barganhar recuos e vantagens muito mais até do que os próprios cargos que eles ocupam no congresso. Sobretudo se não houverem outras forças políticas dispostas a disputar. Para além da possibilidade real de um golpe institucional, o que se vê é uma amostra do que serão os próximos anos, pois se alguém entendeu a política para além do voto e as consequências da crise de representação, certamente não foi a esquerda institucional. Pouquíssimas têm sido até agora as respostas nas ruas por parte da esquerda. E o que houve como, por exemplo, alguns casos de desbloqueios de vias, partiram de coletivos autônomos antifascistas e torcidas organizadas, e não da esquerda institucional.
O que se esperava com a vitória de Lula seria um novo pacto social, equivalente a uma recomposição do passado idílico (nunca existente realmente) da representação perdida. Alguns diziam, mesmo sem acreditarem totalmente, na comemoração do dia da vitória, que as ruas estavam sendo retomadas finalmente, desde que “aqueles vândalos terríveis de 2013” haviam colocado pra jogo o sistema vigente. Tantos divergentes teriam sido finalmente unidos, reunificados, na figura paternalista e salvadora de Lula, o único capaz de unificar nossa sociedade e suas contradições. O símbolo da reconciliação social. Porém, nem 24 horas depois, já era possível ver as ruas queimando, e o quanto isso era patentemente falso: não haverá novo pacto social, pois o fascismo uma vez saído do armário (e não precisamos aqui lembrar que os liberais e social-democratas ajudaram a abrir a porta em grande medida pra conter a insurreição popular), não pretende voltar para lá tão facilmente. E, diante disso, nunca se viu tanto uma esquerda defensora da suposta ordem e da constitucionalidade.
Tornar-se um fake daquilo que poderia combatê-lo – puxando greves, fechando estradas com barricadas, ocupando os espaços públicos – permite ao mesmo tempo tomar para si um lugar vazio, deixado pela ausência de um projeto de ruptura revolucionária à esquerda, bem como mobilizar as forças da ordem e os discursos (inclusive da própria esquerda) contrariamente a priori ao que poderia vir ser em qualquer momento uma insurreição popular. A quem interessa uma direita que é um fake da esquerda? A todo aquele que pretende enterrar para sempre qualquer possibilidade de modificação profunda da sociedade.
Deveria haver uma boa razão para os métodos da direita não serem os da esquerda3, se em algum sentido acreditamos que os meios não se separam dos fins. Parar a produção, atrapalhar a circulação de mercadorias, do ponto de vista do capital, seria barrar a economia, se colocar diametralmente contra o deus-mercado, aquele que estaria verdadeiramente acima de todos. Mas a questão é que, se por um lado, o poder é logístico, a crise também pode ser um muito bom negócio, além de um modo de governo. E, mais que isso: é tudo fake – a política na falência da representação se faz por símbolos invertidos e significantes sem significados. “No mundo realmente invertido, o verdadeiro é um momento do falso.4”
Dito de maneira mais precisa: uma direita que se traveste de um fake da esquerda, rouba-lhe a potência no mesmo movimento que a força a combater qualquer discurso revolucionário de antemão. É assim que se é capaz de fazer até com que os setores mais afeitos a uma transformação social profunda defendam o Estado e a ordem constitucional. Como se este modo de organização não fomentasse a própria crise que por agora o sustenta. É assim que o poste pode mijar no cachorro: que todos peçam mais polícia, repressão, que se volte à normalidade! “Manifestações legítimas, ok, mas todos concordamos que o direito de ir e vir é sagrado”, disse o vice de Lula , com seu grande histórico de repressão aos movimentos sociais nas costas e um sorriso amarelo no rosto. Nunca é demais lembrar: a normalidade mesma gerou as condições para que a extrema direita tomasse as proporções que toma hoje.
E é assim que vemos uma manifestação com a participação direta da polícia e pedindo intervenção militar ser chamada de desordeira, baderneira, ou mesmo de insurrecional. E é assim que vemos um líder autoritário partidário do golpe militar e do fim dos direitos democráticos dizer que ‘todo poder emana do povo’5. Melhor do que fabricar inimigos para gerar as medidas que visavam combatê-los, estratégia já largamente utilizadas pelos estados neoliberais desde o final da guerra fria, é tornar-se um pouco o próprio inimigo que se visava combater, o que significa ocupar o seu lugar ainda que de maneira totalmente inócua e vazia.
E, diante disso tudo, não é ainda surpreendente dizermos novamente: não é momento! “Tomar as ruas agora pode ser a desculpa para o golpe”, e quantos golpes não tomamos desde que esta frase vem sendo repetida? Tomar as ruas é força política e é formador também. Por que quando o fascismo ocupa as instituições, nós nos voltamos para a política institucional, mas quando eles ocupam também (e talvez sobretudo) as ruas, nós ainda vamos nos voltar apenas às instituições?! Estas se mostram insuficientes e voltadas à manutenção de uma forma de governo que favorece o esfacelamento de qualquer valor à esquerda. Sair dos espaços de construção coletiva deixou à esquerda não apenas uma direita que é um fake de nós mesmos, mas também nos transformou em fakes da direita. Desde a pandemia, todos os espaços com plenárias, espaços de construção política coletiva públicos, até mesmo as universidades, foram sistematicamente esvaziados de nossas presenças. Enquanto as igrejas pentecostais seguiram se multiplicando. Para o bem ou para o mal, nós não somos bons em ser fakes. Nossa força é a multiplicidade, é o incontrolável e o não negociável.
As ruas são nossas, vamos retomá-las!
Notas:
1 A greve dos caminhoneiros em 2018 foi um movimento autônomo e múltiplo bastante diverso do que vemos nos protestos atuais pós-processo eleitoral, que nos parece certamente em sua maioria empresarial, entretanto, já naquele momento haviam setores da extrema direita envolvidos e pedindo intervenção militar.
2 Frase utilizada nas comemorações da vitória eleitoral de Lula como forma de irritar bolsonaristas insatisfeitos com o resultado.
3 Frase dita por Bolsonaro em seu primeiro discurso público após a derrota nas urnas.
4 DEBORD, Guy. A Sociedade do Espetáculo. Tradução Estela dos Santos Abreu. Rio de janeiro: Contraponto, 2017, p. 40.