Brasil: Epicentro do Vírus e do Populismo? – parte 1

I. As Imagens do Desastre

A história não é feita por um punhado de ativistas com a ideologia correta, mas através de ações imprevisíveis de inúmeros proletários aprendendo a lutar juntos contra o que eles percebem (ainda que de forma imprecisa) ameaçar seu futuro. Eles entram nessas lutas com ideias contraditórias e que só são trabalhadas no processo material de sustentar esses movimentos e empurrá-los para a frente.”

Chuang

A vida e seu significado humano são a poesia feita por cada pessoa e por todas. Essa poesia sempre resplandeceu nas grandes revoltas da liberdade. Não queremos mais que ela seja, como no passado, um relâmpago fugaz. Queremos pôr em prática uma insurreição permanente, que, como o fogo apaixonado da vida, se abranda mas nunca se apaga.”

Raoul Vaneigem, Povos do mundo, mais um esforço!

Existe um elemento bastante clichê que acompanha a maioria das distopias da literatura e do cinema, onde uma catástrofe leva ao colapso da civilização conhecida: humanos vivendo em bandos, organizando sua sobrevivência e planejando formas de “reconstruir o mundo que foi perdido”, como se a solução para sua miséria fosse retomar a organização social e a forma econômica que os levou ao colapso. Para grande parte dos personagens dessas obras e seus líderes com discursos épicos, o problema não seria a normalidade de um sistema, mas o seu fim. Podemos ver isso em “Planeta dos Macacos – O Confronto” (2014), “Extermínio” (2002), “Filhos da Esperança”(2006) e diversos outros que flertam com nossos desejos e medos sobre as possibilidades que seguiriam a um desastre, fosse ele um apocalipse nuclear, um vírus mortal ou infertilidade humana, que pudesse abalar nosso modo de vida de maneira irreparável.

Em sua origem francesa, a palavra “dés-astre” indica a perda de conexão com os astros, uma ruptura com o cosmos, com nossa orientação, com nosso destino. Para muitas pessoas em nossa cultura, o fim do capitalismo só poderia aparecer como um evento desastroso que nos deixaria sem chão e sem rumo, como nas distopias: vagando por cidades em ruínas, campos inférteis, poluição extrema, guerras intermináveis, fome e, é claro, doenças mortais se espalhando sem controle. Porém, igualmente para nós, sobrevivendo às crises, desastres e pandemias causadas pelo capitalismo do mundo real, a normalidade já é o problema. A era das crises já chegou e o desastre, o verdadeiro desastre, será continuar tudo como está. Além disso a desigualdade, miséria, opressão, violência e extermínio não são os resultados da ruptura com a normalidade desse sistema em que vivemos, mas as condições criadas para sua manutenção.

O capitalismo não é o primeiro sistema desigual e brutal da história, mas é primeiro sistema econômico-político a colocar em risco a vida em todas as partes do planeta para que uma minoria possa enriquecer e prosperar em um sistema globalmente unificado. Temos dificuldade de encarar esse fato porque esse é o mundo onde habitamos, com o qual nos identificamos, o qual compartilhamos com quem amamos e de onde tiramos nosso sustento, mesmo que às custas de muito sofrimento. Nesse mundo, no entanto, as tragédias estão muito mal distribuídas: uma dúzia de bilionários seguem prosperando e determinando como serão nossos futuros, nossas vidas e nossas mortes, pois eles controlam e desfrutam da maior parte dos recursos do planeta, enquanto o resto de nós luta por empregos cada vez mais precários, para manter uma casa, sobreviver à polícia racista e não acabar em hospitais lotados ou caminhões refrigerados e valas comuns que compõem o novo cenário trazido pela pandemia.

É preciso acabar com a ideia de que o fim do capitalismo é o fim do que sustenta a vida – pois ele é o que ameaça a nossa sobrevivência, impondo uma competição artificial por recursos artificialmente escassos. A própria ficção parece cada vez mais incapaz de representar o futuro como progresso e uma promessa de “dias melhores”. Existe comida, recursos e terra para todas as pessoas, mas quem os controla prefere destruí-los do que compartilhar com todos nós. Vivemos em uma organização social capaz de colocar satélites em órbita para explorar galáxias, mas que decide não alimentar a todos em seu planeta; que produz conhecimento e medicina em graus avançadíssimos, mas não os torna acessíveis a todas as pessoas. Portanto, não nos cansaremos de repetir: o verdadeiro desastre não é o fim do capitalismo, mas sua continuação!

Cientistas e organismos oficiais como a ONU estão tomando da esquerda, de movimentos ambientalistas e anticapitalistas o papel de “alarmistas” ao anunciar crises de proporções globais causadas pela expansão econômica que, até então, não conhece limites que a fazem recuar. Em 2018, o Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC) anunciou que caminhamos para um catastrófico aumento de temperatura do planeta nos próximos anos, tendo no máximo “12 anos para impedir esse processo”. No início de 2019, a Plataforma Intergovernamental sobre Biodiversidade e Serviços (IPBES) publicou um relatório mostrando que ao menos 1 milhão de espécies animais, vegetais e outras desaparecerão nas próximas décadas – isso inclui grande parte da flora e fauna que conhecemos, mas também os insetos e microrganismos que contribuem para a produção agrícola que nos alimenta. Em agosto de 2020, em plena pandemia, cientistas do mundo todo publicaram o documento “State of the Climate 2019”, alertando que a última década foi a mais quente da história. Rob Wallace, em seu livro “Grandes Fazendas produzem Grandes Gripes”, já assinalava em 2016 as conexões práticas entre o capitalismo, indústria, agronegócio e surtos epidemiológicos como o que estamos vivendo agora.

No meio de todas essas tragédias, vemos governos de esquerda, nas Américas e no mundo, tropeçando em seus próprios limites e sendo incapazes de conter a recente onda da extrema-direita que emerge em diferentes partes do planeta. Não conseguindo ficar longe dos mesmos modelos corruptos e alinhados a interesses capitalistas que diziam combater nos modos de gestão da direita, fracassaram em cumprir as promessas de “incluir os excluídos” enquanto mantém os privilégios dos ricos e o frágil conforto da chamada “classe média” (estratos dos empregados qualificados de baixo nível das várias ocupações, geralmente alinhado aos desejos e ideologias da classe dominante). E aqui não se trata de uma crítica reducionista baseada em um julgamento moral, mas sim de uma dupla constatação: a corrupção é inerente a todos os Estados e ao capitalismo, e ambos estão comprometidos com a multiplicação da miséria, com a divisão entre quem manda e quem obedece, entre quem ostenta e quem morre de fome.

Sendo assim, esses governos ao tentarem sustentar a sua imagem com base em promessas impossíveis de serem cumpridas, são jogados para fora do palco pelas urnas ou em golpes brandos por uma extrema-direita que assume diferentes formas em cada país (podendo ser chamada de “populista”, “fascista” ou “autoritária” dependendo da perspectiva), mas demonstra uma sintonia em nível global bastante óbvia em captar a insatisfação e a desilusão generalizada. O pêndulo da democracia que seguia seu movimento, levando o poder da direita para a esquerda sem nunca alterar o modo profundo de gestão econômico-político parece ter se alterado. Para cada Lula ou Dilma que tenta conter a revolta nas ruas com migalhas acompanhadas de um investimento cada vez maior nos aparatos repressivos e criação de leis para sufocar as mobilizações, como a antiterrorista, surgem novos Bolsonaros e Trumps prontos para dobrar a aposta e se projetar como novos líderes dos que “se revoltam dentro da ordem” e desafiam os limites da democracia e do estado de direito para esticá-los até as fronteiras do autoritarismo. Nesse aspecto poderíamos afirmar que quem hoje clama por mudanças, uma “revolução” reacionária, é a extrema-direita enquanto a esquerda chafurda na tentativa de preservar os escassos avanços econômicos, políticos e sociais que deram para nós como esmolas (mesmo quando foram frutos de uma árdua luta) enquanto nos governavam e gerenciavam a nossa miséria.

O resultado é exatamente o que vemos hoje: do Brasil aos Estados Unidos, da Rússia ao Reino Unido, passando pela Hungria e Índia, líderes que subvertem suas próprias leis, gerindo governos cuja população se afunda na tragédia mortal da pandemia do coronavírus. São a saída para a crise sanitária e econômica como um litro de álcool 70º é a saída para um princípio de incêndio. A única coisa pior do que viver em uma sociedade onde figuras mesquinhas e repugnantes concentram todo o poder e recursos necessários para impor decisões sobre nossa vida e nossa saúde, é viver em uma sociedade onde esses líderes usem esses poderes concentrados para deixar que a doença e a morte pairem sobre nós sem qualquer impedimento.

Escrevemos esse texto enquanto o Brasil enterra 156 mil das 1,1 milhões de pessoas mortas no mundo e passa dos 4 milhões de casos de infecção segundo os números oficiais. A crise sanitária causada pelo coronavírus é o retrato mais fiel de um desastre global previsível e evitável. Diferentemente de intelectuais, filósofos e os mais variados tipos de acadêmicos que em uma verdadeira corrida de textos, livros, papers apressaram-se a fazerem análises categóricas sobre o vírus, a política, a economia, o amor, e todas as (im)possibilidades da pandemia que quase sempre reforçavam suas próprias posições anteriores.

A pior pandemia em mais de um século não é “pedagógica”, não é um recado de Gaia, um castigo divino nem um fator desligado da ação humana no mundo, como o asteroide do filme “Armagedom”(1998) ou o planeta em rota de colisão com a Terra em “Melancolia”(2011), ela é o resultado direto do avanço do capitalismo, do agronegócio e da urbanização sobre os biomas e a vida selvagem. É o efeito material, político e subjetivo de um evento ainda por ser elaborado.

Parecemos então estar mais próximos agora de “O Cavalo de Turim” (2011), de Bela Tarr, para quem o fim do mundo segue ao mesmo tempo estranho e rotineiro, monótono, em uma vida reduzida a mera sobrevivência. Para o próprio diretor esse lento cancelamento do futuro seria assim descrito: “a maneira como eu vejo o fim do mundo, é muito simples, muito tranquila, sem nenhum espetáculo, sem fogos de artifício, sem apocalipse. Ele vai descaindo até ficar cada vez mais fraco e no fim, acaba”.

Se já não parece ser mais possível (ou até mesmo preferível) adiar o fim, porque ele já está aí, a grande questão agora será lidar com esse fim que não se precipita como revolução mas como crise perpétua. Então é por um outro fim do mundo, em meio ao dés-astre que partimos e só a partir disso poderemos agir.

II. Capitalismo é um Desastre Logístico

Só serei verdadeiramente livre quando todos os seres humanos que me cercam, homens e mulheres, forem igualmente livres, de modo que quanto mais numerosos forem os homens livres que me rodeiam e quanto mais profunda e maior for a sua liberdade, tanto mais vasta, mais profunda e maior será a minha liberdade. Eu só posso considerar-me completamente livre quando a minha liberdade ou, o que é a mesma coisa quando a minha dignidade de homem, o meu direito humano refletidos pela consciência igualmente livre de todos, me forem confirmados pelo assentimento de todos. A minha liberdade pessoal, assim confirmada pela liberdade de todos, estende-se até o infinito. (…)”

Mikhail Bakunin, 1871

Em maio, ao ser questionado sobre paralisar a economia e acatar regras para o isolamento social, Bolsonaro comparou o Brasil a Suécia, dizendo que o país nórdico “não fechou”, sendo um bom exemplo de país que manteve sua “normalidade” diante da pandemia. Na época, o Brasil tinha 13 mil mortos pelo coronavírus e a Suécia pouco mais de 3 mil.

A comparação entre os dois países pode soar absurda em vários sentidos, uma vez que a população sueca é 21 vezes menor que a brasileira, sendo menor até mesmo que as 12 milhões pessoas que vivem apenas no município de São Paulo. Além disso, os 10 milhões de habitantes da Suécia estão amparados por políticas de bem-estar e inclusão social e econômica que a maior parte dos 210 milhões de brasileiros nem sonham. Não queremos, aqui, fazer qualquer elogio ingênuo ao modelo capitalista nórdico, que melhor seria descrito como “o maior condomínio fechado do mundo”. Afinal, para que existam esses “condomínios” globais em Suécias e Noruegas, é preciso existir as periferias globais na América Latina, África e Ásia, servindo de reserva de mão de obra barata, de fazenda para recursos naturais e depósito de lixo operando com regulações convenientemente frouxas. Queremos é chamar a atenção para como o capitalismo assume uma face tão cruel num país como o Brasil, que mesmo contando com o maior sistema público de saúde do mundo, é incapaz de conter a pandemia e seus efeitos, tornando gritantes as desigualdades e linhas de exclusão muito antigas.

Desinfecção em shopping em Caxias do Sul, RS.

O Brasil é um país de proporções continentais, de enorme economia produtiva, porém ainda marcado por uma desigualdade social profunda e uma economia subalterna no mercado global, produtora e exportadora de produtos agrícolas e primários como grãos, minério e petróleo. Dos 15 produtos mais exportados, 14 são primários. Rico em biomas diversos, água, terras cultiváveis, a produção de alimentos em solo brasileiro é a terceira maior do mundo, alimentando 1,5 bilhão de pessoas em todo planeta. Mas essa economia enxerga florestas, rios, o solo e toda vida humana e animal como apenas uma fonte de dólares no mercado externo. Está baseada na propriedade individual, na concentração de riquezas e de terras, no desmatamento, na poluição, na violência no campo, trabalho escravo e na tomada de territórios indígenas – que não conheceu tréguas desde a invasão europeia em 1500 – nem mesmo durante a pandemia.

Enquanto Bolsonaro pede para que brasileiros finjam ser suecos, grande parte da população não tem sequer acesso à água, esgoto ou os documentos para acessar benefícios. Para 35 milhões de brasileiros, nem mesmo lavar as mãos apropriadamente é uma opção porque não existe acesso a água tratada. Cerca de 100 milhões de pessoas, 47% da população brasileira, não tem acesso a uma rede de esgoto. Diferentemente da Suécia, onde o governo decidiu arcar com 90% dos salários para que as pessoas possam ficar em casa, as estimativas apontavam cerca de 46 milhões de brasileiros vivem em 2020 sem documentos, contas no banco ou acesso à internet, invisíveis aos olhos do estado e com dificuldade para acessar o limitado auxílio emergencial – que vale pouco mais da metade de um salário-mínimo, mas já é 4 vezes mais que o mínimo do Bolsa Família. Essa exclusão se reflete diretamente nas estatísticas de impacto do coronavírus – assim como impactava a vida dessas pessoas em tempos de “normalidade”, seja pela miséria ou pela violência que a acompanha.

Violência policial, segurança e controle

O desastroso cenário da pandemia da Covid-19 no Brasil não estaria completo sem o permanente estado de calamidade imposto pelas forças de segurança. No Rio de Janeiro, por exemplo, mesmo com o comércio fechado e a recomendação para que todos fiquem em casa, as mortes por policiais em operações subiram 43% em abril, durante o primeiro mês de isolamento social e quarentena. Entre os 177 mortos pela polícia carioca em abril de 2020, estão João Pedro de 14 anos, morto em casa pela polícia, e João Vitor, de 18, morto por policiais quando movimentos sociais entregavam cestas básicas na Cidade de Deus. Quando em 5 de junho, o STF proibiu operações policiais durante a pandemia, as mortes caíram 70% em toda a cidade. Rafaela Coutinho, mãe de João Pedro resumiu perfeitamente a situação: “Eu estava protegendo o João Pedro de um vírus e ele foi vítima de um vírus muito pior: o vírus de um Estado que mata”.

31/05/2020: Manifestantes protestam contra a violência policial e o racismo em frente à sede do governo do Rio.

A destruição do meio ambiente, terras indígenas, morte pela polícia, perseguição política a professores, tudo isso nos mostra que crises não vêm sozinhas. Além disso são usadas para implementar outras medidas que, em momentos de “normalidade”, encontrariam maior atenção ou resistência. O então Ministro do Meio Ambiente afirmou em vídeo que era o momento de passar leis parar facilitar a degradação ambiental durante a pandemia, “enquanto a mídia só vala de Covid”. Obviamente, durante a pandemia vimos acelerar o ritmo de medidas legais para desmantelar políticas de preservação ambiental. E, de fato, a ausência de fiscalização durante a pandemia e o período de isolamento, permitiu criadores de gado, madeireiros e garimpeiros avançarem contra as florestas na Amazônia e no Pantanal, em um aumento de 28% nas queimadas em relação ao ano anterior. E o argumento de Salles e da ministra da agricultura, Tereza Cristina, foi o de que as queimadas nessas regiões, sobretudo no Pantanal, poderiam ser combatidas com a expansão da área destinada à indústria da carne, pois os bois, ao comerem o pasto seco, “atuariam como bombeiros e impediriam as queimadas”. Ao mesmo tempo, entidades e movimentos indígenas e quilombolas denunciam o governo Bolsonaro por implementar um “projeto genocida para limpar a área”, permitir que a Covid-19 avance sobre essas comunidades sem as condições mínimas para resistir. Até o Ministro do STF, Gilmar Mendes, usou a palavra genocídio para descrever as políticas do presidente que, em julho, vetou em um projeto de lei as medidas que garantiam acesso à água potável, materiais de higiene, acesso à internet nas comunidades e materiais educativos para a prevenção da doença em línguas indígenas. Além disso, Bolsonaro vetou a parte que reforça a obrigação do Estado em fornecer atendimento médico especial para indígenas. Até o final de julho, 70 mil indígenas já foram infectados e mais de 2 mil morreram de Covid-19 em todo continente americano. Em pleno século XXI, a mais recente face do projeto colonial que, quando não ataca diretamente os povos indígenas com armas, usa doenças e o descaso para promover a morte de indivíduos e o extermínio de comunidades inteiras – como faz o Estado chileno contra os povos Mapuches na região de Araucania ou o brasileiro contra os Guarani-Kaiowa no Mato Grosso do Sul.

Medidas de vigilância, monitoramento de celulares e controle por câmeras com reconhecimento facial e por temperatura, além do aumento do policiamento foram tomadas de formas e métodos inovadores. Não chegamos a níveis tão intensos como dos bairros confinados de Madri, ou das ruas na Tunísia, onde robôs monitoram cidadãos nas ruas, ou na Bulgária onde em um bairro de maioria cigana vem sendo controlado por drones e aviões lançam detergente na população, ou até mesmo na China onde o monitoramento individualizado de celulares e câmeras que detectam rostos mesmo com máscaras, mas a questão nunca foi a “quantidade” ou a “intensidade” de ameaças oferecidas pelo controle estatal, mas sua existência em qualquer nível.

As medidas de isolamento e intervenção policial para dar fim a reuniões e aglomerações lembram, mesmo que de forma residual, os anos de chumbo da ditadura militar (1964-1985), quando haviam toques de recolher à noite e qualquer encontro com mais de duas pessoas, mesmo apenas casualmente em uma esquina, eram dispersadas pela polícia como uma potencial reunião conspiratória. Para quem se lembra ou ainda vive na pele a herança do estado policial e militarizado que persiste nas periferias e no campo, tais medidas são sempre vistas como hostis por serem impostas de cima, mesmo que “para a saúde de todos”. Talvez o maior dos exemplos de como tais medidas inspiram a fúria popular foi a conhecida Revolta da Vacina em 1904, quando o governo do Rio de Janeiro, então capital do país, implementou um programa de vacinação contra varíola imposto pela força, com policiais invadindo casas e obrigando pessoas a serem vacinadas. Aliado a isso, veio um violento projeto de urbanização higienista que demoliu vilas inteiras e expulsou os pobres para as periferias

Bonde virado no Rio de Janeiro durante a Revolta da Vacina de 1904.
Representação da Revolta da Vacina.

Como agora, tais revoltas não são necessariamente contra a ciência, a medicina ou a preservação da saúde, mas sim contra o autoritarismo e a força dos que querem nos obrigar a aceitar suas decisões sem o menor diálogo e impedir os povos de se organizar e cooperar como iguais pela sua própria saúde. Para tomar um caso recente, em 2019 o governador de São Paulo, João Dória do PSDB, reeditou a lei de 2014 que proibia máscaras em manifestações, como forma de coibir ação de black blocs. Um ano depois, o mesmo governador tornou obrigatório o uso de máscaras em todo o estado para todas as pessoas que saírem às ruas. A evidente ironia do episódio nos ensina o quão vulneráveis e alienados sobre nossas escolhas estaremos se esperarmos que apenas políticos e leis decidam o que é melhor ou mais seguro para nós, a despeito do que queremos.

Covid-1984: o pior de dois mundos autoritários.

Linhas de exclusão

A dificuldade em implementar ensino a distância, uma vez que alunos não possuem computador, acesso à internet ou vivem em casas de dois ou até um único cômodo junto de vários familiares, apenas evidencia a enorme desigualdade existente entre estudantes de escolas públicas e privadas. O aumento da violência doméstica durante o isolamento social traz o debate sobre o machismo e a cultura patriarcal instalada em nossa sociedade. As revoltas nas prisões por direitos violados e o descaso com os riscos de disseminação da Covid-19 mostram a brutalidade de um sistema carcerário superlotado, desumano e assassino. A atual situação que ameaça a vida das pessoas no campo, dos povos indígenas e o descaso com os idosos revela a exclusão social a que esses grupos são submetidos por séculos sem acesso a recursos básicos como água, esgoto ou documentação para ter acesso a benefícios e direitos legais.

O que agrava a pandemia não é diferente dos demais desastres que afetam os pobres e excluídos de forma desproporcional. Quando o inverno ou uma grande tempestade atinge uma cidade e várias pessoas sem-teto morrem de frio e casas desabam por terem sido construídas em áreas de risco, é óbvio para todos que a raiz do problema não é o frio nem a chuva em si, mas que pessoas estejam desprotegidas e sem as condições básicas para enfrentar essas situações. Enquanto houver capitalismo, as pessoas na base da pirâmide serão sempre as mais atingidas em qualquer situação de crise ou catástrofe. As diferenças de classe, cor, gênero ou geográficas, apenas ajudam a canalizar o peso dessa tragédia para os grupos historicamente excluídos e desamparados. Como todos esses problemas antigos em nossa sociedade, a crise sanitária é um desastre que tem idade, mas também cor e endereço: em abril o número de pessoas negras mortas pela Covid-19 já se mostrava cinco vezes maior no Brasil. Estudos recentes indicam que, em São Paulo, donas de casa, profissionais autônomos e pessoas que usam o transporte público são as maiores vítimas da pandemia, enquanto empregadores, ou seja, empresários, tem chance quase nula de contaminação.

Como anarquistas que combateram a epidemia de cólera na Itália em 1884 afirmaram, “a verdadeira causa da cólera é a pobreza e o verdadeiro remédio para prevenir seu retorno não pode ser nada menos que a revolução social”. Com apenas alguns ajustes, podemos trazer essa mesma lógica para nossa realidade no século XXI. Esses abismos entre as duas realidades, a do Brasil que alimenta 20% do planeta, em oposição ao Brasil que não garante recursos básicos, como água e esgoto, a quase 50% da sua população, provam que o problema não é uma escassez de recursos, mas a concentração de toda terra, dinheiro, infraestrutura e poder nas mãos de cada vez menos pessoas. O que mais impediria que uma população viva bem e se alimente da terra onde vivem? O problema do capitalismo é a distribuição – e a causa é a própria lógica da sua economia e da política.

Todos esses mecanismos que nos impedem de nos cuidar e promover as condições de vida e bem-estar para todas as pessoas estão evidentes. Se a pandemia da Covid-19 nos mostra algo, é que o capitalismo é cheio de funis pelos quais nem todas as pessoas podem passar para ter acesso a recursos. Uma crise que ameaça a saúde de todas as pessoas em todos os continentes, expondo mais pobres e mais vulneráveis a mortes evitáveis, mostra que esse sistema econômico não foi construído para acolher a todos ao mesmo tempo. Nesse sentido, a frase de Bakunin se torna ainda mais verdadeira, uma vez que minha saúde depende inteiramente da saúde de todas as outras pessoas, em todos os lugares do planeta. Anarquistas e demais radicais sempre anunciaram que a liberdade deve ser para todas, ou não será para ninguém. A pandemia confirmou que, sem liberdade, sem igualdade e sem autonomia para cooperar e nos apoiar mutuamente, uma pessoa doente é um risco para a saúde de todos. Ou destruímos essas linhas de exclusão, ou estaremos todas em risco.

[Continua nas Parte 2 e Parte 3]