A Saúde Como Processo: Carta de Uma Enfermeira Familiar e Comunitária

por: ACL, Enfermeira familiar e comunitária
Extraído do jornal anarquista Aquí y Ahora

Não. Nós, profissionais sanitários, não somos super-heróis nem super-heroínas. Para o Estado, somos nós quem mantemos os corpos produtivos do sistema capitalista o mais “saudável possível” para que sigam sendo força de trabalho e sigam produzindo capital.
O sistema sanitário não se saturou agora. O sistema sanitário já estava saturado antes do coronavírus e da pandemia do medo. Esta situação excepcional tem feito com que a saturação chegue em seu ápice. Os cortes de verba e a falta de valor que o Estado vem dando ao processo de saúde, à promoção de ambientes saudáveis, à saúde e a seus profissionais tem feito que a situação piore.

Não é legal que sigamos mantendo este sistema sem as condições necessárias para nos protegermos, sem os equipamentos de proteção adequados para evitar mais contágios. Se nós nos infectarmos, infectaremos as demais pessoas. E não é a caridade quem tem de nos abastecer com máscaras artesanais. Arriscamos nossas vidas, as de nossas famílias e das pessoas com as quais convivemos. A caridade é um remendo que acabará legitimando que os de cima sigam mantendo seu poder. Se aproveitam da solidariedade1 do povo para seguir mantendo o seu lixo de política.

Os meios de comunicação nos infectam com a doença do medo e, em troca, glorificam as pessoas que trabalham como voluntárias. Não pode ser a caridade que sustente o sistema, ainda que estejamos em uma situação excepcional ou em um “estado de alarme”. O capitalismo, o Estado e o coronavírus nos mantém exploradas e enganadas. Sobrevivem e enriquecem às nossas custas.

A saúde como processo: nos querem doentes

A saúde é um processo. Um processo que depende de ambientes saudáveis. Quando falo de ambientes saudáveis me refiro a qualidade dos cuidados que podemos dar às pessoas queridas, o que inclui o tempo e o espaço dedicado à alimentação e a escolha dos alimentos que comemos.

Cada anúncio publicitário nos incita a “consumir doenças” para obter prazeres. É tão fácil o acesso às doenças que nos vendem em máquinas de produtos comestíveis e refrigerantes nas instituições de saúde, educativas e de trabalho. Não faz sentido que uma Coca Cola ou qualquer chocolate seja mais barato do que dois pedaços de frutas com algum sabor. A crise do sabor que promove e legitima a indústria alimentar tem um grande impacto em nosso processo de saúde, na capacidade de tomarmos decisões sobre o que comemos e nos vícios que desenvolvemos em certos alimentos cujo principal ingrediente é o açúcar. Nos querem viciados desde bem pequenos. Basta ver que a publicidade e o marketing dos produtos comestíveis dirigidos às crianças, desde bolos até “iogurtes” e sucos que gerarão potenciais doentes que, antes ou depois, serão carne da indústria farmacêutica.

É sabido que ambas as indústrias andam de mãos dadas e têm uma ótima relação com o Estado e suas políticas “promotoras de saúde”. Cabe destacar aqui também os conflitos de interesse entre a indústria alimentar, universidades e associações médicas “científicas”, como a Associação Espanhola de Pediatria, a Fundação Espanhola do Coração (promovida pela Sociedade Espanhola de Cardiologia), a Sociedade Espanhola de Médicos de Atenção Primaria, a Fundação para a Diabetes e a Sociedade Espanhola de Endocrinologia e Nutrição, entre outras. A indústria injeta dinheiro e essas sociedades e/ou fundações realizam seus congressos em troca de legitimar seus produtos às custas de nossa saúde.

Ansiedade e depressão na sociedade do hiperrendimento. A violência neuronal é sistêmica, é uma violência imanente ao sistema

O tempo e o espaço para construir vínculos reais são também saúde. Uma saúde que se torna cada vez mais difícil de se alcançar. Os ritmos de vida tão acelerados que levamos, as multitarefas, chegar a tempo para tudo: ser uma super mãe, super trabalhadora, comer super saudável, fazer exercícios, cumprir com os ideais de beleza, trabalhar na maior parte do tempo e aguentar as pressões do seu trabalho e de seu chefe, supõe um estresse que também terá um impacto em nossos processos de saúde e nosso sistema imunológico.

Byung-Chu Han define isso muito bem em seu livro “A sociedade do cansaço”, no qual ele diferencia a interpretação imunológica da doença de alguns anos atrás – quando se declarava guerra a tudo que era estranho (vírus e bactérias) – da “doença neurológica” atual, que vem nos afetando pela superprodução, superrendimento (de trabalho, lúdico e sexual) ou pela supercomunicação.

A violência neuronal é sistêmica, é uma violência imanente ao sistema. Uma violência que tem como efeito o fato de a maior causa de morte externa seja o suicídio. No Estado espanhol, em 2019, uma média de 10 pessoas cometeram suicídio por dia, tendência que vem aumentando desde 2018. São suicídios ou assassinatos causados pelo próprio sistema no qual vivemos? Atualmente a ansiedade e a depressão não são problemas individuais e nem isolados, são uma autêntica pandemia que cresce de forma descontrolada no mundo todo.

A ansiedade e a depressão nos são causadas pela pressão da produtividade e do consumo. O capitalismo nos incita à produtividade constante, a aproveitar bem o tempo, a “não parar de fazer” e a “estarmos felizes sempre”. Se está triste, não será produtivo. Por outro lado, querer alcançar “tudo o que poderíamos fazer”, “tudo o que o capitalismo nos oferece” nos leva à ansiedade. Nos auto exploramos por uma necessidade de hiperrendimento que nos é imposta. Se não conseguimos fazer tudo – o que é obviamente impossível – nos frustramos e, com isso, nos deprimimos.

A ansiedade e a depressão, junto com demais patologias relacionadas com a alimentação e o estilo de vida, como a obesidade, hipertensão, diabetes e as comorbidades que elas geram, não são problemas individuais e nem isolados: são problemas coletivos que cada vez mais estão estendidos à nível mundial. São a verdadeira pandemia provocada pelo capitalismo. Como estes corpos, submetidos a tanta violência, poderão responder a um vírus?

Profissionais de saúde barram carreata pela reabertura do comércio em Denver, EUA, abril de 2020.

O isolamento não é saúde. Se relacionar por meio de telas também não.

Antes de o capitalismo impor a família como modelo organizativo, ele isolava os indivíduos para mecanizar seus corpos como forças de trabalho. A população morria por conta de tal escravidão e “possuíam” apenas os seus filhos. As forças produtivas de trabalho eram cada vez menores. Foi então que o capitalismo organizou os indivíduos isolados em famílias. O capitalismo criou o modelo de família para poder controlar mais facilmente a população, abolindo, assim, qualquer forma de associação comunitária que existia até então. Separou também os territórios comunais – da comunidade – em propriedades privadas onde cada família trabalharia em troca de dinheiro. Qualquer dissidência frente aos modelos impostos, como se negar a trabalhar e mercantilizar suas vidas, levou a nossas antepassadas a serem queimadas na fogueira, sobretudo as mulheres que foram consideradas bruxas. Esse modelo, que começou a se impor por volta do século XV se perpetua até hoje. Nesse momento, muitas pessoas estão agora forçadas pelo Estado a conviver com seus abusadores. Agora, quem tenha família, ficará isolado, confinado em sua casa (caso tenha), independentemente de que o entorno no qual nos obrigam a nos confinar seja mais ou menos violento.

Nos impõem o isolamento e o individualismo e impossibilitam qualquer tipo de sentimento comunitário. Não lhes interessa. Fazendo referência a Debord, na “Sociedade do Espetáculo”:

“O sistema econômico baseado no isolamento é uma produção circular de isolamento. O isolamento funda a técnica e, em consequência, o processo técnico isola. Desde o carro até a televisão, todos os bens selecionados pelo sistema espetacular constituem suas armas para o reforço constante das condições de isolamento das multidões solitárias.”

A saúde é um processo que vai muito além do que a guerra contra um vírus. O vírus do capitalismo é uma autêntica pandemia. Junto com o coronavírus nos injetam o vírus do medo, da separação: o vírus do rechaço ao humano, da individualidade e do individualismo. Querem que tenhamos uma distância maior de 1 metro para que coloquem uma tela entre as pessoas e, assim, seja mais difícil criar vínculos reais. Semeiam o medo para nos impor relações virtuais através de telas, fazendo que as relações sejam cada vez menos humanas. Temos ambientes que realmente promovem a saúde? Ou, pelo contrário, nos injetam a doença nas veias? Nos injetam a doença através do medo, da escravidão do trabalho e do consumo.

As condições nas quais nos obrigam a viver são insalubres. As necessidades básicas de grande parte da população não são atendidas e, para atendê-las, nos obrigam a escravizar nossas vidas. O acesso à moradia é a necessidade mais básica e mais difícil de ser atendida. Criar as vidas que queremos viver é algo impensável. Trabalhar para poder consumir nos pequenos tempos livres é o modelo que nos impõem. Criar vínculos reais é cada vez mais difícil, já que o tempo “livre” se converteu também em um espaço de consumo. Nada disso gerará nossa saúde, nunca.

Estado de bem-estar: escravidão e ócio de consumo

O Estado de bem-estar nos garante ter as necessidades mais básicas “supridas” e em troca temos de nos escravizar. Para nós não sai de graça mantê-lo, nossas vidas se vão com isso. O sistema capitalista nos impõe quando devemos ser produtivas e quando podemos disfrutar de um ócio de consumo. Isso não entra em nenhum parâmetro de liberdade que vá para além da liberdade para produzir e para manter esse modelo de sistema, que não nos favorece em nada. Que sistema é esse no qual vivemos que não é capaz de sobreviver uns dias de inatividade produtiva?

É momento de parar e pensar em que estamos fazendo. De sair da roda do hamster e de sermos criativas para inventar a vida que queremos viver, e não a que nos impõem. A vida que nos impõem é a que os mantém, é a que nos adoece mantendo o capital. Se trata de compartilhar a liberdade, ainda que estejamos em uma cela.

As pessoas organizadas são muito mais potentes que um Estado. As pessoas organizadas, quando tomarem tempo e espaço para se dar conta sobre a vida que lhes impõe, pode chegar a conhecer suas próprias necessidades e, se escolhemos o caminho da cooperação e organização, poderemos aprender como resolve-las sem a necessidade de um ente paternalista e protetor: o Estado de bem-estar. Nesses dias de confinamento, pensemos sobre qual vida estamos levando e pensemos em qual vida queremos criar para além dos limites que nos são impostos e que temos tão introjetados. Os lemas “trabalhar é saúde” e “o trabalho dignifica” já ficaram na história. O trabalho nos escraviza. A responsabilidade social, a cooperação e o apoio mútuo e a auto-organização serão o que deslegitimará o Estado e o sistema capitalista, criando um modelo de vida novo e desconhecido que, embora pareça assustador, se caminharmos juntas, estaremos cada dia um pouco mais próximas da liberdade.


1 N.T.: No texto original não há uma diferenciação explicita entre caridade e solidariedade. Contudo, pelo momento no qual estamos vivendo, cabe ressaltar que ambas as práticas não são a mesma coisa. Enquanto a caridade tem como base a moral cristã e mantém uma hierarquia (quem “ajuda” se mostra “superior” a quem é “ajudado”), a solidariedade só é possível quando nos colocamos em pé de igualdade, pois é inseparável do apoio mútuo. A caridade, com sua origem cristã, mantém as pessoas em condições miseráveis enquanto as igrejas continuam sendo instituições que movem bilhões de reais pelo mundo todo, o capitalismo e as religiões necessitam da miséria para se manter e dar continuidade às iniciativas filantrópicas e de caridade. As práticas de solidariedade e o apoio mútuo, são ações diretas anarquistas, abolem, mesmo que momentaneamente, as hierarquias e desigualdades produzidas pelo capitalismo e pelo princípio da autoridade.

Rojava: Chamado por Ações Solidárias em Junho

Turquia ataca – Grande Ofensiva no Curdistão Sul

Enquanto a guerra e os ataques a Rojava e ao Norte da Síria pela Turquia e pelos seus aliados jihadistas, com o apoio das forças imperialistas do mundo, continuam diariamente e enquanto a ameaça de um outro ataque significativo cresce, a guerra no Norte e no Sul do Curdistão/Iraque continua a avançar

Na madrugada de 15 de Junho 2020, o Estado fascista turco anunciou a operação “Claw- Eagle” (“Garra-Águia”), e levou a cabo bombardeamentos massivos em Qendîl – o coração e o cérebro do movimento pela libertação curda nas montanhas do Curdistão -, no campo de refugiados autogerido Mexmûr e em Şengal, que é predominantemente povoado por pessoas Yazidi.

As pessoas de Kobane estão nas ruas protestando contra o novo ataque do estado turco ao campo de refugiados e à comunidade de Makhmour e Yazidis nas montanhas de Sinjar.

Agora é a hora da resistência mundial! O movimento de resistência mundial tem de reconhecer a seriedade da situação atual. Hoje, chegou a hora do golpe final ao fascismo turco e aos seus aliados imperialistas, que são parte crucial desta guerra e dos ataques contra as forças revolucionárias e democráticas do mundo. Os movimentos de resistência pelo mundo inteiro também têm de desempenhar o seu papel nesta luta. Não é hora de esperar e ver. Se esperarmos pelo próximo ataque contra Rojava para tomarmos ação, será tarde demais. A guerra é agora, a guerra já começou, a guerra nunca parou. À superfície, vê-se um teatro sobre o armistício, mas a guerra continua sem interrupções no Norte da Síria tal como noutras partes do Curdistão, tal como estamos a tes- temunhar com a grande ofensiva no Sul do Curdistão que decorre agora! Não é hora de nos sentarmos em casa e esperarmos pela próxima grande invasão; já está na hora de nos levantarmos contra esta guerra de ocupação com todos os meios necessários.

Estamos a apelar a TODAS/OS à volta do mundo para irem às ruas HOJE!

Este apelo não é simplesmente à solidariedade. Este é um apelo para ações em todo o lado e a todos os níveis! É importante ver a defesa pela revolução como mais do que uma luta distante. Na resistência comum, vemos a defesa da nossa esperança e temos reconhecido a revolução como a nossa revolução. Vamos mostrar de forma criativa e diversa, mas com raiva e determinação, a nossa solidariedade internacional para com o Movimento pela Libertação Curda e o nosso apoio à radicalmente democrática e socioecológica Revolução das Mulheres no Curdistão!

A revolução do Médio Oriente vai ganhar – o fascismo vai ser destruído.

Todas/os juntas/os contra o fascismo!

Viva a Responsabilidade Internacional!

Viva a Luta pela Liberdade!

A Resistência é Vida!

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Para Saber Mais:

A Ameaça à Rojava – zine para impressão

6 Críticas à Criminalização e ao Mito do “Manifestante Infiltrado”

Porto Alegre, maio de 2020.

Uma crescente onda de manifestações tomou as ruas em dezenas de cidades do Brasil nos últimos meses, rompendo o consenso e a hegemonia de manifestantes pró-governo nas ruas. No entanto, reacionários e até setores da esquerda — que decidiram somente agora se juntar a antifascistas, torcidas organizadas e outros movimentos organizando os protestos — estão propagando a velha ideia de que manifestantes que escolhem participar de atos de destruição de propriedade ou que respondem à violência policial devem ser considerados “infiltrados” fazendo o “jogo da direita” e seriam os “verdadeiros responsáveis” pela repressão.

Trazemos aqui 6 críticas relevantes para que movimentos sociais e seus protestos de rua possam se potencializar e se expandir sem criminalizar indivíduos ou táticas específicas que são relevantes para qualquer luta política (esse sim o verdadeiro jogo do Estado e da repressão).

Nenhuma pessoa explorada é infiltrada na luta contra o capitalismo e suas opressões! (Só se for polícia). São Paulo, 31 de maio de 2020.

6 Críticas à Criminalização e ao Mito do “Manifestante Infiltrado”

Definir antecipadamente que quem for para “quebra-quebra” ou “confusão” será tratado como “infiltrado” é um erro tático (imediato) e estratégico (de longo prazo) por vários motivos:

1. A violência da legalidade.

Definir o que é legítimo e o que é ilegítimo (aceitável ou não) em um protesto de rua com base nas mesmas definições legais que protegem a propriedade privada e o monopólio do uso da força pelo Estado, apenas reforça discursos que criminalizam quem se rebela ou se defende e reforça que a ideia de que a violência policial pode ser justificável e merecida.
Na prática, entregar para a polícia pessoas que usam táticas diferentes das suas, nada tem de não-violento. Fazer isso é colocar o valor da propriedade privada acima da liberdade e da integridade física das pessoas que podem ser presas e agredidas por meros danos a objetos.

2. Táticas únicas são uma fraqueza para os movimentos.

Escolher uma tática única e se fechar para qualquer outra anula toda possibilidade de entendimento e aplicação da diversidade de táticas, isto é, a colaboração e coordenação de táticas pacíficas e combativas, públicas e anônimas, legais e ilegais nos movimentos sociais que, historicamente, determinaram o sucesso da esmagadora maioria das grandes lutas e revoluções.

3. Especialistas em autopoliciamento.

Com o tempo, esse discurso pode estimular o surgimento um policiamento interno dentro dos movimentos, pois uma vez que certas táticas são “proibidas”, é necessário força ou outras formas de reprimir e/ou entregar para a polícia quem não segue a “cartilha única” do movimento. Com o tempo, tal atividade tende a se cristalizar e logo surgirão bate-paus¹, pessoas dispostas assumir o papel de polícia do movimento e “especialistas” em aplicar a violência em nome da não-violência.

Uma paulada de baixo e à esquerda. Belo Horizonte, 31 de maio de 2020.

4. A culpa nunca é de quem se rebela.

Colocar a culpa da violência policial e das arbitrariedades penais nos próprios manifestantes é um ato reacionário. Mesmo que a proposta do ato seja uma marcha sem confronto ou depredação, colaborar com narrativas de que a repressão policial ou prisões ocorrem por culpa de “minorias infiltradas” e “vândalos” é tirar a atenção da violência estatal para jogar nos indivíduos que são alvos dela.

5. Infiltrado é sempre polícia ou fascista (mas normalmente ambos).

Palavras como “infiltrados” são tão vagas quanto “terroristas” e outros termos que o Estado usa para nomear seus inimigos. Assim, não explicita a que se refere exatamente e insinua que quem não concorda em aceitar a violência policial sem reagir, são iguais a P2 (policiais disfarçados) e demais agentes de segurança de fato infiltrados nos movimentos para destruí-los. É preciso não esquecer quem é nosso inimigo e atuar para minimizar a atuação de fascistas e agentes da repressão, não de pessoas comuns que se rebelam contra suas estruturas e sua violência.

6. A uniformidade facilita processos de divisão, enquanto a diversidade das táticas promove flexibilidade e resistência.

Acreditar que supostos “infiltrados querendo depredação” vão desvirtuar, deslegitimar ou rachar o movimento, é dar abertura para que policiais, fascistas e outros inimigos usem esses pontos de discordância sensível para causar discórdia, conflitos internos, criminalização e rupturas de fato no movimento. Se um movimento não é capaz  de abrigar diferentes posturas e formas de ação, ele se torna puramente legalista, rígido, intolerante com a diversidade de ações e vulnerável a conflitos internos. Reconhecer que minorias precisam praticar ações vistas como violentas para se defender e até para sobreviver, é uma ato de solidariedade necessário a todo movimento. 

A longo prazo, deixar claro que manifestantes de esquerda, antifascistas, anticapitalistas, cometem SIM atos de depredação, autodefesa e contra ataque e que isso TEM SEMPRE LEGITIMIDADE, é muito melhor que condenar quem comete ações radicais como se estivesse “fazendo o jogo do inimigo”. Isso dá força para um movimento não se romper diante da diversidade de frentes e das críticas da mídia, da opinião pública ou das autoridades.

Quem não tem a disposição ou não sente segurança para praticar formas de resistência que atacam estruturas e se defendem de agentes da repressão, pode não se envolver nelas, mas tem o dever de não condená-las e de legitimá-las sempre que for possível. Cair na armadilha de condenar essas pessoas é, na maior parte dos casos, garantir que minorias étnicas, mulheres e não-heterossexuais continuem desempoderadas e sendo as maiores populações carcerárias em todo o mundo.

Imaginem se a revolta em Minneapolis, que se espalhou por todos os Estados Unidos, queimando prédios, viaturas e delegacias, promovendo saques e contra atacando a polícia, fosse pautada apenas pelo que é visto como legítimo aos olhos da lei e do senso comum. Nenhum policial teria sido indiciado² pela morte de George Floyd, a questão racial e de classe não teriam sido levantados com a potência que foi e a polícia, certamente, iria reprimir os protesto da mesma forma, ou com ainda mais violência, uma vez que teriam a certeza de que suas ações não têm consequências legais ou diretas nas ruas.

Nossa liberdade e nossa força coletiva só existem com a diversidade de táticas e a luta contra a criminalização das pessoas que já são alvos do extermínio feito pelo Estado.

Cuide umas das outras para sermos um perigo juntas.



Notas:

1.  “Bate-Paus” são, geralmente, seguranças informais de líderes sindicais e candidatos políticos.

2. Em uma perspectiva abolicionista penal, entendemos que existem consequenciais previstas na lei burguesa para o assassinato, mas ela não é aplicada regularmente contra agentes da lei porque eles precisam de impunidade para realizar seu trabalho repressivo e assassino.

ANTIFA: CONTRA O QUE E AO LADO DE QUEM LUTAR – entrevista com Mark Bray, autor do livro Manual Antifa

A luta antifascista tem atravessado cada vez mais os debates políticos, seja por meio da difusão de mensagens e ações ou das ameaças de criminalização e repressão. No início do ano, antifascistas em Porto Alegre interromperam um protesto bolsonarista em 17 de maio aos cantos de “recua, fascista“. Depois, torcedores de diferentes times de futebol se juntaram para ocupar as ruas em São Paulo e frustrar protestos de apoiadores do presidente. Ambos inspiraram ações em mais de 15 cidades, como em Belo Horizonte, Curitiba e Rio de Janeiro, onde atos estão sendo organizados semanalmente para bloquear, atrasar e impedir carreatas dos que gostam de “protestos a favor” de populistas de direita e pedindo a volta da ditadura militar.
Ao fim de maio, a onda de protestos combativos em centenas de cidades nos Estados Unidos, após o assassinato de George Floyd, repercutiu no mundo as lutas antirracistas e antifascistas. Como efeito, Bolsonaro e políticos da sua laia, pretendem imitar Donald Trump e tonar ações e grupos antifa em uma “ameaça terrorista doméstica”. Explicitando o que sempre dissemos: quem se incomoda e combate o antifascismo é, pela lógica, um fascista. Seu objetivo pode não ser cumprido na lei, mas podemos esperar o que sempre aconteceu na história: vai atiçar os ânimos de suas bases dispostas a praticar atos de violência nas ruas contra minorias e todos que denunciam o fascismo, com a conivência da polícia.
Por isso, o momento é de se organizar, nos articular e discutir sobre táticas e estratégias de luta. Assim, o coletivo Facção Fictícia convidou Mark Bray, autor do livro Manual Antifa (2019), para uma entrevista exclusiva sobre alguns temas urgentes como: relação entre movimentos antifa e black bloc, anarquismo, esquerda institucional e até os ditos policiais “antifascistas” – fenômeno até então exclusivo do Brasil e que surpreende até mesmo militantes e pesquisadores com vasta experiência nas lutas antifascistas contra todas as formas de regimes e autoritarismos.
Boa leitura! Nos vemos nas ruas.
Minneapolis: saques e depredações mostram que a revolta popular não teme as ruínas.

1. Como você define o que chama, em seu livro, de antifa moderna e como ela contribui para o cenário de protestos atuais contra o racismo e a polícia nos EUA?

Em resumo, eu diria que a política ou um grupo da antifa moderna seria uma oposição militante, socialista revolucionária, orientada para a ação direta, à extrema direita que rejeita recorrer à polícia ou ao Estado para detê-los e que geralmente tem uma espécie de noção de esquerda antifascista amplamente radical (pan-radical), embora nem sempre. Como você sabe, Trump culpou antifa e anarquistas pela destruição nos recentes protestos. Embora antifas tenham, provavelmente, estado em algumas manifestações, não há evidências de sua participação nelas. Com certeza, simplesmente não há antifas suficiente nos EUA para causar tal destruição. Eu gostaria que houvesse tantos, mas não existem. Certamente, porém, antifas apoiam o Black Lives Matter e pode haver algumas pessoas que participam dos dois tipos de organização. 
2. Quais a relações entre antifa, tática black bloc e as lutas anarquistas e anticapitalistas contemporâneas desde a emergência do movimento antiglobalização?
Na maior parte, os black blocs foram usados nos Estados Unidos a partir de 1999 para protestar em cúpulas econômicas (OMC em Seattle, especialmente), protestando contra as guerras, contra as convenções políticas nacionais, etc. A associação entre antifa e black blocs nos EUA realmente começou com o J20 (protestos radicais que atacaram a cerimônia de posse de Trump em 2016), quando muitos anarquistas, antifa e outros anti-autoritários foram presos e acusados de crimes, cujas sentenças poderiam ter chegar a décadas na prisão. Felizmente eles foram absolvidos. Também ocorreram eventos como o black blocs interrompendo e acabando com um discurso do provocador de extrema-direita Milo Yiannopoulos em Berkeley, em 2017, e outros confrontos em Portland e em outros lugares. 
Curitiba, 1 de junho de 2020.
3. Desde os levantes em 2013 e 2014 no Brail, percebemos um grande esforço das autoridades em criminalizar táticas, como os black blocs, como se estas fossem organizações formais ou criminosas, terroristas. Vemos agora, essa tentativa com antifas. Para isso, usam discursos que atacam de deslegitimam movimentos combativos, alegando que “quem pratica ações ditas ‘violentas’ (dano à propriedade, revidar a violência policial) em manifestação são ‘minorias’ ou ‘infiltrados’ para justificar o isolamento de setores radicais e a repressão estatal. Como você vê, historicamente, a resposta dos movimentos antifascistas e antirracistas a tais acusações e disputas de narrativas – que muitas vezes emergem dos próprios setores da esquerda?
Bem, algumas das primeiras movimentações antifas na Alemanha da década de 1980 surgiram dos movimentos autônomos, que rejeitou basear suas políticas na aprovação da opinião pública. Portanto, nesse sentido, nem todos os antifa se importaram tanto com isso da mesma forma que outros. Mas é claro que essas disputas têm o potencial de separar os movimentos. Nas minhas entrevistas com antifascistas europeus, parece que cada movimento teve, em diferentes momentos, maior ou menor colaboração com grupos de esquerda como sindicatos etc. Tê-los como aliados pode ajudar, mas é uma aliança que  pode ser inconstante. A noção de “diversidade de táticas”, que surgiu há 20 anos ou mais durante a era do movimento  de justiça global (ou antiglobalização), foi um esforço para coexistir e contornar esses problemas. Claro que não é uma receita de bolo, depende de cada caso. Enfim, é muito difícil desfazer a dicotomia ‘bom manifestante’, ‘mau manifestante’, como fazem as imprensa e alguns grupos de esquerda
4. No Brasil, nos deparamos com um fenômeno curioso, no qual policiais civis e militares se consideram “antifascitas” e se organizam enquanto movimento para se infiltrar e influenciar lutas sociais e pautas da esquerda. Em sua pesquisa, já deparou com exemplos semelhantes em outros países? Qual a sua opinião sobre a participação de policiais, militares ou outros agentes das forças de segurança estatais ou privadas em movimentos e manifestações de política radical?
Isso me lembra a Europa do pós-guerra, onde todos (exceto Espanha e Portugal) estavam oficialmente do lado dos vencedores da Segunda Guerra Mundial, quando a interpretação sobre o antifascismo era simplesmente estar do lado vitorioso da guerra. Nesse contexto, houve debates tensos sobre o que significava antifascismo, especialmente porque, em países como a Alemanha ou a Itália, os “comitês antifa” socialistas revolucionários que surgiram durante a guerra, foram fechados pelos novos governos dos Aliados, de regime liberal-democrático. Os movimentos revolucionários que surgiram nas décadas seguintes, incluindo os que deram origem à antifa moderna, desafiaram a interpretação oficial do antifascismo, apontando que ainda havia muitos fascistas na sociedade e argumentando que o capitalismo oferece espaço para o fascismo. Os argumento desses grupos antifas no pós-Segunda Guerra é que o antifascismo deve ser anticapitalista. 
Se nós, como anticapitalistas revolucionários, permitirmos o antifascismo cair no menor denominador comum de ser literalmente “todos aqueles que se opõem ao fascismo”, perderemos essa interpretação socialista, no seu sentido mais amplo, que faz do antifascismo uma oposição enraizada na política hoje e não apenas o fato de qual lado da Segunda Guerra você estava. Então, para deixar bem claro: polícia antifa é uma puta de uma besteira. 
São Paulo, 31 de maio de 2020: A.C.A.B. não significa Some Cops Are Basters, é ALL COPS! Lugar de polícia é ao lado do burguês.
5. As táticas antifa se mostraram a forma mais radical de resistência ao governo Trump nos EUA ao governo Bolsonaro no Brasil, trazendo uma herança de práticas radicais e anticapitalistas. Como você vê adesão da esquerda institucional, dentro dos palácios e gabinetes, aos símbolos e discursos antifa?
Bem, eu acho que a criação de um movimento e um sentimento antifascista mais amplo na sociedade é importante. Idealmente, não haveria necessidade de grupos antifa específicos, porque as comunidades expulsariam os fascistas por conta própria. Como as origens do antifascismo militante podem ser encontradas na oposição a grupos fascistas e nazistas de pequeno e médio porte, faz sentido que a resistência deva ser mais ampla e maior para lidar com regimes inteiros ou grandes partidos políticos. Debato esse desafio analisando entrevistas com antifascistas que enfrentam esse impasse em um capítulo do “Manual Antifa”. Mas trabalhar em conjunto ou forjar uma coalizão não significa abandonar sua política. 
Esse é sempre um equilíbrio complicado: como trabalhar com aliados que não compartilham toda a sua política sem, no final das contas, realizar a agenda deles e não a sua? De uma perspectiva antiautoritária, podemos ver o que os stalinistas fizeram com os anarquistas espanhóis durante a Guerra Civil Espanhola. Este é um precedente importante a ter em mente, mas se somos fracos demais para derrotar nossos inimigos por conta própria, não podemos simplesmente concordar em ser mártires. 
Antifascistas enfrentam manifestação bolsonarista em Porto Alegre, maio de 2020.
Certamente, devemos criticar a cooptação institucional dos símbolos antifa, especialmente quando usados para se opor a valores centrais, como barrar a extrema direita sem recorrer à polícia ou aos tribunais (o que, obviamente, implica uma postura abolicionista penal). Talvez, em algum momento, os progressistas e moderados possam se tornar mais radicais no processo? Pelo menos nos EUA, parece que, nos últimos anos, muitos liberais, progressistas e socialistas democráticos ficaram muito mais à vontade com os socos na cara dos nazistas e, com certeza, há algo de bom nisso.

NO BRASIL, NOS EUA E NO MUNDO: SOMOS TODOS ANTIFASCISTA – MENOS A POLÍCIA!


Mais materiais:

ANTIFA NÃO É O PROBLEMA – A Falação de Trump é Uma Distração Para a Violência Policial – sobre anfita e a criminalização aos protestos antirracistas nos EUA.

CINCO LIÇÕES HISTÓRICAS PARA ANTIFASCISTAS – artigo e zine para impressão.

Resistência Antifascista: o Legado Histórico e as Práticas Atuais – debate com Mark Bray, Acácio Augusto e Crimethinc. na Flipei, 2019. 

Resistência Antifacista: Legado histórico e as práticas atuais – debate Mark Bray, Vanessa Zettler e Acácio Augusto, na livraria TaperaTeperá, 2019. 

Somos Todos Antifascistas – Menos a polícia – artigo e zine para impressão.