O ano de 2019 foi longo e muito produtivo para o coletivo Facção Fictícia e toda a rede de projetos editoriais, movimentos anarquistas/anticapitalistas com quem trabalhamos.
Encerramos o ano e a década felizes por participar de grandes produções dedicadas a narrar, repensar e provocar as lutas sociais por um mundo livre de estados, do capital e toda forma de opressão. Produzimos conteúdo não apenas sobre as mobilizações, mas de dentro dessas mobilizações nas quais nos envolvemos – sejam ocupações por moradia, nas mobilizações por melhores condições de vida e toda forma de protesto e ação direta que busca construir nosso poder de organização e luta para além e em confronto com o estado e o mercado.
Escrevemos essa nota enquanto as ruas ainda ardem em Hong Kong, no Chile e na Grécia, mostrando que o neoliberalismo não venceu e a história dos de baixo ainda vai contar seu fim. Escrevemos enquanto a fumaça da guerra social ainda sobe em meio à resistência dos povos da Amazônia e de Rojava. E nos deixa muito contentes saber que pudemos compartilhar experiências e ouvir relatos em primeira mão das barricadas da Comuna de Quito e das trincheiras da revolução na Síria com a Comuna Internacionalista em Rojava. Pudemos também relembrar ações de libertação animal em São Roque em 2013 com testemunho pessoais de quem esteve na linha de frente. E publicamos nossos textos em diferentes portais e em pelo menos cinco línguas!
Além do trabalho escrito, pegamos muita estrada em 2019. No primeiro semestre colaboramos na turnê com Vitalist International e a editora Glac por 3 estados do Brasil, visitando centros sociais, culturais debatendo organização de base e paralelos possíveis entre Américas do Sul e do Norte.
Entre os meses junho e julho, realizamos uma grande turnê com o coletivo CrimethInc. passando por 15 cidades em 7 estados e pelo distrito federal, para lançar o livro impresso Da Democracia à Liberdade, que traduzimos e produzimos em parceria com os coletivos Subta e No Gods No Masters. Ao todo, foram 21 eventos, passando por centros sociais, ocupações, sedes de sindicatos, universidades, centros de pesquisa e alguns lugares inusitados. A proposta era levar tanto as ideias do livro como promover debates com pessoas e grupos organizados em lutas sociais em lugares tão diversos. Foi uma grande experiência visitar e compartilhar aprendizados, estratégias e histórias com quem luta para construir um mundo além do Capitalismo.
Escrevemos uma introdução que acompanha o livro Chamada da editora Glac. Chamada reúne manifestos e chamados anônimos como o italiano Ai Ferri Corti e o estadunidense Como Iniciar um Incêndio e dentre outros. Além disso, o livro conta com artigos que comentam e analisam esses chamados e sua relevância para a luta anticapitalista no século XXI. Assim, nós que desde 2013 estamos organizando e lançando publicações subterrâneas, copiáveis e pirateáveis, pudemos contribuir em 2019 com o lançamento de dois livros de maior tiragem que achamos muito importantes. Seguimos também contribuindo com dois artigos em mais uma edição da Revista Fagulha.
Nossas parcerias renderam frutos para além dos livros e textos. O coletivo Antimídia registrou e transformou as apresentações da turnê com CrimethInc. em ótimos vídeos para continuarmos o debate. Tanto a fala sobre o livro Da Democracia à Liberdade quanto a apresentação sobre A Resistência Anarquista na Era Trump podem ser vistas a qualquer momento por quem não conseguiu comparecer pessoalmente em alguma das atividades que realizamos. Aproveitem e vejam mais alguns dos ótimos vídeos realizados pelo coletivo Antimídia em seu blog antimidia.noblogs.org.
A próxima década tem tudo para ser de muitos conflitos sociais e decisiva para barrar o avanço dos novos movimentos de direita e aspiração fascista que estão em ascensão em praticamente todos os continentes. Do mesmo modo, precisaremos oferecer soluções para além da cooptação eleitoral que o próximo ano promete: partidos de esquerda ou conservadores e grupos liberais tentarão drenar a radicalidade das ruas para nos vender o menor denominador comum através das urnas. Não cairemos nessa armadilha!
A direita que está agora no poder dá aos movimentos radicais e anticapitalistas a chance de mostrarem formas de luta e objetivos que não dependem de relação com o Estado. Rompendo o laço (ou a cooptação) que os movimentos sociais mantinham com a esquerda no controle do Estado e dificulta, mesmo que por um tempo, a identificação que os movimentos e as pessoas podem ainda ter com o aparato estatal e suas narrativas progressistas, democráticas e institucionais.
No fim das contas, sabemos que nem a esquerda, nem muito menos a direita no comando do Estado serão capazes de minimizar os impactos de uma economia neoliberal globalizada, cada vez mais brutal e excludente. A frustração atingirá eleitores de Bolsonaro e sua turma de forma ainda mais violenta que atingiu quem votou no PT e agora mudou de lado. Precisamos ter consciência desse pêndulo de atração e insatisfação que reúne a simpatia das massas hora à direita, hora à esquerda em períodos eleitoras. Em momentos de crise neoliberal, pode ser útil assumir reformas apresentadas pela esquerda institucional para incluir os pobres nas linhas de crédito e consumo ou a um relativo bem-estar. Mas quando é o momento de retomar as rédeas e os lucros da elite, populistas, neoliberais ou fascistas serão sempre uma opção para a retomada do total controle do Estado.
Essa consciência nos ajudará a apresentamos nossas propostas e mostrar de que lado lutamos e resistimos contra todos os que estão no poder do Estado e do Capital, usando seu aparato policial contra nós da base da pirâmide. Não esquecemos que foi no governo do PT que vimos um aparelho repressivo contra movimentos sociais e a ocupação das favelas serem levadas adiante como nunca. Tudo isso feito de forma a dar legitimidade para tais ações e instituições militarizadas que agora Bolsonaro – assim como Temer – herdou para usar contra movimentos sociais e toda a população.
Sendo assim, fazemos coro junto aos que entendem o cenário dos conflitos sociais em escala global não como apenas no embate binário entre direita/esquerda, conservadores/progressistas, bolsonarista/petistas. Existem ao menos três lados nos conflitos globais se delineando hoje, dentre os quais podemos nos situar de acordo com a perspectiva de ação e proposta para futuro:
- Neoliberais de todos os tipos, de Hillary Clinton nos EUA a partidos supostamente esquerdistas como o SYRIZA na Grécia, Podemos na Espanha e o Partido dos Trabalhadores no Brasil. Embora discordem dos detalhes, todos compartilham um objetivo comum de usar a governança estatal global em rede para estabilizar o mundo em prol do Capitalismo.
- Nacionalistas como Trump, Erdogan, Bolsonaro, Netanyahu e extremistas como o grupo Estado Islâmico, que deixaram claro que não se incomodam com a construção de estados genocidas e a eliminação de povos – sejam indígenas, negros, LGBTTTQI, imigrantes, mexicanos, curdos ou palestinos. Essa categoria também inclui Assad, Putin e outros demagogos que – como os neoliberais – costumam estar em desacordo uns com os outros, mas todos buscam a mesma visão de um mundo pós-neoliberal de etnoestados concorrentes entre si.
- Movimentos sociais radicais de libertação que buscam promover a autodeterminação pluralista e igualitária, com base na autonomia e na solidariedade. Anarquistas, Zapatistas e a revolução em Rojava são exemplos que se encaixam nessa categoria, mesmo que grande parte também tenha um caráter nacionalista.
Nesse cenário, onde o conflito social não é mais binário, mas se divide em três, movimentos sociais anticapitalistas precisam reunir forças e desenvolver suas próprias narrativas e estratégias para difundir conhecimento, apoio, solidariedade e coordenação. É nessa perspectiva que buscaremos manter e ampliar nosso campo de trabalho no ano e na década que se inicia.