7. Possíveis conclusões: Ações diretas já
Novos terrenos, novas lutas
O terreno mudou mais uma vez. As formas de luta que os movimentos e grupos de resistência empregaram contra as medidas do governo Temer revelam alguns pontos de evolução nas táticas e estratégias nos últimos anos. Vemos desdobramentos e inovações se comparamos com as lutas dos anos de 2013 e 2014. Movimentos autônomos participaram dessa renovação tática, sendo o maior exemplo as ocupações de escolas. Mesmo conseguindo algumas vitórias pontuais contra as reformas do governo de São Paulo mas tiveram não conseguiram barrar a PEC dos gastos e as políticas de austeridade de Michel Temer. Isso prova na prática que se uma forma de luta funcionou em um ano, nada garante que ela continue funcionando em novos momentos e contextos, por mais inspiradora e poderosa que seja a experiência.
Ainda assim, se uma tática parece eficiente em produzir no imaginário das pessoas noções de apoio mútuo e autonomia, essa tática é a ocupação. Os princípios fundamentais do movimento dos estudantes eram os mesmos que ficaram conhecidos em 2013: ação autônoma, decisão horizontal e política desvinculada de partidos e movimentos estudantis ligados a eles. Mas as táticas foram várias e mudavam rapidamente de acordo com o contexto, de uma forma inédita. O que começou com uma onda de descontentamento nas redes sociais, virou um movimento com passeatas e ocupações que se disseminaram rapidamente. No meio da luta, foi comum o movimento sair das ocupações para fazer passeatas, protesto e bloqueios de vias. Além de organizar aulas públicas e eventos nas escolas ou nas ruas. Tanto em 2015 quanto em 2016, as ocupações conseguiram criar verdadeiras comunas dentro das escolas, com estudantes organizando aulas, faxinas, hortas, cozinhando, solucionando conflitos, compartilhando métodos de lidar com a violência policial, tudo isso enquanto davam um novo uso para uma estrutura criada para o controle e o adestramento mental. Mesmo quando demandas específicas não são atingidas, a vitória pode ser vivenciar mais uma experiência de luta, autogestão e radicalidade, com apoio da comunidade na manutenção do espaço e na resistência contra as ações policiais.
Estudantes rapidamente souberam reconhecer quem estava do seu lado e quem queria capitalizar com suas lutas e conquistas. As uniões estudantis que servem de palanque eleitoral para a juventude dos partidos não puderam entrar para tomar a frente das ocupações e buscar um diálogo pacificador com o governo. Grupos de direita que tentavam se infiltrar nas escolas para disseminar sua agenda ou para sabotar as ocupações foram expulsos sob vaias para nunca mais voltar. Era necessário ocupar não apenas as estruturas, mas o tempo e as relações que fazem essas estruturas funcionar. Para que a luta fosse radical e horizontal, era preciso manter as relações radicais e horizontais. Isso inclui mostrar na prática que nossos objetivos e nossas formas de luta por um mundo melhor e sem opressão, passa por superar a polarização superficial entre esquerda e direita que dominou a imprensa, as mídias sociais e nosso cotidiano.
Existe um enorme potencial revolucionário em ocupar prédios e espaços públicos ou qualquer pedaço de terra ou infraestrutura do Capital: além de interromper e modificar a função de um dispositivo de poder produtivo e opressão política, tomar e usar essas estruturas para abrigar nossos movimentos, mesmo que por tempo limitado, pode ser uma grande oportunidade de nutrir formas de luta e organização revolucionárias. Gerando acúmulo de experiência, conhecimento e material para lutas futuras. Parte dos estudantes que iniciaram as ocupações de escolas em 2015 e em 2016 teve algum contato ou influência dos movimentos autônomos de 2013, como o MPL. Mas nos geral, suas conquistas e sua enorme mobilização não foi fruto de movimentos tradicionais ou partidos, nem mesmo de movimentos autônomos com mais de uma década de acúmulo em trabalho de base, como foi em 2013. O movimento secundarista é resultado do poder de imaginação e inovação de jovens de 13 a 18 anos, cuja maioria nunca havia participado de qualquer protesto ou movimento social. Foi o sangue novo e a capacidade de imaginar o inimaginável que tornou o movimento forte, conquistando solidariedade no país inteiro.
Por outro lado, uma renovação tática também foi ajudou nossos mais novos inimigos políticos, a direita conservadora e neoliberal, liderada pelos jovens que estiveram nas ruas ao mesmo tempo que nós em 2013. Eles souberam usar o descontentamento da juventude e da classe média, aliado ao uso das mídias sociais e alianças políticas com partidos e instituições internacionais para desenvolver seu poder de influência. Precisaremos superar nossos próprios limites, mas estar atentos aos passos desses movimentos que estão emergindo para que nossas táticas e visões sejam mais atraentes que seu autoritarismo.
Para além das polarizações
No momento em que parte da esquerda tenta nos vender mais uma vez a imagem de Lula salvador dos pobres para as eleições presidenciais de 2018, precisamos mais do que nunca dizer um basta a esse tipo de ilusão. O PT não é uma saída para os problemas do Capitalismo, eleições não vão nos garantir alguma coisa. O pacto de classes que o PT organizou com os ricos e o golpe parlamentar que derrubou Dilma provaram que o que menos importa é o voto quando as oligarquias querem se manter no poder.
Quanto à maneira como direita ou esquerda tratam as periferias, não existe muita diferença: ambas acreditam que as periferias são redutos de violência, tráfico, crimes e corpos descartáveis. A única instituição do Estado realmente presente é a Polícia e o Exército. A inovação do PT e da esquerda latinoamericana é combinar a repressão armada com programas sociais simultaneamente. Programas como o Bolsa Família são compatíveis com as operações de pacificação e militarização das favelas: uma forma comum de contra-insurgência preventiva. Os programas sociais que incluem pobres na sociedade de consumo e a repressão policial nas comunidades atuam no mesmo local que os movimentos sociais, com o objetivo de desmobilizar e impedir que pobres construam sua autonomia longe do Estado e do mercado. Assim como fez o governo mexicano, quando zapatistas construíam escolas nas cidades pobres: o invés de construir escolas onde ainda não havia nenhuma, o governo decidiu competir construindo escolas nas mesmas cidades em que os zapatistas, e ainda davam telhados para as famílias que matriculassem seus filhos. Direita ou esquerda, sabem que pobreza ignorada pode se tornar um levante ou mais soldados para o narcotráfico.
As linhas entre direita e esquerda mascaram o que há de semelhante em seus projetos de poder. O PSDB é normalmente visto como grande partido de direita, sendo o maior rival do PT enquanto maior partido de esquerda. Mas essa polarização é estúpida e dificulta vermos que existem muito mais semelhanças entre esses dois partidos do que ambos gostariam de admitir. Mesmo sendo o PT o resultado de movimento amplo de base, os partidos dois tiveram origem em projetos social-democratas semelhantes e mais tarde, cada a um a sua forma, se tornaram meros serviçais das elites. O PT conservou relações com movimentos sociais e sindicatos, trazendo-os para dentro do seu governo. O PSDB se aliou basicamente às elites industriais do Sudeste do país. No entanto, foi o ex-presidente Fernando Henrique que idealizou implementou os programas de transferência de renda que mais tarde seriam unificados e transformados no Bolsa Família. Em 2003 o PSDB publicou uma nota de revolta por ter sido impedido de participar do XXII Congresso da Internacional Socialista realizado em São Paulo. Até mesmo a direita mais conservadora considera o PSDB como a “esquerda da direita”.
A corrupção também esteve presente da mesma forma nos governos de esquerda. As investigações da Lava Jato (em nível nacional) e o escândalo Panamá Pappers (em escala mundial), mostram o que anarquistas sempre tentam deixar claro: o Capitalismo e o Estado são organizados por máfias corruptas e autoritárias por natureza. Sua existência e seu poder dependem de relações ilegais, subornos, tráfico de drogas, paraísos fiscais e lavagem de dinheiro. Dependem desses crimes muito mais do que dependem do voto e das eleições democráticas. Num país como o Brasil, onde governos eleitos nunca foram a normalidade, onde golpes e ditaduras são a regra, isso fica mais óbvio. Ao mesmo, esse quadro ganha contornos ainda mais trágicos e o campo fértil para o fascismo e o para o terrorismo de estado.
Isso nos leva a outras perguntas: o que fazer quando estamos em meio a uma guerra civil não declarada? E não falamos de guerra civil como uma metáfora filosófica que estudantes de filosofia franceses gostam de falar. Falamos de um estado de sítio nos moldes do terceiro mundo, que os rebeldes dos países do norte têm apenas um breve sabor. Somente a Polícia Militar do estado de São Paulo matou 459 pessoas no primeiro semestre de 2017. Foi o maior número dos últimos 14 anos. Enquanto no mesmo período de 2017, as polícias dos Estados Unidos inteiro mataram 624 pessoas. Houveram mais mortes violentas no Brasil do que nas 12 maiores zonas de guerra do mundo entre 2004 e 2007. Em 2015 os números de mortes foram maiores até que a guerra na Síria. Em agosto de 2017, até mesmo um jornal corporativo ligado aos monopólios da mídia criou um editorial de guerra para tratar da crise de segurança no Rio de Janeiro: “Isso não é normal”, alegam os jornalistas enquanto cobrem o conflito entre facções e a violência policial contra a população. Com essa iniciativa, esse passa a ser provavelmente o primeiro jornal do mundo a criar um editorial de guerra em um país que não declara ou reconhece oficialmente viver em guerra civil – mesmo quando os números provam que sim.
Governos eleitos com programas de esquerda e com apoio dos movimentos sociais tradicionais na América Latina estão perdendo influência e sendo substituídos por alianças novas alianças neoliberais que rejeitam o pacto com a esquerda. A opinião pública parecer mostrar que os processos democráticos e eleitorais já deram uma grande chance para a esquerda. Episódios como o Impeachment no Brasil podem ser apenas o primeiro grande passo de um avanço da direita que ainda vai durar muito tempo. O neoliberalismo venceu uma etapa com o golpe que tirou o PT da presidência mas será nas eleições presidenciais de 2018 que a direita vai tentar consolidar sua volta vendendo seu projeto nas urnas. O maior nome dessa nova cara do neoliberalismo talvez seja João Dória, o prefeito e “CEO” de São Paulo. Mas quem realmente ganha destaque e assombra as eleições é Jair Bolsonaro, o deputado e militar da reserva que apóia as ditaduras brasileira e chilena, é a favor da tortura e na pena de morte, e já afirmou que dissolveria o Congresso e daria um golpe no mesmo dia em que for eleito. Bolsonaro está em segundo lugar nas pesquisas sobre as eleições presidenciais de 2018 com 16% das intenções de voto, atrás apenas de Lula do PT. A possibilidade de um militar abertamente racista, homofóbico e machista se tornar presidente é um grande risco para todas as minorias e movimentos sociais, uma vez que ele promete declarar guerra a tais grupos, acabar com territórios indígenas e quilombolas. Mais um exemplo de discurso de ódio e do fascismo brasileiro que a direita fez crescer em meio aos protestos pelo Impeachment de Dilma.
No momento em que discursos de ódio contra minorias e grupos mais pobres que se beneficiam de programas sociais, linchamentos de suspeitos de praticar crimes nas ruas mostram na prática a máxima “bandido bom é bandido morto”, uma parcela considerável da sociedade esta em sintonia com o pensamento conservador que quer manter um Estado policial. Anarquistas terão um desafio ainda mais complicado nesse terreno para mostrar que há ainda opções para além da polarização.
A realidade demonstra que fazer campanha pelo voto ou tentar participar da política eleitoral é o mesmo que pedir para as pessoas abrirem mão de construir um poder coletivo para dar mais poder a essas elites e instituições políticas que amanhã podem estar nas mãos de ditadores como os que tomaram o governo em 1964. Tais instituições parecem ficar mais poderosas a cada crise e a cada escândalo, enquanto sentimos que temos cada vez menos poder em nossas mãos para determinar como nossas vidas e nossas comunidades devem ser. No entanto, sabemos muito bem que uma ditadura é pior que uma democracia e sentimos na pele que um governo explicitamente neoliberal, que chega ao poder por medidas de exceção, pode ser ainda pior que a social-democracia petista. Mas não deixaremos dúvidas: estamos contra os dois.
A verdadeira oposição de forças na nossa sociedade não pode ficar apenas em direita contra esquerda; social-democracia nacionalista contra neoliberalismo imperial. Essas são oposições rasas que criam falsas diferenças entre grupos que tem origens, agendas muito semelhantes e que na verdade trabalham para manter o controle e os privilégios das mesmas classes de governantes e empresários. A única oposição que pode fazer alguma diferença nas lutas sociais por um mundo melhor é entre formas governo e a liberdade de toda as pessoas; entre controle e autodeterminação; entre representação e autonomia; entre hierarquia e anarquia. Em uma época em que normal que jovens de classe média sintam que ser rebelde é ser de direita, a questão deve ser como participar das lutas sociais e políticas de nossos tempos firmando nossa posição anarquista, contrária a qualquer forma de governo.
Ações diretas já!
Em resposta aos cartazes que pedem “Eleições diretas já”, dizemos que a melhor opção é partir para realizar nossas ações diretas já! Ocupar, rebelar, saquear, nos organizar e construir as estruturas de vida, políticas e econômicas que nos garantem autonomia. Tudo isso ao mesmo tempo em que procuramos difundir táticas, estratégias e objetivos que nos fortalecem enquanto comunidade e nos libertam das garras do Estado e do Mercado.
Mas não podemos contar que a relação entre ação direta e políticas radicais será sempre óbvia. Enquanto anarquistas, devemos nos esforçar para que essa relação se torne óbvia. Partidos e movimentos que surgiram após 2013, com a ideia de restaurar a política eleitoral e colocar “verdadeiros representantes” das minorias no governo, fizeram isso usando slogans como “horizontalidade”, “autonomia” e “apartidarismo”. Essas palavras se tornaram famosas porque eram os princípios fundamentais dos movimentos autônomos que iniciaram os levantes em 2013. Da mesma forma que o Syriza surgiu minúsculo e ganhou apoio por ser o único partido que não condenou os violentos protestos na Grécia em 2008, esses movimentos pegaram carona nos termos que se popularizavam com os novos agentes políticos nas ruas do Brasil. Logo, ocupar tudo, se tornou “Ocupar as Eleições”. Movimentos sociais tendem a se amparar no que há de familiar para a opinião pública, por medo de se isolarem quando acharem que são “muito radicais”. Até anarquistas fazem isso, quando usam discursos e metodologias democráticas, mais especificamente da democracia direta, como se elas levassem necessariamente à anarquia um dia: se amparam no que há de familiar, abraçam um tom populista e de fácil digestão e esquecem que se acracia (ausência de poder coercivo) fosse o mesmo que democracia (poder coercivo de um grupo ou da maioria sobre o resto), não precisaríamos de duas palavras.
Compreendemos que nem todo mundo vai escolher uma via radical na luta contra um governo no Capitalismo e precisamos saber como lidar e até mesmo lutar lado a lado com reformistas e governistas. Mas não podemos esquecer qual a nossa posição nem deixar de dizer os problemas sistêmicos e históricos nas instituições que combatemos. Quando percebemos uma crise de representação, devemos aproveitar para aumentar a descrença nos políticos e em suas instituições – e não buscar formas de ocupar seus cargos, regenerar a democracia burguesa e legitimar a posição de políticos profissionais enquanto postos que acumulam poder desproporcional em nossa sociedade. Se não conseguirmos vitórias nas demandas urgentes, ao menos vamos tornar a experiência dos protestos de rua, dos conflitos com as autoridades, com as ocupações dos espaços como oportunidade para desenvolver habilidade sociais revolucionárias.
Ninguém disse que ia ser fácil, nem que com apenas algumas manifestações o Estado e o Capitalismo iriam ruir. Nem 1917 e nem 2013 vão se repetir só porque desejamos isso ou porque imitamos o que funcionou no passado. Temos pouca influência sobre quando as coisas vão acontecer, mas podemos nos preparar para quando elas acontecerem. E como os movimentos que lutaram contra o aumento das tarifas no transporte público puderam perceber, uma vitória em um ano pode significar um futuro de seguidas derrotas quando o sistema aprende a lidar com as novas formas de luta. Eles vão nos dar reformas para acalmar nossos ânimos, vão ouvir nossa opinião e vão até aceitar alguns de nós no governo deles para sentirmos que o sistema nos representa. Mas não precisamos aprender a nos contentar com inclusão ou reformas. Nosso objetivo é ocupar, resistir e nos organizar para aumentar nosso poder coletivamente contra todas as formas de controle e opressão. Eleito ou não, nenhum governo é uma opção. Ditaduras são piores que democracias, assim como golpes de Estado são piores do que eleições. Mas seja qual for o cenários, seremos ingovernáveis.