Crise política e Golpe de Estado em uma perspectiva anarquista – pt. 03 de 07

3. Um golpe de Estado? Fragmentos sobre Revolução, Estado de Exceção e porque dizemos Golpe

“Ao nos referirmos ao golpe de Estado, podemos dizer (ou queremos dizer) que é parte do passado, que é uma relíquia do passado; mas, com efeito, ele não estaria, na atualidade, ancorado no cerne da prática governamental? Não seria possível dizer que a prática governamental contemporânea se baseia numa modalidade permanente de golpe de Estado? Referir-se à noção de golpe de Estado não poderia significar que estamos interpretando a economia geral do poder nas nossas sociedades como se elas estivessem em vias de se encaminhar, cada vez mais, em direção a práticas de exceção? Falar de golpe de Estado, na atualidade, não seria uma maneira de afirmar que os mecanismos de funcionamento do poder se apoiam em medidas de exceção e que, consequentemente, a exceção é o paradigma para se interpretar nossa modernidade?”

Roberto Nigro – “Violência de Estado, golpe de Estado, estado de exceção.”

Quando falamos de golpe de Estado, tocamos em algo que ainda está fresco na memória do país. Em 1964, o Brasil viveu um golpe de Estado civil-militar que derrubou um governo democraticamente eleito e manteve generais no poder por 21 anos. Não havia qualquer indício sério de que uma luta armada estava para tomar o poder no país, mas as elites econômicas e militares achavam que era necessário agir “preventivamente”. O contexto era de Guerra Fria e brotavam ditaduras na América Latina apoiadas pela CIA e pelas forças armadas estadunidenses. No caso do Brasil, temiam que o Brasil “se tornasse uma nova Cuba ou uma China”. A operação Brother Sam, organizada pela marinha dos EUA em apoio aos militares brasileiros, levou toda a frota do Caribe para a gosta brasileira na véspera do golpe, dia 31 de março de 1964. O golpe tinha, portanto, as imagens clássicas de tanques e tropas ocupando as ruas, tomando os palácios e prendendo políticos, impondo leis marciais e o apoio bélico da maior potência do imperialista do mundo.

A imagem clássica: tanques nas ruas do Rio de Janeiro na manhã do golpe em 1 de abril de 1964

Golpe ou revolução

Na era moderna, um golpe é uma manobra usada por grupos das elites ou de dentro do aparelho estatal para tomar o controle do Estado e excluir outras elites desse controle. Ele não altera a ordem social ou posição das classes. Desde a Revolução Francesa e ascensão dos estados modernos, o golpe de Estado deixa de ser um ato louvável do Príncipe que precisa manter a ordem real, e passa a ser visto como uma violação da continuidade da razão de ser do Estado, algo não legítimo. Surgem então as narrativas que elogiam as revoluções através das quais se constituíram os estados modernos. Não coincidentemente, os militares envolvidos no golpe de 1964 no Brasil chamaram o evento de “revolução” – e seus atuais partidários ainda o fazem, assim como o golpe que instaurou a República é chamado de “Proclamação” e o que levou Vargas ao poder em 1930 também ganhou o apelido de “Revolução”.

Obviamente, quando as ruas foram inundadas com manifestações contra Dilma Rousseff e o PT em 2015, a classe média conservadora e alguns grupos de extrema direita reivindicaram a intervenção militar. Mas os militares disseram que “estão completamente inseridos na democracia e não voltarão“. Com o fim da Guerra Fria, a CIA não tem tanto interesse em apoiar governos militares na América Latina novamente, pois regimes democráticos se mostraram tão eficientes quanto as ditaduras em manter países em desenvolvimento sob controle político e econômico das instituições financeiras e do mercado externo – um modelo a ser espalhado por todo o globo1.

De qualquer forma, o fato é que “golpe” é um termo mal visto e ultrapassado. A solução para uma elite querendo se livrar ou derrubar outra – sim, o PT é apenas mais uma elite – seria um procedimento com a aparência legal e democrática, como um julgamento baseado em acusações controversas que dividem as opiniões de cientistas políticos e juristas caminhando no limite entre o legal e o ilegal. Manobras semelhantes a essas vimos em Honduras em 2009 e no Paraguai em 2012, e talvez indiquem que estamos entrando em uma nova era, onde um novo tipo de golpe é formulado dentro do jogo democrático, construindo sua legitimidade com o apoio da mídia conservadora e de manifestações de rua. Assim, não conseguimos chamar isso de Golpe de Estado e eles não precisam chamar isso de Revolução2.

Porque dizer golpe

Com o fim da Ditadura Militar e a consolidação da nova Constituição Federal de 1988, foi constituído o Estado Democrático de Direito no Brasil. Isto significa que o Estado Brasileiro pretende limitar seus poderes com base nos princípios do Estado de Direito (respeito aos direitos humanos e fundamentais internacionais) e do Estado Democrático (respeito às eleições democráticas e às leis constituídas, promoção da igualdade de todos perante a lei e da igualdade social). Um Estado de Exceção é exatamente o oposto disso: a inversão dessa normalidade, onde as leis constitucionais, os direitos das pessoas à liberdade e sobre o seu corpo e sua vida são suspensos para que o governo concentre em suas mãos total poder para solucionar uma situação de emergência ou crise que ameace o Estado. Prisão sem justificativa ou defesa, repressão a movimentos sociais, tortura, assassinatos: vale tudo para garantir a lei e a ordem.

Não queremos contribuir para meras polarizações ou maniqueísmos entre Estado de Direito e Estado de Exceção. Sabemos que o Estado de Direito é também um estado policial, sob o controle das classes dominantes e do Capitalismo, que protege os cidadãos que se submetem, vigia, prende e extermina quem se rebela, quem não é parte da normatividade hegemônica – torna alvo as populações periféricas, não-heteronormativas, negras e indígenas. Entendemos que o Estado de Direito não elimina o autoritarismo ou a expansão colonial; e que o Estado de Exceção tem se tornado cada vez mais uma normalidade. Fugir às regras, suspender direitos e liberdade fundamentais tem se tornado cada vez mais a norma para os Estados modernos.

Mas desta vez, em 2016, não vimos a mesma paisagem militarizada de 1964 e ainda chamamos isso de golpe devido às características extra-legais e de exceção que presenciamos nesse episódio. Os aliados de Lula e Dilma dizem que houve “golpe” para se colocar como meras vítimas, como se não tivessem se relacionado com aqueles que arquitetaram a sua queda, como se fosse a redenção depois de anos trabalhando para a lubrificar as engrenagens capitalistas enquanto a direita não voltava ao poder. Com tal discurso, afirmam que os governos do PT possuem uma legitimidade inquestionável porque foram eleitos pelo voto democrático. Não colaboramos com esse tipo de análise. É preciso pensar o termo golpe de Estado com uma perspectiva crítica ao Estado e suas leis, para descrever o que aconteceu em 2016. Precisamos tonar mais abrangente o uso dessa palavra para entender que existem características de um Estado de Exceção em muitas outras manobras que governantes usam para concentrar ainda mais poder. E, especialmente, para entender as medidas de exceção implementadas pelo próprio PT.

Dizemos golpe porque o governo do PT não caiu pelas forças vindas de baixo, rebeldes ou insurrecionárias. As instituições estatais e econômicas não foram abaladas, e o que aconteceu foi que um grupo de parlamentares provou que é possível usar um procedimento de Impeachment sem crime comprovado para derrubar um governo eleito pela maioria. Na democracia, capitalistas e políticos de carreira se revezam no poder de acordo com o resultado das eleições. Eventualmente, um partido de esquerda ou um político de origem pobre pode chegar ao governo se prometer fazer o jogo dos que normalmente ocupam seus cargos. Todo esse jogo é mediado por leis, isto é, por acordos feitos entre as elites e impostos aos resto da população. Quando essas leis são suspensas ou distorcidas para favorecer um grupo poderoso, chamaremos isso de golpe porque prova que o resultado do jogo eleitoral pode ser dissolvido quando uma elite conseguir manipular as leis ao seu favor. Mesmo que depois não seja instaurada uma ditadura e que as mesmas leis constitucionais continuem a valer da mesma forma.

Toda essa bagunça e instabilidade deixa claro a tal Democracia se instalou aqui no sul do globo de uma forma muito diferente da fórmula europeia e estadunidense. Podemos ver com mais nitidez que as forças comandando o país são maiores que os partidos e que o voto. Nos países democráticos, os Estados herdaram dos reis e impérios seus exército, suas leis, suas prisões e suas fronteiras. No Brasil, os anos de ditadura também nos deixaram o mesmo aparato policial/jurídico e a mesma burguesia no comando da indústria, da mídia e dos bancos. E essa herança está longe de ser superada e é impossível de ser reformada.

Um século de ditaduras com breves lapsos de democracia burguesa

“Não há uma distinção clara entre ditadura e democracia. Todos os governos impõem, muitos ditadores são eleitos e algumas pessoas vivendo sob uma ditadura muitas vezes encontram meios de influenciar o governo que são mais diretas do que os meios disponíveis para cidadãos vivendo sob democracias”.

Peter Gelderloos – O fracasso da não-violência

A relação entre o a República Brasileira, democracia, golpes e regimes autoritários é conturbada e intensa, mas ajuda a visualizar onde estamos e o caminho que nos trouxe até aqui. Quando Dilma Rousseff foi eleita presidente em 2010, era a única candidata que tinha um vice-presidente de um outro partido: Michel Temer, do PMDB (Partido do Movimento Democrático Brasileiro). Esse é o maior partido do Brasil, que abriga hoje os membros de centro-direita, mas principalmente conservadores.

A manobra de Dilma não foi algo novo, mas a repetição do seu antecessor: Lula ficou famoso como o primeiro presidente com uma origem operária e um passado como dirigente sindical. Porém, convidou José Alencar, um rico empresário de um partido de centro-direita para ser seu vice-presidente. Desde o início, o governo do PT pretendia construir uma aliança entre elites estatais, políticas e econômicas, e a aristocracia dos sindicatos operários e movimentos sociais.

A origem do PMDB remete à Ditadura civil-militar brasileira, quando apenas dois partidos foram autorizados a existir. O ARENA foi o partido militar e o MDB foi fundado em 1966 como o único partido a fazer oposição ao regime não clandestinamente, uma vez que todos os partidos se tornaram ilegais e alguns daqueles de esquerda se uniram às guerrilhas armadas. Após a abertura democrática, os partidos deixaram de ser ilegais e o MDB tornou-se o PMDB, o maior e mais antigo partido brasileiro. No mesmo período de abertura, surgiram partidos como PT e seu maior opositor atual, o PSDB (Partido da Social Democracia Brasileira).

A história do PMDB é construída com relações sempre vantajosas com grupos, partidos e políticos poderosos. Em 2016, Temer se tornou terceiro político do PMDB a assumir o cargo de presidente desde o fim da ditadura em 1985 – e nem ele nem seus predecessores foram eleitos diretamente por voto. O primeiro foi José Sarney, que tomou o poder quando Tancredo Neves, o primeiro presidente civil escolhido através de uma eleição indireta após o fim do regime militar, morreu antes de tomar posse. O segundo foi Itamar Franco, que assumiu a presidência em 1992 após o Impeachment de Fernando Collor, primeiro presidente democraticamente eleito, envolvido em escândalos de corrupção. Itamar então impulsionou seu sucessor, Fernando Henrique Cardoso, do PSDB, presidente de 1994 a 2001, logo antes de Lula.

Esses episódios já são o bastante para comprovar o qual tumultuada e frágil é a recente era democrática brasileira. Mas podemos ir além e relembrar que foi um golpe militar que derrubou o Império e fundou a primeira República no Brasil em 1889; e que tivemos outros dois golpes de estado no século XX, sendo que o primeiro ocorreu em 1930. Dos dezoito presidentes que chegaram ao poder, somente oito foram eleitos e apenas quatro completaram seus mandatos.

Sendo assim, parece que o golpe de Estado contra o PT em 2016 segue uma espécie de “ordem natural” na democracia brasileira, que busca sempre manter o controle do poder executivo nas mãos de determinadas elites através de meios não-tão-democráticos.

Contra a PEC dos gastos públicos em dezembro de 2016: nossa maneira clássica de ocupar uma capital.

1 Para mais detalhes sobre as manobras imperialistas atuais dos gringos, ver a doutrina militar da Guerra Híbrida.

2 Dentro da Guerra Híbrida, o termo para essa estratégia é Revolução Colorida, como a desestabilização política que aconteceu Ucrânia.

Continua…