6. Episódios de resistência
Desde que assumiu como presidente, Michel Temer tenta administrar uma economia em crise e lidar com seguidos escândalos de corrupção. Em menos de um ano ele acumulou acusações de corrupção passiva, obstrução de justiça e participação em organização criminosa. Cada passo do seu governos parece afundar mais as classes trabalhadoras e excluídas para favorecer as elites: perdoa dívidas de 500 bilhões de reais de empresários, enquanto propõe diminuir em 10 reais o salário mínimo para economizar 300 milhões.
Ainda assim, Michel Temer se encontra cada vez mais isolado politicamente. Sem apoio popular, seus 4% de aprovação são ainda piores que os 8% que Dilma atingiu logo antes do Impeachment. Mas seu governo não cai porque serve aos interesses do mercado e das grandes corporações. Sua política fiel à cartilha da “Doutrina de Choque”, desenvolvida pelos gurus do neoliberalismo da Escola de Chicago, para implementar reformas que reduzem os serviços do Estado através de privatizações, medidas extremas de austeridade, suspensão de leis que protegem direitos e o meio ambiente, como a que Temer tenta implementar para entregar reservas naturais e indígenas na Amazônia para mineradoras: um projeto político que dificilmente vence nas urnas mas é facilmente aplicado em meio a crises, golpes ou catástrofes. As reformas do novo presidente são uma tentativa desesperada de atender aos caprichos do mercado enquanto a direita se prepara para as eleições de 2018.
Como era de se esperar, desde o início do seu governo, houveram vários episódios de protesto e resistência contra as políticas e as medidas do novo presidente. Algumas dessas lutas mostraram grande potencial para vencer demandas pontuais contra o governo de Michel Temer e a possibilidade de construir experiências de autogestão e horizontalidade, como foi o caso nas dezenas de ocupações de prédios ligados ao Ministério da Cultura e nas mais de mil escolas ocupadas pelo país em 2016.
Primeiras lutas e vitórias
Assim que assumiu como presidente interino, em abril de 2016, Temer mudou todos os ministros e montou uma equipe composta exclusivamente por homens. Foram extintos 9 Ministérios, incluindo pastas como Cultura, Mulher, Igualdade Racial e Direitos Humanos – um modelo que não era visto desde os tempos ditatoriais e um time de governo totalmente envolvido em casos de corrupção.
Naquele momento, anarquistas e movimentos autônomos não estavam em foco como nos últimos anos, mas puderam estar presentes influenciando radicalmente as lutas. Quando foi anunciada a extinção do Ministério da Cultura, prédios ligados a ele foram ocupados em 21 capitais. Pessoas organizavam debates, shows e manifestações de todo tipo para pressionar o governo a voltar atrás.
Após duas semanas, Temer cedeu a pressão popular e anunciou o retorno do Ministério da Cultura, mas as ocupações decidem continuar em muitas cidades abrigando festivais e todo tipo de atividade política e cultural. A vitória deu aos movimentos o sentimento de que o novo governo poderia ser facilmente enfrentado e derrotado em lutas pontuais. Inspirados pelas vitórias recentes, movimentos de sem-teto organizaram um protesto no dia 1 de julho e ocuparam a sede da Secretaria da Presidência da República em São Paulo, forçando mais uma vez o presidente a voltar atrás e desistir dos cortes nos programas de habitação.
7 de Setembro de 2016: nunca fomos patriotas
Setembro é o mês em que patriotas celebram a chamada independência do governo português, proclamada em 1822. Mas nem todo mundo está para farsas nacionalistas. O Sete de Setembro não é só o dia da independência: desde 1995, movimentos sociais convocam o Grito dos Excluídos, para que a data seja também um dia dar voz à insatisfação popular. Desde os levantes de 2013, manifestações voltaram a ser mais combativas nessa data. E em 2016, esse dia teve um sabor especial após o golpe.
A indignação contra os megaeventos continuou ao final dos Jogos Olímpicos e Paraolímpicos: os gringos ainda voltavam para casa enquanto 23 mil soldados do Exército e a Guarda Nacional devolviam o controle das ruas às polícias no Rio de Janeiro depois de duplicar o número de tiroteios em operações policiais na primeira semana dos jogos – houveram 95 tiroteios no Rio de Janeiro, onde 51 ficaram feridos e pelo menos 8 morreram pela polícia durante as 3 semanas de Jogos Olímpicos (de 5 a 21 de agosto). Qualquer tipo de manifestação ou expressão denunciando o impacto dos eventos foram brutalmente suprimidas desde o primeiro dia. E apenas 10 dias após o fim das Olimpíadas, no dia 31 de agosto, o Senado votou pelo afastamento de Dilma Rousseff e Michel Temer deixou de ser presidente interino para ser oficialmente o novo presidente do Brasil.
A Copa do Mundo e as Olimpíadas se foram, mas o legado de abuso legal, violência policial, exclusão e segregação continuaria sob a sombra deste novo regime. Portanto, não surpreende que tivéssemos as maiores manifestações anti-governo desde 2013: aconteceram protestos em 24 estados, quase todas as capitais e dezenas de cidades no 7 de Setembro, sendo a maior em Salvador, onde 15 mil compareceram. Era necessário mostrar o descontentamento e oferecer resistência contra novas políticas governamentais, mas também contra os efeitos do que foi construído no governo do PT: tínhamos os novos e os velhos motivos para nos revoltar. Nos cartazes e faixas predominavam os pedidos “eleições diretas já” para que o povo escolhesse um novo presidente.
Houveram confrontos com a polícia ao longo da semana anterior ao dia da independência, marcados pela violência policial, prisão de jornalistas e mais manifestantes perdendo a visão com as armas menos letais. Movimentos de esquerda hostilizaram e repudiaram a presença do black bloc em São Paulo como “responsáveis” pelas ações violentas da polícia. A tática black bloc havia saído um pouco de cena desde 2014 e agora retornava para responder ao novo governo, causando polêmica e dividindo movimentos sociais. Em São Paulo e em Belo Horizonte, por exemplo, anarquistas e black blocs marcharam ostensivamente, não atacaram a polícia nem quebraram nada. Sua maior ação foi mostrar que era possível marchar e demonstrar sua força numérica sem necessariamente agir com violência. A presença anarquista foi importante para dizer que não bastaria dizer “Fora Temer”, mas mostrar nenhum governo é opção e que a ação direta e autônoma – não a renovação democrática – ainda são nossas melhores armas.
Escolas ocupadas
É interessante notar que essas estratégias de ocupação que se tornaram uma tendência em 2016, foi inspirada pelas lutas de outubro de 2015, quando 200 escolas foram ocupadas por estudantes em todo o estado de São Paulo. O governador Geraldo Alckimin pretendia fechar 94 escolas, demitindo professores e afetando a vida de cerca de 300 mil estudantes, que teriam que ir estudar longe de suas casas e em salas de aula superlotadas. Em resposta, no dia 9 de novembro, cerca de 18 estudantes ocuparam uma escola em Diadema, na região metropolitana de São Paulo. Dois dias depois, policiais armados com metralhadoras tentaram entrar na escola, mas não conseguiram expulsar os estudantes.
Rapidamente, muitas manifestações aconteceram simultaneamente, com muitos confrontos com a polícia nas ruas e nas portas das escolas. Dentro de um mês, haviam 230 ocupações. As escolas rapidamente se tornaram verdadeiras comunas, com estudantes se organizando em comitês de limpeza, cozinha ou segurança. Conseguiram o apoio de pais e da comunidade, e mais de mil pessoas se voluntariaram para dar aulas e oficinas gratuitas, sobre temas como grafite, jardinagem, saúde e debates sobre gênero. Shows e festivais foram organizados em alguns edifícios. Os partidos políticos e as uniões estudantis ligadas a eles foram impedidos de participar: as ocupações sempre permaneceram autônomas e horizontais. A popularidade do governador atingiu uma baixa recorde após as ocupações, o plano de reorganização foi revogado e o Secretário de Educação renunciou ao cargo.
Após a vitória parcial, algumas escolas decidiram manter a ocupação. No início de dezembro, 23 escolas já estão ocupadas no estado de Goiás, em protesto contra a privatização e a militarização das escolas. Inspirados pelos estudantes de São Paulo, eles nos mostram que o próximo ano estava prestes a começar com as lutas iniciadas por uma nova geração muito inteligente, no primeiro semestre que ocupava escolas em Goiânia, Belo Horizonte, Curitiba, Rio de Janeiro e muitas outras cidades.
Foi no final de 2016 que as escolas se tornaram o palco novamente. Poucos dias depois de entrar no escritório, o novo governo anunciou no final de setembro uma emenda constitucional (PEC 55/241) que impõe o limite do orçamento estadual para saúde e educação para os próximos 20 anos. Uma medida de austeridade radical considerada “o pacote de austeridade mais socialmente regressivo do mundo” segundo oficial da ONU.
Inicialmente, uma nova onda de ocupações começou em escolas secundárias estaduais contra os cortes na previdência social e na educação. No final de outubro, mais 1.200 escolas e 100 universidades estavam ocupadas em 19 estados. Um dos destaques desta mobilização foi no dia 29 de novembro, dia em que senadores votavam a medida: cerca de 30 mil estudantes, trabalhadores, indígenas e camponeses de todo o país foram para a capital Brasília protestar e entraram em confronto com a polícia, queimando carros, atacando as janelas e as portas dos palácios. Mas não foi suficiente: a lei foi aprovada e o governo agora vai congelar os orçamentos para educação e saúde por 20 anos, como medida para acalmar o mercado financeiro.
GREVE GERAL: 2017 nos lembra 1917
Movimentos sociais e centrais sindicais ligados à esquerda conseguiram mobilizar milhões de pessoas na tentativa de retomar uma influência nacional convocando atos para março e uma greve geral para abril de 2017. No dia 15 de março, foi chamada uma paralização que não chegou a ser uma greve geral, mas atingiu cerca de 25 estados. No dia 31 de março, milhares foram para as ruas 23 estados contra os ataques às leis trabalhistas e a lei da terceirização propostas pelo governo de Michel Temer.
No dia 28 de abril, 40 milhões de pessoas paralisaram suas atividades em 130 cidades de todos os estados do país, na maior greve geral das últimas décadas. Profissionais dos transportes, bancos, escolas, universidades, aeroportos, comércio, fábricas, movimentos estudantis, movimentos de pessoas sem-teto e sem-terra se juntaram nas ruas de todos os estados do país. Manifestantes em São Paulo caminharam até a porta da casa de Michel Temer e foram barrados pela polícia. Na dispersão, black blocs revidaram atacando bancos e lojas.
A maioria de nós nas ruas ainda não tinha participado de uma greve geral com tanta adesão e mobilização. E desde 2013 e 2014 não víamos ondas de protestos espalhando por todo o país com tanta força e radicalidade. Anarquistas aproveitaram o momento para refrescar a memória e comemorar os cem da Primeira Greve Geral do Brasil, em 1917 – também conhecida como a Greve Geral Anarquista. Na época, movimentos e sindicados anarquistas eram as maiores forças operária e trabalhadoras no país. Antes, as greves se limitavam a setores produtivos ou categorias de trabalhadores específicos. Trabalhadores de São Paulo se rebelaram contra os baixos salários, as jornadas de trabalho de até 16 horas, os abusos do trabalho de mulheres que recebiam bem menos que os homens e contra o trabalho infantil, que era comum numa época praticamente sem legislação trabalhista. As paralizações começaram parciais e se alastraram após a morte do sapateiro espanhol José Martinez. Durante seu funeral, 50 mil pessoas paralisaram suas atividades e mais protestos aconteceram e dias depois, mais protestos, comícios e saques ajudaram a aumentar a adesão de trabalhadores e espalhar a greve pelo país. Demandas parciais foram consolidadas, como aumentos no salários,, redução da jornada de trabalho, liberdade de associação sindical, fim do trabalho noturno para mulheres e o fim do trabalho infantil e adolescentes menores de 15 anos.
A radicalidade era grande e os confrontos foram intensos na greve de 1917. Ainda não é certo o número de mortos pela repressão, mas há indícios que foram dezenas ou mesmo centenas de trabalhadores e trabalhadoras assassinadas pelas forças do Estado. Após esse período, a repressão ao sindicalismo revolucionário de anarquistas e socialistas foi cada vez mais brutal, contando até mesmo com uma colônica penal dedicada a prisioneiros políticos funcionando por quatro anos. Localizada no meio da Floresta Amazônica e conhecida como a “Sibéria Brasileira”, Clevelândia foi campo de concentração para todo tipo de pária da sociedade, mas era o principal destino de anarquistas e outros rebeldes presos no regime do presidente Arthur Bernardes (1922-1926). Domingos Passos, conhecido operário negro e anarquista brasileiro, o escritor colombiano Biófilo Panclasta e muitos outros nomes célebres são alguns dos sobreviventes da prisão de Clevelândia, onde centenas foram levados sofrer torturas, trabalhos forçados, doenças, e morte.
A greve de 2017 não foi tão intensa nem tão radical como a de cem anos atrás. E não conseguiu fazer o governo recuar em suas medidas e apenas reforçou o valor da ação conjunta entre movimentos sociais e da ação direta como uma ferramenta que precisa ser mais usada. Nesse novo século, anarquistas ainda precisam percorrer um longo caminho para reconstruir uma tradição de luta e compartilhar experiências mais contundentes se quisermos realmente atingir onde dói para o Estado e para os ricos.
O último grande confronto com o novo regime – as balas de um Estado policial
Para terminar encerrar os exemplos de luta e revolta popular contra o novo governo, vamos falar do maior e mais trágico dos dias de protesto. Cerca de 50 mil pessoas foram à Brasília no dia 24 de maio protestar pela saída de Michel Temer, após o vazamento de uma conversa em que o presidente negociava propinas com o dono da JBS, maior empresa de carne do país, para a compra do silêncio de deputados presos por corrupção. Foi o maior e mais intenso confronto entre manifestantes contra agentes do Estado. Mais uma vez, a maior demanda era a saída do presidente e novas eleições diretas. Mas o que chamou mais a atenção foi a radicalidade dos protestos.
Manifestantes se aproximou dos bloqueios policiai que protegiam o Congresso por volta das 13h. Sindicalistas tentavam romper as grades e a polícia atacou com spray de pimenta. A presença anarquista e black blocs deu força à ofensiva popular que aguentou mais de uma hora de confronto com as tropas de choque da Polícia Militar e da Força Nacional. Os prédios de oito ministérios foram destruídos e dois foram incendiados, banheiros químicos se transformaram em barricadas enquanto pedras, foguetes e molotovs eram arremessados contra a polícia.
Dos carros de som, membros de sindicatos e partidos pediam calma aos “companheiros mascarados”. Mas quando perceberam que o ataque policial não ia parar, passaram a convidar as pessoas para resistir. Quando o prédio do Ministério da Agricultura estava em chamas, policiais comuns que não tinham esquipamentos anti-distúrbio começaram a disparar munições letais contra manifestantes. Um homem de 64 anos é atingido no rosto e sobrevive com a bala alojada na garganta. Um jovem perde a mão com a explosão de uma bomba de efeito moral da política. Cerca de 50 pessoas ficaram feridas, sendo que 5 precisaram ser internadas. Ao menos 8 policiais ficaram feridos.
Em resposta à revolta popular, Temer disse que as manifestações eram ilegítimas e usou o decreto de Garantia de Lei e Ordem (atualizada e utilizada inúmeras vezes por Dilma Rousseff) pela terceira vez em seu governo. O decreto só pode ser acionado pelo presidente e convocou 1.300 militares do Exércido e 200 fuzileiros navais para proteger os prédios públicos de Brasília com a função de polícia por uma semana. Após pressão popular, da oposição e de mebros do Jucidiário, o presidente revogou o decreto no dia seguinte. Os prejuízos causados aos cofres públicos com o vandalismo do dia 24 de maio são estimados em 1,4 milhões de reais (e isso é menos que os 2 milhões de reais que um dos donos da JBS, relatou pagar ao presidente por mês em propinas).
A resistência e a coragem das multidões foi poderosa. No entanto, o Estado de exceção fica claro quando as Forças Armadas são chamadas para ocupar as ruas contra um inimigo interno, sendo que horas antes, policiais decidiram abrir fogo com munição letal contra manifestantes. Felizmente, ninguém morreu nos protestos em Brasília. Tudo isso acontece no mesmo dia em que uma operação envolvendo 30 homens, policiais civis, militares, seguranças privados e paramilitares, invadiram uma fazenda ocupada por trabalhadores sem terra em Pau D’arco, no estado do Pará. Ao menos 11 camponeses foram torturados e executados e aomenos 14 foram baleados na operação. Um caso extremo de terrorismo de Estado cada vez mais comum no país e que mostra que os conflitos agrários estão se agravando com as políticas do novo governo. Até hoje, nenhum policial que atirou em manifestantes em Brasília foi preso e 13 dos policiais envolvidos na chacina de Pau D’arco foram soldos pela Justiça.
Se em meio aos levantes de 2013 dizíamos que no centro da cidade a polícia usa bala de borracha, mas noas periferias e no campo a munição é letal, no dia 24 de maio de 2017 sentimos na pele que as balas vão ser letais em qualquer lugar que a resistência surgir contra um estado de Exceção cada vez mais permanente.
Continua…