Camarada Serge: notícias da revolta popular na França

As ruas da França estão em chamas desde que protestos e greves que começaram em janeiro se transformaram em um verdadeiro levante contra reforma da previdência social que visa aumentar a idade mínima de aposentadoria. A polícia comandada pelo governo de Emmanuel Macron tenta reprimir o movimento que já se tornou uma das maiores onda de protestos da atualidade e novos focos surgem em centenas de cidades.

No sábado, dia 25 de março, no oeste da França, um protesto de 30 mil manifestantes contra a construção de um reservatório de água em Sainte-Soline e seus dramáticos impactos sociais e ambientais culminou em mais repressão e violência policial. Um camarada conhecido com Serge foi atingido na cabeça por explosivos da polícia e teve atendimento negado pelos capangas de Emmanuel Macron. Abaixo, disponibilizamos a tradução de alguns comunicados e chamados de seus amigos e parentes.

Camarada internado e com risco de morte após a manifestação em Sainte-Soline

Nosso camarada S. foi atingido na cabeça por uma granada explosiva durante a manifestação contra reservatórios de água neste sábado, 26 de março, em Sainte Soline.

Apesar de seu estado grave, a prefeitura impediu conscientemente, em um primeiro momento, que os serviços de emergência interviessem e apenas depois de algum tempo o transportaram para uma unidade de atendimento apropriada. Ele está atualmente em terapia intensiva neurocirúrgica. Seu prognóstico vital ainda está comprometido.

A onda de violência sofrida pelos manifestantes deixou centenas de feridos, com vários atentados graves à integridade física, conforme anunciado pelos diversos relatórios de informação disponíveis. Os 30.000 manifestantes tinham o objetivo de bloquear o local da megabacia [grandes reservatórios de água destinados à agroindústria] de Sainte-Soline, um projeto de apropriação privada de água por uma minoria em benefício de um modelo capitalista que não tem mais nada a oferecer além de morte. A violência do braço armado do estado democrático é a expressão mais clara disso.

Logo em seguida do movimento contra a reforma da previdência, a polícia mutila e tenta assassinar para impedir a sublevação, para defender a burguesia e seu mundo. Nada impedirá nossa determinação em acabar com o reinado deles.

Na terça-feira, 28 de março, e nos dias seguintes, vamos fortalecer as greves e bloqueios, sair às ruas, por S. e todos os feridos e presos de nossos movimentos.

Vida longa à revolução.

Camaradas de S.

PS: Se você tiver alguma informação sobre as circunstâncias dos ferimentos infligidos a S., entre em contato conosco: s.informations@proton.me

Gostaríamos que este comunicado fosse distribuído o mais amplamente possível.

Traduzido do Francês

Polícia sob ataque dos manifestantes em Sainte-Soline, 25 de março de 2023.

Comunicado dos Pais de Serge (S.) em 29 de março de 2023

Esta é a tradução de uma declaração dos pais de um ativista que permanece em coma cinco dias após a violência policial em Sainte-Soline.

Após o ferimento causado por uma granada GM2L, durante a manifestação de 25 de março de 2023 organizada em Sainte-Soline contra os projetos de bacias de irrigação, nosso filho Serge está atualmente em um hospital lutando por sua vida.

Apresentamos queixa por tentativa de homicídio e obstrução voluntária à chegada dos serviços de emergência e por violação de segredo profissional no âmbito de inquérito policial e apropriação indébita de informação constante do arquivo para tal.

Na sequência dos vários artigos publicados na imprensa, muitos dos quais imprecisos ou enganosos, gostaríamos de dar a conhecer que:

  • Sim, Serge está na lista “S” (lista de observação da “Segurança do Estado”) – como milhares de ativistas na França de hoje.

  • Sim, Serge teve problemas legais – como a maioria das pessoas que lutam contra a ordem estabelecida.

  • Sim, Serge participou de muitas manifestações anticapitalistas – como milhões de jovens em todo o mundo que acham que uma boa revolução não seria demais e como milhões de trabalhadores que lutam atualmente contra a reforma previdenciária na França.

Acreditamos que esses não são atos criminosos que manchariam nosso filho, mas, ao contrário, esses atos são creditados a ele.

Os pais de Serge
29 de março de 2023

Vídeo sobre a Batalha das Mega Bacias em Sainte Soline: legendas em português disponíveis.

 


Uma atualização sobre Serge

Apresentamos uma segunda declaração escrita pelos companheiros e próximos de Serge, divulgada na quarta-feira, 29 de março.

Enquanto nosso camarada Serge continua lutando pela vida que o Estado tentou tirar dele, estamos testemunhando uma nova onda de violência contra ele. A mídia está tentando retratá-lo como um homem que deveria ser fuzilado. Hoje, ele ainda está em coma, em estado crítico. Enviamos nossa solidariedade a Mickaël e a todos que sentiram a força bruta da violência policial cair sobre eles.

A mídia burguesa continua repetindo incessantemente palavras cuidadosamente escolhidas pelo Estado para construir, do nada, o inimigo que quer combater. Sua fachada falsa vai desmoronar diante das muitas narrativas que corrigiram e reescreveram o curso dos acontecimentos. A polícia usou granadas com o objetivo específico de causar danos físicos e mentais aos manifestantes; eles são responsáveis ​​por impedir que os socorristas evacuem os feridos, mesmo que isso signifique deixar nossos camaradas morrerem.

Os serviços de inteligência têm distribuído livremente as informações que coletaram sobre Serge para redações em todo o país. O objetivo deles é nos obrigar a nos definirmos nas palavras usadas pela polícia. Aqui, não vamos nos envolver com as versões deliberadamente abreviadas da identidade de Serge que a polícia tem circulado. Não acreditamos que qualquer verdade sobre ele possa ser encontrada nos arcanos da propaganda estatal e da mídia. Como revolucionário, Serge tem participado com todas as suas forças e por muitos anos em muitas lutas de classes contra a nossa exploração, sempre com vistas à ampliação e fortalecimento da vida e vitória do proletariado.

E, de fato, não podemos nos deixar esmagar.

Apelamos a todos aqueles que o conhecem para dizer aos outros ao seu redor quem ele é. Lembre-se: Serge, em luta, recusa a estratégia do estado de separar bons e maus manifestantes. Com ele e para ele, defendemos esta linha.

Na terça-feira, 28 de março, pessoas de todos os lugares se comprometeram a mostrar sua solidariedade ao movimento contra a reforma previdenciária na França. Também recebemos muitas mensagens de camaradas internacionais. Nós os agradecemos calorosamente e os encorajamos a continuar e apoiar o movimento. Mais ações já estão planejadas e encorajamos as pessoas a se juntarem e multiplicarem sem restrições, na França e no resto do mundo.

Queremos que este comunicado seja compartilhado o mais amplamente possível.

PS: Há muitos rumores sobre a condição médica de Serge. Não os compartilhe. Nós manteremos você atualizado.

Para entrar em contato conosco:

s.informations@proton.me

Camaradas de S.

Revolta na região peruana: Entrevista com companheir@s da Editorial Ande 

 

“Mais do que misturar espontaneidade com a defesa de Castillo, ou independência política de classe com sua subordinação a um caudilho, parece-nos que o processo atual, com todas as suas limitações, é um momento crucial. Não tanto pelos propósitos do movimento, mas pelo que ele representa em termos de experiência e aprendizado para a classe trabalhadora.”   

Em 7 de dezembro de 2022, Pedro Castillo foi afastado do cargo de presidente do Peru, após tentar fechar o Congresso, em meio a disputas entre a casta política e suas diferentes instituições, assumindo em seu lugar a então vice-presidente Dina Boluarte (que pertence ao mesmo partido político de esquerda  do presidente deposto, Peru Libre). Ao longo dos dias, isso desencadeou uma onda de protestos que até hoje mantêm um nível muito alto de conflito social, deixando já mais de 60 pessoas assassinadas nas mãos de uma repressão estatal extremamente brutal, com vários massacres em suas mãos (a mais violenta até agora, a de Juliaca, ocorreu em 9 de janeiro, e custou a vida de pelo menos 18 manifestantes).

Seria um grave erro classificar o atual movimento somente a partir da defesa exclusiva do ex-presidente: a agudização da luta de classes na região peruana expressa, com seus limites, o cansaço pelas sufocantes condições de vida em geral da população e da institucionalidade política.

 Nesse sentido, compartilhamos esta entrevista com o grupo Editorial Ande [1] – a quem agradecemos por ter tempo para nos responder- que fornece informações cruciais e uma análise lúcida da situação naquela região, contextualizando nacional e internacionalmente a situação atual ciclo de protestos, explicando sua gênese, avaliando seus limites e projeções, esclarecendo o panorama da luta de classes em geral, incluindo as lutas internas da classe capitalista e seus representantes políticos à direita e à esquerda.

Incentivamos a sua leitura, discussão e divulgação.                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                 

1- No Chile, os setores antagônicos têm acompanhado de perto as notícias vindas do Peru,  que impressiona pela massividade das mobilizações e pelo alto nível de repressão estatal. Em particular, há algumas semanas aconteceu a chamada Marcha de los Cuatro Suyos. Em que consistia, quais eram os seus objetivos e alcance, e como tem sido a repressão?

Saudamos o interesse em querer desvendar o processo de luta de classes que vem se desenvolvendo nos últimos meses no Peru e agradecemos também pela entrevista. É bem verdade que o nível de repressão se tornou mais agudo, sendo maior do que o registrado nos últimos anos em outros países latino-americanos. A repressão no Peru, ao que nos parece, só é superada pela ocorrida na Colômbia, no contexto dos protestos de 2021 contra a reforma tributária de Iván Duque. Embora seja importante destacar que no Peru beiramos 2.000 feridos e mais de 60 mortos em apenas 2 meses, enquanto o massacre na Colômbia durou mais de 1 ano quando os membros da primera línea ainda estavam reprimidos. Se a repressão estatal continuar ou se intensificar como se tem visto até agora, isso poderia ser facilmente comparado ao que foi exercido pelas ditaduras latino-americanas dos anos 1970.

Um esclarecimento, a  Marcha de los Cuatro Suyos foi realizada em 2000 contra a ditadura cívico-militar de Alberto Fujimori. Justamente por isso, a atual marcha de 19 de janeiro foi chamada de 2ª Marcha de los Cuatro Suyos. A razão é muito geral: em ambas as datas houve uma concentração massiva de mobilizações desde regiões do interior do Peru até a capital Lima e lutaram contra políticos que assumem explicitamente a gestão do poder estatal de forma autoritária. Também foi chamada de “Toma de Lima”, embora nos interesse apontar que os aspectos fundamentais da luta não têm muito a ver com tais rótulos.

A marcha foi antes de tudo diversificada, massiva e desorganizada. Era formado essencialmente pela classe trabalhadora do campo e da cidade, e também estudantes. O proletariado das regiões de Puno, Ayacucho, Arequipa, Cusco, Apurímac, viajaram para Lima dias antes da marcha, sendo interceptado e intimidado pela polícia nas estradas ou bairros a caminho da capital. Apesar desses obstáculos, a grande maioria das delegações chegou ao seu destino. Aproximadamente 50.000 manifestantes se mobilizaram em Lima. Havia pelo menos três rotas de marcha. Uma que se mudou para o Kennedy Park, ou seja, para Miraflores, bairro conhecido por ser o centro de operações e residência tradicional de um amplo setor da burguesia de Lima. Outro caminho traçado pela Confederación General de Trabajadores del Perú (CGTP), que consistia em realizar um desfile pelas avenidas Grau, Abancay e Nicolás de Piérola para finalmente retornar à praça 2 de Mayo. Outro grande fluxo de manifestantes autoconvocados se dirigiu ao Congresso, que estava protegido pela polícia nacional, e por isso acabou enfrentando a polícia no cruzamento das avenidas Abancay e Nicolás de Piérola.

O baixo nível de organização refletiu-se na dispersão das marchas e dos diferentes percursos, mas sobretudo porque não foi formulada uma estratégia ou objetivo comum. Em muitos casos os grupos limitaram-se a cumprir os percursos traçados; em outros, os manifestantes se aproximaram das dependências dos meios de comunicação, ou perto das casas de políticos, ou burgueses para demonstrar seu descontentamento. Um contingente maior buscava chegar ao Congresso.

Em relação à repressão, é importante destacar que ela se concentra e tem se concentrado no parte sul do país. Em Lima houve uma forte repressão, mas não houve aniquilação direta da classe trabalhadora como em Juliaca, Ayacucho ou Andahuaylas. Sim, houve dezenas de detidos. Em outras regiões como Cusco, Puno e Arequipa houve tentativas de tomar o aeroporto. E nesta última região houve até um óbito.

 

2- Qual é o pano de fundo dessa onda de protestos que parece estar em ascensão? Como avalia este movimento no contexto global de crise, atualmente marcado pela guerra e pelo recente ciclo de revoltas?

 O cenário das lutas atuais no Peru se desenvolve como um momento de luta de classes em todo o mundo, determinado pela crise do capital. Observamos uma recessão técnica por dois trimestres consecutivos, principalmente nos ramos produtivos de países imperialistas como Estados Unidos, Alemanha e Inglaterra. Da mesma forma, a taxa de desemprego é gerada em ramos específicos dos setores de hidrocarbonetos, mineração, gás e plantas de petróleo, tendo em conta o aumento do emprego no setor de serviços. Há também altas taxas de inflação, principalmente nos setores de alimentação e habitação, aspectos que mais atingem a classe trabalhadora. Atrelado a isso, a guerra interimperialista, imanente à crise, Leva a um aumento no preço do petróleo e do gás gerando um efeito dominó nos preços dos produtos em todo o mundo. A escassez de fertilizantes se traduz em menor produção nos setores agrícolas em todo o mundo, enquanto as grandes empresas ligadas ao processamento e venda de combustíveis e aos bancos quebram ou entram em crise.

O Peru é um país que depende da importação de combustíveis, fertilizantes e alimentos; por outro lado, sua economia primário-exportadora o torna sensível a choques econômicos externos. Assim, todo esse aumento de preços vem afetando diretamente o custo de vida de sua população. Por exemplo, quando o custo do transporte aumenta, todas as mercadorias transportadas aumentam seus preços. A falta de fertilizantes leva a uma produção menor e seus altos custos aumentam o preço dos produtos agrícolas. Juntos, sua moeda é desvalorizada, entre outros fatores, pelo aumento da inflação e pela elevação dos juros pelo Reserva Federal dos Estados Unidos, tendo seus efeitos mais agudos nos últimos meses. A isto podemos acrescentar que o impacto da guerra teve um efeito contrário ao esperado, reduzindo o preço dos metais. Tudo isso gerou um aumento da inflação de mais de 2 pontos, atingindo o maior nível em 26 anos com 8,46% e mais de 15% nos alimentos. Isso faz com que produtos básicos para o consumo da classe trabalhadora, como a batata, por exemplo, aumentem seu preço em mais de 100%. O crescimento do Produto Interno Bruto em 2022 vem diminuindo, com queda de 3,8% para 1,7% no último trimestre.

Nesse cenário se localiza o processo de lutas interburguesas dentro do Estado que se desenrola de forma mais transparente desde 2016. Isso é muito bem visualizado com a destituição de presidentes e no confronto entre os poderes do Estado. Esse processo arrasta a classe trabalhadora a se posicionar pelas frações burguesas. No entanto, 2020 apresentou um cenário em que o proletariado da agroexportação do litoral sul e norte do país se levantou em greve. Foi um passo dos enfrentamentos interburguesas para um claro processo de luta de classes. A causa direta foi a tentativa de ampliação de um regime trabalhista para agroexportadores que foi instalado no governo Fujimori (2000) e que só flexibiliza e precariza o proletariado. Contratos temporários, utilização de services, estabilidade zero no emprego, salários reduzidos, etc., são características desse sistema de trabalho. No entanto, esse processo esteve ligado à pandemia, onde vimos claramente como o Estado beneficiou abertamente a burguesia e, da mesma forma, as disputas interburguesas no Peru que revelaram a corrupção e os interesses dos representantes da burguesia no Estado. Não se tratava apenas de uma eclosão da luta de classes, vinculada de forma temporária, mas de forma essencial. Essas disputas entre a burguesia abrem um cenário propício para que as lutas do proletariado explodam. Um cenário semelhante se apresenta agora. Passamos dos conflitos interburgueses para a luta de classes, onde o proletariado busca derrubar representantes da burguesia no Estado, embora no momento seja apenas uma mudança de tais representantes.

 

3- Nos primeiros dias, o movimento parecia se expressar com intensidade diferente nas províncias em relação a Lima. O que explicaria isso? Como esse fenômeno se desenvolveu?

As lutas foram mais ativas nas regiões fora de Lima, no começo e agora mesmo. Os trabalhadores das regiões mais agitadas, como Apurímac, mantêm uma renda mensal de S/. 714 de Puno com uma renda média de S/. 805. Isso equivale a 189 e 213 dólares por mês, respectivamente, embora sendo a média é certo que esse rendimento é ainda menor para os mais pobres. Na região sul peruana, destaca-se também o alto índice de anemia em crianças, com incidência em torno de 50% em Apurímac e Ayacucho e 70% em Puno. São esses trabalhadores explorados e precários no processo de acumulação do capital imperialista vinculados às mineradoras que saem às ruas para lutar. A indignação cresceu de sul a norte, impulsionada pelos trabalhadores da cadeia de montanhas da região sul, que tem uma grande história de luta, aos poucos foram convocados diferentes setores e regiões, o movimento se expandiu para incluir a própria Lima, tradicionalmente conservadora.

 

4- Vimos que a imprensa burguesa tem sido particularmente hostil às manifestações (“Isto é terrorismo”, “A polícia defende o Peru”, “É violência política, não é protesto social”, são algumas das manchetes que viram depois da marcha para Lima). Existem elementos específicos que explicam esse comportamento ou é apenas uma continuação de seu tradicional papel criminalizador?

A imprensa atual no Peru, como em grande parte da América Latina, é controlada e concentrada por um punhado de famílias. O Grupo El Comercio da família Miró Quesada controla aproximadamente 80% da imprensa escrita e um domínio na imprensa digital com 28% da mídia disponível nesse setor. Em dois de seus jornais mais populares, como Peru 21 e Trome, os trabalhadores que se manifestaram foram diretamente acusados de serem terroristas. O veículo de extrema-direita Willax, que pertence a corporação Erasmo Wong, é ainda mais obstinado no “terruquear”, pedindo abertamente para “atirar na cabeça” dos manifestantes. A partir desses grupos de imprensa constituinte e intimamente ligados à grande burguesia do Peru, que vem se espalhando a ideia de que quem se manifesta é vândalo ou terrorista. Esta posição nada mais é do que a expressão de seus “tradicionais” interesses de classe em um momento de agudização da luta de classes. Assim como os níveis repressivos se agudizaram diante da irrupção do proletariado, o papel da grande imprensa teve um movimento semelhante, tentando dar legitimidade à repressão estatal diante da opinião pública. Assim, o principal elemento para explicar a posição da grande imprensa é o próprio processo de luta e o medo gerado nos setores burgueses pela ação direta dos trabalhadores.

 

5- Qual tem sido a participação das minorias revolucionárias, anarquistas ou comunistas, durante o desenrolar destes dias?

 Em Lima verificamos a participação de anarquismos libertários, comunismo tradicional dos PCs e organizações social-democratas em geral. Certamente, existem minorias de ex-trotskistas, maoístas da velha guarda que deixaram suas antigas posições e assumiram uma posição revolucionária. Além disso, há novas organizações mais próximas das leituras da esquerda comunista alemã, holandesa e italiana, refeitas com a influência da Neue Marx-Lektüre e suas diversas vertentes. Mais tarde, anarquistas individualistas e marxistas com posição de classe, mas amplamente dispersos, têm participado também. Embora em geral, infelizmente, o grosso das organizações em marcha seja de tendência reformista e proclame como medida máxima a Assembleia Constituinte.

 

6- Qual tem sido o papel desempenhado pelas organizações mais tradicionais, como partidos de esquerda, sindicatos ou organizações indígenas?

 A maioria dos partidos de esquerda no Peru há muito se caracteriza por uma prática e um programa parlamentarista e reformista. Este procedimento se refletiu no apoio constante ao governo Castillo, que em nenhum momento representou alternativa alguma — como toda alternativa burocrática e parlamentar— para a classe trabalhadora. Basta recordar as lutas de março-abril que aconteceram em Junín, Ica, Cajamarca e outras regiões, devido à crise econômica desencadeada pela guerra russo-ucraniana e o correspondente aumento dos preços dos combustíveis e fertilizantes. O ex-presidente ignorou as reivindicações dos trabalhadores, chamando-os de valentões pagos pela direita, o que foi seguido por alguns partidos de esquerda como o Izquierda Socialista; enquanto isso, a maioria deles — como Patria Roja, ML 19 e Movimiento por la Unidad Popular— entenderam os acontecimentos como uma “traição” por parte de Pedro Castillo rumo as promessas de uma Assembleia Constituinte e de uma verdadeira alternativa popular e de esquerda, com uma menção tangencial ou nula ao contexto econômico mundial e muito menos ao proletariado como sujeito revolucionário.

Essa visão estreita da esquerda voltou a se manifestar nas lutas atuais. No plano teórico, encontram como motor das lutas atuais um processo de democratização que emergiu “de baixo”, cujos objetivos são a inclusão total de todos os membros da sociedade no jogo da democracia, cuja expressão seria a convocação a novos eleições e a tão aclamada — de maneira mais eufórica e repetitiva por esses partido  exclusivamente— a Assembléia Constituinte. No nível prático, eles têm divulgado suas proclamações parlamentares nas marchas e querendo se apropriar e direcionar à vontade o impulso subversivo dos trabalhadores. Como pode ser visto nos processos políticos do Chile e da Colômbia, a canalização das lutas para uma solução parlamentar — por meio de uma Assembleia Constituinte ou por meio da eleição de um novo presidente de esquerda, respectivamente — não faz mais do que atenuar e apaziguar os esforços dos trabalhadores, essa é a sua verdade natureza: são a esquerda do capital, reformistas, conciliadores de classes — quando não negam justamente a existência das classes —, não buscam a emancipação dos trabalhadores

Quanto aos sindicatos, eles têm uma relação estreita com os partidos de esquerda descritos acima. É o caso da Confederación General de Trabajadores del Perú (CGTP), que ao longo desses processos de luta manteve o mesmo discurso da Assembleia Constituinte e inclusive explorou a possibilidade de participar de uma Reunião de Acordo Nacional com a Presidenta Dina Boularte, que muito provavelmente teria sido realizado se não fosse o massacre de 18 manifestantes em Juliaca, Puno. É evidente o radicalismo dos trabalhadores, que se levantaram e se organizaram pelos seus próprios meios, ao qual pela mesma força das circunstâncias se somam a esquerda reformista e os sindicatos a ela alinhados.

7- Qual é a composição do movimento? Quão heterogêneo é? Tem traços de autonomia e espontaneidade ou limita-se a apoiar Pedro Castillo? Ou até que ponto as duas coisas se misturam?

 Em termos geográficos, o movimento é liderado principalmente por trabalhadores do campo da cidade de Central Sierra e do sul do país. A mobilização na capital é bastante pequena e tende a ser composta por universitários e setores mobilizados pelos partidos políticos da esquerda reformista, além de pequenos grupos de orientação diversa e autoconvocados. Estes últimos são os mais ativos nas tarefas de autodefesa que ocorrem nos confrontos com a polícia. Em termos gerais, a maioria dos manifestantes são trabalhadores (empregados ou desempregados, rurais ou urbanos). Onde uma certa heterogeneidade se manifesta é nos vários slogans que se agitam e na perspetiva estratégica que se defende. Os principais slogans são: a convocação de novas eleições, o que significaria uma mudança de poder executivo e legislativo; a convocação de uma Assembléia Constituinte e a renúncia de Dina Boluarte. Inicialmente, houve setores mais ligados ao antigo governo que agitaram —e continuam agitando— o pedido de libertação de Pedro Castillo e sua reintegração como presidente da república. Com o passar do tempo, esse pedido foi perdendo força, pois a tendência predominante é um descontentamento generalizado com o funcionamento das instituições burguesas. A principal limitação reside no fato de que a crítica do quadro institucional e dos partidos políticos burgueses ainda não foi capaz de reconhecer o papel desempenhado pelo reformismo e pela esquerda do capital na reprodução da miséria. Isso dá a políticos como Pedro Castillo alguma margem de manobra enquanto tentam capitalizar o descontentamento dos trabalhadores. Mas de forma alguma se pode dizer que a mobilização se limita a apoiá-lo. Essa confusão ocorre porque a saída de Pedro Castillo foi efetivamente o estopim das mobilizações. Mas seria um erro limitar-se a este evento e não analisar o contexto geral marcado pela crise e pela crescente decomposição das instituições burguesas. Mais do que misturar espontaneidade com a defesa de Castillo, ou independência política de classe com sua subordinação a um caudilho, parece-nos que o processo atual, com todas as suas limitações, é um momento crucial. Não tanto pelos propósitos do movimento, mas pelo que ele representa em termos de experiência e aprendizado para a classe trabalhadora.

 

8- Para onde é mais provável que o movimento se dirija? Quais são suas projeções? Tem perspectivas comunistas que poderiam ser desenvolvidas?

Falar de uma perspectiva comunista dirigindo o atual processo no Peru é um exagero e uma impossibilidade a curto prazo, devido às condições ideológicas da classe trabalhadora e à feroz criminalização contra o comunismo e as ideias revolucionárias. No entanto, o Peru é um país de extremos, se por um lado a direita parasitária tomou o poder por mais décadas do que em outros países latino-americanos, não deixando espaço para ação — mesmo para soluções reformistas —; por outro lado, nossa história de lutas foi marcada por grupos radicais que se levantaram contra o Estado. O terreno político peruano não tem sido propício ao desenvolvimento de um progressismo duradouro, entre outras coisas, devido ao nível de vínculos entre a burguesia e o imperialismo e porque a violência capitalista é muito profunda. Esse panorama desanimador foi revertido nas últimas marchas no Peru porque o que acaba sendo questionado, além das aspirações reformistas, é o Estado e a própria propriedade burguesa. Ou seja, o movimento da luta de classes no Peru expressa vozes conscientes do essencial. Nesse contexto, nasceu nosso grupo, sólido em princípios e com objetivos claros; acreditamos, por nossa experiência, que a classe trabalhadora exige e precisa do necessário desenvolvimento de um caminho revolucionário que só é possível por meio de sua associação como classe.

 

9- Em relação à casta política, como ela está enfrentando a crise? Está dividida? Existem partidos ou grupos que apoiam as manifestações? Existe uma clara diferenciação pontual entre esquerda e direita?

A casta política no Peru está aparentemente dividida. Ou seja, embora existam setores da direita e até mesmo da “extrema direita” fujimorista que apoiam as eleições antecipadas e a saída de Dina Boluarte, na prática todos eles, inclusive os partidos de esquerda, querem canalizar a mobilização dos trabalhadores para canais institucionais. Enquanto uns propõem uma Assembleia Constituinte e outros apenas eleições, e se envolvem em “grandes polémicas” no parlamento sobre essas diferenças que se apresentam como antagonismos irreconciliáveis; em termos reais, todos os partidos políticos querem restabelecer a calma política que garanta a plena continuidade da acumulação do capital. Assim, explica-se que não só a esquerda apoia as manifestações e que há centristas e até liberais participando da mobilização. Claro, enfatizando a necessidade de não violar a propriedade privada e o respeito à autoridade. Neste sentido, pode dizer-se que não existem diferenças substantivas, embora a nível imediato existam.

11- Como a solidariedade internacional poderia ser efetiva contra a repressão brutal e o eventual desenvolvimento de perspectivas anticapitalistas dentro do movimento na região peruana?

A luta de classes é um fenômeno mundial porque o próprio modo de produção capitalista o é; a ofensiva desse modo de produção vem crescendo e transformando em elementos de acumulação todas as esferas em que nos desenvolvemos. Estamos cientes de que a luta do proletariado está eclodindo em diferentes espaços e regiões, dadas as consequências da crise mundial. Tal solidariedade internacional deve se expressar na unidade dos trabalhadores em seus países e na formação de vínculos entre seus setores mais organizados, porque, apesar de existirem mediações concretas nas nações, as causas de nossa luta encontram-se nas tendências e contratendências do modo de produção capitalista. O proletariado peruano vem se esclarecendo no processo de luta com o aperfeiçoamento de seus métodos de luta e o aperfeiçoamento de suas organizações; no entanto, o reformismo ainda se impôs como a principal saída da crise devido à continuidade difusa das tarefas democrático-burguesas que desempenharam durante os últimos 50 anos. Diante disso, uma verdadeira solidariedade internacional dos grupos revolucionários deve ajudar a revelar o fracasso da social-democracia em suas tentativas de instalar e difundir soluções ilusórias para a classe proletária e, por outro lado, posicionar-se contra a violência policial e as políticas intervencionistas dos imperialismos. Colocar as coisas em seus termos reais é contribuir para o caminho necessariamente revolucionário dos trabalhadores em todo o mundo.

[1]     O grupo se apresenta como “uma editora comunista que traduz, edita, imprime e publica livros de diversos gêneros e saberes de diversas partes do mundo, sempre vinculado a pensar a sociedade e buscar transformá-la”.

 

Entrevista retirada do site dos companheiros do Vamos hacia la vida, realizada em 14 de fevereiro de 2023.

A REVOLTA POPULAR NO PERU – Anarquistas Discutem a Revolta Contra a Violência Policial e o Estado de Emergência

Em dezembro de 2022, uma onda de protestos populares liderados por camponeses e os movimentos indígenas varreram o Peru depois que o ex-presidente Pedro Castillo sofreu impeachment após uma tentativa fracassada de dissolver o legislativo e sua vice-presidente, a conservadora Dina Boluarte, assumiu o governo. Em 14 de dezembro, o ministro da Defesa, Alberto Otárola, decretou estado de emergência, suspendendo a liberdade de reunião, a liberdade de ir e vir, a inviolabilidade do lar e outros direitos. No entanto, os protestos só aumentaram de intensidade. Em 18 de janeiro, movimentos populares do sul do Peru marcharam até a capital em uma mobilização conhecida como “Tomada de Lima”. Estudantes e sindicatos os receberam, juntando-se aos protestos para exigir novas eleições para a presidência e o legislativo. Em resposta, a polícia matou mais de 60 pessoas e feriu milhares. Para uma visão direta desses acontecimentos, conversamos com anarquistas peruanos, na esperança de obter uma perspectiva sobre os aspectos desse movimento que ultrapassam a política de estado.


O Peru tem uma longa história de golpes de estado no poder e violência estatal e paramilitar no campo. Após uma crise envolvendo a falta da última página de um contrato entre o governo peruano e a Companhia Internacional de Petróleo, o general Juan Velasco Alvarado derrubou o presidente eleito Fernando Belaúnde Terry em 1968. A partir da década de 1980, o grupo armado maoísta Sendero Luminoso conduziu uma guerra de guerrilha no campo que ceifou dezenas de milhares de vidas. O presidente Alberto Fujimori dissolveu o Congresso em 1992 para obter o poder absoluto, que manteve por meio de uma vasta rede de atividades secretas coordenadas pelo chefe do serviço de inteligência do Peru, Vladimiro Montesinos – até ser derrubado em 2000 após uma eleição fraudulenta. Em novembro de 2020, protestos generalizados forçaram o presidente interino Manuel Merino a renunciar após apenas cinco dias no cargo.

Mais recentemente, o vizinho Equador viu revoltas em 2019 e 2022, nas quais grupos de base ligados à Confederação de Nacionalidades Indígenas do Equador (CONAIE) desempenharam um papel central na resistência às medidas de austeridade impostas pelo Estado. Algo semelhante ocorre hoje no Peru, onde um movimento composto principalmente por camponeses e indígenas interrompeu o funcionamento do capitalismo extrativista, afirmando seus próprios interesses e estruturas organizacionais fora do quadro do poder estatal.

À medida que uma nova série de tentativas de golpe ocorre nas Américas, do 6 de janeiro de 2021 nos Estados Unidos ao 8 de janeiro de 2023 no Brasil, é importante aprender como os movimentos populares podem manter a resistência diante da repressão policial – especialmente movimentos envolvendo os explorados e excluídos.

Conversamos com participantes do Periodico Libertária, publicação anarquista que surgiu como parte da resistência ao regime peruano. Seu objetivo, como eles dizem, é “a libertação total dos Andes e de todo o território dominado pelo estado assassino chamado ‘Peru’”.

Capa da primeira edição do Periodico Libertária, com o slogan “Espalhamos a anarquia quando podem”. O balão diz “Um misantropo que também é filantropo, é um pouco difícil de entender” e a legenda diz “Oxímoro: Protesto dos trabalhadores do IPC em Lima, 29 de junho de 1956”.

Em outros países, são muito escassas as informações que recebemos sobre a revolta que ocorre neste momento nas ruas peruanas. A mídia noticia de forma superficial que há manifestações e greves, com repressão policial que já matou dezenas de pessoas e feriu milhares. Ainda assim, pouco se discute sobre o contexto e quando se fala, mantém-se o binário: apoio a Pedro Castillo, presidente que tentou dissolver o Congresso e aplicar um golpe, ou a destituição de Dina Boluarte, sua vice que assumiu o cargo depois do Impeachment do presidente, e também a demanda popular pela realização de uma nova eleição. Mas sabemos que as revoltas estão sempre para além dessas simplificações e, por isso, é preciso entender o contexto e as lutas recentes nos territórios onde as insurreições acontecem. Sendo assim, gostaríamos que você escrevesse uma história de uma perspectiva anarquista sobre o que está acontecendo lá no momento e quais são as possíveis conexões com outras insurreições que ocorreram na chamada América Latina?

Normalmente, os meios de comunicação de massa cobrem os protestos no exterior como algo isolado e localizado, mesmo que o que está acontecendo esteja a apenas alguns quilômetros de distância. Nos meios de “comunicação” existe o receio de expor problemas estruturais e analisá-los em profundidade. Sabe-se que no Peru vivemos um processo antiautoritário que poderia ocorrer em qualquer país latino-americano, especialmente considerando a coincidência e a origem dos problemas – racismo estrutural, pobreza extrema, corrupção institucionalizada e uma violenta democracia neoliberal.

Nesse caso, a repressão do atual governo tem sido caracterizada pelo racismo desenfreado. Houve massacres em cidades dos Andes e do Altiplano [as montanhas e planaltos do Peru]. Obviamente, a desprezível imprensa amarela não tem apresentado uma representação fiel da realidade. Enquanto a militarização continua em várias cidades – como Ica, no litoral, e Puno, no altiplano – o último assassinado em Lima (28/01/23) foi descrito pela mídia como mero delinquente quando sua morte foi transmitida no um canal a cabo no país. Há um constante confronto assimétrico entre as armas do Estado e as lutas dos povos em busca da liberdade.

No que diz respeito às conexões com outros eventos, sem esquecer os problemas específicos deste território e o caráter camponês da revolta peruana, as referências mais próximas são as experiências antiautoritárias de outubro de 2019 da Confederação de Nacionalidades Indígenas do Equador (CONAIE). A diferença está na ausência de grandes organizações indígenas, já que a Confederación Campesina del Perú (a Confederação Campesina do Peru fundada em 1947) sofreu o violento assédio do Sendero Luminoso (grupo marxista) e também a perseguição do ditador Alberto Fujimori, resultando em sua atual desintegração. Para compensar esta ausência existem as organizações camponesas de base , tanto provinciais como distritais.

Isso também explica o fracasso da esquerda política em direcionar os protestos para seus interesses. Vimos confrontos abertos com parlamentares nas ruas e até ações diretas contra suas propriedades.

Confrontos em Lima.

Você pode falar sobre a participação dos camponeses e indígenas nas manifestações?

Deve-se afirmar abertamente que os grupos camponeses estão à frente dos levantes neste território. Existem diferentes grupos étnicos no Peru que resistiram à maquinaria colonial (em todas as suas formas) e mantêm uma longa tradição antiautoritária. Nessas circunstâncias, diferentes etnias ou nações se uniram para enfrentar diretamente a açougueiro Dina Boluarte.

Embora alguns dos partidos políticos tenham contribuído para organizar os protestos por meio de suas bases, eles estão tentando se posicionar como vanguarda; isso não é mais sustentável, pois as pessoas não aceitam mais os apelos à não violência vindos desses partidos. É por isso que as pessoas queimaram prédios estatais, incluindo delegacias de polícia.

Por outro lado, essas ações também nascem de uma justa sede de vingança contra a capital Lima, porque dirige toda a maquinaria legal colonialista que, através do extrativismo e outras atividades econômicas, esmaga as populações das províncias, usando a violência do estado e força privada para expulsá-los, prendê-los e até matá-los sempre que se opõem a um projeto – ou simplesmente quando exigem o cumprimento dos termos com os quais concordaram como condições para aceitar um projeto estatal ou privado.

A isto se somam as lembranças do comportamento de muitas pessoas de Lima que alugavam quartos, apartamentos ou casas a gente do interior e que não queriam abater o aluguel (ou baixar o valor ou adiá-lo) durante a primeira fase da pandemia, e ainda começou a expulsá-los de suas casas, causando um êxodo de pessoas dos Andes e da selva de volta aos seus lugares de origem por causa da quarentena. Da mesma forma, algumas pessoas foram expulsas de suas casas “por medo de contágio”, porque a imprensa (irresponsavelmente como sempre) espalhou o medo sobre o COVID-19. Além disso, como eles viajavam em grandes grupos a pé porque o transporte era proibido por medo de contágio – e eles nem podiam usar o próprio transporte – a polícia começou a reprimi-los em todos os postos de controle da estrada. E também, os habitantes de algumas localidades, temendo a exposição ao vírus, também participaram dessa repressão e do fechamento das estradas de seus territórios.

É perigoso generalizar esse ódio a todos que moram em Lima, algo que pouco se tem falado nas redes sociais, talvez porque muitas pessoas já tenham família, amigos ou moradia nas províncias para onde possam ir se essa situação tornar-se mais aguda e as províncias tomam a decisão de bloquear o envio de alimentos para Lima. Lima quase não produz alimentos in natura, apenas alimentos processados ​​– mas sem matéria-prima importada de fora, nem isso seria possível.

É por isso que, há alguns dias, circulou um vídeo da caminhada de Ancón ao centro de Lima (que dizem ser 20 quilômetros) em que uma senhora do Sul agradeceu aos lxs desactivadorxs [os “desativadores”, os grupos que se organizam para neutralizar as armas químicas da polícia] pelo esforço e disseram (embora eu acredite que de brincadeira) que terão um espaço na Grande República do Sul. Parece que essa ideia de dividir o Peru em duas repúblicas, que surgiu durante as eleições presidenciais (primeiro entre a direita, quando viram que grande parte do Sul votaria em Pedro Castillo, e depois nos meios de esquerda, que acredita isso é do interesse de seu governo), ganhou força como resultado dos assassinatos de cidadãos. Isso pode ser aproveitado pelos esquerdistas que – com Evo Morales à frente e o apoio da China por meio de sua Cúpula da CELAC [Comunidade de Estados Latino-Americanos e Caribenhos] – aspiram a governar os novos pactos comerciais extrativistas com a China, especialmente do lítio presente na cidade de Puno, no sul do Peru e na fronteira com a Bolívia. Até os Estados Unidos pretendem obter o controle dessa área, por isso apoia o modelo de exportação mineral para aquela região – não só com a presença de seu embaixador, mas também apoiando o governo do Peru e suas forças armadas e policiais, militarmente e taticamente. É por isso que eles enviaram forças militarizadas para Puno.

Diante de várias propostas de “independência” ou de saída para esta crise, é preciso analisar cada uma delas, pois atrás de cada uma há aspirantes a opressores querendo puxar os cordelinhos em benefício próprio. Os irmãos e irmãs no Chile já estão nos alertando sobre os perigos ou a ilusão de uma Assembléia Constituinte, até mesmo do próprio processo. [Para mais contexto, veja nossa cobertura de como o movimento no Chile se perdeu na tentativa de introduzir uma nova constituição por meios institucionais.] A esquerda, com seus partidos políticos e parlamentares, está tentando se fazer passar por aliada desses protestos em um esforço que só pode ser descrito como oportunismo político; em alguns lugares, os manifestantes os expulsaram ou vaiaram. A esquerda tenta fingir que se importa com seus irmãos e irmãs nas províncias, mas eles apenas os veem e os tratam como possíveis votos a seu favor.

Para concluir, foram os camponeses que colocaram seus corpos em risco nesses protestos – que, com suas huaracas feitas à mão, trocaram projéteis com a tombería [tropa de choque], repelindo as covardes forças repressivas do sangrento regime de Dina Boluarte. Eles sabem que é uma questão de vitória ou morte; a democracia nunca resolveu nada para eles, ao contrário daqueles que se venderam a um partido. Essas marchas trouxeram à tona o racismo velado no Peru.

Também nos preocupamos com os recursos para o autocuidado e as possibilidades de voltarem para casa quando tudo passar. Já existe um precedente infeliz desde 2000, quando o povo indígena Shipibo-Konibo foi abandonado e marginalizado após os protestos maciços da “Marcha de los 4 Suyos” contra o ditador Fujimori. [A “Marcha dos Quatro Quartos” em julho de 2000 foi uma mobilização de massas organizada por esquerdistas, partidos social-democratas e movimentos sociais contra as eleições fraudulentas e a posse de Fujimori]. Com a queda do ditador e o parlamento cheio de políticos contrários ao antigo regime, toda a esquerda, centro e liberais se esqueceram dessas pessoas, que ainda sofrem com a pobreza extrema.

A mídia corporativa sempre vê os eventos da perspectiva da polícia.

Vimos imagens de terrorismo de Estado no Peru, incluindo assassinatos, tortura e prisão em massa, bem como outras formas de agressão da polícia peruana. Sabemos que estes não são eventos isolados – a repressão é algo comum em todos os estados, especialmente quando uma mobilização ataca a ordem e a paz dos ricos. Como está estruturada a polícia peruana? Qual é a história da repressão policial contra os protestos no Peru?

A moderna polícia peruana foi fundada em 1988, a partir da unificação de três agências estatais anteriores. Sabemos que a formação de policiais é um fenômeno transnacional, ou seja, no desenvolvimento da instituição do policiamento, houve vários modelos que serviram de ideal para outros países (em um momento, foi o modelo francês, em outro, o modelo espanhol e, atualmente é uma mistura de várias instituições repressivas em todo o planeta).

No início, a polícia peruana só dispunha de bastões, apitos e coisas do gênero para estabelecer a ordem municipal; então seu armamento aumentou: pistolas, rifles, pinochios (conhecidos no Chile como guanacos, são carros blindados usados ​​para atacar manifestações), caminhões, motocicletas, gás lacrimogêneo, spray de pimenta, drones e computadores.

Eles sempre estiveram do lado do poder. Eles fizeram greve apenas uma vez, durante a ditadura de Velasco Alvarado, que os reprimiu com força militar, deixando um número desconhecido de mortos.

Nos anos 1980 e 1990, as autoridades deram à polícia imunidade legal e moral para assassinar a fim de eliminar o Sendero Luminoso (partido maoísta). Foi então que cometeram as piores injustiças: assassinar, torturar, estuprar, desaparecer, extorquir em todas as cidades e vilas do Peru.

Em 2000 [quando o presidente Alberto Fujimori fugiu para o Japão, substituído por Alejandro Toledo], eles tiveram que se adaptar à ideologia do novo presidente; porém, carregavam no DNA o autoritarismo e o racismo, junto com o montesinism. [Vladimiro Lenin Ilich Montesinos Torres, ex-oficial de inteligência do exército e espião dos EUA, foi conselheiro do ditador Fujimori e serviu como chefe do serviço de inteligência do Peru sob seu comando.]

A história recente da polícia é um exemplo claro da impunidade do setor político Fujimontesinista, que nunca foi expulso do aparato institucional do Estado, apenas acomodado nele. Hoje, as práticas repressivas vêm dos ex-quadros de Vladimiro Montesinos e também de seus aprendizes.

Polícia se mobiliza para atacar manifestantes no Peru.

Como o chamado Brasil, Argentina, Chile e muitos outros lugares, a região peruana viveu uma ditadura civil-militar. É um território com uma longa história de golpes, como o do presidente peruano Alberto Fujimori em 1992. Fale da resistência e da memória combativa contra os legados da ditadura e a continuidade da repressão e do extermínio na democracia.

É verdade que nesta região houve seguidas interrupções da democracia representativa (o que, obviamente, como anarquistas, não queremos de qualquer maneira) e, consequentemente, houve vários períodos de resistência ao autoritarismo e às ditaduras. No entanto, e um tanto contraditoriamente, também houve ditadores apreciados pelos setores populares – por exemplo, o militar nacionalista Juan Velasco Alvarado, que é celebrado por um setor da esquerda conservadora ou kitsch.

Outro ponto a destacar é que o antifascismo dos anos 1930 e 1940 e suas experiências de resistência foram esquecidos no Peru – goste ou não, quem participou do confronto foram anarquistas, comunistas, apristas [membros a APRA, Aliança Popular Revolucionária Americana, um partido socialista fundado em 1924] e progressistas.

A memória antiautoritária das esquerdas dos anos 1970 e 1980 se perdeu com as perseguições sofridas pelo ditador Fujimori e pelos genocidas do Sendero Luminoso – comunistas dogmáticos que assassinaram camponeses, líderes esquerdistas e qualquer outro que se opusesse a eles. Tudo isso contribuiu para uma despolitização nos anos 1990 e para a aceitação da narrativa neoliberal delirante sobre o “empreendedorismo” em 2000, que grande parte da população dessa região ainda hoje aceita.

Apesar de tudo isso, no dia 5 de abril, aniversário do golpe do genocida Fujimori, marcham contra tudo o que representa a atual ditadura: o neofujimorismo, o neoliberalismo, a corrupção em massa, o narcotráfico e o genocídio. É preciso reconhecer que os partidos de esquerda procuram monopolizar o “anti-fujimorismo” para ganhos políticos e que, seguindo as vicissitudes da política peruana, alguns “anti-fujimoristas” revelaram sua verdadeira face a ponto de ingressar nas fileiras do pos-fascistas (por exemplo, o autor conservador Mario Vargas Llosa, [ex-ministro do Interior] Fernando Rospigliosi e [presidente em exercício] Dina Boluarte, entre outros).

Em todo caso, é o antifujimorismo que entregou o trono da presidência ao atual governo. E embora alguns se orgulhem disso (por ter impedido que Keiko Fujimori, filha mais velha do ex-presidente peruano Alberto Fujimori, chegasse ao poder), é preciso dizer claramente que isso só contribuiu para consertar um abominável sistema político que foi brutalmente nos explorando – sob o qual há massacres contínuos nos Andes, graças a políticos, bandidos e empresários.

Agora, vemos ressurgir essa memória combativa; muitas pessoas pararam de se censurar e estão falando sobre o que sofreram por resistir à ditadura de Fujimori. Ao mesmo tempo, o ataque da extrema-direita tem indignado as pessoas pela forma como usam a acusação de “terrorismo” contra quem se opõe a eles e aos seus ídolos. O famoso “terruqueo” é um conceito que nasceu na década de 1980: é o adjetivo usado para definir quem pode ser morto impunemente. Se você é um terruco(suposto terrorista), pode queimar na fogueira ou ser executado – como fizeram sistematicamente os militares em Ayacucho nas décadas de 1980 e 1990.

Por isso, hoje, o mais próximo da memória combativa é o esforço para desarmar os partidários do ditador genocida Fujimori de sua arma semântica: o “terruqueo”. E é assim que as pessoas estão procedendo nas regiões do sul (lugar onde tanto os militares quanto o Sendero Luminoso massacraram os camponeses). Sem falar em confrontá-los implacavelmente nas ruas até que o fascismo seja destruído!

Os restos de um edifício histórico que pegou fogo perto da Plaza San Martin em Lima durante as manifestações de janeiro de 2023. Segundo o filho do proprietário, o incêndio foi causado por bombas de gás lacrimogêneo lançadas pela polícia para dispersar manifestantes.

Há debates sobre legítima defesa nas ruas? Existe alguma discussão por parte dos movimentos e coletivos sobre a abolição da polícia?

Nesta região, ouvimos vários discursos diferentes sobre a polícia. O primeiro é o desrespeito da polícia pelos assassinatos de manifestantes, o que é compatível com o repugnante “princípio da proporcionalidade” (teoria imbecil que tem origem no pacifismo do século passado e justifica guerras, massacres, etc., com base em igualar o uso de armas). A maioria das pessoas que promovem essa ideia são cidadãos e esquerdistas moderados (obviamente não vão atacar a instituição pela qual querem disciplinar quando estiverem no poder). O segundo é o discurso da extrema-direita que dá desculpas ao gatilho (apoiando tomberìa e militares em matar sem repercussão legal ou moral) e até mesmo paramilitarismo fascista.

Dentro da esquerda radical, não há quase nada sobre abolir a polícia, embora as pessoas odeiem a instituição por sua corrupção, sua inutilidade em responder a feminicídios, crimes antissociais e outras questões e, finalmente, pelo papel que a polícia desempenha na proteção do empresariado extrativista.

Como anarquistas, acreditamos que é urgente pedir a destruição dessa instituição assassina. Há alguns dias, no blog, um camarada compartilhou alguns artigos não anarquistas discutindo a origem da polícia, a fim de imprimi-los e compartilhá-los na linha de frente.

Ele nos convidou a compartilhar o seguinte fragmento:

“Desde a formação das primeiras cidades, quem as governou teve necessariamente de criar forças repressivas para resguardar os seus domínios dos ataques externos daqueles que procuravam reclamar o que estes governantes lhes arrebataram nas zonas rurais onde viviam, e contra os ataques internos dos aqueles que estavam insatisfeitos com esses governos, reinos ou impérios. Toda a história da civilização e de suas cidades e outros domínios sempre foi dividida entre governantes e governados. A questão é que a direita ama a polícia porque, para ela, os policiais se comportam como servidores que garantem a segurança de seus domínios e privilégios. Por outro lado, o problema é que seu suposto adversário, a esquerda, não busca a abolição da polícia porque isso enfraqueceria seu controle quando chegar ao poder. A abolição da polícia é um passo necessário para uma vida em plena liberdade, encontrar outras formas de convivência equilibrada e respeito é mais um passo necessário para não depender para sempre da existência da polícia. De fato, as comunidades indígenas viveram outrora sem a instituição da polícia ou sua lógica. Hoje, em várias dessas comunidades, essas lógicas e práticas estão sendo impostas como parte do processo civilizatório do sistema e dificultam nosso caminho.

Contracapa da primeira edição do Periodico Libertária. “Mais de 300 assassinados sob a democracia (2003-2020), graças a políticos e policiais. Fogo eterno para os assassinos tomberìa [polícia] e seus símbolos!”

Por fim, estamos interessados ​​nas diferentes expressões do anarquismo na região conhecida como América do Sul. Por favor, fale sobre os envolvidos nas lutas anárquicas na região peruana.

O anarquismo é muito humilde nesta região. Existem diferentes organizações e indivíduos com diferentes abordagens: anarco-sindicalismo, insurgentes, plataformistas e anarquistas sem adjetivos. Não há “black bloc” como observado em outras regiões, ou talvez haja, mas apenas muito pequeno. Tampouco existem “grandes organizações” – admitamos isso como uma forma de autocrítica – mas existem indivíduos que resistem nas diversas províncias do Peru.

A repressão em Lima que o açougueiro Manuel Merino supervisionou em 2020, que representou para muitos jovens anarquistas seu primeiro encontro com a verdadeira face do estado assassino, destacou a urgência de autocuidado e autodefesa agudos, bem como um retorno à realidade (o resultado da situação foi um governo de transição, o enfraquecimento dos protestos e injustiça permanente para os caídos).

Atualmente, com um levante em curso, os anarquistas que não vivem na capital (especialmente no sul do Peru) experimentaram suas consideráveis ​​limitações para enfrentar as forças repressivas e as armas letais da ditadura cívico-militar de Dina Boluarte.

Apesar disso, não desanimamos. A tarefa dos anarquistas hoje, desde nossa humilde posição, é acompanhar os camponeses em todas as ações diretas. Como nossas famílias camponesas , vamos junto com elas em qualquer posição possível, seja resistindo na linha de frente, desativando gás lacrimogêneo, dando assistência médica, coletando doações para nossas irmãs, divulgando medidas de autocuidado, debatendo todas as questões políticas e sociais de nossa região e, finalmente, conhecer sua experiência de resistência. Sem intermediários, políticos de esquerda e influenciadores legalistas, marchamos juntos para a destruição da ditadura cívico-militar e não descansaremos enquanto não vermos a justiça que nos foi roubada séculos atrás.

Manifestação em Puno.

PORQUE 2013 AGORA? – Novo vídeo por Antimídia

É cada vez mais comum ver pessoas e organizações de esquerda defenderem uma narrativa que busca responsabilizar as Jornadas de Junho de 2013 pela ascensão do fascismo bolsonarista, traçando paralelos entre o uso da tática black bloc e os ataques fascistas em Brasília no dia 8 de janiero de 2023. Há quem defenda que junho de 2013 teria sido orquestradas por forças ocultas para desestabilizar o governo de esquerda.  Mas essa versão não se sustenta quando analisamos o contexto de greves e movimentos sociais no período.
Assista ao vídeo editado por Antimídia, compatilhe, difunda e debata:

Não começou em 2013, não vai terminar em 2023

2013 foi o auge de uma série histórica de protestos, paralisações e ocupações que vão de 2011 a 2016, segundo uma expressão local e tendências globais derivadas da crise de 2008. Foi um ano de lutas populares, no qual houve o maior número de greves desde o fim da ditadura civil-militar (1964-1985). Foram mais de duas mil greves. Mil e cem apenas no setor privado. Aderiam a essas manifestações trabalhadores que não viam mais os sindicatos como seus representantes e que procuravam deixar manifesta sua insatisfação com a situação e a precariedade das condições de trabalho e vida. Várias categorias entraram em greve de forma autônoma, contrariando seus próprios sindicatos.

Os governos petistas alimentaram uma insatisfação popular ao gastar bilhões em megaempreendimentos, como a hidrelétrica de Belo Monte e as obras do Programa de Aceleração do Crescimento, da Copa do Mundo e das Olimpíadas, que levaram à remoção de comunidades periféricas e povos indígenas de suas terras. A esquerda vivia seu delírio de grande nação desenvolvimentista. E para garantir que a nação se desenvolvesse em direção ao progresso foi mobilizada a presença cada vez mais militarizada do Estado nas favelas, periferias e regiões onde habitam povos tradicionais. Muitas dessas obras incentivaram ainda mais o uso do automóvel, o que impulsionou movimentos orgânicos em defesa do transporte público e livre de tarifas e catracas, por mobilidade urbana e em defesa dos espaços públicos.

E enquanto a gestão do PT levou alguns movimentos sociais para dentro das instituições, por meio de conselhos participativos que nada decidem, tirando deles o papel de pressionar o Estado por mudanças, a característica autônoma e horizontal desses novos movimentos os tornou mais atraentes para a atuação política das pessoas, seguindo uma onda global do período de recusa da representação. Em todo planeta se dizia; “Não nos representam!”. Eles ganharam corpo e adesão popular por abordar o que era esquecido pela esquerda no governo, que a solução não era uma mera questão de gestão do neoliberalismo, e exigiam mudanças mais radicais.

Repressão e violência de Estado

Ao se confrontar com manifestações horizontais, sem lideranças definidas e que se recusavam a ser assimiladas, as organizações da esquerda brasileira descobriram que estavam desconectadas das demandas populares e começaram a atacar e deslegitimar a revolta. A maior parte dos partidos de esquerda lançou notas se desvinculando e criticando a ação de supostos anarquistas. Alguns inclusive ajudaram os aparatos de repressão do Estado e entregando pessoas à polícia.

O governo do Partido dos Trabalhadores e seus aliados não hesitaram em responder à indignação popular com criminalização através do aparelhamento das polícias e da aprovação de uma lei antiterrorista. Lei que tem pouco sentido em um país cuja única prática terrorista foi, e continua sendo, o terrorismo do Estado. No entanto, respondia-se a mais uma demanda internacional para a realização dos megaeventos.

Um povo que se volta contra aquele que diz ser o “governo do povo” não poderia ser um povo. A filósofa Marilena Chaui disse numa palestra para Policiais Militares do Rio de Janeiro que quem aderia à tática Black Bloc era fascista. Para tais intelectuais, até hoje, 2013 não foi uma revolta popular, mas o início do fascismo brasileiro.

Dentro dessa lógica, parte da esquerda vê 2013 como o início de uma reação das classes médias privilegiadas às conquistas sociais alcançadas durante os governos do PT, manipuladas para servir aos interesses dos inimigos imperialistas de sempre. Para inserir esses contratempos em uma narrativa global, se adotou a noção de “guerra híbrida”.

Guerra híbrida?

Guerra híbrida é um conceito, cunhado por militares estadunidenses. Uma primeira referência à expressão aparece em um artigo de 2005 escrito pelo general James Mattis e pelo tenente-coronel Frank Hoffman, ambos das forças armadas dos EUA, cujo objetivo era projetar cenários de guerras futuras. A expressão-conceito foi popularizada ao descrever as ações da Rússia durante a anexação da Crimeia em 2014. A intenção era criar na esquerda uma repulsa a mobilizações populares. Para isso difunde-se a ideia de que todas as manifestações e lutas contra opressões, como as lutas antirracista, feminista e da comunidade LGBTQIA+, assim como manifestações autônomas e contra a política representativa e as instituições, seriam na verdade demandas implantadas por governos imperialistas para desestabilizar governos.

Essa narrativa vem do livro Guerras Híbridas, que fez sucesso com a esquerda brasileira depois de 2013. Seu autor, Andrew Korybko, é um analista politico que se alinha às políticas do Estado russo e seus interesses geopolíticos. Ele defende o regime fascista de Viktor Orbán na Hungria e o AfD, partido alemão de extrema direita. Em 2016 apoiou a candidatura de Donald Trump à presidência dos Estados Unidos, para “acabar com o totalitarismo do politicamente correto”.

Korybko estrutura seu livro no pensamento geopolítico de Aleksandr Dugin, intelectual russo, conservador e cristão, que é uma das principais influências do Presidente russo Vladimir Putin. Foi Dugin que fundou o Partido Nacional-Bolchevique depois do fim da União Soviética, uma vertente do fascismo conhecida como nazbol. O nome é homenagem ao nazismo e ao comunismo bolchevique, que um dia, segundo ele, serviram de contraponto à expansão dos Estados Unidos. O símbolo do partido é similar à bandeira nazista, mas com uma foice e martelo pretos em vez da suástica no centro.

Misturando elementos do comunismo com outros da extrema-direita, busca seduzir pessoas da esquerda para um projeto político que é essencialmente fascista. Muito de seu programa pode parecer atraente para pessoas libertárias e de esquerda – pois é anticapitalista e anti-imperialista; elogia aspectos de sociedades e tradições não-ocidentais e pré-coloniais ao mesmo tempo em que condena o Estado-Nação. Essas posições – por mais necessárias que possam ser para um programa radical de esquerda – não são nem boas nem más em si mesmas; antes, são instrumentos, ferramentas para a criação de um novo mundo.

A influência de Dugin vai desde o coordenador de campanha de Trump, Steve Bannon, até o filósofo do Bolsonarismo, Olavo de Carvalho, com o qual colaborou.

Guerra midiática

As jornadas de junho de 2013 contaram com a presença popular massiva. As pessoas que protestavam em peso eram, claramente, das camadas excluídas, camelôs, moradoras de rua, faveladas, trabalhadoras precarizadas e, claro, boa parte da chamada classe média.

Ao perceber a escala das manifestações, a grande mídia considerou que a insatisfação popular poderia ser manipulada discursiva e midiaticamente. Mas mesmo com os ataques diários da imprensa corporativa, o apoio popular não parava de crescer em solidariedade contra brutalidade da violência Estatal. A tática black block, que embora não fosse novidade, ganhou destaque em meio aos protestos e teve amplo apoio popular. As mídias digitais e as redes sociais ajudaram nesse sentido, desmentindo a constante desinformação da imprensa corporativa, e permitiram que as imagens da violência Estatal fossem mostradas diretamente à população.

Quando a guerra da informação fracassou em domesticar a revolta, o Estado iniciou o processo de mobilização intensa das forças de repressão com protagonismo militar, criação de inquéritos policiais para perseguir manifestantes, arrancando pessoas de suas casas para prendê-las e treinamento para policiais atuarem em manifestações em países como Inglaterra e França. Com a repressão, as forças da ordem obtiveram mais êxito em gerir e abafar a revolta.

Fracasso da esquerda, vitória da direita

A esquerda institucional fracassou em aproveitar essas mobilizações para avançar suas pautas mais radicais (considerando que seu objetivo deveria ser esse, mas estava evidente que não era). Nem mesmo suas pautas reformistas avançaram. E até hoje se recusa em reconhecer que 2013 foi produto de uma insatisfação com o modelo de o inclusivo promovido pelos governos petistas e reação ao seu limite que havia chegado com o fim do ciclo das commodities pós crise de 2008. Até ali acreditava-se que era possível integrar a população ao mercado de consumo através de uma economia baseada no extrativismo. E não ousou perturbar as estruturas que sustentam a desigualdade no país.

Continuar a negar a legitimidade dessas manifestações é garantir a permanente criminalização do protesto e das dissidências.

Por outro lado a direita soube tirar proveito da insatisfação popular. E pela primeira vez desde 1964, voltou com força às ruas. Enquanto isso, tudo o que os setores majoritários de esquerda fizeram foi clamar pela legalidade e pela ordem. Inúmeras pessoas e organizações que se dizem de esquerda abriram mão de apoiar lutas sociais contra as opressões para defender as próprias instituições opressivas do Estado burguês.

Daqui pra frente

A volta de Lula ao jogo político é uma forma do sistema restabelecer a fé nas instituições burguesas como a democracia representativa. De certa maneira, está se tentando restabelecer os acordos entre elites econômicas, políticas e militares que fundaram a nova república e foram abaladas pelas manifestações de junho de 2013. Mas agora num arranjo ainda mais à direita e até mesmo com amplos setores da esquerda defendendo o fortalecimento de polícias, tribunais e prisões em nome da defesa do chamado “Estado democrático de direito”.

O novo governo petista precisará de alianças cada vez mais amplas para defender avanços sociais cada vez mais tímidos, ao mesmo tempo em que as condições econômicas e políticas que no passado permitiram sua governabilidade agora tendem a se deteriorar.

A estabilidade que buscam não virá apenas através de bolsas, auxílios ou políticas de inclusão. Veremos cada vez mais o aumento da vigilância e do controle, com dispositivos de segurança que multiplicam o encarceramento em massa e o genocídio dos povos pretos, indígenas e marginalizados, seja na cidade ou no campo.

O retorno de Lula e do PT ao governo pode ser uma conjuntura favorável, mas não vai durar muito. O Estado jamais extinguirá completamente o fascismo, pois depende dele para restabelecer o controle quando perde legitimidade política.

Enquanto os povos não ocuparem e tiverem autonomia sobre seus territórios e suas vidas, a pacificação e a conciliação de classes do lulismo apenas abafarão as revoltas populares, enquanto legitimam e fortalecem as instituições do Estado. E quando a esquerda perder o poder novamente, uma nova tomada fascista voltará a ser uma ameaça.


Mais sobre o tema:

A REVOLTA – essa ingovernável que perturba o sono dos governantes – artigo de 2020.

2013: memórias e resistências,  de Camila Jourdan

NÃO EXISTE OPOSIÇÃO INSTITUCIONAL AO FASCISMO: Análises sobre a escalada da violência da extrema-direita no Brasil

Com Vandalismo! – Documentário de 2014 que vai à “linha de frente” para registrar os confrontos e entrevistar os manifestantes para mostrar as motivações dos atos de desobediência civil.