“A terrível guilhotina de 1793 que não pode ser acusada nem de preguiça, nem de lentidão, não chegou a destruir a classe nobre na França. (…) E em geral, pode-se dizer que as carnificinas políticas nunca mataram os partidos; mostraram-se, sobretudo, impotentes contra as classes privilegiadas, porque a força reside menos nos homens do que nas posições ocupadas pelos homens privilegiados na organização das coisas, isto é, a instituição do Estado e sua consequência assim como sua base natural, a propriedade individual.”
– Mikhail Bakunin
No dia 6 de setembro de 2018, em Juíz de Fora, Minas Gerais, o deputado federal e candidato à presidência Jair Bolsonaro recebeu uma facada na barriga enquanto era carregado pelas ruas da cidade e escoltado por mais de 20 policiais. A ação foi flagrada por câmeras e celulares e repetida até a exaustão na televisão e pela internet. O algoz, Adelio Bispo de Oliveira, foi preso em flagrante. Taxado de “simpatizante de esquerda” por alguns e “lunático conspiratório” por outros, Adelio teria supostamente confessado o crime alegando “divergências pessoais” e que teria feito a ação “a mando de Deus”.
Enquanto algumas pessoas analisam os impactos do atentado na campanha de Bolsonaro – um defensor da ditadura, homofóbico, machista e racista declarado –, outras dizem é tudo uma completa encenação. Há também quem, num tom mais alarmista, compare o ataque contra o parlamentar ao assassinato do diplomata alemão Ernst vom Rath em 1938, que foi o estopim da Noite dos Cristais: ataques em massa contra sinagogas, casas e lojas de judeus na Alemanha e na Áustria, resultando na prisão e morte de dezenas de pessoas. De fato, é bem possível que Bolsonaro e seus eleitores usem do atentado como estratégia para se passar por vítima e despertar solidariedade em forma de ódio contra algum grupo – como sempre fazem os fascistas. Ou pior: alguns fanáticos podem usar o episódio como pretexto para praticar seus ataques semelhantes aos tiros contra o ônibus de uma caravana de apoiadores do PT e de Lula no Paraná em março de 2018. Mas, para além desses pontos, é importante discutir o uso político de atentados e assassinatos de pessoas poderosas na sociedade fora de um contexto de combate ou guerra e enquanto ação de propaganda ou mobilização social.
A visão estratégica e a visão ética
Após o ataque a Bolsonaro, a internet e as ruas ferveram em debates sobre a legitimidade ou a necessidade de matar defensores de políticas de extrema-direita e que, em última instância, colocam em risco real a vida de milhões de pessoas negras, LGBTTIQ, pobres ou imigrantes apenas por serem parte de minorias políticas. Enquanto anarquistas, nos interessa o debate porque ele toca a luta contra políticas e regimes autoritários. É um debate sobre como resistir ao extremismo da direita, mas também a qualquer forma de Estado e exploração capitalista. E as questões mais importantes que queremos tratar aqui seriam principalmente estratégicas e éticas.
Anarquistas e socialistas já mataram presidentes e reis. Mas será que conseguiram alguma mudança sistêmica profunda com ações isoladas para eliminar certos indivíduos em posições de poder? Os fatos levam a crer que não, pois as instituições que acumulam poder continuaram intactas e operando com carne sempre nova. Bakunin nos alertou também sobre essa questão quando disse que “as carnificinas políticas nunca mataram os partidos; mostraram-se, sobretudo, impotentes contra as classes privilegiadas, porque a força reside menos nos homens do que nas posições ocupadas pelos homens privilegiados na organização das coisas”. Como explica Alexandre Samis, “Bakunin acreditava que as energias revolucionárias deveriam ser concentradas na destruição das ‘coisas’, no caso, do Estado e da sociedade dividida em classes, e não das ‘pessoas’. A questão suscitada, para muito além de um contexto histórico, define para os libertários um princípio basilar: o do antiautoritarismo”. Ou seja, há muito tempo que anarquistas apontam que nossos maiores inimigos são as instituições políticas, econômicas e culturais que alimentam o conflito quando colocam umas poucas pessoas em posições de privilégios e outras em situações de opressão e subordinação.
Do ponto de vista estratégico, matar um fascista como Bolsonaro em praça pública fará pouco pelo fim do fascismo e toda forma de autoritarismo e opressão. Um problema sistêmico não desaparece com a morte de um indivíduo, por mais que tentemos personificar ideias e políticas nele. Se fosse assim, bastava esperar a morte de um ditador para que regimes caíssem e os povos vivessem em liberdade. Sabemos que sistemas autoritários permanecem após a morte de seus líderes e que atentados e assassinatos contra indivíduos separados de uma ampla luta social criam mártires e pretextos para perseguição de movimentos políticos.
Do ponto de vista ético, se confundimos as pessoas com as instituições que elas operam, cairemos na ideia de que matar um por um de cada policial, juiz, presidente ou milionário vai nos livrar das desigualdades do mundo, como se as ideias, as práticas e as instituições que criam essas desigualdades residissem nos corpos dos que matamos. E se o nosso foco for executar adversários políticos, independente da situação ou das consequências, o que garante que após uma revolução não façamos paredões de execução de inocentes e supostos “contrarrevolucionários”? Não somos pacifistas e sabemos que sempre haverá violência decorrente dos conflitos de uma revolução social que enfrente os defensores de uma ordem opressora. Mas acreditar que o fim dessa ordem depende essencialmente do sangue dos seus defensores pode abrir caminho para aparatos sociais tirânicos e assassinos que não sabem mais quando parar de matar. Vemos isso muito bem no caso dos Jacobinos após a Revolução Francesa de 1789 ou da Revolução Russa e a tomada do poder pelos Bolcheviques em 1917.
Confundir pessoas com sistemas e instituições historicamente construídas nos parece não apenas um erro estratégico mas também aponta caminhos para questões éticas, como o surgimento de tribunais revolucionários que penalizariam indivíduos como forma social exemplar e uma política de extermínio de inimigos por divergências políticas e ideológicas.
“A minha hipótese é que o tribunal não é a expressão natural da justiça popular, mas pelo contrário, tem por função histórica reduzi-la , dominá-la, sufocá-la, reinscrevendo-a no interior de instituições características do aparelho de Estado.”
– Michel Foucault
Exemplos históricos
“Matar um homem para defender uma ideia não é defender uma ideia, é matar um homem.”
– Jean-Luc Godard
Em 1901, William McKinley, presidente dos Estados Unidos foi atacado com dois tiros pelo jovem anarquista e filho de imigrantes poloneses chamado Leon Czolgosz. O presidente morreu oito dias depois devido aos ferimentos. McKinley ficou conhecido por suas políticas imperialistas na América e na perseguiçao aos povos indígenas. Durante seu governo, os Estados Unidos ganharam controle dos territórios de Porto Rico, da Ilha de Guam e do Havaí. Muitos dizem que foi durante seu governo que os EUA conquistou o papel de “polícia do mundo”. Como podemos perceber, sua morte não mudou os rumos do estado que comandava, e suas políticas não apenas permaneceram vivas, como se intensificaram. Theodore Roosevelt assumiu como presidente após a morte de McKinley e consolidou o caminho do imperialismo estadunidense nas Américas e no mundo.
Por sua vez, Leon Czolgosz não tinha muitos laços no movimento anarquista e “seu gosto por violência fez com que muitas pessoas achassem que ele era um infiltrado até o dia em que matou o presidente”. O jovem foi preso sem direito a ver qualquer familiar ou amigos e morreu na cadeira elétrica um mês depois do atentado. Na sua época, Emma Goldman foi uma das poucas pessoas no movimento anarquista que buscou entender e defender Czolgosz – mesmo depois de ter sido presa por semanas junto com mais 12 militantes anarquistas após o assassinato do presidente, sem nenhuma acusação ou justificativa formal. Muitos apontam que foi nesse momento que o socialismo ganhou destaque nos Estados Unidos enquanto o anarquismo perdeu credibilidade devido aos ataques da mídia e do governo que depreciavam anarquistas como terroristas sedentos por sangue. Os mesmos tipos de estratégias vimos após 2013 no Brasil, com a prisão de 23 militantes no Rio de Janeiro em 2014 e a tentativa de criminalizar o movimento anarquista no Rio Grande do Sul em 2017. Em ambos os casos o Estado e mídia burguesa usaram manifestações, filiações políticas e atos isolados de depredação para forjar organizações criminosas fictícias que nunca feriram nem mataram pessoas e demonizar os movimentos sociais, especialmente os anarquistas.
Se atos que nem mesmo chegaram a tirar vidas são usados para criminalizar movimentos, a violência contra indivíduos enquanto forma de propaganda política pode colocar o movimento numa posição de fragilidade contra os ataques da mídia, do Estado e da opinião pública. Não é preciso sermos reféns da opinião pública, nem nos dispor a fazer apenas aquilo que uma maioria na sociedade iria aceitar. Mas devemos entender as consequências de nossos atos e o quão fortes são nossos laços sociais e políticos para aguentar a difamação, o medo e a perseguição política.
Pessoas comuns, que ainda não tomaram partido, tendem a ver os movimentos que ganham fama com atentados como apenas uma facção militarizada, especializada em combate ou em ataques. Se uma construção de relações sociais fortes, como ocupações, cooperativas, sistemas educação e uma ampla estrutura autogerida não se tornarem conhecidas antes dos conflitos com agentes do Estado, dificilmente terão suporte após ações isoladas violentas.
Como nos contam camaradas do coletivo CrimethInc, depois que McKinley foi morto pelas mãos de um anarquista, “multidões atacaram comunas e jornais anarquistas em retaliação. O governo dos EUA passou leis anti-anarquistas. O medo do movimento abriu caminho para a criação do Bureau of Investigation (Departamento de Investigação), em 1908, que se tornou o FBI trinta anos depois. A maioria das leis anti-anarquistas não foram usadas até a Primeira Guerra Mundial, quando passaram a ser usadas contra imigrantes anarquistas e qualquer outro imigrante que representasse alguma ameaça para a nação”.
Mais recentemente, temos o exemplo da revolução social em andamento em Rojava, no norte da Síria, que tem suas raízes no surgimento do Partido dos Trabalhadores do Curdistão (PKK), fundado em 1978 no sul da Turquia levando adiante uma guerrilha urbana marxista-leninista. O povo curdo é o maior povo sem estado do mundo e conta com cerca de 4 milhões de pessoas espalhadas pelos territórios da Síria, Iraque e Turquia, vivendo há séculos como refugiados, perseguidos políticos sem direitos. Curdistão é o nome desse território não reconhecido por onde está espalhado seu povo. O PKK, desde o início formado por homens e mulheres curdas, iniciou suas ações promovendo sequestros, ataques e atentados que mataram grandes proprietários de terras que exploravam o povo curdo e alvos políticos e militares do estado turco. Paralelamente aos atentados, o PKK buscava construir atividades culturais e organizativas com o objetivo de estimular um levante popular e a criação de um estado socialista curdo independente. A forte repressão após o golpe militar na Turquia em 1980 fez com que o partido fosse considerado um grupo terrorista pela Turquia e por toda a comunidade internacional, forçado a agir na clandestinidade. Parte de suas lideranças foram presas e seus militantes se refugiaram na Síria e na Europa. Com dificuldade para atuar na Turquia, o PKK começou a realizar atentados nos países europeus.
No fim da década de 1990 o PKK anuncia que não pretende mais lutar pela criação de um estado nacional curdo e sim focar em criar autonomia para os povos fora das estruturas estatais e em 2005 declara um cessar fogo unilateral. Seu projeto político principal se torna o Confederalismo Democrático, uma forma de democracia de comunas locais dos bairros e cidades. Baseada na igualdade de gênero e no pluralismo, seu Confederalismo promove a autonomia e autodeterminação não apenas dos curdos, mas de povos de ao menos quatro etnias e três religiões. Inspirados pela revolução Zapatista no México e por ideias anarquistas como as de Murray Bookchin, os movimentos em Rojava organizaram durante décadas as estruturas educacionais, econômicas e políticas para sua autonomia e libertação. Com o início dos levantes da Primavera Árabe e a deflagração da guerra civil na Síria em 2014, os curdos não tiveram outra opção que não pegar em armas por suas vidas e seu projeto político quando encurralados entre o fascismo do Estado Islâmico e o totalitarismo dos governos da Turquia e da Síria e demais grupos rebeldes e jihadistas.
A revolução em Rojava mostrou que é importante a “democratização da violência”. Isto é, todas as pessoas, grupos e povos devem saber se defender. Uma vez que não há um Estado monopolizando o uso legítimo da violência, saber se defender de opressores externos e resolver conflitos internos passa a ser uma missão de todas as pessoas. A revolução curda conta com uma forte e disciplinada milícia popular (YPG) e uma ainda mais temida e exemplar milícia exclusivamente feminina (YPJ). Juntas, essas forças foram decisivas para derrotar e expulsar o Estado Islâmico do norte da Síria, mas hoje enfrentam as ofensivas do governo da Turquia para eliminar qualquer resistência e organização curda, mesmo fora de seu território.
A lição que o PKK e a revolução em Rojava pode nos ensinar é que começar um movimento baseado em atentados isolados e no assassinato de poderosos dificilmente vai fazer ruir um sistema opressor e construir estruturas que garantem a autonomia e a liberdade de um povo. Qualquer grupo que, para divulgar suas ideias, parta desde o início das ações violentas isoladas acaba criando uma barreira com o resto da população e ficam sem apoio contra os discursos criminalizadores do Estado. Esse tipo de ação, quando realizada fora de um contexto de guerra social ou sem um amplo trabalho de construção de poder de base, apenas coloca o movimento em um risco estratégico.
Sem o foco na construção do apoio e da participação popular, o PKK estaria fadado a acabar com seus membros presos ou mortos. Ao mudar sua política, seus objetivos a longo prazo e organizar a violência como uma forma de autodefesa coletiva, eles se afastaram dos atos de vingança contra indivíduos para construir a maior revolução social e experiência de organização de um povo sem Estado no século XXI até então. Os curdos aprenderam com as ideias e práticas anarquistas. Está na hora de aprenderemos com a experiência desses homens e mulheres comuns que escrevem juntos uma história extraordinária.
“O problema da luta armada só existe para aquele que quer conservar seu próprio monopólio de armamento legítimo, o Estado. O que existe, por outro lado, é efetivamente uma questão de uso das armas. Quando, em março de 77, 100.000 pessoas se manifestam em Roma, dentre as quais 10.000 armadas, e ao fim de um dia de enfrentamentos nenhum policial foi morto ou gravemente ferido, quando teria sido muito fácil fazer um massacre, percebemos um pouco melhor a diferença que existe entre o armamento e o uso de armas. Estar armado é um elemento da correlação de forças, a recusa de permanecer de maneira desprezível à mercê da polícia, uma maneira de se arrogar nossa impunidade legítima. Resolvido esse assunto, resta a questão da relação com a violência, uma relação cuja falha de elaboração prejudica em toda parte os progressos da subversão anti-imperial.”
– Tiqqun
Destituição no lugar de paredão
“A revolução da vida cotidiana liquidará as noções de justiça, de castigo e de suplício – noções determinadas pela troca e pelo reino do fragmentário. Não queremos ser justiceiros, mas senhores sem escravos, reencontrando, para além da destruição da escravidão, uma nova inocência, uma nova graça de viver. Trata-se de destruir o inimigo não de julgá-lo”
– Raoul Vaneigem
Anarquistas sempre rejeitaram as eleições e a democracia representativa por serem mera ilusão: uma pessoa não é capaz de encarnar os interesses de uma classe, suas vontades ou ideias. Ela, no máximo, consegue defender os interesses de uma elite administrativa enquanto parte dela. E, de fato, quem toma o Estado coloca os interesses do Estado e das classes poderosas acima das classes inferiores. Fazendo o caminho contrário, o mesmo raciocínio mostra que matar uma única pessoa não vai acabar com suas ideias, eliminar sua classe, nem necessariamente desencoraja seus apoiadores. Uma dura lição aprendida também pela Fração do Exército Vermelho (RAF) na Alemanha. Entre as décadas de 1970 e 1990 o grupo praticou assassinato de políticos, oficiais, policiais e empresários sem qualquer efeito maior na sociedade alemã. O grupo caminhou para o total isolamento na clandestinidade, além de levar à morte ou à prisão a maioria de seus membros. Os exemplos atravessam os séculos e os continentes (onde podemos destacar a Guerrilha da Araguaia no Brasil, as Brigadas Vermelhas na Itália, as FARC na Colômbia, como exemplares da limitação dessas ações), mas não caberia aqui analisar todos.
A luta revolucionária não deve ter como fim o julgamento e punição de quem praticou atos que condenamos, a revolução não é um elogio à vingança e ao ressentimento, muito menos a instrumentalização do ódio. Ela deve ser um esforço positivo de construção de estruturas de vida paralelas sem relações mediadas pela violência. Isso não significa criar um dilema moral quanto ao uso da violência. Malatesta explica muito bem que “a ideia central do anarquismo é a eliminação da violência na vida social, é a organização das relações sociais fundamentada na livre vontade de todos e de cada um, sem intervenção do policial. É por isso que somos contra o capitalismo que, apoiando-se na proteção do policial, obriga os trabalhadores a deixar-se explorar por aqueles que detêm os meios de produção, ou mesmo ficar sem trabalho e sofrer de fome quando os patrões não tem interesse em explorá-los. Eis porque somos inimigos do Estado, que é a organização coercitiva, ou seja, violenta da sociedade”. E continua: “a violência só é justificável quando é necessária para defender a si mesmo ou defender os outros contra a violência. O delito começa lá onde acaba a necessidade.” A violência pode destruir e nos libertar de uma ordem opressora, mas não é o melhor laço para manter uma sociedade livre.
“Só ajuda a violência, onde reina a violência…”
– “Santa Joana dos Matadouros”, Bertolt Brecht
Quando Durruti diz que “o Fascismo não se debate, se destrói”, acreditamos que ele está falando mais de sistemas políticos e ideias do que apenas de seus partidários. Mesmo sabendo que uma vez no front de batalha da Revolução Espanhola, sua vida e a de seu povo dependia da morte de fascistas armados que estavam tentando tomar o controle do Estado. Anarquistas não acreditam na tomada do Estado, seja pelo voto ou pela força porque sabem que a existência do Estado em si depende e perpetua uma divisão da sociedade em classes de dirigentes e dirigidos. Em uma sociedade onde não existem cargos executivos ou militares que acumulam tanto poder, não existe o risco de um fascista tomar esse cargo e fazer valer suas vontades políticas e caprichos pessoais. Sem o Estado, o Exército, a propriedade privada e a polícia para defendê-la, homens como Jair Bolsonaro ou Eike Batista são apenas idiotas arrogantes e egoístas. Sem essas posições de poder, esses homens não são nada. Mas sem esses homens, tais posições de poder continuam sendo uma ameaça para nós aqui embaixo, pois basta alguém assumir seu lugar que o sistema continua seu trabalho da mesma forma.
Se vamos tomar de volta a capacidade de nos organizar, devemos começar pela capacidade de organizar a morte do Estado e do Capital, não de indivíduos. Somente a organização descentralizada, horizontal e autônoma da sociedade de forma a tornar essas instituições fracas e inúteis vai nos libertar dos efeitos opressivos delas. Se queremos uma sociedade livre, devemos priorizar a criação de um poder coletivo e social que torne essas instituições fracas e inoperantes, a ponto delas não fazerem a menor diferença em nossas vidas, sem necessariamente destruir as pessoas operando elas, ou fazer disso um projeto político. E então, poderemos destruí-las, deixando-as perecer sem ninguém por perto. Como descrito pelo Comitê Invisível, precisamos destituir o poder estatal e capitalista:
“Subtrair-se às instituições é tudo menos deixar um vazio, é sufocá-la positivamente. Destituir não é, portanto, atacar instituição, mas, sim, a necessidade que temos dela. Não é criticá-la (…), mas assumir realmente o que se supõe que ela faz, fora dela. Destituir a universidade é estabelecer longe dela lugares de pesquisa, de formação e de pensamento mais vivos do que ela é (…). Destituir a justiça é aprender a regular, nós mesmos, nossos desacordos, colocar para isso um método, paralisar sua faculdade de julgar e expulsar seus oficiais de justiça de nossas vidas. Destituir a medicina é saber o que é bom para nós e o que nos deixa doentes, arrancar da instituição os saberes apaixonados que nela sobrevivem em suas obras e não voltar jamais a se encontrar só, no hospital, com o corpo entregue à soberania artística de um cirurgião desdenhoso. Destituir o governo é se tornar ingovernável. Quem falou em vencer? Superar é tudo. O gesto destituinte não se opõe à instituição, ele não coloca contra ela uma luta frontal, mas a neutraliza, esvazia-a de sua substância, dá um passo para trás e a observa morrer.”
(Agora – Motim e Destituição)
Coragem para se encontrar
Não é necessário também oferecer um julgamento moral das ações de outros anarquistas ou indivíduos aparentemente desesperados como Adelio Bispo, que tiveram coragem de mostrar a políticos e outros poderosos que suas ações para manter um mundo de desigual e opressivo terão consequências. Precisamos, acima de tudo, entender o contexto de isolamento e frustração causados pela vida em uma sociedade tão desigual, que pode levar alguém a tomar partido e realizar tais ações tão extremas.
Muitas pessoas oprimidas se sentem impotentes e querem romper com esse sentimento da forma mais rápida possível. Tão comum como o atentado contra figuras de poder, é a autodestruição transforma em da ação política. Já comentamos sobre o homem de cinquenta anos que ateou fogo em si mesmo na frente do Palácio do Planalto no dia em que um muro era erguido por presidiários para separar manifestantes de esquerda de manifestantes de direita no dia da votação do Impeachment de Dilma Roussef em 2016. Ele foi levado ao hospital com cerca de 70% do corpo queimado, mas sobreviveu. Seu gesto se compara ao de Mohamed Bouazizi, o vendedor ambulante tunisiano impedido de trabalhar que se matou com gasolina e fogo em frente a um prédio público e foi o estopim das revoltas hoje conhecidas como Primavera Árabe. Ambos os atos denunciam a violência silenciosa de uma sociedade que cala e isola indivíduos até que não sobre nada além da solidão e do desespero. Na impossibilidade de se encontrar com outros corpos para organizar a resistência, a opção encontrada por esses homens foi transformar o desespero em uma forma de potência, mesmo que autodestrutiva – com a diferença de que a do brasileiro que ateou fogo em seu próprio corpo não iniciou nenhum grande levante.
Adelio Bispo pode até saber que Bolsonaro representa uma ameaça a vida dos pobres e minorias, porém, mais do que nunca, é a vida de Adelio que agora está em risco. Depois de ser linchado e preso, ele será processado com base na Lei de Segurança Nacional, criada durante a ditadura que Bolsonaro tanto elogia e tem saudades – mais uma prova de que mesmo anos após a saída ou mesmo a morte de seus líderes, os aparatos de uma ditadura militar não apenas continuam vivos, mas continuam operantes dentro de uma democracia.
Por fim, temos uma mensagem a todas as pessoas que, por raiva ou frustração, pensam em furar um bloqueio policial para tirar a vida de um tirano com suas próprias mãos, ou atear fogo em si mesmas como um último protesto: vocês não estão sós!
E uma mensagem para todos aqueles que querem nos manter sob controle, opressão ou mortos: vocês não estão seguros!
É possível e necessário nos encontrar e nos organizar para planejar a queda de regimes inteiros e não apenas de um tirano. Não deixaremos a ansiedade e a frustração guiarem nossos atos nem aceitem correr o risco de ir para a prisão ou túmulo sem apoio, solidariedade ou mesmo em vão. A construção de um novo mundo livre da autoridade do Estado ou do capital certamente levará ao confronto com pessoas que querem defender sua existência, por isso não devemos hesitar na hora de defender nossas vidas e as de nossos pares. Existem pessoas que já mostraram a coragem de arriscar a vida pelo bem de todas as outras pessoas oprimidas. É preciso sermos fortes e nos organizar para que ninguém tenha que lutar ou sofrer na solidão, no isolamento. Quanto mais pessoas oprimidas compartilharem dessa coragem, mais teremos força para derrubar os tiranos desse mundo, levando seus regimes com eles – e a esse dia daremos o nome de revolução.