DA DISCORDÂNCIA AO ÓDIO

Como nossa forma de comunicar pode sabotar nossos esforços*

Nas últimas duas décadas nossos costumes avançaram pelo menos um pouco no sentido de aceitação da homossexualidade, na luta contra o racismo, na igualdade de gêneros e no respeito às minorias de forma geral. Agora estamos assustadas com uma onda reacionária que dominou o país, propagando um discurso de ódio e intolerância com as minorias e com os movimentos sociais, ao ponto de pipocarem agressões homofóbicas, antifeministas e esquerdofóbicas por todo o lado. O que deu errado? Por quê as pessoas estão se opondo tão violentamente a mudanças que visam construir um mundo com mais tolerância e igualdade e sentem tamanho ódio por ativistas e pessoas que defendem a igualdade das mulheres, a igualdade de gêneros?

Em termos de conteúdo, nosso discurso pode ser muito diferente do da direita reacionária e conservadora, mas, pelo menos até o momento, tem sido idêntico na forma. “Eu tô certo, você está errado!” é a forma de comunicação preferida na civilização ocidental e nas suas esferas de influência desde o seu surgimento. Seja com nossas famílias, em nosso círculo de amizades, com nossas colegas de trabalho ou com uma pessoa estranha na rua, quando nos deparamos com uma discordância, somos ensinadas desde pequenas a argumentar, jamais a dialogar. Quando uma criança faz algo que pessoas adultas não aprovam, ela logo é posta em seu lugar: “Não pode!”, “Sua irresponsável!”, “Isso é errado!”. Ao invés de dialogarmos com ela para descobrir por que fez e o que estava tentando fazer com aquilo, somos impelidas (pela nossa própria criação) a demonstrar todas as formas em que elas erraram.

E nas nossas discussões sobre política e transformação social, agimos da mesma forma. Estamos sempre prontas para acusar e criticar, mas jamais para tentar compreender o que faz aquela pessoa pensar e agir daquele jeito, nem para expor nossos sentimentos e juntas tentarmos encontrar uma solução para nossos problemas. Quando fazemos isso sem ouvi-las e buscar a empatia, estamos negando a validade do seu ponto de vista, da sua vivência e tentando impor a nossa visão como a Verdade.

E isso parece não estar dando certo para ninguém.

Todo ataque, gera resistência.

Assim como a violência do Estado e do capitalismo gera resistência por parte das pessoas que lutam por liberdade e por um mundo com mais igualdade, quando agimos ou dizemos algo que outras pessoas interpretam como crítica, julgamento ou reprovação, é muito provável que surja resistência às mudanças que estamos tentando realizar. É normal ficar na defensiva durante um ataque, mesmo que argumentativo, e, dentro de um certo limite, isso é até mesmo saudável para não aceitarmos acriticamente tudo que nos dizem e sermos manipuladas.

Os últimos anos de avanços na igualdade social, como o maior acesso da população negra às universidades através das cotas, o empoderamento das mulheres para denunciar abusadores publicamente e a coragem de casais homoafetivos de demonstrar o seu amor em público, entre outros, trouxeram no seu encalço uma resistência feroz. Pessoas que se sentiram julgadas ou acusadas de serem machistas, racistas, homofóbicas, e todo mundo que se identificou com elas por ser parte de uma cultura que ainda propaga esses valores, ficaram na defensiva e ali se entrincheiraram. Isso colaborou com a polarização política que acabou levando Bolsonaro, Mourão e uma horda de reacionários ao Palácio do Planalto, o que agora pode pôr tudo a perder.

Ainda estamos presas a uma mentalidade de tentar realizar transformações acusando as outras pessoas de estarem erradas, e isso não está funcionando.

Quando abrimos mão do diálogo, a única forma de mudar o comportamento opressivo de outra pessoa é através do constrangimento ou do medo. Ou seja, através da ameaça de ostracização ou de uso da força. A ostracização não resolve o problema, apenas o afasta de nossos olhos. Por exemplo, ostracizar uma pessoa homofóbica não fará com que ela deixe de ser hostil a pessoas em relacionamentos homoafetivos, apenas fará com que ela faça isso longe de nossos olhos e de nossa esfera de influência – ou seja, empurramos o problema para outras pessoas.

Já a força não é uma forma eficaz de convencimento e de mudanças a longo prazo, principalmente se o que queremos é um mundo baseado no princípio da liberdade. O uso da força pode sim ser eficiente como defesa, para preservar a vida frente a uma ameaça. Se a polícia representa uma ameaça à liberdade e à vida das pessoas, a força pode ser útil para impedir o seu avanço, protegendo as pessoas da repressão. Se uma mulher está prestes a ser violentada por um homem, esfaqueá-lo pode ser uma forma eficaz de preservar a integridade física e mental dela. A ameaça de violência física também pode dissuadir um grupo fascista de cometer ataques homofóbicos e racistas, e a sabotagem pode proteger uma floresta do desmatamento iminente. Embora a força possa ser uma boa solução para ameaças imediatas à vida, não é a melhor solução a longo prazo.

“As pessoas foram treinadas a criticar, insultar e se comunicar de formas que distanciam as pessoas.”

— Marshall B. Rosenberg

Se forçamos alguém através do constrangimento, da coerção ou do medo de punição a fazer algo contra a sua vontade, essa pessoa voltará a fazer isso assim que enxergar uma oportunidade de fazê-lo sem sofrer retaliação. Se o número de pessoas constrangidas for grande, elas poderão fazer parte de um movimento reacionário.

Opondo-se a ideias, não a pessoas

Chamar alguém de fascista, machista, racista ou homofóbico pode fazer a gente se sentir bem, descarregar um pouco da nossa raiva e frustração e reforçar nosso sentimento de estarmos do lado da justiça e da liberdade. Mas vai ser pouco eficiente em transformar as ações dessa pessoa. Se ela luta por mudanças radicais, como nós, isso pode fazer com que se sinta inferiorizada, que não é boa ou pura o suficiente, e isso pode acabar imobilizando-a ou afastando-a do movimento. Se ela simpatiza com nossa luta, mas não é tão radical quanto nós, a probabilidade de afastá-la é ainda maior e poderemos ser taxadas de extremistas, reduzindo nosso apoio em grupos mais moderados. Por outro lado se ela for mais conservadora ou não for familiarizada com ideias mais radicais, ela pode acabar se identificando com os rótulos que impomos a elas, assumindo a pecha de antifeminista, de defensor dos direitos dos homens, passar falar de racismo invertido e outras formas de vitimismo.

Há uma diferença entre acusar alguém de “ser” racista e de ter agido de forma racista. O mesmo vale para o sexismo, a homofobia ou o fascismo. Essas opressões estão entranhadas dentro de nós e mesmo a pessoa mais esclarecida pode cometer atos machistas, racistas, sem ter consciência, mas isso não significa que ela pense que mulheres ou pessoas negras são inferiores ou que devem ser tratadas de forma diferente. Se em certo momento ela agiu de forma que consideramos opressora, se conversarmos sobre essa ação específica será mais fácil para nós dialogarmos abertamente e também para ela evitar realizar aquela mesma ação no futuro. Mas se a rotulamos como machista, racista, homofóbica, a congelamos no status de opressora, e será muito mais difícil para nós estabelecermos um diálogo com ela e mais difícil será para ela mudar, e portanto estaremos mais distantes do nosso objetivo de acabar com a opressão.

Se enxergamos as outras pessoas como iguais e não queremos oprimi-las, impondo nosso ponto de vista, a saída é estabelecer um diálogo. Para isso, precisamos ouvir e ser ouvidas, o que é muito raro hoje em dia. Realmente escutar nossa interlocutora não é ficar pensando, enquanto ela fala, em como retrucá-la, mas ouvir o que ela tem a dizer, tentar descobrir como ela está se sentindo e o que leva ela a se sentir assim. Muitas vezes, somente depois de ter certeza que você ouviu o que ela tinha a dizer, uma pessoa se abrirá para saber o que você sente, precisa e as mudanças que gostaria de ver. Precisamos aprender a discordar das ideias de alguém sem desumanizar a pessoa.
É improvável que conseguiremos resolver as disputas numa única conversa, mas mesmo que haja discordância é precioso mantermos os canais abertos para irmos compreendendo umas às outras e quem sabe um dia elas estarão prontas para atender nossos pedidos.

“O mundo não está dividido entre Oriente e Ocidente. Você é americana, eu sou iraniana, nós não nos conhecemos, mas conversamos e nos entendemos perfeitamente. A diferença entre você e seu governo é muito maior que a diferença entre você e eu. E a diferença entre eu e meu governo é muito maior que a diferença entre eu e você. E nossos governos são muito parecidos.”

— Marjane Satrapi, quadrinista iraniana.

Nem sempre é fácil manter um diálogo com quem pensa e fala coisas que ferem nossos princípios e valores. Fica mais fácil se mantivermos o foco em qual necessidade humana aquela pessoa está tentando proteger quando diz e pensa isso. Afinal, todas precisamos das mesmas coisas: sustento, segurança, liberdade, paz, compreensão, etc. É claro que manter esse tipo de diálogo demanda uma boa quantidade de disposição e energia e, por vezes, pode ser muito tentador mandar a pessoa catar coquinhos e seguir com nossa vida. Por essa razão, precisamos conhecer e respeitar nossos próprios limites. Se não estamos conseguindo manter um diálogo, temos que ter em mente que é sempre possível interrompê-lo e perguntar à outra pessoa se ela estaria disposta a continuar em outro momento. Também precisamos aprender a pedir ajuda quando necessário.
A fim de conseguirmos escutar alguém, precisamos nos sentir escutadas e para isso é importante ter pessoas em quem confiamos com quem podemos nos abrir e desabafar. Ao criar redes de pessoas que se escutam, começamos a criar uma cultura de diálogo. Essa cultura se faz muito necessária em uma conjuntura que, estimulada pelas redes sociais corporativas (Facebook, Instagram, etc.), facilita o bloqueio e a exclusão de pessoas de quem discordamos de nossas bolhas e da nossa própria existência digital.

Quem mais se beneficia do isolamento e da desintegração das comunidades é o Estado, o fascismo e qualquer grupo interessado em fazer perseguição política. Se queremos um mundo livre de opressão, precisamos encontrar formas não-coercitivas de criá-lo, senão estaremos reproduzindo as mesmas dinâmicas e estaremos portanto fadadas ao fracasso.

 

*Originalmente publicado por camaradas da revista Fagulha.

TODAS CONTRA BOLSONARO E A NOVA DIREITA!

No dia primeiro de janeiro de 2019, Jair Bolsonaro assumirá a presidência do Brasil. Sua candidatura, seu governo e seus aliados representam o que há de pior em qualquer sociedade: o autoritarismo, o sexismo, o racismo, a homofobia e a xenofobia. O capitalismo aliado a práticas com fortes tendências fascistas!

O novo presidente já mostrou que as minorias políticas serão os principais alvos de seu governo: a classe trabalhadora e pobre, as mulheres, a população negra e periférica, toda comunidade LGBTTIQ, os povos indígenas e imigrantes terão ainda mais direitos ameaçados e suas vidas colocas em risco.

Usando notícias falsas, boatos e distorções dos fatos, Bolsonaro e seus apoiadores foram capazes de influenciar milhões de pessoas e fugir de todos os debates sobre seus projetos e ideias.

Ele representa um risco aos ecossistemas ao querer acabar com leis e acordos ambientais, negando a existência do aquecimento global e planejando entregar reservas ecológicas e terras indígenas ao agronegócio e ao mercado internacional. Escândalos envolvendo sua equipe apenas mostram que Bolsonaro usará da mesma corrupção que os governos anteriores.

Suas visões políticas foram amplamente elogiadas por supremacistas brancos como David Duke da Ku Klux Klan e sua corrida eleitoral apoiada por Steve Bannon, estrategista de campanha de Donald Trump, presidente americano que Bolsonaro promete total subserviência.

Portanto, não é possível esperar: 2019 deve ser um ano de luta ainda mais intensa. Convidamos a todas e todos, comunidades, movimentos, coletivos, associações, estudantes, trabalhadores e trabalhadoras e quem não tem trabalho para a organizar uma luta ampla e para além da política partidária. A polarização entre direita e esquerda no nível eleitoral tem servido de distração e colocado projetos de poder semelhantes como aparentemente opostos. Enquanto isso, deixa intacta a raiz do problema que se encontra no Estado e na forma capitalista da sociedade.

Devemos lembrar que as leis antiterroristas que criminalizam protestos e movimentos sociais foram criadas e aplicadas durante o governo dito de esquerda de Lula e Dilma Rousseff. E agora, serão aprimoradas e usadas pelo governo de Bolsonaro para neutralizar qualquer oposição popular nas ruas.

Nas palavras do próprio Bolsonaro: as oposições e também as todas as formas de ativismo estarão banidas do país. A violência policial será ainda mais intensa e a turba influenciada por seus discursos de ódio que saíram do armário em sua campanha, não voltará para lá. Eles também estarão nas ruas agora!

Não podemos recuar. Estivemos nas ruas contra o aumento das passagens e a Copa das Confederações em 2013, contra os impactos da Copa do Mundo em 2014 e das Olimpíadas em 2016. Nas ocupações das escolas em 2015 enfrentando os cortes da educação. Nas escolas e instituições culturais ocupadas contra as medidas de Michel Temer em 2016. Em 2017 e 2018 em todas as greves, ocupações e marchas contra o atual governo.

É necessário tomar novamente as ruas para resistir, deslegitimar e expor os absurdos defendidos por Bolsonaro como uma ameaça a todas as pessoas, para o meio ambiente e para as gerações futuras.

Estaremos nas ruas com protestos, organização popular, ação direta. Convidamos agora para essa luta, todas e todos aqueles que sistematicamente vem sido prejudicados por governos e pelo capitalismo durante toda sua vida, e também aqueles que agora serão ainda mais atingidos e desejam resistir ao governo de extrema-direita de Jair Bolsonaro, combatendo os grupos autoritários, conservadores, neoliberais e fascistas que estão tomando às ruas e as instituições políticas nos últimos anos.

Desde o dia da sua posse, primeiro de janeiro, ocuparemos as ruas contra toda e qualquer medida imposta pelo seu governo. A luta pela terra, por moradia, pela nossa existência, por justiça e igualdade deverá ser mais intensa do que nunca. Estaremos também nos dias históricos das lutas populares:

oito de março, dia da mulher; 19 de abril, dia da resistência indígena; primeiro de maio, dia dos trabalhadores e trabalhadoras; 28 de junho, dia do orgulho LGBTTIQ; sete de setembro e o grito dos excluídos; 20 de novembro dia da consciência negra.

Será preciso tomar toda oportunidade de demonstrar que não existe consenso. A maioria da população não votou em um governo autoritário, que abre as portas para maior militarização da sociedade, para o fascismo e para a supremacia branca e patriarcal.

Não iremos parar de lutar até que o Estado e o capitalismo caiam!

Em 2019, Bolsonaro e seus aliados não terão descanso!

Organizar a morte do Estado e do Capital, não de pessoas – perspectivas revolucionárias sobre atentados e assassinato de poderosos

“A terrível guilhotina de 1793 que não pode ser acusada nem de preguiça, nem de lentidão, não chegou a destruir a classe nobre na França. (…) E em geral, pode-se dizer que as carnificinas políticas nunca mataram os partidos; mostraram-se, sobretudo, impotentes contra as classes privilegiadas, porque a força reside menos nos homens do que nas posições ocupadas pelos homens privilegiados na organização das coisas, isto é, a instituição do Estado e sua consequência assim como sua base natural, a propriedade individual.”

– Mikhail Bakunin

No dia 6 de setembro de 2018, em Juíz de Fora, Minas Gerais, o deputado federal e candidato à presidência Jair Bolsonaro recebeu uma facada na barriga enquanto era carregado pelas ruas da cidade e escoltado por mais de 20 policiais. A ação foi flagrada por câmeras e celulares e repetida até a exaustão na televisão e pela internet. O algoz, Adelio Bispo de Oliveira, foi preso em flagrante. Taxado de “simpatizante de esquerda” por alguns e “lunático conspiratório” por outros, Adelio teria supostamente confessado o crime alegando “divergências pessoais” e que teria feito a ação “a mando de Deus”.

Pintura de Flavio Costantini representando o momento em que anarquista italiano Gaetano Bresci mata o Rei Umberto em 1900. Um ano antes, Bresci salvou a vida do ilustre anarquista Errico Malatesta ao se jogar sobre um homem que queria matá-lo com um tiro nos Estados Unidos.

Enquanto algumas pessoas analisam os impactos do atentado na campanha de Bolsonaro – um defensor da ditadura, homofóbico, machista e racista declarado –, outras dizem é tudo uma completa encenação. Há também quem, num tom mais alarmista, compare o ataque contra o parlamentar ao assassinato do diplomata alemão Ernst vom Rath em 1938, que foi o estopim da Noite dos Cristais: ataques em massa contra sinagogas, casas e lojas de judeus na Alemanha e na Áustria, resultando na prisão e morte de dezenas de pessoas. De fato, é bem possível que Bolsonaro e seus eleitores usem do atentado como estratégia para se passar por vítima e despertar solidariedade em forma de ódio contra algum grupo – como sempre fazem os fascistas. Ou pior: alguns fanáticos podem usar o episódio como pretexto para praticar seus ataques semelhantes aos tiros contra o ônibus de uma caravana de apoiadores do PT e de Lula no Paraná em março de 2018. Mas, para além desses pontos, é importante discutir o uso político de atentados e assassinatos de pessoas poderosas na sociedade fora de um contexto de combate ou guerra e enquanto ação de propaganda ou mobilização social.

O momento em que um cidadão confere se um parlamentar tem sangue e merda na barriga como todos os outros mortais.
A visão estratégica e a visão ética

Após o ataque a Bolsonaro, a internet e as ruas ferveram em debates sobre a legitimidade ou a necessidade de matar defensores de políticas de extrema-direita e que, em última instância, colocam em risco real a vida de milhões de pessoas negras, LGBTTIQ, pobres ou imigrantes apenas por serem parte de minorias políticas. Enquanto anarquistas, nos interessa o debate porque ele toca a luta contra políticas e regimes autoritários. É um debate sobre como resistir ao extremismo da direita, mas também a qualquer forma de Estado e exploração capitalista. E as questões mais importantes que queremos tratar aqui seriam principalmente estratégicas e éticas.

Anarquistas e socialistas já mataram presidentes e reis. Mas será que conseguiram alguma mudança sistêmica profunda com ações isoladas para eliminar certos indivíduos em posições de poder? Os fatos levam a crer que não, pois as instituições que acumulam poder continuaram intactas e operando com carne sempre nova. Bakunin nos alertou também sobre essa questão quando disse que “as carnificinas políticas nunca mataram os partidos; mostraram-se, sobretudo, impotentes contra as classes privilegiadas, porque a força reside menos nos homens do que nas posições ocupadas pelos homens privilegiados na organização das coisas”. Como explica Alexandre Samis, “Bakunin acreditava que as energias revolucionárias deveriam ser concentradas na destruição das ‘coisas’, no caso, do Estado e da sociedade dividida em classes, e não das ‘pessoas’. A questão suscitada, para muito além de um contexto histórico, define para os libertários um princípio basilar: o do antiautoritarismo”. Ou seja, há muito tempo que anarquistas apontam que nossos maiores inimigos são as instituições políticas, econômicas e culturais que alimentam o conflito quando colocam umas poucas pessoas em posições de privilégios e outras em situações de opressão e subordinação.

Do ponto de vista estratégico, matar um fascista como Bolsonaro em praça pública fará pouco pelo fim do fascismo e toda forma de autoritarismo e opressão. Um problema sistêmico não desaparece com a morte de um indivíduo, por mais que tentemos personificar ideias e políticas nele. Se fosse assim, bastava esperar a morte de um ditador para que regimes caíssem e os povos vivessem em liberdade. Sabemos que sistemas autoritários permanecem após a morte de seus líderes e que atentados e assassinatos contra indivíduos separados de uma ampla luta social criam mártires e pretextos para perseguição de movimentos políticos.

Do ponto de vista ético, se confundimos as pessoas com as instituições que elas operam, cairemos na ideia de que matar um por um de cada policial, juiz, presidente ou milionário vai nos livrar das desigualdades do mundo, como se as ideias, as práticas e as instituições que criam essas desigualdades residissem nos corpos dos que matamos. E se o nosso foco for executar adversários políticos, independente da situação ou das consequências, o que garante que após uma revolução não façamos paredões de execução de inocentes e supostos “contrarrevolucionários”? Não somos pacifistas e sabemos que sempre haverá violência decorrente dos conflitos de uma revolução social que enfrente os defensores de uma ordem opressora. Mas acreditar que o fim dessa ordem depende essencialmente do sangue dos seus defensores pode abrir caminho para aparatos sociais tirânicos e assassinos que não sabem mais quando parar de matar. Vemos isso muito bem no caso dos Jacobinos após a Revolução Francesa de 1789 ou da Revolução Russa e a tomada do poder pelos Bolcheviques em 1917.

Confundir pessoas com sistemas e instituições historicamente construídas nos parece não apenas um erro estratégico mas também aponta caminhos para questões éticas, como o surgimento de tribunais revolucionários que penalizariam indivíduos como forma social exemplar e uma política de extermínio de inimigos por divergências políticas e ideológicas.

“A minha hipótese é que o tribunal não é a expressão natural da justiça popular, mas pelo contrário, tem por função histórica reduzi-la , dominá-la, sufocá-la, reinscrevendo-a no interior de instituições características do aparelho de Estado.”

– Michel Foucault

Bolsonaro e sua metralhadora imaginária: você pode matar um homem, mas a babaquice é imortal.
Exemplos históricos

“Matar um homem para defender uma ideia não é defender uma ideia, é matar um homem.”

– Jean-Luc Godard

Em 1901, William McKinley, presidente dos Estados Unidos foi atacado com dois tiros pelo jovem anarquista e filho de imigrantes poloneses chamado Leon Czolgosz. O presidente morreu oito dias depois devido aos ferimentos. McKinley ficou conhecido por suas políticas imperialistas na América e na perseguiçao aos povos indígenas. Durante seu governo, os Estados Unidos ganharam controle dos territórios de Porto Rico, da Ilha de Guam e do Havaí. Muitos dizem que foi durante seu governo que os EUA conquistou o papel de “polícia do mundo”. Como podemos perceber, sua morte não mudou os rumos do estado que comandava, e suas políticas não apenas permaneceram vivas, como se intensificaram. Theodore Roosevelt assumiu como presidente após a morte de McKinley e consolidou o caminho do imperialismo estadunidense nas Américas e no mundo.

Por sua vez, Leon Czolgosz não tinha muitos laços no movimento anarquista e “seu gosto por violência fez com que muitas pessoas achassem que ele era um infiltrado até o dia em que matou o presidente”. O jovem foi preso sem direito a ver qualquer familiar ou amigos e morreu na cadeira elétrica um mês depois do atentado. Na sua época, Emma Goldman foi uma das poucas pessoas no movimento anarquista que buscou entender e defender Czolgosz – mesmo depois de ter sido presa por semanas junto com mais 12 militantes anarquistas após o assassinato do presidente, sem nenhuma acusação ou justificativa formal. Muitos apontam que foi nesse momento que o socialismo ganhou destaque nos Estados Unidos enquanto o anarquismo perdeu credibilidade devido aos ataques da mídia e do governo que depreciavam anarquistas como terroristas sedentos por sangue. Os mesmos tipos de estratégias vimos após 2013 no Brasil, com a prisão de 23 militantes no Rio de Janeiro em 2014 e a tentativa de criminalizar o movimento anarquista no Rio Grande do Sul em 2017. Em ambos os casos o Estado e mídia burguesa usaram manifestações, filiações políticas e atos isolados de depredação para forjar organizações criminosas fictícias que nunca feriram nem mataram pessoas e demonizar os movimentos sociais, especialmente os anarquistas.

Se atos que nem mesmo chegaram a tirar vidas são usados para criminalizar movimentos, a violência contra indivíduos enquanto forma de propaganda política pode colocar o movimento numa posição de fragilidade contra os ataques da mídia, do Estado e da opinião pública. Não é preciso sermos reféns da opinião pública, nem nos dispor a fazer apenas aquilo que uma maioria na sociedade iria aceitar. Mas devemos entender as consequências de nossos atos e o quão fortes são nossos laços sociais e políticos para aguentar a difamação, o medo e a perseguição política.

Pessoas comuns, que ainda não tomaram partido, tendem a ver os movimentos que ganham fama com atentados como apenas uma facção militarizada, especializada em combate ou em ataques. Se uma construção de relações sociais fortes, como ocupações, cooperativas, sistemas educação e uma ampla estrutura autogerida não se tornarem conhecidas antes dos conflitos com agentes do Estado, dificilmente terão suporte após ações isoladas violentas.

Como nos contam camaradas do coletivo CrimethInc, depois que McKinley foi morto pelas mãos de um anarquista, “multidões atacaram comunas e jornais anarquistas em retaliação. O governo dos EUA passou leis anti-anarquistas. O medo do movimento abriu caminho para a criação do Bureau of Investigation (Departamento de Investigação), em 1908, que se tornou o FBI trinta anos depois. A maioria das leis anti-anarquistas não foram usadas até a Primeira Guerra Mundial, quando passaram a ser usadas contra imigrantes anarquistas e qualquer outro imigrante que representasse alguma ameaça para a nação”.

Mais recentemente, temos o exemplo da revolução social em andamento em Rojava, no norte da Síria, que tem suas raízes no surgimento do Partido dos Trabalhadores do Curdistão (PKK), fundado em 1978 no sul da Turquia levando adiante uma guerrilha urbana marxista-leninista. O povo curdo é o maior povo sem estado do mundo e conta com cerca de 4 milhões de pessoas espalhadas pelos territórios da Síria, Iraque e Turquia, vivendo há séculos como refugiados, perseguidos políticos sem direitos. Curdistão é o nome desse território não reconhecido por onde está espalhado seu povo. O PKK, desde o início formado por homens e mulheres curdas, iniciou suas ações promovendo sequestros, ataques e atentados que mataram grandes proprietários de terras que exploravam o povo curdo e alvos políticos e militares do estado turco. Paralelamente aos atentados, o PKK buscava construir atividades culturais e organizativas com o objetivo de estimular um levante popular e a criação de um estado socialista curdo independente. A forte repressão após o golpe militar na Turquia em 1980 fez com que o partido fosse considerado um grupo terrorista pela Turquia e por toda a comunidade internacional, forçado a agir na clandestinidade. Parte de suas lideranças foram presas e seus militantes se refugiaram na Síria e na Europa. Com dificuldade para atuar na Turquia, o PKK começou a realizar atentados nos países europeus.

No fim da década de 1990 o PKK anuncia que não pretende mais lutar pela criação de um estado nacional curdo e sim focar em criar autonomia para os povos fora das estruturas estatais e em 2005 declara um cessar fogo unilateral. Seu projeto político principal se torna o Confederalismo Democrático, uma forma de democracia de comunas locais dos bairros e cidades. Baseada na igualdade de gênero e no pluralismo, seu Confederalismo promove a autonomia e autodeterminação não apenas dos curdos, mas de povos de ao menos quatro etnias e três religiões. Inspirados pela revolução Zapatista no México e por ideias anarquistas como as de Murray Bookchin, os movimentos em Rojava organizaram durante décadas as estruturas educacionais, econômicas e políticas para sua autonomia e libertação. Com o início dos levantes da Primavera Árabe e a deflagração da guerra civil na Síria em 2014, os curdos não tiveram outra opção que não pegar em armas por suas vidas e seu projeto político quando encurralados entre o fascismo do Estado Islâmico e o totalitarismo dos governos da Turquia e da Síria e demais grupos rebeldes e jihadistas.

Milícias internacionalistas anarquistas/queer em Rojava: quando o confronto for inevitável, sabemos que matar fascistas não deve ser um dilema.

A revolução em Rojava mostrou que é importante a “democratização da violência”. Isto é, todas as pessoas, grupos e povos devem saber se defender. Uma vez que não há um Estado monopolizando o uso legítimo da violência, saber se defender de opressores externos e resolver conflitos internos passa a ser uma missão de todas as pessoas. A revolução curda conta com uma forte e disciplinada milícia popular (YPG) e uma ainda mais temida e exemplar milícia exclusivamente feminina (YPJ). Juntas, essas forças foram decisivas para derrotar e expulsar o Estado Islâmico do norte da Síria, mas hoje enfrentam as ofensivas do governo da Turquia para eliminar qualquer resistência e organização curda, mesmo fora de seu território.

A lição que o PKK e a revolução em Rojava pode nos ensinar é que começar um movimento baseado em atentados isolados e no assassinato de poderosos dificilmente vai fazer ruir um sistema opressor e construir estruturas que garantem a autonomia e a liberdade de um povo. Qualquer grupo que, para divulgar suas ideias, parta desde o início das ações violentas isoladas acaba criando uma barreira com o resto da população e ficam sem apoio contra os discursos criminalizadores do Estado. Esse tipo de ação, quando realizada fora de um contexto de guerra social ou sem um amplo trabalho de construção de poder de base, apenas coloca o movimento em um risco estratégico.

Sem o foco na construção do apoio e da participação popular, o PKK estaria fadado a acabar com seus membros presos ou mortos. Ao mudar sua política, seus objetivos a longo prazo e organizar a violência como uma forma de autodefesa coletiva, eles se afastaram dos atos de vingança contra indivíduos para construir a maior revolução social e experiência de organização de um povo sem Estado no século XXI até então. Os curdos aprenderam com as ideias e práticas anarquistas. Está na hora de aprenderemos com a experiência desses homens e mulheres comuns que escrevem juntos uma história extraordinária.

“O problema da luta armada só existe para aquele que quer conservar seu próprio monopólio de armamento legítimo, o Estado. O que existe, por outro lado, é efetivamente uma questão de uso das armas. Quando, em março de 77, 100.000 pessoas se manifestam em Roma, dentre as quais 10.000 armadas, e ao fim de um dia de enfrentamentos nenhum policial foi morto ou gravemente ferido, quando teria sido muito fácil fazer um massacre, percebemos um pouco melhor a diferença que existe entre o armamento e o uso de armas. Estar armado é um elemento da correlação de forças, a recusa de permanecer de maneira desprezível à mercê da polícia, uma maneira de se arrogar nossa impunidade legítima. Resolvido esse assunto, resta a questão da relação com a violência, uma relação cuja falha de elaboração prejudica em toda parte os progressos da subversão anti-imperial.”

– Tiqqun

Destituição no lugar de paredão

“A revolução da vida cotidiana liquidará as noções de justiça, de castigo e de suplício – noções determinadas pela troca e pelo reino do fragmentário. Não queremos ser justiceiros, mas senhores sem escravos, reencontrando, para além da destruição da escravidão, uma nova inocência, uma nova graça de viver. Trata-se de destruir o inimigo não de julgá-lo”

Raoul Vaneigem

Anarquistas sempre rejeitaram as eleições e a democracia representativa por serem mera ilusão: uma pessoa não é capaz de encarnar os interesses de uma classe, suas vontades ou ideias.  Ela, no máximo, consegue defender os interesses de uma elite administrativa enquanto parte dela. E, de fato, quem toma o Estado coloca os interesses do Estado e das classes poderosas acima das classes inferiores. Fazendo o caminho contrário, o mesmo raciocínio mostra que matar uma única pessoa não vai acabar com suas ideias, eliminar sua classe, nem necessariamente desencoraja seus apoiadores. Uma dura lição aprendida também pela Fração do Exército Vermelho (RAF) na Alemanha. Entre as décadas de 1970 e 1990 o grupo praticou assassinato de políticos, oficiais, policiais e empresários sem qualquer efeito maior na sociedade alemã. O grupo caminhou para o total isolamento na clandestinidade, além de levar à morte ou à prisão a maioria de seus membros. Os exemplos atravessam os séculos e os continentes (onde podemos destacar a Guerrilha da Araguaia no Brasil, as Brigadas Vermelhas na Itália, as FARC na Colômbia, como exemplares da limitação dessas ações), mas não caberia aqui analisar todos.

A luta revolucionária não deve ter como fim o julgamento e punição de quem praticou atos que condenamos, a revolução não é um elogio à vingança e ao ressentimento, muito menos a instrumentalização do ódio. Ela deve ser um esforço positivo de construção de estruturas de vida paralelas sem relações mediadas pela violência. Isso não significa criar um dilema moral quanto ao uso da violência. Malatesta explica muito bem que “a ideia central do anarquismo é a eliminação da violência na vida social, é a organização das relações sociais fundamentada na livre vontade de todos e de cada um, sem intervenção do policial. É por isso que somos contra o capitalismo que, apoiando-se na proteção do policial, obriga os trabalhadores a deixar-se explorar por aqueles que detêm os meios de produção, ou mesmo ficar sem trabalho e sofrer de fome quando os patrões não tem interesse em explorá-los. Eis porque somos inimigos do Estado, que é a organização coercitiva, ou seja, violenta da sociedade”. E continua: “a violência só é justificável quando é necessária para defender a si mesmo ou defender os outros contra a violência. O delito começa lá onde acaba a necessidade.” A violência pode destruir e nos libertar de uma ordem opressora, mas não é o melhor laço para manter uma sociedade livre.

“Só ajuda a violência, onde reina a violência…”

– “Santa Joana dos Matadouros”, Bertolt Brecht

Execução do pedagogo anarquista catalão Francisco Ferrer retratado também por Costantini: quando não vencemos, somos nós os primeiros corpos contra a parede

Quando Durruti diz que “o Fascismo não se debate, se destrói”, acreditamos que ele está falando mais de sistemas políticos e ideias do que apenas de seus partidários. Mesmo sabendo que uma vez no front de batalha da Revolução Espanhola, sua vida e a de seu povo dependia da morte de fascistas armados que estavam tentando tomar o controle do Estado. Anarquistas não acreditam na tomada do Estado, seja pelo voto ou pela força porque sabem que a existência do Estado em si depende e perpetua uma divisão da sociedade em classes de dirigentes e dirigidos. Em uma sociedade onde não existem cargos executivos ou militares que acumulam tanto poder, não existe o risco de um fascista tomar esse cargo e fazer valer suas vontades políticas e caprichos pessoais. Sem o Estado, o Exército, a propriedade privada e a polícia para defendê-la, homens como Jair Bolsonaro ou Eike Batista são apenas idiotas arrogantes e egoístas. Sem essas posições de poder, esses homens não são nada. Mas sem esses homens, tais posições de poder continuam sendo uma ameaça para nós aqui embaixo, pois basta alguém assumir seu lugar que o sistema continua seu trabalho da mesma forma.

Se vamos tomar de volta a capacidade de nos organizar, devemos começar pela capacidade de organizar a morte do Estado e do Capital, não de indivíduos. Somente a organização descentralizada, horizontal e autônoma da sociedade de forma a tornar essas instituições fracas e inúteis vai nos libertar dos efeitos opressivos delas. Se queremos uma sociedade livre, devemos priorizar a criação de um poder coletivo e social que torne essas instituições fracas e inoperantes, a ponto delas não fazerem a menor diferença em nossas vidas, sem necessariamente destruir as pessoas operando elas, ou fazer disso um projeto político. E então, poderemos destruí-las, deixando-as perecer sem ninguém por perto. Como descrito pelo Comitê Invisível, precisamos destituir o poder estatal e capitalista:

Subtrair-se às instituições é tudo menos deixar um vazio, é sufocá-la positivamente. Destituir não é, portanto, atacar instituição, mas, sim, a necessidade que temos dela. Não é criticá-la (…), mas assumir realmente o que se supõe que ela faz, fora dela. Destituir a universidade é estabelecer longe dela lugares de pesquisa, de formação e de pensamento mais vivos do que ela é (…). Destituir a justiça é aprender a regular, nós mesmos, nossos desacordos, colocar para isso um método, paralisar sua faculdade de julgar e expulsar seus oficiais de justiça de nossas vidas. Destituir a medicina é saber o que é bom para nós e o que nos deixa doentes, arrancar da instituição os saberes apaixonados que nela sobrevivem em suas obras e não voltar jamais a se encontrar só, no hospital, com o corpo entregue à soberania artística de um cirurgião desdenhoso. Destituir o governo é se tornar ingovernável. Quem falou em vencer? Superar é tudo. O gesto destituinte não se opõe à instituição, ele não coloca contra ela uma luta frontal, mas a neutraliza, esvazia-a de sua substância, dá um passo para trás e a observa morrer.”

(Agora – Motim e Destituição)

Coragem para se encontrar

Não é necessário também oferecer um julgamento moral das ações de outros anarquistas ou indivíduos aparentemente desesperados como Adelio Bispo, que tiveram coragem de mostrar a políticos e outros poderosos que suas ações para manter um mundo de desigual e opressivo terão consequências. Precisamos, acima de tudo, entender o contexto de isolamento e frustração causados pela vida em uma sociedade tão desigual, que pode levar alguém a tomar partido e realizar tais ações tão extremas.

Muitas pessoas oprimidas se sentem impotentes e querem romper com esse sentimento da forma mais rápida possível. Tão comum como o atentado contra figuras de poder, é a autodestruição transforma em da ação política. Já comentamos sobre o homem de cinquenta anos que ateou fogo em si mesmo na frente do Palácio do Planalto no dia em que um muro era erguido por presidiários para separar manifestantes de esquerda de manifestantes de direita no dia da votação do Impeachment de Dilma Roussef em 2016. Ele foi levado ao hospital com cerca de 70% do corpo queimado, mas sobreviveu. Seu gesto se compara ao de Mohamed Bouazizi, o vendedor ambulante tunisiano impedido de trabalhar que se matou com gasolina e fogo em frente a um prédio público e foi o estopim das revoltas hoje conhecidas como Primavera Árabe. Ambos os atos denunciam a violência silenciosa de uma sociedade que cala e isola indivíduos até que não sobre nada além da solidão e do desespero. Na impossibilidade de se encontrar com outros corpos para organizar a resistência, a opção encontrada por esses homens foi transformar o desespero em uma forma de potência, mesmo que autodestrutiva – com a diferença de que a do brasileiro que ateou fogo em seu próprio corpo não iniciou nenhum grande levante.

Adelio Bispo pode até saber que Bolsonaro representa uma ameaça a vida dos pobres e minorias, porém, mais do que nunca, é a vida de Adelio que agora está em risco. Depois de ser linchado e preso, ele será processado com base na Lei de Segurança Nacional, criada durante a ditadura que Bolsonaro tanto elogia e tem saudades – mais uma prova de que mesmo anos após a saída ou mesmo a morte de seus líderes, os aparatos de uma ditadura militar não apenas continuam vivos, mas continuam operantes dentro de uma democracia.

Por fim, temos uma mensagem a todas as pessoas que, por raiva ou frustração, pensam em furar um bloqueio policial para tirar a vida de um tirano com suas próprias mãos, ou atear fogo em si mesmas como um último protesto: vocês não estão sós!

E uma mensagem para todos aqueles que querem nos manter sob controle, opressão ou mortos: vocês não estão seguros!

É possível e necessário nos encontrar e nos organizar para planejar a queda de regimes inteiros e não apenas de um tirano. Não deixaremos a ansiedade e a frustração guiarem nossos atos nem aceitem correr o risco de ir para a prisão ou túmulo sem apoio, solidariedade ou mesmo em vão. A construção de um novo mundo livre da autoridade do Estado ou do capital certamente levará ao confronto com pessoas que querem defender sua existência, por isso não devemos hesitar na hora de defender nossas vidas e as de nossos pares. Existem pessoas que já mostraram a coragem de arriscar a vida pelo bem de todas as outras pessoas oprimidas. É preciso sermos fortes e nos organizar para que ninguém tenha que lutar ou sofrer na solidão, no isolamento. Quanto mais pessoas oprimidas compartilharem dessa coragem, mais teremos força para derrubar os tiranos desse mundo, levando seus regimes com eles – e a esse dia daremos o nome de revolução.

Marcha antifascista no Rio de Janeiro, 2016: Esmagar o fascismo, abolir o Capitalismo e destruir o Estado – nada menos que tudo isso junto!

Brasil e a democracia securitária: nota contra a sentença dos 23 da Copa de 2014

Sob o olhar de um juiz, duro como um jejum,

Caiu, por acaso, um pavão laranja-azul:

Na mesma hora virou cor de carvão

A espaventosa cauda do pavão.(...)

Nem os meus versos escapam à censura:São interditos, sob pena de tortura.(...)

Somente, acocorados com rancor sob os livros,

Ali jazem, deprimidos, os juízes.

Vladimir Maiakóvski, 1915

O Brasil vive tempos sombrios. Enquanto o cenário eleitoral se divide entre uma direita proto-fascista que inventa notícias e ameaça pesquisadoras nas universidades e uma esquerda majoritária que se ocupa em salvar sua burocracia partidária, a vida cotidiana sucumbe ao mais duro e mortal autoritarismo. Intervenção militar no Rio de Janeiro; recorde de pessoas encarceradas (terceira maior população carcerária do planeta) e assassinadas violentamente (cerca de 60 mil homicídios por ano); massacres nas periferias e penitenciárias. A lista é aterradora e temperada com protagonismo de militares na vida política do país, ocupando ministérios e emitindo opiniões a todo momento na mídia e em redes sociais digitais.

Protesto no Rio de Janeiro em 13 de julho de 2014, um horas depois que os 23 camaradas foram presos em casa.

A execução de Marielle Franco (vereadora do PSOL pelo Rio de Janeiro), perpetrada de modo brutal e cirúrgico há 130 dias é a síntese do estado em que se encontra o país. O Brasil já não é mais uma democracia (mesmo formal), embora não seja ainda uma ditadura (com clara e perpetua suspensão dos direitos civis). Vivemos em uma democracia securitária, como há me vários países no mundo, que tem no poder judiciário e no sistema de justiça criminal seu braço forte e assassino, com auxílio luxuoso das Forças Armadas.

No dia 17 de julho de 2018, o juiz Flávio Itabaiana de Oliveira Nicolau, da 27º Vara Criminal do Rio de Janeiro, emitiu a sentença condenatória de 23 pessoas detidas em manifestações contra a realização da Copa do Mundo da FIFA em 2014. Num inquérito policial tão absurdo que chegou a indiciar como suspeito o anarquista Mikhail Bakunin, morto há mais de um século. O processo, que se arrastava há 3 anos, é cheio de falhas e ilações, mas mesmo assim chegou a uma sentença de 7 anos por associação criminosa (art. 288 do Código Penal) e corrupção de menores (art. 69 do Código Penal e 244B do ECA). Mas o que de fato se ataca é a liberdade de manifestação dos acusados. Essa sentença expõe como o terror é o artifício ordinário dos agentes da lei, do policial ao juiz, passando por seus servis carcereiros e respectivos mandatários políticos e empresários.

Conhecido como “processo dos 23 da Copa”, o caso tem particularidades assustadoras e cela a repressão política que se abateu após as jornadas de junho de 2013. Essas 23 pessoas foram selecionadas por um inquérito policial e midiático que visa calar e capturar as maiores manifestações da história recente do país que levaram centenas de milhares às ruas. Manifestações que a partir de uma reivindicação específica relativa aos transportes coletivos e a vida nas cidades deflagrou uma série de lutas represadas por um governo que se dizia popular.

A partir das jornadas de junho de 2013 os alvos das manifestações no Rio de Janeiro foram: a violência policial nas favelas e nas manifestações; as leis de exceção, como a Lei Geral da Copa nº 12.663/2012; as execuções no interior das Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs), que teve como símbolo o caso Amarildo de Souza; as remoções arbitrárias e violentas, como na Vila Autódromo e na Aldeia Maracanã; a repressão às greves selvagens, como a dos professores, em outubro de 2013, e dos garis, em 2014; além e reagirem contra a campanha midiática, à direita e à esquerda, que identificava os “black blocs” como terroristas perigosos.

No protesto do dia 13 de julho de 2014, a Polícia Militar usou a tática do Kettling para cercar manifestantes na Praça Saens Peña e atacar a marcha para que não saísse do local.

A sentença do juiz Flávio Itabaiana de Oliveira Nicolau visa atingir e calar toda forma de contestação que ouse desafiar os poderosos, suas máfias e suas milícias. Ela, de certa forma, reconhece a potência de junho de 2013, como algo que ainda está acontecendo nas lutas sociais e, assim, se soma às muitas reações contra esse acontecimento que, mesmo após 5 anos, segue incompreendido e temido por muitos.

As palavras do juiz expõem seu ressentimento em relação aos acusados. No texto, ele repete diversas vezes que os manifestantes possuem uma “personalidade distorcida”. Reconhece não possuir provas factuais, além de objetos apreendidos na casa de um dos acusados, mas refere-se a “crime[s] de mera conduta e de perigo abstrato”. Por fim, atribui a liderança das manifestações a uma das acusadas em qualquer justificativa lógica e seguindo um enredo midiático.

Mas o que mais irrita o juiz Itabaiana é o anarquismo dos manifestantes. Em certo momento ele aponta o que chama de “grupos de ação direta” como responsáveis pelos “atos de vandalismo e de violência”. Somando a ação direta como o que chama de “personalidade distorcida”, o juiz atualiza a imagem do anarquista como sujeito perigoso, aos moldes da psiquiatria do século XIX. Assim, deixa claro que além dos traços intoleráveis de seletividade e racismo característicos do direito penal, sua sentença é a expressão de seu delírio covarde e de seu devaneio conservador.

Essa sentença é um golpe violento às liberdades civis de um regime democrático. Por isso ela precisa ser interrompida imediatamente! Do contrário, marcará, junto à execução de Marielle Franco, um ponto sem retorno no autoritarismo brasileiro. Por isso a repudiamos para além dos argumento legais. Juiz nenhum vale mais que um professor, um estudante ou qualquer pessoa que ousa questionar os atos dos poderosos, suas máfias, milícias e juízes com suas togas cheias de sangue.

Muitos dos alvos das manifestações de 2013 e 2104 encontram-se hoje presos por envolvimento em atos de subtração do erário público, o que prova a justeza de suas reivindicações ontem e hoje.

Por tudo isso exigimos a liberdade aos 23 sentenciados!

Contra o autoritarismo da democracia securitária no Brasil e seu judiciário autoritário, afirmamos:

Toda pessoa presa é uma presa política!


Segue abaixo a nota de repúdio assinada por 12 dos 23 ativistas que foram condenados devido a participação nos protestos de junho de 2013 e contra a Copa do Mundo FIFA 2014 no Brasil:

Nota de repúdio e de chamamento à luta

Assinam esta nota 12 dos 23 ativistas condenados pelos protestos no Rio de Janeiro

Ontem, 17/07, o juiz Flávio Itabaiana de Oliveira Nicolau finalmente entregou o serviço para o qual foi escalado pelo ex-governador Sérgio Cabral quatro anos atrás: condenou todos os 23 ativistas envolvidos nos protestos contra a farra da FIFA a penas que vão de 5 a 13 anos de prisão, em regime inicialmente fechado.

Quais crimes nós cometemos? Ousamos denunciar os desmandos de Sérgio Cabral, Pezão e companhia, acobertados todo o tempo por parte do Poder Judiciário e do Ministério Público do Rio?

Ousamos denunciar a farra da Copa da FIFA, cujo único “legado” que restou para o povo foram os escombros das comunidades removidas e a quebradeira dos serviços públicos?

Ousamos participar, como estudantes e trabalhadores, ombro a ombro com milhões de pessoas nas maiores manifestações de massas da história recente do país?

Ousamos atuar ao lado de movimentos populares independentes, que não se curvam ou se vendem às “tenebrosas transações” da politicalha oficial que nos desgoverna, cujos maiores símbolos são governador Pezão e presidente Michel Temer?

Quem mandou prender já está preso: Sérgio Cabral, ex-governador do Rio recebeu a maior pena até então da Operação Lava-Jato.

Se disso nos acusam, temos que aceitar com orgulho o que dizem os nossos algozes. Porque foi isso mesmo que fizemos, ou seja, lutamos. Todos precisam compreender que é a toda nossa geração que buscam condenar e intimidar com esta sentença infame. Mas não conseguirão: carregamos a teimosia própria dos que insistem em ter fé na vida, fé na luta, fé no povo. A teimosia dos milhares que marcharam na Praça Saens Peña, no dia da final da Copa do Mundo, apenas algumas horas depois que dezenas de ativistas foram presos e enviados para Bangu. Nós temos lado, e este não é o lado da casa grande. Se disso nos acusam, muito obrigado, pois.

Com esta sentença, o Sr. Itabaiana entra para a história pela porta dos fundos. Será sempre lembrado como aquele que perseguiu de modo implacável a juventude de junho de 2013. Que fique registrado: o que se fez no Rio de Janeiro, quanto aos procedimentos persecutórios, prisões abusivas, invasões de residências, infiltração ilegal, grampos de advogados a até uma “delação premiada informal” (a do sabujo Felipe Braz, cujo depoimento é praticamente a única “prova” apresentada para nos condenar) não teve par em nenhum outro lugar do Brasil. Talvez os carrascos se orgulhem do seu serviço; a esse “orgulho” nós achamos mais coerente chamar: VERGONHA!

Vários executivos da Fifa foram presos na Suíça no hotel cinco estrelas Baur au Lac, saindo escondidos atrás de lençóis: vaidade é seu pecado favorito.

Sim, porque é vergonhoso que os manifestantes contra a farra da FIFA sejam condenados, quando hoje grande parte dos próprios organizadores da Copa estão presos! Quando o ex-governador que nos reprimiu com selvageria está preso! Quando o país é levado à beira da fome e da devastação social pelos mesmos vampiros que tremeram de ódio quando a juventude tomou as ruas! Quando a Rede Globo, que nos perseguiu, ainda não explicou as suas negociatas em torno dos megaeventos!

Alguma palavra sobre a “conduta reprovável” e “personalidade distorcida” dessas pessoas, senhor juiz?

Numa coletiva de imprensa, manifestante faz chover dinheiro em Joseph Blatter em 2015 após o escândalo da corrupção envolvendo o presidente da FIFA.

Reafirmamos o que dissemos ao longo de todos estes anos: LUTAR NÃO É CRIME! Crime é o estado de calamidade oferecido ao povo na fila dos hospitais, crime é a falta de vaga nas creches, crime são os ônibus caros e superlotados, crime é o que se pratica diariamente nas favelas, ensanguentadas pelo genocídio do povo preto e pobre. Isto é crime! E estes crimes, tenham certeza, não ficarão impunes para sempre.

Em tempos de sérios ataques aos direitos trabalhistas e sociais, é fundamental desfraldar bem alto as bandeiras da liberdade de expressão e de manifestação, sem as quais nenhum outro direito pode ser defendido, muito menos conquistado. Isso é ainda mais importante quando o Rio se vê sob uma intervenção militar, e assistimos quase diariamente oficiais discursando abertamente sobre a possibilidade de um golpe militar no país. Conclamamos todos/as os/as lutadores/as, trabalhadores/as, estudantes, coletivos, ativistas, intelectuais e democratas a se manifestarem nessa campanha. Não é só pelos 23: é por todos os que lutam!

Lutar não é crime!

Fascistas, hoje e sempre: não passarão!

Viva as jornadas de junho de 2013!

Assinam esta nota:

Bruno de Sousa Vieira Machado

Elisa Quadros Pinto Sanzi

Emerson Raphael Oliveira da Fonseca

Felipe Frieb de Carvalho

Filipe Proença de Carvalho Moraes

Igor Mendes da Silva

Leonardo Fortini Baroni

Luiz Carlos Rendeiro Júnior

Pedro Guilherme Mascarenhas Freire

Rafael Rêgo Barros Caruso

Rebeca Martins de Souza

Shirlene Feitoza da Fonseca