“O governo não pode pois apresentar-se como outra coisa senão como uma facção. O que se chama de governo é apenas a facção vitoriosa, e é precisamente no fato mesmo de ser facção que reside a necessidade de sua queda…“
A operação que ficou conhecida como “Lava Jato” iniciou-se em 2014 e ainda está em andamento, como um conjunto de investigações da Polícia Federal visando apurar um enorme esquema de lavagem de dinheiro envolvendo políticos, doleiros e empresas que movimentaram bilhões de reais em propina. Com presença constante na mídia a operação cumpriu inúmeras ações de busca e apreensão, prisões temporárias, prisões preventivas, conduções coercitivas, dentre outras ações envolvendo políticos de diversos partidos, grandes empresários, empreiteiras, operadores e doleiros, como demostram os dados divulgados no próprio site da Policia Federal.
A Lava Jato foi tomada pela imprensa e setores mais conservadores da sociedade como um marco na luta contra a corrupção no Brasil, considerada uma resposta a notável impunidade dos setores políticos e empresariais e sendo aclamada por uma população cada vez mais indignada com os “poderosos” e suas “roubalheiras”. Ainda que não tenha sido a causa do Impeachment sofrido pela ex-Presidenta Dilma Rousseff em 2016, a operação serviu para desgastar a já abalada imagem do Partido dos Trabalhadores, tendo inclusive vazado ilegalmente o diálogo entre a então presidente e o ex-presidente Lula, causando ainda mais a sensação de que a corrupção e o governo eram não só os grandes problemas a serem resolvidos mas como um único problema.
O ponto alto das ações notadamente se dá com a condenação e prisão do ex-presidente Lula em um processo cercado de diversos questionamentos legais e uma enorme espetacularização, parecendo polarizar ainda mais a política no país, sendo apontada inclusive com uma sobrevida moral do Partido dos Trabalhadores no campo da esquerda (lançando uma expressiva campanha “Lula Livre“). Lula está preso hoje em virtude de apenas uma condenação dos nove processos contra ele na Lava Jato.
As conversas privadas entre Moro, Dallagnol e outros procuradores explicitaram a óbvia relação incestuosa de mais uma das facções criminosas que compõe o poder, a saber, o poder Judiciário. Aqui não podemos deixar de apontar, como também revela a relação do governo Bolsonaro com as milicias (temos o recente caso do militar, integrante a comitiva presidencial, que foi preso viajando com 39 kg de cocaína em um avião oficial), que no capitalismo tardio a gestão do governo só pode tomar a forma da máfia. Guy Debord ainda na década de 80 afirmava que “o segredo domina este mundo, é em primeiro lugar como segredo da dominação“, a relação entre Estado, economia, judiciário e outras instancias do poder precisam cada vez mais ser geridas em total opacidade. Ainda que as operações estejam a vista de todos, cobertas pela mídia em cada passo, seu núcleo precisa perpetuar um segredo generalizado como seu complemento perverso e mais importante. Apenas os ingênuos podem ter a benesse de dizer “disso nós não sabíamos”.
É interessante notar a semelhança da Operação Lava Jato e a Operação Mãos Limpas, tendo sido inclusive uma enorme inspiração para Sérgio Moro como mostra seu artigo “Considerações sobre a Operação Mani Pulite” publicado ainda em 2004, o então juíz afirma que a operação é “um momento extraordinário na história contemporânea do Judiciário” e que “constituiu uma das mais exitosas cruzadas judiciárias contra a corrupção política e administrativa”. A Operação Mãos Limpas começa na Itália da década de 90 onde vem a tona casos em que diversos empresários pagavam propina para políticos dos mais diversos partidos para conseguir licitações e uso do poder público. A operação, seus precedentes e decorrências nos permitem observar como o país foi desde muito tempo esse intenso laboratório anti-insurgente de técnicas repressivas policiais, estatais e judiciárias. Não é por acaso que isso se inicia na década de 70, onde a luta proletária estava mais avançada e radical, as novas formas de criminalização das lutas e sua judicialização que começam nos grupos radicais autonomistas chegam com as Mãos Limpas aos partidos tradicionais. A operação termina assim com a chamado Primeira República Italiana, onde são extintos o Partido Socialista Italiano e a Democracia Cristã, principais forças políticas do país na época. Não é a toa que o vazio político é tomado pela ascensão do magnata Silvio Berlusconi ao cargo de primeiro-ministro da Itália… as semelhanças com Bolsonaro são óbvias e reveladoras!
“Mãos Limpas” e “Lava Jato” aparecem para nós como sintomas da judicialização da política e consequentemente da vida cotidiana, onde cada vez mais o procedimentalismo jurídico e as decisões judiciais eclipsam as lutas políticas e sociais. É evidente como também no campo da esquerda isso acabou invertendo os modos de atuação, já que mais que cultivar práticas de ação através do ordenamento jurídico, alimentou a fé que tal judicialização seria “justa”, seguisse as “leis” e pudesse inclusive mudar o sistema. Quem diria que a esquerda seria o polo legalista, esquecendo que o papel do direito foi sempre da manutenção, reprodução e instrumentalização do poder ! Três juristas no artigo “O Fim das Ilusões Constitucionais de 1988?” chegam mesmo a apontar como Brasil vivemos em um estado de exceção permanente semelhante a jurisprudência do Terceiro Reich, logo se fiar na ilusão constitucional da legalidade é deixar de ver que o modelo atual é o da contrarrevolução permanente, ou seja, qualquer um é potencialmente um criminoso e/ou inimigo.
A renovada centralidade do problema da corrupção na mídia e no campo social, uma luta encampada desde sempre pelos setores mais conservadores e de direita, levou vários grupos de esquerda a tentar dar uma resposta moral e política (consequentemente populista) ao problema, incorporando o significante aos seus discursos como uma medida que supostamente iria angariar apoio e projeção popular. Diversos ideólogos e partidos chegaram a saudar Moro e a Lava-Jato, e o próprio PT foi no início bastante ambíguo com a operação, dirigentes inclusive chegaram a defende-la publicamente.
Essa “habermazeação” das lutas e a crença na autonomia das instituições demonstram que a real importância dos vazamentos da Intercept é dar visibilidade ao fato de que a democracia e seus aparatos jurídicos são dispositivos espetaculares a serem destruídos, não instituições que devam ser aprimoradas e protegidas. Não acreditamos no Estado Democrático de Direito, não cultivamos esperanças nos meios “legais”, é inútil protestar legalmente contra a implosão completa do quadro legal. Se o Partido dos Trabalhadores chegou até esse momento com sua imagem prejudicada e seu principal líder na cadeia é por sua responsabilidade e crença nesse sistema, o próprio Lula afirmou isso quando foi preso: “Se eu não acreditasse na Justiça, eu não tinha feito um partido político. Eu tinha proposto uma revolução nesse país“, poucas frases condensam tão bem o lulismo!
É crucial que se diga que se nós também desejamos e apoiamos a soltura de Lula da prisão é porque acreditamos que TODA prisão é política, que NINGUÉM deve ser preso e as cadeias devem ser destruídas. Não é “privilégio” do Lula ter sido preso injustamente, principalmente se pensarmos no aumento da população carcerário nos governos petistas!
Toda vez que a esquerda infla e aposta no poder judiciário ele se volta contra a própria esquerda, então a derrota do PT(assim como de toda esquerda pró-capital), sua ideologia e suas práticas conciliatórias, devem ser políticas e não por meio da justiça burguesa que eles mesmos tanto cultivaram. Em nossas práticas e discursos não devemos nunca esquecer que são nossos inimigos todos aqueles que se aliam a burguesia, apoiam o encarceramento, incentivam o lucro dos empresários, bancos e empreiteiras, realizam megaeventos, recuam no processo da reforma agrária, não garantem o direito dos povos originários, reprimem manifestações e implementam a chamada “Lei Antiterrorismo”. Toda busca do Lulismo, consequentemente do petismo e da esquerda do capital, foi para bloquear qualquer tipo de radicalidade, querendo nos fazer crer que ainda há possibilidade de uma normalização das instituições, da pactuação política e pacificação do caos social.
Já não é mais possível sermos ingênuos e nos permitirmos ainda ter fé no sistema, na democracia e no Direito, mais que nunca é necessário jogar em outro terreno… nunca é tarde para desertar!
Estamos em um momento delicado e determinante no Brasil. A direita finalmente conseguiu eleger com voto popular uma das suas piores figuras, o plano B (ou C), o baixo clero, que veio à tona após as polarizações firmadas após as eleições de 2014 e o impeachment de 2016. Com o PT, vimos a social democracia aliada a uma economia neoliberal que permitiu medidas de transferência de renda como Bolsa Família e maior acesso a educação, saúde e emprego. Mas o clima mudou ainda com Dilma Rousseff no poder e com Michel Temer vimos a austeridade iniciada ainda no fim do governo PT ser transformada em um ataque ainda maior a direitos trabalhistas, ambientais e das minorias. No governo Bolsonaro não será diferente. Cortes na educação, reforma na Previdência, ataque a leis e órgãos que protegem minimamente minorias, povos indígenas florestas. As mortes nas periferias batem recorde. Em meio a tantas ofensivas que desmontam os poucos direitos e conquistas históricas das classes oprimidas, é fácil nos perder apenas reagindo a tantas ameaças e perdas concretas. Como não deixar os movimentos radicais e anticapitalistas serem tragados pela constante necessidade de reagir a agenda de nossos inimigos? Como manter nossa própria agenda enquanto tentamos não perder o que foi conquistado ao longo de séculos de luta? Como não esquecer que, para além das demandas e das reformas, precisamos construir uma luta de longo prazo pelo fim do Estado e do Capitalismo em um nível nada menos que global? Essa é a contribuição de anarquistas para uma crítica construtiva da política de demandas únicas. Se não vamos destruir o Capital uma demanda de cada vez, precisamos ter em mente que nossa luta e nossa agenda somos nós que fazemos.
Porque não fazemos demandas.
De ocupaçõesdepraças e escolas a poderosas insurreições populares, sempre que surgem grandes movimentos sociais, os comentários mais comuns na mídia e nas ruas os acusam de não possuírem demandas concretas. Por que os descontentes não resumem os seus objetivos em pautas coerentes? Por que não elegem representantes que possam negociar com as autoridades de forma a fomentar uma agenda concreta através dos canais institucionais adequados? Por que estes movimentos não se expressam em uma linguagem comum, usando meios já consagrados?
Frequentemente isso não passa de uma retórica dissimulada usada por aqueles que gostariam que os movimentos se limitassem a demandas bem comportadas. Quando perseguimos objetivos que eles preferem não reconhecer, nos acusam de sermos irracionais ou incoerentes. Compare a Marcha Popular pelo Clima de 2014 em Nova Iorque, com as revoltas ocorridas em Baltimore em abril de 2015 quando a polícia matou um jovem negro. A Marcha juntou 400 mil pessoas com uma mensagem simples ao mesmo tempo em que fazia tão pouco para protestar que a polícia não precisou fazer uma prisão sequer. Quando foi a última vez que 400 mil pessoas se reuniram em Nova Iorque sem que a polícia prendesse alguém? Aquilo foi mais uma válvula de escape do que um protesto propriamente dito, mais uma forma de pacificação ativa — uma forma de diminuir os atritos entre os manifestantes e a ordem à qual eles se opunham. Muitos louvaram a Marcha Pelo Clima enquanto tachavam as revoltas de Baltimore como irracionais, inconscientes e ineficazes; ainda assim a Marcha Pelo Clima teve pouco impacto concreto, enquanto as revoltas de Baltimore obrigaram o Procurador Geral a formalizar acusações contra policiais, algo praticamente sem precedentes. Você pode apostar que se 400 mil pessoas respondessem às mudanças climáticas da forma como milhares responderam ao assassinato de Freddie Gray, os políticos mudariam suas prioridades.
Mesmo as pessoas que pedem por demandas com as melhores intenções geralmente consideram a falta delas mais como omissão do que uma escolha estratégica. Ainda assim, os movimentos que agem dessa forma hoje não são uma expressão de falta de maturidade, mas sim uma resposta pragmática ao impasse que caracteriza todo o sistema político atual.
“Reformas que alcançam ganhos de curto prazo geralmente montam o cenário para problemas de longo prazo.”
Você deve pensar que se fosse fácil para as autoridades atender às exigências dos manifestantes deveríamos ver isso mais vezes. Na verdade, de Obama ao Syriza, nem mesmo os políticos mais idealistas foram capazes de cumprir as promessas de reforma com as quais se elegeram. O fato de terem sido formalizadas denúncias contra os assassinos de Freddie Gray após as revoltas de Baltimore sugere que a única forma de fazer algum avanço seria dar um fim à lógica de proposição de demandas.
Portanto, o problema não é que faltam demandas aos movimentos de hoje; o problema é a própria política de demandas. Se buscamos realizar mudanças estruturais, precisamos elaborar nossas agendas fora dos limites dos discursos daqueles que detêm o poder, fora da moldura das suas instituições. Devemos parar de apresentar demandas e passar a definir objetivos. Eis aqui o motivo.
Elaborar demandas nos coloca em uma posição inferior de negociação.
Mesmo que sua intenção seja de apenas negociar, você se coloca em uma posição inferior de barganha ao deixar claro desde o início qual é o mínimo necessário que vai satisfazer suas demandas. Nenhum negociador minimamente astuto começa fazendo concessões de início. É mais inteligente parecer implacável: então você deseja chegar a um acordo e dar um fim aos protestos? Faça-nos uma oferta. Enquanto isso, vamos continuar aqui bloqueando as rodovias e ateando fogo nas coisas.
Não existe moeda de troca maior que a capacidade de implementar por nós mesmos as mudanças que queremos, superando as instituições oficiais. Aliás, esse é o verdadeiro sentido da ação direta. Sempre que formos capazes de fazer isso, as autoridades vão competir inutilmente para nos oferecer tudo o que havíamos exigido. Por exemplo, a decisão do julgamento de Roe vs. Wade que tornou o aborto legal ocorreu apenas depois que grupos como o Coletivo Jane criaram redes auto-organizadas que realizavam abortos acessíveis a dezenas de milhares de mulheres.
É claro, comunidades que podem implementar diretamente as mudanças que desejam não precisam fazer exigências a ninguém — e quanto antes reconhecerem isso, melhor. Lembre-se como o povo bósnio ateou fogo em prédios do governo em Fevereiro de 2014, e depois realizou plenárias para formular demandas para apresentar a esse mesmo governo. Um ano depois, não receberam nenhuma atenção às suas demandas e sim acusações criminais, e o governo voltou a se erguer tão estável e corrupto quanto antes.
Limitar um movimento a demandas específicas sufoca a diversidade, condenando-o ao fracasso.
A sabedoria convencional diz que os movimentos precisam se reunir em torno de demandas. Sem demandas, ele seria difuso, efêmero, ineficaz.
Mas as pessoas que possuem demandas diferentes, ou não possuem demanda nenhuma, ainda assim podem ajudar a construir o poder popular coletivamente. Se entendermos os movimentos como espaços de diálogo, coordenação e ação, é fácil imaginar como um único movimento pode representar uma diversidade de agendas. Quanto mais horizontalmente organizado ele for, mais ele será capaz de acomodar objetivos diferentes.
A verdade é que praticamente todos os movimentos naufragam em razão de conflitos sobre como se organizar e sobre como definir suas prioridades. A necessidade de apresentar demandas concretas geralmente surge como uma disputa de poder entre facções dentro dos próprios movimentos que já se encontram melhor investidas pelas instituições dominantes, como uma forma de deslegitimar aqueles que querem construir o poder autonomamente ao invés de simplesmente pleitear junto às autoridades. Isto coloca de forma equivocada diferenças políticas genuínas como se fossem o caso de simples desorganização, e a verdadeira oposição às estruturas de governança como ingenuidade política.
“Nenhuma corporação irá impedir o aquecimento global; nenhuma agência do governo irá parar de espionar a população; nenhuma força policial irá abolir o privilégio branco.”
Forçar um movimento diversificado a reduzir sua agenda a um número específico de demandas inevitavelmente consolida o poder nas mãos de uma minoria. Pois quem decide quais demandas serão prioridade? Geralmente, são as mesmas pessoas que detêm uma fatia enorme de poder em nossas sociedades: indivíduos geralmente brancos e bem sucedidos devidamente versados no funcionamento do poder institucional e da mídia corporativa. As pessoas já marginalizadas são marginalizadas novamente dentro de seus movimentos em nome da eficiência.
Agir dessa forma raramente serve para tornar um movimento mais eficaz. Um movimento com espaço para as diferenças pode crescer; um movimento fundado na unanimidade se retrai. Um movimento que inclui uma multiplicidade de agendas é flexível, imprevisível; é difícil cooptá-lo, difícil de convencer seus membros a abrir mão de sua autonomia em troca de umas poucas concessões. Um movimento que preza pela uniformidade redutiva está condenado a alienar um segmento após o outro à medida em que subordina suas necessidades e preocupações.
Um movimento capaz de incorporar uma variedade de perspectivas e de críticas pode desenvolver estratégias mais compreensivas e multifacetadas que uma campanha de tema único. Forçar todas as pessoas a se alinharem sob um conjunto definido de exigências é uma estratégia ruim: mesmo quando dá certo, não funciona.
Limitar um movimento a demandas específicas debilita a sua longevidade.
Atualmente, conforme a história anda cada dia mais rápido, as exigências podem se tornar obsoletas antes mesmo de uma campanha decolar. Em resposta ao assassinato de Michael Brown, alguns reformistas exigiram que a polícia usasse câmeras — mas antes que essa campanha fosse deflagrada, um grande júri anunciou que o policial que matou Eric Garner não seria julgado, apesar do assassinato ter sido gravado em vídeo.
Movimentos pautados por demandas específicas entrarão em colapso assim que essas demandas forem ultrapassadas pelos acontecimentos. E os problemas que elas propunham resolver persistirão. Mesmo sob uma perspectiva reformista, faz mais sentido construir movimentos em torno dos objetivos visados, ao invés de qualquer solução particular.
Limitar um movimento a demandas específicas pode dar a falsa impressão de que existem soluções fáceis para problemas que na verdade são extremamente complexos.
“Ok, você possui uma série de reclamações – quem não possui? Mas nos diga, qual solução você propõe?”
A exigência por demandas específicas é compreensível. Não faz sentido se manifestar apenas para aliviar um pouco a pressão; o objetivo é mudar o mundo. Mas mudanças significativas exigem muito mais do que qualquer pequeno ajuste que as autoridades estão dispostas a garantir. Quando falamos como se houvessem soluções simples para os problemas que enfrentamos, correndo para nos apresentarmos como tão “práticos” quanto os especialistas em políticas do governo, criamos as condições para o nosso próprio fracasso, sejam as nossas demandas atendidas ou não. Isto dará lugar a frustração e apatia muito antes de desenvolvermos a capacidade coletiva de chegar à raiz das coisas.
Especialmente para aqueles entre nós que acreditam que o problema fundamental é a distribuição desigual de poder e liberdade de ação em nossa sociedade, ao invés da necessidade deste ou daquele ajuste político, é um erro prometer remédios fáceis na vã tentativa de nos legitimarmos. Não é nossa obrigação apresentar soluções prontas que as massas possam aplaudir às margens do processo; deixe isto para os demagogos. Nosso desafio, na verdade, é criar espaços onde as pessoas possam discutir e implementar soluções diretamente, em uma base permanente e coletiva. Ao invés de propor ajustes rápidos, deveríamos divulgar novas práticas. Não precisamos de esquemas, mas sim de pontos de partida.
Fazer demandas concretas presume que você quer coisas que seu adversário pode lhe conceder.
Por outro lado, é de se duvidar que as instituições dominantes possam garantir a maioria das coisas que visamos mesmo que seus líderes tivessem corações de ouro. Nenhuma iniciativa corporativa irá impedir o aquecimento global; nenhuma agência do governo irá parar de espionar a população; nenhuma força policial irá abolir o privilégio branco. Apenas membros de ONGs ainda se apegam à ilusão de que essas coisas são possíveis – provavelmente porque seus empregos dependem disso.
“O mesmo sistema judiciário que regulou o fim da escravidão hoje aprisiona um milhão de negros; o mesmo Exército Brasileiro que ocupou o Haiti demonstrando força imperialista, hoje patrulha e mata pobres nas favelas ocupadas em seu próprio território.”
Um movimento forte o suficiente pode desferir duros golpes contra a poluição industrial, a vigilância estatal, e a supremacia branca institucionalizada, mas apenas se não se limitar à mera exigência. A política baseada em demandas limita o escopo inteiro de mudanças a reformas que possam ser feitas dentro da lógica da ordem existente, nos marginalizando e expulsando as verdadeiras mudanças para além do horizonte.
Não faz sentido exigir das autoridades coisas que elas não podem conceder e não concederiam caso pudessem. Também não devemos dar-lhes uma desculpa para adquirir ainda mais poder do que já têm sob o pretexto de que é necessário para a satisfação das nossas exigências.
Fazer exigências às autoridades legitima o poder delas, centralizando a capacidade de ação em suas mãos.
É uma tradição honrosa de organizações sem fins lucrativos e coalizões de esquerda apresentar demandas que elas sabem que nunca serão atendidas: não à invasão do Iraque, pelo fim dos cortes na educação, pelo perdão das dívidas das pessoas e não dos bancos, pelo fim do genocídio dos jovens negros. Em troca de curtas audiências com burocratas que prestam contas a atores muito mais perspicazes, elas diluem suas exigências e tentam obrigar seus colegas menos solícitos a se comportarem. Isto é o que elas chamam de pragmatismo.
Tais esforços podem não alcançar seu propósito expresso, mas realizam algo: enquadram uma narrativa na qual as instituições existentes são os únicos protagonistas concebíveis da mudança. Isto, por sua vez, pavimenta o caminho para mais campanhas infrutíferas, para mais espetáculos eleitorais nos quais novos candidatos ludibriam jovens idealistas, para mais anos de paralisia na qual o indivíduo médio apenas pode imaginar alcançar o seu próprio poder através da mediação de algum partido ou organização política. Rebobine a fita e aperte o play.
A verdadeira autodeterminação não é algo que uma autoridade possa nos garantir. Temos de criá-la agindo por nossas próprias forças, nos colocando no lugar de protagonistas da história.
Fazer demandas muito cedo pode limitar adiantadamente o escopo de um movimento, limitando o campo de possibilidades.
No começo de um movimento, quando os participantes ainda não tiveram a chance de conhecer a sua força coletiva, eles podem ser incapazes de reconhecer o quão complexas são as mudanças que realmente querem. Especificar as exigências neste ponto da trajetória de um movimento pode tolher o seu crescimento, limitando as ambições e a imaginação dos seus membros. Da mesma forma, criar, no começo, um precedente para resumir e diluir seus objetivos apenas aumenta a possibilidade de que isto irá acontecer novamente.
Imagine se o Movimento Occupy tivesse elaborado demandas concretas desde o seu surgimento — será se ele teria servido como um espaço aberto onde tantas pessoas pudessem se conhecer, elaborar suas análises, e se radicalizar? Ou teria acabado como um simples acampamento de protesto preocupado apenas com a personalidade jurídica, cortes orçamentários, e talvez o Banco Central? É melhor desenvolver os objetivos de um movimento à medida que o próprio movimento se desenvolve, proporcionalmente à sua capacidade.
Fazer exigências coloca algumas pessoas como representantes do movimento, criando uma hierarquia interna e dando a elas incentivo para controlar os outros membros.
Na prática, unificar um movimento em torno a demandas específicas geralmente significa designar porta-vozes para negociar por ele. Mesmo se estes forem escolhidos “democraticamente,” sob a base de seu comprometimento e experiência, eles não podem fazer outra coisa a não ser desenvolver interesses diferentes dos outros membros como consequência de representarem este papel.
Com o objetivo de manter a credibilidade do seu papel de negociadores, estes porta-vozes devem ser capazes de pacificar ou isolar qualquer pessoa que não esteja disposta a apoiar os acordos que eles fizerem. Isto dá a aspirantes a líderes um incentivo para reinar em um movimento, na esperança de conquistar uma cadeira à mesa de negociação. As mesmas almas corajosas cujas ações inflexíveis granjearam ao movimento sua posição altiva subitamente encontram ativistas de carreira que surgiram mais tarde lhes dizendo o que fazer – tentando impedir que eles sequer façam parte do movimento. Este drama foi representado em Ferguson em Agosto de 2014, onde os locais que fizeram o movimento decolar ao enfrentar a polícia foram caluniados por políticos e figuras públicas como estranhos que queriam tirar vantagem do movimento para realizar atividades criminosas. A verdade era exatamente o contrário: estranhos estavam tentando sequestrar um movimento iniciado através de honrosa atividade ilegal, com o objetivo de relegitimar as instituições de autoridade.
No longo prazo, este tipo de pacificação colabora apenas para a morte de um movimento. Isto explica a relação ambígua que a maioria dos líderes possui com os movimentos que representam: para servir às autoridades, eles devem ser capazes de subjugar os seus camaradas, mas os seus serviços não seriam minimamente necessários se o movimento não representasse qualquer ameaça. Disso surge a estranha mistura de retórica militante e obstrução prática que geralmente caracteriza tais figuras: eles devem montar o cavalo bravo e mantê-lo sobre controle.
Algumas vezes a pior coisa que pode acontecer a um movimento é que suas demandas sejam atendidas.
Reformas servem para estabilizar e para preservar o status quo, matando o ímpeto dos movimentos sociais. Isso garante que não sejam realizadas mudanças mais profundas. Garantir pequenas demandas serve para dividir um movimento poderoso, persuadindo os membros menos comprometidos a voltarem para casa ou fazerem vista grossa à repressão daqueles que não se comprometerem. Tais pequenas vitórias só são garantidas porque as autoridades as consideram a melhor forma de evitar maiores mudanças.
Em tempos de convulsão social, quando tudo está no ar, uma forma de desarmar uma revolta florescente é atender suas demandas antes que ela comece a crescer. Algumas vezes isto se parece com uma verdadeira vitória — como na Eslovênia em 2013, quando dois meses de protestos derrubou o governo. Isto pôs um fim à agitação antes que ela pudesse visar os problemas estruturais que lhe deram origem, que iam muito além de qual governante ocupava o cargo. Outro governo ocupou o poder enquanto os manifestantes ainda estavam aturdidos com seu sucesso — e as coisas voltaram a ser como antes.
Durante o crescimento da revolução de 2011 no Egito, Mubarak repetidamente ofereceu aquilo que os manifestantes estavam exigindo alguns dias antes de pedirem; mas à medida em que se intensificava a situação nas ruas, os manifestantes se tornaram cada vez mais inflexíveis. Se Mubarak tivesse feito uma oferta maior, talvez ainda estaria no poder hoje. Realmente, a revolução egípcia falhou não por que pediu demais, mas sim porque não foi longe o suficiente: ao remover o ditador mas manter intactos a infraestrutura do exército e do “Estado profundo”, os revolucionários deixaram a porta aberta para novos déspotas consolidarem o poder. Para a revolução ser bem sucedida, teriam de ter destruído a própria arquitetura do Estado enquanto as pessoas ainda estavam nas ruas e a janela de oportunidade estava aberta. “As pessoas exigem o fim do regime” oferecia uma plataforma conveniente para agregar a maioria do povo egípcio, mas isto não os preparou para os regimes que se seguiriam.
No Brasil em 2013, o MPL (Movimento Passe Livre) ajudou a catalisar protestos gigantescos contra o aumento no transporte público; este é um dos poucos exemplos de um movimento que foi bem sucedido na conquista de suas demandas. Milhões de pessoas foram às ruas, e o aumento de vinte centavos na tarifa foi cancelado. Os ativistas brasileiros escreveram e deram palestras sobre a importância de se definir demandas concretas e paupáveis, de modo a ganhar impulso através de vitórias elementares. Em seguida, tentaram forçar o governo a tornar o transporte público.
Por que sua campanha contra o aumento da tarifa foi bem sucedida? À época, o Brasil era uma das poucas nações do mundo com uma economia ascendente; ele havia se beneficiado da crise econômica mundial atraindo os dólares de investimento longe do volátil mercado estadunidense. Em outros países — na Grécia, na Espanha, inclusive nos Estados Unidos — os governos estavam contra a parede tanto quanto os movimentos anti-austeridade, e não podiam atender às demandas destes mesmo que desejassem. Não foi por falta de demandas específicas que nenhum outro movimento foi capaz de alcançar tais concessões.
Mal havia completado um ano e meio, quando as ruas se esvaziaram e a polícia reafirmou seu poder, o governo brasileiro introduziu outra série de aumentos de tarifas — maiores desta vez. O MPL tinha que começar tudo de novo. Acontece que você não pode derrubar o capitalismo com uma reforma por vez.
Se você quer conquistar concessões, vise além do alvo.
Mesmo se o que você quer é realizar pequenas mudanças dentro do status quo, a estratégia mais inteligente é almejar mudanças estruturais. Frequentemente, mesmo se quisermos alcançar pequenos objetivos concretos, devemos almejar muito além. Aqueles que se recusam a aceitar acordos presenteiam as autoridades com uma alternativa indesejável além (da alternativa) de tratar com reformistas. Sempre vamos encontrar alguém desejoso de ocupar a posição de negociador — mas quanto mais as pessoas se recusam, melhor será sua posição de barganha. Aqui o ponto de referência clássico é a relação entre Martin Luther King, Jr. e Malcolm X: se não fosse por causa da ameaça representada por Malcolm X, as autoridades não teriam tanto incentivo para negociar com o Dr. King.
Para aqueles dentre nós que visam mudanças genuinamente radicais, não se ganha nada diluindo nossos objetivos para consumo público. A Janela de Overton — o espectro de alternativas consideradas politicamente viáveis — não é determinada por aqueles no pretenso centro do espectro político, mas pelos extremos. Quanto mais ampla for a distribuição de alternativas, mais o território se abre. Os outros podem não se juntar imediatamente a você nos extremos, mas saber que algumas pessoas estão dispostas a defender aquela agenda pode encorajá-las a agir mais ambiciosamente.
Em termos puramente pragmáticos, aqueles que aceitam uma diversidade de táticas são mais fortes, mesmo quando se trata de alcançar pequenas vitórias, do que aqueles que limitam a si mesmos e aos outros e excluem aqueles que recusam a se limitar. Por outro lado, sob a perspectiva da estratégia de longo prazo, a coisa mais importante não é se nós alcançamos algum resultado particular imediato, mas como cada engajamento nos coloca em relação às questões posteriores. Se adiamos infinitamente as questões que queremos colocar, o momento ideal nunca chegará. Não precisamos apenas ganhar concessões; precisamos desenvolver competências.
Fazer as coisas sem elaborar propostas não significa ceder espaço no discurso político.
Talvez o argumento mais convincente a favor da elaboração de demandas concretas é que se não o fizermos, outros farão — sequestrando o ímpeto da nossa organização para promover suas próprias agendas. O que aconteceria se, por culpa da nossa falha em apresentar demandas, as pessoas acabarem consolidando uma plataforma liberal reformista — ou, como em muitas partes da Europa hoje, uma agenda nacionalista de direita?
Certamente isso ilustra os perigos do fracasso em expressar nossos sonhos de transformação com aqueles com quem dividimos as ruas. É um erro aumentarmos o tom das nossas táticas sem comunicar os nossos objetivos, como se todo confronto tendesse necessariamente à emancipação. Na Ucrânia, onde as mesmas tensões e ímpetos que deram origem à Primavera Árabe e ao Occupy engendraram uma revolução nacionalista e uma guerra civil, podemos ver como até os fascistas podem se apropriar dos nossos modelos táticos e de organização para seus propósitos.
Mas isso dificilmente justifica endereçarmos nossas exigências às autoridades. Pelo contrário, se sempre dissimularmos nossos desejos radicais dentro de uma frente reformista comum por medo da alienação do público em geral, aqueles que não têm paciência para as verdadeiras transformações irão muito provavelmente correr em direção aos nacionalistas e fascistas, como os únicos que estão buscando abertamente mudar o status quo. Precisamos ser explícitos sobre o que queremos e como buscamos conquistá-lo. Não para obrigar as pessoas a seguir nosso método como o fazem organizadores autoritários, mas para oferecer uma alternativa e um exemplo para todos aqueles que estiverem buscando um caminho a seguir. Não para apresentar uma pauta específica, mas o oposto disso: nós queremos autodeterminação, algo que ninguém pode nos conceder.
Se não vamos trazer propostas, então o que faremos?
A forma como fazemos nossas análises, a forma como nos organizamos e a forma como lutamos — devem falar por si mesmas. Elas devem servir como um convite para se juntarem a nós em uma forma diferente de se fazer política, baseada na ação direta ao invés da propositura. As pessoas de Ferguson e de Baltimore que reagiram aos assassinatos de Michael Brown e Freddie Gray confrontando fisicamente a polícia fizeram mais pela discussão sobre violência policial do que décadas de defesa da vigilância comunitária. Ao tomar espaços e distribuir recursos, desviamos do caminho circular e insensível da representação. Se devemos enviar uma mensagem às autoridades, que seja esta exigência única e simples: Não mexam conosco.
Ao invés de fazer demandas, vamos começar a traçar objetivos. A diferença é que nós traçamos nossas próprias metas, no nosso próprio ritmo, conforme surgem as oportunidades. Elas não precisam ser limitadas pela lógica das forças dominantes, e sua realização não depende da boa vontade das autoridades. A essência do reformismo é que mesmo quando você conquista alguma coisa, você não adquire controle sobre ela. Devemos desenvolver a capacidade de agir em nossos próprios termos, independente das instituições com que estivermos lidando. Este é um projeto de longo prazo, e ele é urgente.
Ao perseguir e conquistar nossos objetivos, desenvolvemos a capacidade de lutar por objetivos maiores e mais ambiciosos. Isto contrasta fortemente com o modo como movimentos reformistas tendem a entrar em colapso quando suas exigências são atendidas ou consideradas irreais. Nossos movimentos serão mais fortes se puderem acomodar uma diversidade de objetivos, considerando que os mesmos não conflitem abertamente entre si. Quando compreendemos os objetivos uns dos outros, se torna possível identificar por que faz sentido cooperarmos entre si, e quando não faz — um tipo de clareza que não resulta do alinhamento em torno de um mínimo denominador comum.
A partir deste ponto, podemos perceber que escolher não elaborar demandas específicas não necessariamente é um sinal de imaturidade política. Pelo contrário, pode ser uma recusa perspicaz a cair nas armadilhas que debilitaram as gerações anteriores. Vamos conhecer nossa própria força, longe das jaulas e filas da democracia representativa — longe da política de demandas.
“Talvez, portanto, a moral da história (e a esperança do mundo) reside não naquilo que as pessoas exigem dos outros, mas de si mesmas.”
Como nossa forma de comunicar pode sabotar nossos esforços*
Nas últimas duas décadas nossos costumes avançaram pelo menos um pouco no sentido de aceitação da homossexualidade, na luta contra o racismo, na igualdade de gêneros e no respeito às minorias de forma geral. Agora estamos assustadas com uma onda reacionária que dominou o país, propagando um discurso de ódio e intolerância com as minorias e com os movimentos sociais, ao ponto de pipocarem agressões homofóbicas, antifeministas e esquerdofóbicas por todo o lado. O que deu errado? Por quê as pessoas estão se opondo tão violentamente a mudanças que visam construir um mundo com mais tolerância e igualdade e sentem tamanho ódio por ativistas e pessoas que defendem a igualdade das mulheres, a igualdade de gêneros?
Em termos de conteúdo, nosso discurso pode ser muito diferente do da direita reacionária e conservadora, mas, pelo menos até o momento, tem sido idêntico na forma. “Eu tô certo, você está errado!” é a forma de comunicação preferida na civilização ocidental e nas suas esferas de influência desde o seu surgimento. Seja com nossas famílias, em nosso círculo de amizades, com nossas colegas de trabalho ou com uma pessoa estranha na rua, quando nos deparamos com uma discordância, somos ensinadas desde pequenas a argumentar, jamais a dialogar. Quando uma criança faz algo que pessoas adultas não aprovam, ela logo é posta em seu lugar: “Não pode!”, “Sua irresponsável!”, “Isso é errado!”. Ao invés de dialogarmos com ela para descobrir por que fez e o que estava tentando fazer com aquilo, somos impelidas (pela nossa própria criação) a demonstrar todas as formas em que elas erraram.
E nas nossas discussões sobre política e transformação social, agimos da mesma forma. Estamos sempre prontas para acusar e criticar, mas jamais para tentar compreender o que faz aquela pessoa pensar e agir daquele jeito, nem para expor nossos sentimentos e juntas tentarmos encontrar uma solução para nossos problemas. Quando fazemos isso sem ouvi-las e buscar a empatia, estamos negando a validade do seu ponto de vista, da sua vivência e tentando impor a nossa visão como a Verdade.
E isso parece não estar dando certo para ninguém.
Todo ataque, gera resistência.
Assim como a violência do Estado e do capitalismo gera resistência por parte das pessoas que lutam por liberdade e por um mundo com mais igualdade, quando agimos ou dizemos algo que outras pessoas interpretam como crítica, julgamento ou reprovação, é muito provável que surja resistência às mudanças que estamos tentando realizar. É normal ficar na defensiva durante um ataque, mesmo que argumentativo, e, dentro de um certo limite, isso é até mesmo saudável para não aceitarmos acriticamente tudo que nos dizem e sermos manipuladas.
Os últimos anos de avanços na igualdade social, como o maior acesso da população negra às universidades através das cotas, o empoderamento das mulheres para denunciar abusadores publicamente e a coragem de casais homoafetivos de demonstrar o seu amor em público, entre outros, trouxeram no seu encalço uma resistência feroz. Pessoas que se sentiram julgadas ou acusadas de serem machistas, racistas, homofóbicas, e todo mundo que se identificou com elas por ser parte de uma cultura que ainda propaga esses valores, ficaram na defensiva e ali se entrincheiraram. Isso colaborou com a polarização política que acabou levando Bolsonaro, Mourão e uma horda de reacionários ao Palácio do Planalto, o que agora pode pôr tudo a perder.
Ainda estamos presas a uma mentalidade de tentar realizar transformações acusando as outras pessoas de estarem erradas, e isso não está funcionando.
Quando abrimos mão do diálogo, a única forma de mudar o comportamento opressivo de outra pessoa é através do constrangimento ou do medo. Ou seja, através da ameaça de ostracização ou de uso da força. A ostracização não resolve o problema, apenas o afasta de nossos olhos. Por exemplo, ostracizar uma pessoa homofóbica não fará com que ela deixe de ser hostil a pessoas em relacionamentos homoafetivos, apenas fará com que ela faça isso longe de nossos olhos e de nossa esfera de influência – ou seja, empurramos o problema para outras pessoas.
Já a força não é uma forma eficaz de convencimento e de mudanças a longo prazo, principalmente se o que queremos é um mundo baseado no princípio da liberdade. O uso da força pode sim ser eficiente como defesa, para preservar a vida frente a uma ameaça. Se a polícia representa uma ameaça à liberdade e à vida das pessoas, a força pode ser útil para impedir o seu avanço, protegendo as pessoas da repressão. Se uma mulher está prestes a ser violentada por um homem, esfaqueá-lo pode ser uma forma eficaz de preservar a integridade física e mental dela. A ameaça de violência física também pode dissuadir um grupo fascista de cometer ataques homofóbicos e racistas, e a sabotagem pode proteger uma floresta do desmatamento iminente. Embora a força possa ser uma boa solução para ameaças imediatas à vida, não é a melhor solução a longo prazo.
“As pessoas foram treinadas a criticar, insultar e se comunicar de formas que distanciam as pessoas.”
— Marshall B. Rosenberg
Se forçamos alguém através do constrangimento, da coerção ou do medo de punição a fazer algo contra a sua vontade, essa pessoa voltará a fazer isso assim que enxergar uma oportunidade de fazê-lo sem sofrer retaliação. Se o número de pessoas constrangidas for grande, elas poderão fazer parte de um movimento reacionário.
Opondo-se a ideias, não a pessoas
Chamar alguém de fascista, machista, racista ou homofóbico pode fazer a gente se sentir bem, descarregar um pouco da nossa raiva e frustração e reforçar nosso sentimento de estarmos do lado da justiça e da liberdade. Mas vai ser pouco eficiente em transformar as ações dessa pessoa. Se ela luta por mudanças radicais, como nós, isso pode fazer com que se sinta inferiorizada, que não é boa ou pura o suficiente, e isso pode acabar imobilizando-a ou afastando-a do movimento. Se ela simpatiza com nossa luta, mas não é tão radical quanto nós, a probabilidade de afastá-la é ainda maior e poderemos ser taxadas de extremistas, reduzindo nosso apoio em grupos mais moderados. Por outro lado se ela for mais conservadora ou não for familiarizada com ideias mais radicais, ela pode acabar se identificando com os rótulos que impomos a elas, assumindo a pecha de antifeminista, de defensor dos direitos dos homens, passar falar de racismo invertido e outras formas de vitimismo.
Há uma diferença entre acusar alguém de “ser” racista e de ter agido de forma racista. O mesmo vale para o sexismo, a homofobia ou o fascismo. Essas opressões estão entranhadas dentro de nós e mesmo a pessoa mais esclarecida pode cometer atos machistas, racistas, sem ter consciência, mas isso não significa que ela pense que mulheres ou pessoas negras são inferiores ou que devem ser tratadas de forma diferente. Se em certo momento ela agiu de forma que consideramos opressora, se conversarmos sobre essa ação específica será mais fácil para nós dialogarmos abertamente e também para ela evitar realizar aquela mesma ação no futuro. Mas se a rotulamos como machista, racista, homofóbica, a congelamos no status de opressora, e será muito mais difícil para nós estabelecermos um diálogo com ela e mais difícil será para ela mudar, e portanto estaremos mais distantes do nosso objetivo de acabar com a opressão.
Se enxergamos as outras pessoas como iguais e não queremos oprimi-las, impondo nosso ponto de vista, a saída é estabelecer um diálogo. Para isso, precisamos ouvir e ser ouvidas, o que é muito raro hoje em dia. Realmente escutar nossa interlocutora não é ficar pensando, enquanto ela fala, em como retrucá-la, mas ouvir o que ela tem a dizer, tentar descobrir como ela está se sentindo e o que leva ela a se sentir assim. Muitas vezes, somente depois de ter certeza que você ouviu o que ela tinha a dizer, uma pessoa se abrirá para saber o que você sente, precisa e as mudanças que gostaria de ver. Precisamos aprender a discordar das ideias de alguém sem desumanizar a pessoa.
É improvável que conseguiremos resolver as disputas numa única conversa, mas mesmo que haja discordância é precioso mantermos os canais abertos para irmos compreendendo umas às outras e quem sabe um dia elas estarão prontas para atender nossos pedidos.
“O mundo não está dividido entre Oriente e Ocidente. Você é americana, eu sou iraniana, nós não nos conhecemos, mas conversamos e nos entendemos perfeitamente. A diferença entre você e seu governo é muito maior que a diferença entre você e eu. E a diferença entre eu e meu governo é muito maior que a diferença entre eu e você. E nossos governos são muito parecidos.”
— Marjane Satrapi, quadrinista iraniana.
Nem sempre é fácil manter um diálogo com quem pensa e fala coisas que ferem nossos princípios e valores. Fica mais fácil se mantivermos o foco em qual necessidade humana aquela pessoa está tentando proteger quando diz e pensa isso. Afinal, todas precisamos das mesmas coisas: sustento, segurança, liberdade, paz, compreensão, etc. É claro que manter esse tipo de diálogo demanda uma boa quantidade de disposição e energia e, por vezes, pode ser muito tentador mandar a pessoa catar coquinhos e seguir com nossa vida. Por essa razão, precisamos conhecer e respeitar nossos próprios limites. Se não estamos conseguindo manter um diálogo, temos que ter em mente que é sempre possível interrompê-lo e perguntar à outra pessoa se ela estaria disposta a continuar em outro momento. Também precisamos aprender a pedir ajuda quando necessário.
A fim de conseguirmos escutar alguém, precisamos nos sentir escutadas e para isso é importante ter pessoas em quem confiamos com quem podemos nos abrir e desabafar. Ao criar redes de pessoas que se escutam, começamos a criar uma cultura de diálogo. Essa cultura se faz muito necessária em uma conjuntura que, estimulada pelas redes sociais corporativas (Facebook, Instagram, etc.), facilita o bloqueio e a exclusão de pessoas de quem discordamos de nossas bolhas e da nossa própria existência digital.
Quem mais se beneficia do isolamento e da desintegração das comunidades é o Estado, o fascismo e qualquer grupo interessado em fazer perseguição política. Se queremos um mundo livre de opressão, precisamos encontrar formas não-coercitivas de criá-lo, senão estaremos reproduzindo as mesmas dinâmicas e estaremos portanto fadadas ao fracasso.
*Originalmente publicado por camaradas da revistaFagulha.
No dia primeiro de janeiro de 2019, Jair Bolsonaro assumirá a presidência do Brasil. Sua candidatura, seu governo e seus aliados representam o que há de pior em qualquer sociedade: o autoritarismo, o sexismo, o racismo, a homofobia e a xenofobia. O capitalismo aliado a práticas com fortes tendências fascistas!
O novo presidente já mostrou que as minorias políticas serão os principais alvos de seu governo: a classe trabalhadora e pobre, as mulheres, a população negra e periférica, toda comunidade LGBTTIQ, os povos indígenas e imigrantes terão ainda mais direitos ameaçados e suas vidas colocas em risco.
Usando notícias falsas, boatos e distorções dos fatos, Bolsonaro e seus apoiadores foram capazes de influenciar milhões de pessoas e fugir de todos os debates sobre seus projetos e ideias.
Ele representa um risco aos ecossistemas ao querer acabar com leis e acordos ambientais, negando a existência do aquecimento global e planejando entregar reservas ecológicas e terras indígenas ao agronegócio e ao mercado internacional. Escândalos envolvendo sua equipe apenas mostram que Bolsonaro usará da mesma corrupção que os governos anteriores.
Portanto, não é possível esperar: 2019 deve ser um ano de luta ainda mais intensa. Convidamos a todas e todos, comunidades, movimentos, coletivos, associações, estudantes, trabalhadores e trabalhadoras e quem não tem trabalho para a organizar uma luta ampla e para além da política partidária. A polarização entre direita e esquerda no nível eleitoral tem servido de distração e colocado projetos de poder semelhantes como aparentemente opostos. Enquanto isso, deixa intacta a raiz do problema que se encontra no Estado e na forma capitalista da sociedade.
Nas palavras do próprio Bolsonaro: as oposições e também as todas as formas de ativismo estarão banidas do país. A violência policial será ainda mais intensa e a turba influenciada por seus discursos de ódio que saíram do armário em sua campanha, não voltará para lá. Eles também estarão nas ruas agora!
Não podemos recuar. Estivemos nas ruas contra o aumento das passagens e a Copa das Confederações em 2013, contra os impactos da Copa do Mundo em 2014 e das Olimpíadas em 2016. Nas ocupações das escolas em 2015 enfrentando os cortes da educação. Nas escolas e instituições culturais ocupadas contra as medidas de Michel Temer em 2016. Em 2017 e 2018 em todas as greves, ocupações e marchas contra o atual governo.
É necessário tomar novamente as ruas para resistir, deslegitimar e expor os absurdos defendidos por Bolsonaro como uma ameaça a todas as pessoas, para o meio ambiente e para as gerações futuras.
Desde o dia da sua posse, primeiro de janeiro, ocuparemos as ruas contra toda e qualquer medida imposta pelo seu governo. A luta pela terra, por moradia, pela nossa existência, por justiça e igualdade deverá ser mais intensa do que nunca. Estaremos também nos dias históricos das lutas populares:
oito de março, dia da mulher; 19 de abril, dia da resistência indígena; primeiro de maio, dia dos trabalhadores e trabalhadoras; 28 de junho, dia do orgulho LGBTTIQ; sete de setembro e o grito dos excluídos; 20 de novembro dia da consciência negra.
Será preciso tomar toda oportunidade de demonstrar que não existe consenso. A maioria da população não votou em um governo autoritário, que abre as portas para maior militarização da sociedade, para o fascismo e para a supremacia branca e patriarcal.
Não iremos parar de lutar até que o Estado e o capitalismo caiam!
Em 2019, Bolsonaro e seus aliados não terão descanso!