A COMUNA DE QUITO: por dentro da insurreição no Equador

No início de outubro, uma onda de protestos tomou as ruas do Equador contra os cortes no subsídio da gasolina e, consequente aumento dos custos de vida. A agitação se transformou no maior levante popular do país das últimas décadas. Marchas indígenas chegaram à capital Quito e ocuparam o prédio do Parlamento e milhares de manifestantes enfrentaram as forças policias do presidente Lenin Moreno, obrigando o governo a mudar sua sede da capital do país para tentar escapar da insurreição popular. Moreno é o sucessor e ex-vice presidente de esquerda Rafael Correa, que chegou ao poder impulsionado pelos movimentos sociais da década de 1990 e governou o país por 12 anos sob o mesmo padrão neoliberal e pacificação/cooptação dos movimentos sociais aplicado por outros governos de esquerda na América Latina – como PT no Brasil. A convergência de vários grupos do campo, da cidade, estudantes, mulheres e indígenas foi o que permitiu uma radicalização da luta que se transforma agora numa insurreição popular. Foram contabilizados até agora 554 feridos, 929 prisões e 5 mortes nos 9 primeiros dias repressão as manifestações.

Conduzimos essa entrevista com companheiros diretamente das barricadas nas ruas do Equador para debater algumas das questões mais relevantes sobre a mobilização.

Manifestantes invadem parlamento em Quito, dia 8 de outubro de 2019.
1. Os governos do Brasil, Argentina e instituições ligadas à União Europeia declaram apoio ao governo de Lenin Moreno no Equador e denunciam a revolta popular da classe trabalhadora e povos indígenas. Obviamente, essas instituições sabem que as políticas de austeridade também estão em sua agenda e temem que o mesmo cenário se espalhe pelas Américas e outras partes do globo. Como vocês enxergam a resistência às políticas de austeridade e corte de subsídios afetando a vida cotidiana no Equador? Qual o caminho que, na sua opinião, levou a população das cidades e aos indígenas a dizer basta? Existe um sentimento anticapitalista compartilhado nas ruas?

A resistência que está acontecendo nesse momento que já tem oito dias, já constitui uma data importante, um evento histórico. É a maior revolta dos últimos anos, historicamente não sei, mas seguramente é a maior greve dos últimos anos, que tem como protagonista os indígenas, porque os levantes do passado não duraram tanto tempo como está durando agora.

A austeridade e a política de redução de subsídios afetam a vida cotidiana no Equador, mas creio que há uma divisão de classe no que está acontecendo nesses dias na cidade de Quito e no Equador inteiro. Há uma parte da população que não entende as razões do protesto e que dizem que na verdade o governo não está aumentando o preço da gasolina mas apenas retirando um subsídio que existia. O que não entendem é que aumentar a gasolina é aumentar o preço das passagens, por exemplo. Um aumento de 10 centavos para um estudante de universidade pública é muito. Comprar alimentos nesse período também aumentou. Para as pessoas que tem negócios, que vão comprar coisas para seu uso cotidiano e ganham o mínimo, isso os afeta muito. Por exemplo, o saco de batata que estava a 18 dólares há 10 dias agora está de 30 a 35 dólares. Digamos que há um efeito imediato do aumento do preço da gasolina, já que os subsídios fornecidos anualmente permitiam um acesso maior a cesta básica e a outros tipos de bens de consumo. Além disto, a maior parte dos alimentos, vegetais e verduras que são cultivadas na Sierra (a região dos Andes) ou, por exemplo, as bananas cultivadas nas plantações da Costa, são todos transportados em caminhões a diesel. A maior parte dos ônibus urbanos, também. Há uma conexão entre os subsídios e a cesta básica, se aumenta um aumenta todos os preços, como já vem aumentando.

Escultura “Esfera de movimientos oscilantes”, em Quito, dia 8 de outubro.

E como disse, há uma questão de classe, a classe média pode ser que não sinta essas medidas, mas a maior parte da população já está sentindo. E os indígenas sabem que não vão conseguir vender seus produtos, e quando tiverem que vender para as pessoas da cidade, vão ganhar muito pouco. No final, acaba sendo uma cadeia na qual o produtor direto é o que vai ganhar menos, e eles sabem disso. É necessário que se entenda que aqui o alimento nas grandes cidades chega pelo campo, então há aí um efeito direto do aumento do preço da gasolina sobre os pequenos produtores no campo, onde a maioria dos companheiros indígenas vivem.

Sobre o sentimento anticapitalista nas ruas, a esquerda durante os últimos 12 anos esteve muito dividida, desde que o Rafael Correa chegou ao poder, um governo que se dizia de esquerda e que chegou ao poder capitalizando os protestos sociais dos anos 90 e da primeira década dos anos 2000. Desta forma, muito dos protagonistas destes tempos de luta entraram para o governo. Durante esses anos haviam pessoas que acreditavam neste projeto de governo, e que depois se deram conta que ele seguia uma direção muito capitalista. Isso impediu que houvesse uma verdadeira união na esquerda. Agora, neste momento histórico, não creio que houve um processo de crescimento pelo qual os movimentos sociais estavam articulados até chegar a este momento de explosão. Mesmo se aconteceram diversas coisas no campo social nos últimos anos, não havia um encaminhamento claro a respeito da organização revolucionária e comunitária, digamos. É como se os movimentos sociais estivessem adormecidos e, da noite para o dia, graças ao “paquetazo”*, todo o povo de repente se uniu, e isso permitiu que se radicalizasse a luta. Houveram, por exemplo, muitos bloqueios nos bairros, nos arredores das cidades, em pequenos povoados e isso manteve vivo os 8 dias de paralisação em que estamos.

*Paquetazo: refere-se o decreto 883 do governo de Lênin Moreno e seu pacote econômico, em espanhol usa-se a expressão para dar um sentido negativo

Parlamento ocupado em Quito, 8 de outubro.
2. No dia 8 de outubro, milhares de indígenas chegaram marchando à capital Quito e ocuparam o prédio do Parlamento. Como se deu esta mobilização indígena na cidade neste dia? Em torno de quais pautas e ações eles estão se organizando?

Na realidade os indígenas chegaram no dia 7 de outubro, na segunda-feira houve uma batalha campal na cidade de Quito que durou 5 ou 6 horas entre sobretudo estudantes, movimentos sociais e cidadãos de Quito que procuravam manter a polícia ocupada para permitir a entrada dos companheiros indígenas. Lembramos que estamos vivendo em Estado de Exceção, então os militares estão nas ruas e tinham bloqueado neste momento as principais entradas de Quito, as entradas Norte e Sul, para impedir que os indígenas vindos de outras províncias pudessem entrar. Mas, estes estavam tão bem organizados, que não teve inteligência militar capaz de parar a sua determinação. E o fato da luta ocorrer no centro da cidade, também permitiu abrir brechas para que os indígenas pudessem chegar até o centro histórico.

Bem no momento em que conseguimos que a polícia recuasse, vimos chegando os caminhões cheios de gente, e as motos que acompanhavam a caravana indígena, foi um momento muito emocionante. Eles foram diretamente até o Parque El Arbolito, ao lado da Universidade Salesiana onde está organizado um apoio logístico ao movimento. No dia seguinte se convocou uma concentração no Parque El Arbolito e foi decidido tomar a Assembleia. Chegando lá, uma primeira delegação entrou e aos poucos foram entrando mais gente, enquanto havia milhares de pessoas na porta da Assembleia querendo entrar. A polícia lançou bombas de gás no meio das pessoas, o que criou um movimento de pânico. Pessoas poderiam ter stido mortas pisoteadas porque muitos, não podiam respirar, outros muitos corriam em várias direções. Enquanto isso a polícia continuava atirando bombas de gás e balas de borracha nos manifestantes. Nesse momento começou uma repressão muito grande. A Assembleia, estrategicamente, é como um pequeno forte, situada em cima de um morro; para protege-la, a polícia se posicionou em um ponto mais alto e tinha condições de acertar os manifestantes com franco-atiradores. Consequentemente houve um número muito grande de feridos e alguns mortos, já que policiais estavam em uma posição estratégica para reprimir.

A ideia de ir até a Assembleia era uma das ações que o movimento indígena havia decidido executar durante estes dias que estiveram em Quito. Até ontem (quarta-feira, dia 9/10), havia bastante preocupação, porque não havia estratégia clara, enquanto o Governo não recuava e estava aumentando a repressão. Inclusive, o fato da polícia ter lançado bombas de gás dentro de centros de paz e espaços de acolhimento, como a Universidade Salesiana e a Universidade Catolica, causou muita indignação e, de uma certa forma, atingiu o Governo porque a notícia circulou, apesar do cerco midiático que as grandes mídias e o Governo estão tentando manter.

Manifestantes enfrentam as forças de segurança no centro de Quito.

Hoje (quinta-feira, dia 10/10) pela manhã, 8 policiais foram detidos pelo movimento e trazidos para a grande assembleia popular e indígena na Casa da Cultura onde havia cerca de 10.000 ou 15.000 pessoas. Os jornalistas dos grandes meios de comunicação que estavam lá acabaram transmitindo ao vivo a assembleia, mesmo que não o fizessem da melhor maneira. Isso permitiu de certa maneira quebrar o cerco midiático divulgando, por exemplo, o fato que um companheiro liderança indígena de Cotopaxi, Inocencio Tucumbi, foi morto. Ele desmaiou após ter inalado muito gás lacrimogêneo e em seguida foi pisoteado por um cavalo da polícia. Isso até então não tinha saído na grande mídia. De repente apareceram os mortos nos grandes canais de TV’s e foi se tornando evidente para o grande público que sim, o Governo está matando e está criando um nível de repressão muito grande!

Então, a estratégia de hoje teve êxito. Como eu te disse, ontem ainda não havia estratégia muito precisa, mas hoje já estávamos mais organizados. Houve uma missa, e foi organizado um corredor humano de 1 km da Casa da Cultura até o Hospital para poder encaminhar o corpo do nosso companheiro, muita gente aplaudiu, foi também um momento de grande emoção. Nos despedimos dele com muita honra, porque era um grande companheiro de luta. Também prometeu-se naquele momento que em sua memória a luta iria continuar. Também foi um momento para juntar forças, para descansar, para pensar sobre a estratégia a seguir nos próximos dias e para compartilhar essa dor geral pensando naqueles que caíram, naqueles que estão feridos e nos dar animo para seguir lutando.

A exigência da CONAIE (Confederação de Nacionalidades Indígenas do Equador) em seguida foi clara, dizendo que se o Governo radicalizasse a violência, obviamente a rua também iria em resposta se radicalizar.

Chegando a noite, os policiais foram libertados e foram entregues na frente da Assembleia, em meio à uma grande manifestação. Pelo fato da Assembleia e da Casa da Cultura estarem próxima, havia uma espécie de manifestação-plantão permanente na frente da Assembleia e a zona estava repleta de manifestantes. Havia esta noite cerca de 30.000 pessoas no local. Foram então entregues os policiais e os indígenas deixaram claro que eles haviam sido detidos por terem entrado em uma zona que havia sido declarada zona de paz. Foram portanto detidos, mas estavam sendo entregues são e salvos. Diferente da prática da polícia, pois no dia em que a Assembleia foi tomada, houveram cerca de 80 presos. E quase todos foram soltos, ontem, com marcas de violência e machucados.

3. Os povos indígenas declaram seu próprio estado de exceção em seus territórios, ameaçando prender agentes do estado que ousariam entrar nessas regiões. Como se dá essa autonomia e organização territorial dos povos? E quais são esses povos?

Sobre o Estado de Exceção decretado nos territórios indígenas, isto explica também o episódio todo que eu te contei. Pois neste momento a Casa da Cultura e toda a região ao redor estão sendo considerados como territórios indígenas, então foi considerado que os policiais violaram a soberania excepcional dos povos indígenas e por isto fora detidos. Isto aconteceu também em outros territórios indígenas nesta semana, onde foram detidos militares que violaram estes territórios, foram sequestrados ônibus e veículos blindados de militares. Isto acontece porque os povos indígenas, desde há tempos já exigem a autonomia em seus territórios e possuem sua própria lei indígena. Quando acontece algum problema dentro destes territórios, alguém roubando ou causando problemas, o caso é resolvido pela justiça indígena, sem passar pela justiça estatal.

Então, a partir do momento em que o Governo decretou o Estado de Exceção, em resposta os indígenas decretaram também o Estado de Exceção em seus territórios como uma forma de diminuir o nível de repressão e também de pressionar os militares e a polícia que, seja na rua ou nos territórios, reprime os povos, para que estes saibam que correm o risco de serem detidos, como aconteceu. Como disse, em diferentes territórios, militares e policiais foram retidos, desarmados e, depois de alguns dias, foram soltos após ter passado pela justiça indígena. Isso funciona claramente no sentido de expor na frente da pessoa acusada tudo que ela fez, dependendo do delito cometido e em relação a este se decide o castigo a ser sofrido pelo preso de modo comunitário.

E sobre as etnias, digamos que a CONAIE está dividida entre todos os povos indígenas e outros povos incluindo cholos (mestiços) e povos negros do equador. Existem os indígenas do litoral, os povos da Serra Norte, da Serra Central, da Serra do sul e os do oriente, da região Amazônica e todos se articulam através da Confederação das Nacionalidades Indígenas do Equador.

4. Existem rumores – criados pela grande midia vinculada ao governo – de que a CONAIE está fazendo acordos com o governo e parece que este último está tentando dividir o movimento entre bons e maus. Más nas últimas horas (10/10), no entanto, houve notícias de que não há acordo entre a CONAIE e o governo. Quanta chance essas tentativas tem de ser bem-sucedidas? Quanto a CONAIE estaria disposta a radicalizar o movimento ou negociar? E que influência ou representação efetiva a CONAIE tem em relação aos povos indígenas?

É claro que houve rumores, fofocas, mentiras e falsidades feitas pelo governo e pela mídia que obviamente tentam dividir a luta popular que hoje está ocorrendo nas ruas de Quito e em todo o Equador. Deve-se dizer que essas grandes organizações como a CONAIE, o FUT (que é o maior sindicato dos trabalhadores do país) historicamente também tiveram momentos em que negociaram, em períodos de fraqueza, e essas negociações não chegaram a nenhum lugar. E, por serem grandes organizações, também estão dentro de um cenário super-político; portanto, às vezes os próprios movimentos os vêem como estruturas políticas ambíguas. Mas isso é normal, além disso, devemos ver a capacidade organizacional que eles têm, neste caso especialmente a CONAIE, com seu papel histórico, considerando que no passado ela conseguiu derrubar vários presidentes. Nesses dias também temos visto a força das agremiações de transportadores e motoristas de táxi que paralisam a cidade e aquela dos estudantes que saíram às ruas. A verdade é que os transportadores têm um papel histórico muito mesquinho no Equador e eles decidiram sair da greve logo de que conseguiram aumentar o preço das passagens. Enquanto as pessoas e especialmente os estudantes conseguiram manter a luta nas ruas e os indígenas imediatamente se juntaram. Tanto o movimento urbano quanto o movimento indígena logo conseguiram descentralizar a atenção que era inicialmente exclusivamente para os transportadores.

Então sim, houve esses rumores. Mas hoje também tem o fato de que houve atenção para os polícias presos e, com aquilo, os jornalistas que foram imediatamente para lá. Os líderes de cada grupo indígena e o próprio presidente da CONAIE, o Sr. Vargas, declararam publicamente que não vão negociar com o governo porque que o sangue dos mortos não pode ser negociado e que, para iniciar um diálogo, eles colocam como condição a eliminação do decreto 883 (o “paquetazo”), que o FMI deixe o país, e que a ministra do Interior Maria Paul Robles e o ministro da Defesa, Oswaldo Jarrín, renunciem imediatamente, pois são os culpados pela morte dos companheiros que caíram nestes dias.

Obviamente, há uma grande pressão das bases. Nos dias anteriores, havia poucas reuniões, principalmente de líderes e alto comando de organizações políticas Mas hoje (10/10) foi decidido fazer essa assembleia popular que durou muitas horas e toda decisão era fruto de uma consulta a população, as bases que estavam lá e que, como eu disse, eram umas 10 a 15 mil pessoas e tudo foi então decidido coletivamente. Também podemos dizer que a pressão das bases está permitindo que a liderança também tome decisões radicais, e não seja vendida, por desespero, por medo de ser presa ou por dinheiro que o governo desejar dar a eles por debaixo da mesa.

A CONAIE, em geral, tem uma enorme representatividade. No Equador, se você pensa nos povos indígenas, pensa diretamente na CONAIE. É uma organização muito grande, com uma estrutura política incrível e também comunicativa, estratégica. Hoje vimos muito bem como eles conseguiram “virar la tortilla” e colocar o governo em dificuldade.

5. O governo acusa Correa de estar por trás das manifestações. Mas, ao olhar aquelas, não parece que os correistas estejam tendo um papel protagonista. Qual é o papel de Correa na fase atual, tanto nas marchas quanto na possibilidade de cooptação e saida “pacífica” ou eleitoral do conflito?

Obviamente, o governo acusou Correa, acusou Maduro, disse que Correa havia viajado para a Venezuela e que a partir daí ele desenvolveu um plano para desestabilizar o governo. Agora eles também dizem que por trás do tumulto nas ruas estão o Latinquín, que é uma “pandilla” (uma gangue) e as FARC, ou seja, esse senhor não sabe mais o que dizer. Obviamente, culpar Correa é uma coisa que ele está acostumado, tem dois anos que Correa tem sido culpado de tudo. Apesar de Correa ser um corrupto que deve pagar pelos crimes contra a humanidade, pela repressão que ocorreu durante seus governos, pelos casos de corrupção, não se pode culpá-lo por tudo que é de responsabilidade do atual governo, que comanda o país há mais de dois anos. Então há essa acusação geral por parte de toda a direita  que, neste momento, apóia Lenin Moreno e esse costume de culpar Correa toda vez que há uma crise: se falta dinheiro é porque Correa o levou; se há criminosos é porque Correa fez leis que liberavam criminosos; se há muitos migrantes é por causa da lei da mobilidade – o governo anterior sempre é o culpado.

Dito isto, apesar do fato de que nos últimos meses, no ano passado, nas mobilizações e marchas que contra o governo – que eram muito menores do que são agora, pois agora é uma verdadeira revolta – os correistas estavam sempre presentes e isso criava problemas para alguns movimentos sociais, que não queriam estar junto com eles. Isso nos fez pensar que eles ainda estariam presentes nas marchas desses dias, pois também são um grupo muito consistente. De fato, no primeiro dia foram marchar e foram reprimidos, no segundo também apareceram mas estavam por trás da marcha e queimaram dois pneus fora do Banco Central enquanto mais a frente os estudantes tentavam entrar no centro histórico e enfrentavam a polícia. Depois daquele dia os correistas praticamente desapareceram, as pessoas não lhe deram espaço. Hoje (10/10) estávamos fazendo entrevistas com alguns companheiros auto-organizados e perguntamos a eles: e Correa? E todos responderam com muita clareza: não sou correista, não estou aqui por Correa, Correa não nos paga. E isso é evidente: os correistas não estão nas marchas, certamente um ou outro há, mas não estão de forma organizada.

Milhares de indígenas marchando rumo a Quito no dia 9 de outubro.

Dois dias atrás, no dia da assembléia, o padre Tuárez – presidente do Conselho de Participação do Cidadão e foi demitido por ser fanático religioso – disse que Deus havia lhe dito que Correa era o Salvador e que ele precisava voltar, coisas assim. Ele tentou se infiltrar nas mobilizações e as pessoas o colocaram para correr. Ou seja, essa possibilidade não existe. Isso também é o interessante: nem os partidos políticos nem os políticos tradicionais foram capazes de se apropriar do que está acontecendo. As únicas autoridades digamos mais “políticas” que têm legitimidade e que neste momento estão liderando as mobilizações são as do sindicato FUT e da CONAIE. Na verdade, é todo o povo que fica nas ruas, e isso é muito assustador para a direita, para a burguesia, para os banqueiros, para os “donos” do país porque a rua não aceita nenhum dos líderes políticos. Então, a solução pode ser que o “paquetazo” caia e que por algum momento retorne a calma, mas obviamente isso não poderá durar muito tempo. Outra possibilidade é que Lenin Moreno renuncie, e o “paquetazo” permaneça e o governo tentaria distrair o povo que ele se acalme e para que a atenção fique no fato de Moreno ter saído ou o fato de que um governo popular possa realmente ser construído, um governo nascido das ruas – e esses rumores já estão circulando. Então imagine o que estão pensando a direita, a burguesia equatoriana. Eles não absolutamente podem permitir que as ruas ganhem, porque isso significaria que depois de 12 a 13 anos se mostra às pessoas algo que na percepção comum não existe mais, isto é, ir às ruas é bom e se você se organizar, se resistir, se continuar insistindo, alcançará seu objetivo. Essa seria uma reação em cadeia que permitiria novamente que as pessoas acreditassem em suas possibilidades. Eles sabem disso e é por isso que estão todos unidos para evitá-lo.

6. Como o bloco no poder está enfrentando as manifestações? Existem divisões possíveis (entre os partidos, nas Forças Armadas…)?

O bloco no poder está todo unido. Os maiores líderes políticos (Lenin Moreno, Guillermo Lasso, Jaime Negot, Álvaro Noboa) estão todos unidos. Correa obviamente não diz nada porque o que ele quer fazer é capitalizar o que está acontecendo nas próximas eleições. Ele sabe bem que não é conveniente para ele falar muito porque o governo já está dizendo que a culpa é dele e não é estratégico para ele se envolver demais. Basta que as pessoas pensem que “tudo era melhor quando ele estava lá” e nas próximas eleições é muito provável que ele possa ganhar. O presidente está agora em Guayaquil, que é o refúgio dos social-cristãos, o partido de direita, que todos temiam que fosse vencer na próxima eleição. Mas agora não parece possível porque, certamente, ele não vai ter o voto da Serra, de cidades como Quito, Ambato, Riobamba, das comunidades indígenas. Então todos estão unidos, tentando usar todos os meios possíveis para criminalizar o protesto.

Quanto às Forças Armadas, agora temos um Ministro da Defesa treinado em Israel, pelo Mossad e pela Escola das Américas, um louco fascista, um militar. Há quatro dias, o governo criou uma cadeia nacional de uma hora, na qual esse louco falou metade do tempo, ameaçando, dizendo que as Forças Armadas saberão se defender, que não devem ser provocadas, que as pessoas precisam manter a calma porque se não a repressão será feroz, como se estivéssemos na ditadura. Isso claramente levou as pessoas a serem bastante indignadas. Ainda não se sabe, não existem dados precisos sobre deserções dentro do exército ou da polícia. O certo é que o papel histórico do exército sempre foi reprimir o povo e, em um determinado momento, quando o descontentamento popular já é evidente, eles tentam alcançar uma estratégia para impedir a existência de um governo popular e se apresentam como mediadores para criar um novo governo, mas que geralmente sempre termina sendo pior que o anterior. Então é possível que em algum momento as Forças Armadas comecem a criar rupturas dentro da organização popular e também a tirar o apoio do presidente.

O Estado e o Capital mantendo seus cães de guarda devidamente alimentados.
Lenin Moreno saiu de Quito, mas deixou seus cães devidamente abastecidos.
7. Como o movimento transformou a vida cotidiana na cidade de Quito? E como se organiza o dia dia nos espaços ocupados pelos manifestantes?

É impressionante o nível de solidariedade que se instalou aqui na cidade, que alguns tem rebatizado a Comuna da Quito, justamente porque não são apenas indígenas, não são apenas os estudantes, não são apenas manifestações. Há bloqueios feitos nos bairros que estão organizados. Como no Centro Histórico, o bairro de San Juan por exemplo, se organiza autonomamente. Quando a manifestação chega lá, pessoas te dão comida, água. No dia de ontem, quando a tensão se deslocou para os arredores de San Juan, na parte alta do Centro histórico, haviam vários moradores que chegavam trazendo pedras, pessoas que desde as janelas das casas davam aos manifestantes materiais para poder queimar ou para se proteger do gás de pimenta. Na porta das casas, haviam pessoas que nos davam água.

Cozinha comunitária organizada pela CONAIE.

Dentro das casas haviam pessoas que recebiam e ajudavam os feridos, oferecendo um espaço para que os médicos voluntários pudessem os atender, já que as ambulâncias não conseguiam chegar até lá. Tem muitos médicos voluntários, muitos deles estudantes de medicina, de enfermaria, que estão ajudando nas ruas, dando assistência emergencial aos feridos para evitar que haja mortos ou que as feridas se agravem. Temos portanto um aparato médico incrível, muito organizado.

Temos locais de recepção de alimentos, faço parte de um destes grupos no Whatsapp porque o lugar onde eu trabalho está funcionando como ponto de coleta de produtos. E por todo centro, por todas as Universidades, tem lugares funcionando como cantinas populares, como espaços de acolhimento para as pessoas de fora que vieram à Quito para lutar. Estes lugares estão cheio de doações e, por vezes, nem sabem onde levar todas estas doações que recebem. Tem cozinhas comunitárias, onde pessoas vem oferecer seu tempo para preparar alimentos. Ontem, eu estava conversando com pessoas de uma cozinha comunitária, no Parque Arbolito, havia ali um senhor que foi ferido enquanto a polícia atacava o Parque, porque apesar do ataque a cozinha continuou no local, ajudando as pessoas. Foi um bairro de Quito que montou a cozinha, se organizando através de uma igreja evangélica, estava ali o pastor e suas três panelas gigantes. Me disseram que haviam alimentado 700 pessoas apenas neste dia. Conheci também uma senhora muito humilde do sul de Quito, com a qual eu conversei, que tinha um pequeno negócio e veio pela tarde com uma pequena van, junto com seu filho, passando pelo Parque distribuindo café e pão para as pessoas. Então realmente, a comida não falta, há comida por toda parte, hoje mesmo eu já comi quatro vezes, por todo canto há pessoas te chamando para comer algo e às vezes se ofendem se você recusa porque é uma forma de doação.

Tem pessoas organizadas para apagar os gases de pimenta, ou para cuidar das pessoas atingidas pelos gases. Tem todo tipo de organização, tem pessoas que se encarregam de cuidar das crianças. (Tosse forte, “foi mal, é o efeito dos gases nos pulmões”.) Tem pessoas que organizam brincadeiras para as crianças. Tem pessoas que passam o dia cantando, tocando música. É realmente muito muito interessante o que está acontecendo aqui. Por isto, alguns falam aqui da Comuna de Quito, alguns dizem que de certa forma já ganhamos neste ponto de vista, no nível da auto-organização espontânea. Mas foram muitas assembleias para poder organizar o que está acontecendo agora. E creio que esta é a maior vitória, e esperamos que isso poderá continuar, este espírito de auto-organização. Este fato de mostrar que juntos já podemos resistir 8 dias e paralisar um país por 8 dias, para dizer que nossos direitos sejam respeitados.

8. Como o movimento planeja se organizar a partir de amanhã?

Hoje, durante todo o dia (10/10), houve uma manifestação, com a entrega dos policiais que haviam sido detidos, com o chamado para continuar a luta e os indígenas ainda estão aqui em Quito. Hoje foi um dia de tranquilidade, paz, luto. De fato, a CONAIE anunciou três dias de luto, não sei se isso significa que nos próximos três dias haverá apenas marchas pacíficas. Mas acho que estrategicamente também pode servir um pouco, por exemplo, hoje foi um dia “pacífico”, mas muitas coisas foram alcançadas, a atenção da mídia foi alcançada, a barreira da mídia foi quebrada. Apesar do fato de que eles cortaram nosso sinal de telefone celular e a Internet, o que dificultou a documentação de mídias independentes e pessoas desde os telefones celulares particulares. Então, acho que todos estamos nos preparando para uma longa resistência, se no início pensávamos que poderia terminar de um momento para o outro, depois do que vimos nesse últimos dias, entendemos e temos a sensação de que isso durará muito mais tempo – e é por isso que devemos organizar estrategicamente os momentos de luta e não queimá-los imediatamente. É importante tentar gerar opinião pública, quebrar a barreira da mídia, criar novas estratégias de combate, além das manifestações, dos momentos de riot, dos momentos de conflito com a polícia. Isso não significa que uma coisa esteja certa e outra errada, mas que precisamos usar todas as ferramentas possíveis para obter a vitória.

Certamente a luta continuará! Hoje prometemos diante do caixão do camarada morto pela polícia, que a luta continuará!

ENTREVISTA: Comuna Internacionalista de Rojava

Uma revolução começou em Rojava, em 2012, mudando radicalmente a vida de milhões de  pessoas no norte da Síria. O povo curdo uniu-se a diversos outros povos da região e se organizou em conselhos autônomos, comunas e cooperativas, libertando-se assim do autoritarismo do regime de Assad. Formularam uma sociedade comum para além do Estado e do Capitalismo. A organização das mulheres tornou-se a força motriz da revolução social e política da região e desenvolveu-se um projeto multiétnico e multirreligioso singular, que hoje garante a coexistência pacífica de milhões de curdos, árabes, assírios, yazidis, armênios, cristãos e muçulmanos, ao mesmo tempo em que tomavam a frente no combate ao Estado Islâmico. Por tudo isso, tal experimento revolucionário sempre foi visto como um problema para os poderes regionais, seja pelos governos de Assad na Síria e Erdoğan na Turquia, ou pelos imperialistas ocidentais.

Nos últimos meses, as ameaças da Turquia contra a Federação Democrática do Nordeste da Síria atingiram um novo nível. O governo de Erdoğan anunciou que está pronto para invadir Rojava, o que pode reacender a guerra civil no país. O presidente turco quer massacrar aquelas pessoas que derrotaram o grupo terrorista conhecido como Estado Islâmico e agora vivem em paz e liberdade.

Assim que o Estado Islâmico foi derrotado, o governo dos EUA induziu as Forças Democráticas da Síria (SDF) a desmantelar suas defesas ao longo da fronteira síria, prometendo garantir a paz na região. região e desencorajá-los a procurar outros aliados internacionais. Uma vez que estavam indefesos, Trump deu à Turquia permissão para invadir a região.

Em meio a uma eminente ameaça de guerra e genocídio contra um povo que protagonizou o maior levante revolucionário do século XXI, conseguimos uma entrevista com a Comuna Internacionalista de Rojava, um enclave revolucionário, que recebe pessoas voluntárias de todo o planeta interessadas em se juntar a revolução, praticando políticas ecológicas, democráticas, horizontais e comunais. Tudo isso em consonância com os valores e estratégias dos povos locais.

Segue a entrevista feira pela Facção Fictícia e um chamado para a solidariedade come essa revolução que pode definir os rumos da luta anticapitalista no Oriente Médio e no mundo.

Cotidiano na Comuna Internacionalista em Rojava.

1. O que é e como você define o trabalho da Comunidade Internacionalista de Rojava? Onde ela está situada e como é a relação com as
comunidades em torno de vocês?

A Comuna Internacionalista é um local de vida e aprendizado comunal situado perto de Derik, no cantão de Cizre, no nordeste da Síria. Seu objetivo é ser um lugar onde os voluntários internacionais aprendam primeiro as bases do revolução, como a Jineolojî (ciência das mulheres) e a história do Curdistão e do Oriente Médio, como uma introdução às atividades em que irão participar então em outros lugares. Este aspecto educacional está organizado através da Academia Internacionalista Șehid Helîn Qereçox, que fica dentro da comuna. Esta é uma das principais atividades da Comuna. Mas também é um lugar que serve de base para grupos internacionais ficarem entre várias atividades, onde podemos discutir nossas experiências, ter um intercâmbio sobre temas ideológicos e aprofundar nossa compreensão da revolução. Trabalhos práticos também são realizados com a campanha Make Rojava Green Again (Torne Rojava Verde Novamente, em um trocadilho com o slogan eleitoral de Trump), que implementa projeto ecológicos.

2. Quais são os principais princípios e valores da comuna? Como isso está conectado na vida cotidiana lá com outras formas de luta como anarquismo, zapatismo, feminismo e ecologia?

Uma discussão em andamento na Comuna é: o que significa ser internacionalista? Então, podemos dizer que é por trás dessa palavra que muitos de nossos valores são colocados, como solidariedade internacional, lembrando dos nossos şehids (mártires de batalha) e o desejo de aprender com esta revolução, bem como de toda a história revolucionária.

Os internacionais aqui vêm de origens muito diferentes, que abrange os tópicos mencionados, para que possamos dizer que essas lutas fazem parte desse internacionalismo, e aprendemos com todos eles todos os dias através do debate. Mais concretamente, aqui as mulheres têm seu próprio espaço e são organizadas de forma autônoma. Pessoas que querem participar de ativismo ecológico pode se juntar ao do Make Rojava Green Again. Mas todos as pessoas na Comuna estão envolvidas nos trabalhos ecológicos. Nossa conexão com o anarquismo e o zapatismo são apresentados por retratos de figuras desses movimentos nas paredes, como Comandante Ramona ou Federica Montseny, e seus feitos são discutidos nos processos de educação ou mais informalmente também. Além disso, através de nossos trabalhos de mídia, com o site da Comuna Internacionalista (internationalistcommune.com) e a campanha Rise Up 4 Rojava (riseup4rojava.org), compartilhamos informações e perspectiva sobre movimentos radicais em todo o mundo, mantendo sólidos laços com eles.

Vídeo da campanha Riseup4Rojava:

3. O que mudou no contexto da vida cotidiana e da base organizando desde que o Estado Islâmico (ISIS ou Daesh) foi derrotado pelas forças populares curdas (YPG/YPJ)?

A queda do Estado Islâmico trouxe a possibilidade de ir mais longe na organização da sociedade de maneira comunitária e com uma perspectiva de longo prazo maior do que com a sua constante ameaça. Mas algumas células ocultas ainda existem e ataques terroristas estão acontecendo regularmente. Além disso, a
presença de muitos membros do Estado Islâmico no território detidos ou em células dormentes, com essa falta de informação sobre se serão ou não julgados em seus países de origem, tudo isso representa uma séria ameaça à segurança na região.

Combatentes da YPJ, batalhão de mulheres de Rojava.

4. Recentemente, em agosto de 2019, a Turquia se declarou abertamente como a maior inimigo das realizações da revolução em Rojava. Como isso afeta
a região e a política lá? Essa ameaça é a maior até agora?

Neste momento, ao escrever essas linhas, estamos lidando com a ameaça de uma invasão imediata, como o presidente turco Erdogan anunciou um ataque e os EUA estão removendo suas tropas da região. Essas ameaças foram feitas várias vezes, com intensidade crescente ao longo do ano passado, com picos em dezembro/janeiro e julho/agosto, onde pensávamos que a guerra poderia começar a qualquer momento, possivelmente como uma guerra total, já que sabemos o que a Turquia já foi capazes de fazer isso no passado. E eles têm anunciado: querem limpeza étnica, querem genocídio. Então sim, a Turquia é a maior ameaça à região desde o início da revolução. Em tais momentos, temos que congelar nossos trabalhos para pensar em nossa segurança. Isso afeta todos os aspectos da sociedade. Todo mundo se pergunta: o que faremos se a guerra começar? Então é claro que muitas atividades são pensadas em relação ao contexto da guerra, a política se concentra na descoberta de uma solução democrática contra as ameaças turcas e a situação pós-ISIS. Comunicamos mais sobre as realizações da revolução, para mostrar o que está em perigo. Mas também tentamos manter a vida como ela deveria ser e, de alguma forma, nos leva a ser ainda mais democráticos, ir mais longe na revolução como resposta.

5. Quais são as suas perspectivas de futuro para a revolução e o legado da Comuna Internacionalista para movimentos revolucionários em todo o mundo?

O momento em que vivemos agora é histórico: ou a revolução ficará mais forte ou será aniquilada. O que está em jogo não é apenas a revolução no nordeste da Síria, mas a possibilidade de uma revolução em todo o Oriente Médio e no mundo. Esperamos que a seriedade da situação leve as pessoas ao redor do mundo a expressarem solidariedade, se levantarem e, talvez, virem se juntar a nós. A Revolução de Rojava deve irradiar e inspirar outros movimentos revolucionários. A Comuna Internacionalista continuará a dar notícias e perspectivas sobre a situação aqui, com um foco internacional e acolherá expressões de solidariedade de todo o mundo.

Funeral para o combatente anarquista italiano Lorenzo Orsetti, em março de 2019:

 

6. Agradecemos imensamente pelas palavras e por gastar algum tempo nesse momento delicado. Esperamos que esta conversa possa ser útil para pessoas de todo o mundo trabalharem em solidariedade e apoio total às pessoas na Revolução em Rojava e todo o norte da Síria. Alguma consideração final?

A revolução Rojava é uma revolução feminina e é uma revolução de todos. Todos devem se preocupar com o que está acontecendo aqui, porque o que está ameaçado é a possibilidade de viver uma vida livre, uma vida democrática e comunitária, com princípios populares, feministas e ecológicos. Então converse com seus vizinhos, colegas e sua avó sobre isso!

Obrigado pela solidariedade, abaixo a todos os fascistas!

Da Comuna Internacionalista de Rojava

Revolução é a semente de um mundo novo.

Convidamos a todas e todos para conferir o comunicado de anarquistas sobre a ameaça Turca à revolução em Rojava e aos povos na Síria. Imprima, compartilhe, difunda e mobilize solidariedade.

Mais informações:

riseup4rojava.org

internationalistcommune.com

jinwar.org

 

CINCO LIÇÕES HISTÓRICAS PARA ANTIFASCISTAS

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Este texto é um capítulo do livro Manual Antifascista, do autor estadunidense Mark Bray, lançado em português em 2019. Ele analisa brevemente cinco lições que muitos antifascistas extraem ou deveriam extrair da história. Cada uma delas começa com uma descrição mais factual de um determinado fenômeno histórico antes de passar para uma interpretação antifascista dos fatos em questão. Como todos os fenômenos históricos, esses fatos estão sujeitos a múltiplas interpretações. Essas certamente não são as únicas lições do antifascismo, mas esclarecem o embasamento de algumas de suas principais fundamentações históricas.

1. AS REVOLUÇÕES FASCISTAS NUNCA FORA BEM-SUCEDIDAS. OS FASCISTAS ALCANÇARAM O PODER LEGALMENTE.

Primeiro, alguns fatos importantes: a marcha de Mussolini em Roma foi apenas um espetáculo legitimando um convite anterior para formar um governo. O Putsch da Cervejaria de Hitler em 1923 falhou miseravelmente. Sua eventual ascensão ao poder veio quando o presidente Hindenburg o nomeou chanceler. A lei que lhe concedeu o poder completo foi aprovada pelo parlamento.

Para os militantes antifascistas, esses fatos históricos lançam dúvidas sobre a fórmula liberal de oposição ao fascismo. Essa fórmula equivale essencialmente na fé de um “debate fundamentado” para combater ideias fascistas, na polícia para combater a violência fascista nas ruas e nas instituições governamentais parlamentares para combater as tentativas fascistas de tomar o poder. Não há dúvidas que por algumas vezes essa fórmula funcionou. Também não há dúvidas de que algumas vezes ela falhou. O fascismo e o nazismo surgiram como apelos emocionais e antirracionais fundamentados em promessas masculinas de renovação do vigor nacional. Enquanto a argumentação política sempre é importante para fazer um apelo a uma potencial base popular do fascismo, sua nitidez se ofusca quando confrontada com as ideologias que rejeitam os termos do debate racional. A racionalidade não foi capaz de impedir os fascistas ou os nazistas. Apesar de necessária, da perspectiva antifascista, infelizmente a razão é insuficiente por si só.

Assim, não é surpresa que a história mostre que governos parlamentares nem sempre são uma barreira para o fascismo. Pelo contrário, em várias ocasiões, foram responsáveis por estender o tapete vermelho. Quando as elites econômicas e políticas do período entre guerras se sentiram suficientemente ameaçadas pela perspectiva da revolução, voltaram-se para figuras como Mussolini e Hitler para esmagar impiedosamente a dissidência e proteger a propriedade privada. Embora seja um erro reduzir inteiramente o fascismo a um último recurso de um sistema capitalista ameaçado, esse elemento de sua composição desempenhou um papel importante e muitas vezes decisivo em suas vitórias. Quando os líderes autoritários do período entre guerras se sentiam muito menos ameaçados, implementavam muitas vezes políticas fascistas de cima para baixo. Para a maioria dos revolucionários, isso significa que o antifascismo deve necessariamente ser anticapitalista. Enquanto o capitalismo continuar a fomentar a luta de classes, eles dizem, o fascismo sempre surgirá como uma solução autoritária para conter a revolução popular.

Quanto à polícia contra a violência fascista – houve vezes que a polícia prendeu e perseguiu fascistas, mas o registro histórico mostra que, junto com os militares, eles também estão entre os mais ansiosos para “restauração da ordem”. Estudos mostram que uma alta porcentagem de policiais gregos votou no Aurora Dourada. Nos EUA, está claro que muitos policiais receberam Trump como o presidente das “Blue Lives Matter” (uma alusão satírica do movimento antirracista Black Lives Matter), que permitiria que a aplicação da lei continuasse com as agressões e assassinatos nas desprotegidas comunidades negras e latinas. Recentemente, foi revelado que o FBI vem investigando de forma alarmante (embora não surpreendente) altos níveis de infiltração de supremacistas brancos na polícia por décadas. Além disso, independentemente da composição da força policial dos EUA, o fato que ela se origina das patrulhas escravocratas no Sul e da oposição ao movimento trabalhista no Norte nos dá uma visão do papel da supremacia branca dentro do sistema de “justiça” criminal.

Tudo isso para dizer que o fato de que as revoltas fascistas sempre falharam não deve diminuir as preocupações sobre seu potencial insurrecional. A “estratégia de tensão” fascista na Itália, o desenvolvimento do conceito de “lobo solitário” e “resistência sem líder” promovido pelo líder norte-americano da Klan, Louis Beam, e a luta armada fascista que se desenvolveu em ambos os lados nos conflitos na praça Euromaidan na Ucrânia atestam o perigo material da violência fascista insurrecional. Não obstante, historicamente o fascismo ganhou acesso aos corredores do poder não derrubando seus portões, mas convencendo seus porteiros gentilmente a abri-los.

2. MUITOS LÍDERES E TEÓRICOS ANTIFASCISTAS DO PERÍODO ENTRE GUERRAS NÃO LEVARAM O FASCISMO VERDADEIRAMENTE A SÉRIO ATÉ QUE FOSSE TARDE DEMAIS.

Para cada revolução, houve uma contrarrevolução. Para cada ataque da Bastilha havia um Termidor. Depois da Comuna de Paris, centenas de pessoas foram executadas e outras milhares presas e deportadas. Mais de 5 mil presos políticos foram executados e 38 mil foram presos após o fracasso da Revolução Russa de 1905, que também testemunhou 690 pogroms antissemitas que mataram mais de 3 mil judeus. Os radicais europeus e as minorias étnicas de modo algum eram estranhos à violência da reação tradicional.

No entanto, o fascismo representava algo novo. Inovações ideológicas, tecnológicas e burocráticas criaram um veículo para o imperialismo e o genocídio que os europeus haviam exportado de todo o mundo quando trouxeram suas guerras de extermínio de volta para casa.

Sem surpresa, muitos comentaristas de esquerda conceituaram incialmente o fascismo dentro dos parâmetros das forças contrarrevolucionárias existentes na época. De acordo com a Federação Socialista dos Trabalhadores, os fascistas italianos eram “no sentido mais estrito, uma Guarda Branca”, referindo-se aos contrarrevolucionários da Revolução Russa. O Partido Comunista da Grã-Bretanha os chamou de “os Black and Tans italianos”, se referindo às forças contrarrevolucionárias britânicas na Guerra da Independência da Irlanda. Na década de 1920, alguns marxistas usaram a análise do comunista húngaro Geörgy Lukács de “terror branco” para argumentar que os squadristi de Mussolini eram apenas um baluarte não-ideológico da classe dominante.

Por outro lado, vários comentaristas destacaram os recursos exclusivos do fascismo. Eles reconheceram a novidade do flerte nacionalista com o socialismo e seu elitismo populista. Eles observaram como setores anteriormente antagônicos, como os latifundiários tradicionais e capitalistas burgueses, podiam formar um movimento contrarrevolucionário unido. O foco marxista na dinâmica de classes subjacente ao fascismo revelou novos elementos dessa intrigante doutrina que os observadores centristas não foram capazes de captar. No entanto, esse foco também tendeu a limitar o perigo potencial que o fascismo poderia representar para os confins de seu suposto papel de guarda-costas da classe dominante, e assim os marxistas e muitos outros falharam em antecipar como o alcance de sua violência se estenderia além do que era “necessário” para proteger o capitalismo. Além disso, embora o fascismo do período entre guerras tenha se desenvolvido principalmente a partir de círculos eleitorais da classe média com o apoio da classe alta, à medida que os movimentos fascistas cresciam, às vezes, mas nem sempre, eles conquistavam apoiadores na classe trabalhadora – um fato que os marxistas demoraram a aceitar.

Independente do conteúdo de suas análises, muitos políticos socialistas e comunistas não agiram como se a própria existência de seus movimentos estivesse em jogo. Os socialistas italianos assinaram o Pacto de Pacificação com Mussolini em 1921, e nem eles nem os comunistas achavam que a ascensão do Duce ao poder representaria mais do que uma nova oscilação para a direita no velho pêndulo da política parlamentar burguesa. Dessa forma, eles não eram totalmente diferentes da maioria dos socialistas espanhóis que colaboraram com o governo militar meio-fascista de Primo de Rivera na década 1920. Na Alemanha, os comunistas acreditavam que o fascismo já havia chegado quando os “governos presidenciais” do início da década de 1930 começaram a governar por decreto. No entanto, nem os supostos “governos presidenciais” fascistas nem a chancelaria de Adolf Hitler foram suficientes para convencer a liderança do partido que eles enfrentavam uma ameaça existencial. Para a liderança do KPD, o fascismo não pedia resistência por quaisquer meios necessários, mas sim paciência. Seu slogan era “Hitler primeiro, depois nós”. Na virada do século, os esquerdistas tinham razões para antecipar que épocas de repressão iriam e viriam. O fascismo mudou as regras do jogo.

O primeiro reconhecimento substancial da essência do perigo fascista veio com a “Revolta de Fevereiro” de 1934, quando os socialistas austríacos lutaram contra as incursões do autoritário chanceler Dollfuss nos centros socialistas (instigadas por Mussolini). A revolta foi brutalmente reprimida, deixando 200 mortos, 300 feridos e o partido na clandestinidade. No entanto, sua bravura inspirou os mineiros socialistas espanhóis que se rebelaram mais tarde naquele ano nas Astúrias. Seu slogan era “Melhor Viena do que Berlim”, onde a ascensão de Hitler ao poder não foi combatida pela força. Quando a Guerra Civil Espanhola eclodiu, o antifascismo foi amplamente entendido como uma luta desesperada contra o extermínio.

A tendência dos teóricos e políticos esquerdistas em conceituar excessivamente o fascismo com base no paradigma da contrarrevolução tradicional impediu a capacidade da esquerda de se ajustar à nova ameaça que enfrentava. Uma vez que as formas de resistência sempre devem ser calibradas contra aquilo que está sendo resistido, cabe aos antifascistas reavaliar continuamente seus arsenais teóricos, estratégicos e táticos, se baseando nas mudanças das ideologias e de práxis de seus adversários da extrema-direita. Matthew N. Lyons colocou essa lição em prática ao criticar escritores que argumentam que a alt-right deveria só ser chamada de neonazista. Embora muitos membros da alt-right claramente sejam neonazistas, Lyons argumenta que isso “internaliza a infeliz ideia de que as políticas de supremacia branca são basicamente as mesmas…. Que não é preciso compreender nosso inimigo”. Conceber o inimigo nos termos de um paradigma ultrapassado custou muito caro aos antifascistas. Em algum ponto, a evolução da extrema-direita pode significar transcender completamente a estrutura do “fascismo”, à medida que nos afastamos cada vez mais do século XX.

É essencial que os antifascistas desenvolvam uma compreensão clara e precisa do fascismo. No entanto, a fim de compreender a natureza robusta e flexível da política antifascista, devemos reconhecer a relação entre dois dos muitos registros do antifascismo: o analítico e o moral.

O registro analítico consiste em mobilizar definições e interpretações historicamente informadas sobre o fascismo para elaborar uma estratégia antifascista adequada aos desafios específicos contra grupos e movimentos com ideologias fascistas. Métodos de oposição a grupos neonazistas podem não fazer sentido contra outros grupos de extrema-direita. Compreender sua diferença deve ser o que mantém as escolhas táticas e estratégicas bem informadas.

O registro moral se desenvolveu com o poder retórico do epíteto “fascista” – chamar alguém ou algo de fascista – no período do pós-guerra. Ele é colocado em jogo quando a lente antifascista é direcionada a fenômenos que tecnicamente podem não ser fascistas, mas são fascistóides.

Por exemplo, os Panteras Negras estavam errados ao chamar os policiais que matavam negros impunemente de “porcos fascistas” se eles pessoalmente não possuíssem crenças fascistas ou se o governo dos EUA não fosse literalmente fascista? Em uma manifestação antifa em Madrid, vi uma bandeira do arco-íris com o slogan “homofobia é fascismo”. A existência de homofóbicos não-fascistas invalida o argumento? Os guerrilheiros que lutaram contra Franco na Espanha ou Pinochet no Chile se equivocaram ao chamar sua luta de “antifascista” se, de acordo a maioria dos historiadores, esses regimes não foram tecnicamente fascistas?

Como já discutimos, é importante analisar cada um desses casos e muitos outros para podermos desenvolver uma análise bem afinada. No entanto, o registro moral do antifascismo compreende como o “fascismo” se tornou um significante moral que aqueles que lutam contra uma variedade de opressões têm utilizado para destacar a ferocidade dos inimigos políticos que enfrentam e os elementos de continuidade que eles compartilham com o fascismo real. A Espanha de Franco pode ter sido mais um regime militar católico tradicionalista do que fascismo per se, mas isso pouco importava para aqueles que eram perseguidos pela Guarda Civil.

O desafio em definir o fascismo embaça a linha entre esses dois registros. Além disso, o registro analítico contém uma crítica moral, assim como o registro moral implica em uma ampla análise da relação entre uma determinada fonte de opressão e o fascismo. Embora seja verdade que, em certo ponto, o epíteto fascista perde um pouco seu poder se for usado de forma muito genérica, um componente-chave do antifascismo é se organizar contra ambas políticas, fascistas e fascistóides, em solidariedade com todos aqueles que sofrem e lutam. Questões de definições devem influenciar nossas táticas e estratégias, não nossa solidariedade.

3. POR RAZÕES IDEOLÓGICAS E ORGANIZATIVAS, A LIDERANÇA SOCIALISTA E COMUNISTA DEMOROU MAIS QUE SUA BASE PARA AVALIAR COM PRECISÃO A AMEAÇA DO FASCISMO.

Como inicialmente muitos socialistas e comunistas consideravam o fascismo uma variação da política contrarrevolucionária tradicional, eles se concentraram muito mais em combater uns aos outros do que seus inimigos fascistas. Ambas as frentes argumentavam que, se unissem o proletariado sob sua liderança, superariam qualquer obstáculo da direita.

Assim, enquanto alguns socialistas de base se mantiveram lado a lado com o Arditi Del Popolo para lutar contra os camisas negras italianos no início da década de 20, os quadros do partido se retiraram para retomar sua trajetória eleitoral legalista. Quando esse caminho definitivamente foi bloqueado, o partido cambaleou para conseguir mudar seus rumos.

De forma similar os socialistas alemães optaram, na mesma época, por um curso estritamente legalista nas décadas de 1920 e 30, apesar do crescente desconforto dos membros do partido. Embora os socialistas do Reichsbanner, e mais tarde na Frente de Aço, tenham pressionado por medidas mais agressivas, o aparato do partido estava mal equipado para considerar estratégias alternativas. Da mesma forma, a base do socialismo austríaco lutava para empurrar a liderança do seu partido para a autodefesa militante frente aos ataques da extrema-direita. Na Grã-Bretanha, os membros do Labour Party e do Trades Union Congress confrontaram os fascistas na rua, apesar das advertências de seus líderes. A liderança trabalhista condenou os membros que participaram da Batalha de Cable Street – quando vários grupos enfrentaram os camisas negras de Oswald Mosley no quarteirão judeu do East End em Londres – e se recusou a apoiar os que se juntaram às Brigadas Internacionais para combater na Espanha. Como argumenta o historiador Larry Ceplair, os sociais-democratas “haviam jogado o jogo parlamentar por muito tempo e seus líderes se tornaram ideológica e psicologicamente incapazes de organizar, ordenar ou aprovar qualquer tipo de resistência armada ou revolução preventiva”.

Não obstante, muitos socialistas independentes, que eram muito menos sobrecarregados pela ideologia partidária legalista e pela estratégia eleitoral ditada por uma direção, parecem ter sido mais sensíveis às mudanças de condições na base e muito mais preparados para enfrentar o fascismo.

No início da década de 1920, a Internacional Comunista acreditava que a tarefa mais urgente da revolução era traçar uma clara e antagônica distinção entre o marxismo-leninismo e a social-democracia, para que ela pudesse liderar a onda de insurgência que parecia estar engolfando o continente. Esse objetivo voltou à tona com o início do “terceiro período” do Comintern em 1928. O modelo organizacional leninista de “Centralismo Democrático” ditava uma cadeia de comando disciplinada do Comintern em Moscou por intermédio dos partidos nacionais para suas filiais regionais e quadros de cada bairro. Esse modelo permitiu que o movimento comunista internacional agisse em uníssono por vastas extensões geográficas, mas também significava que as intermináveis disputas entre a elite do partido em Moscou produziam um impacto maior nas políticas do Comintern do que as condições materiais de cada local.

A linha “social-fascista” foi um desses exemplos. Muitas lideranças nacionais a adotaram a contragosto e rapidamente a negligenciaram com a mudança do Comintern para a política de Frente Popular em 1935. Os comunistas e os socialistas de base geralmente não se odiavam tanto quanto seus líderes. Na verdade, as primeiras iniciativas de unidade entre socialistas e comunistas na França e na Áustria, por exemplo, vieram de baixo. Todos esses exemplos demonstram algumas das desvantagens da organização hierárquica.

4. O FASCISMO ROUBA DA IDEOLOGIA, DA ESTRATÉGIA, DA CULTURA E DO IMAGINÁRIO DE ESQUERDA.

O nazismo e o fascismo surgiram no desejo da burguesia capitalista de libertar o nacionalismo, o militarismo e uma masculinidade “decadente” intrínseca à frente dos governos italiano e alemão, e de capturar as políticas populares coletivistas da esquerda socialista “degenerada”. Mesmo antes de Hitler assumir, o Partido Alemão dos Trabalhadores (predecessor do NSDAP) já usava uma considerável dose de vermelho em suas bandeiras e cartazes, e seus membros chamavam uns aos outros de “camaradas”. Isso produziu paradoxos anti-ideológicos e antirracionais como o “nacional-sindicalismo” e o “nacional-socialismo”. Fascistas e nazistas “de esquerda” foram expurgados à medida que seus partidos conquistavam poder e se uniam às elites econômicas, embora a cooptação nacionalista da retórica popular da classe trabalhadora tenha desempenhado um papel fundamental para fazê-los chegar até lá.

Com base nas suas boas relações com os empresários, os nazistas foram responsáveis por criar novos postos de trabalho para os desempregados. De certa forma, essa era uma variação colaboracionista entre classes, do papel do sindicato como um intermediário para alcançar o emprego em uma indústria. As tabernas das Stormtroops (SA) nazistas claramente floresceram inspiradas na tradição socialista, que datava do século XIX.

Eles também forneceram comida e abrigo gratuito para seus apoiadores no período da Grande Depressão. Essa foi uma ruptura marcante com os conservadores tradicionais, que demonstravam desprezo pelos pobres e desempregados e, no máximo, contribuíam ocasionalmente para instituições de caridade apolíticas ou religiosas.

Esse modelo de caridade política de extrema-direita foi adotado pela Aurora Dourada grega, a CasaPound italiana, o Hogar Social Madrid, e a britânica National Action, todos os quais começaram a distribuir alimentos e mantimentos grátis para gregos, italianos, espanhóis – apenas “brancos”. Os ativistas da CasaPound começaram a imitar as ocupações autonomistas em prédios abandonados, e a Hogar Social Madrid não apenas começou com ocupações, mas também se organizou contra a expulsão de espanhóis étnicos em uma clara tentativa de capitalizar com o vibrante movimento de esquerda espanhol.

Mais profusamente, os fascistas do pós-guerra continuaram a se voltar para a esquerda revolucionária e para seus insights estratégicos. Os que seguiam a linha da “Terceira Posição” procuraram aplicar teorias maoístas de revolução no Terceiro Mundo às metas de “libertação europeia”, que implicavam em uma remoção forçada de “não-europeus”. Na década de 1980, uma facção francesa chamada Troisième Voie procurou usar uma “estratégia trotskista” para se infiltrar no Front National, a fim de aparelhá-lo por dentro. Os fascistas ucranianos tentaram se apropriar do legado do líder anarquista ucraniano Nestor Makhno, enquanto as bases fascistas espanholas Autónomas elogiavam o anarquista Buenaventura Durruti.

Começando no final dos anos 80 e início dos anos 90, e ganhando força no final dos anos 2000, os fascistas em toda a Europa tentaram copiar até a tática black bloc dos autonomistas alemães. Esses “nacionalistas autônomos” vestidos de preto, que às vezes usam o logotipo das bandeiras antifascistas com slogans nacionais-socialistas ou kaffiyehs palestinos, tentaram imitar o apelo da esquerda radical defendendo o anticapitalismo, antimilitarismo e anti-sionismo na Alemanha, Grécia, República Tcheca, Polônia, Ucrânia, Inglaterra, Romênia, Suécia, Bulgária e Holanda. Essa tendência começou a declinar na Europa Ocidental por volta de 2013. A ideia de “nacional-anarquismo” é outra nova variação dessa farsa. Os “nacionais anarquistas” abusam do conceito anarquista de autonomia para defender “comunidades étnicas” separadas e homogêneas, incluindo uma pátria só de brancos.

Muitos outros exemplos poderiam ser citados, mas esses são suficientes para demonstrar como o antifascismo não se trata apenas de um escape aventuresco na oposição ao fascismo, mas sim da proteção Against the Fascist Creep, como sugere o título do maravilhoso trabalho “Les autonomes nationalistes en Allemagne” de Alexander Reid Ross. Eles também demonstram a importância da ideologia de esquerda. Sem estabelecer como eles se encaixam, conceitos como “autonomia”, “libertação nacional”, ou mesmo “socialismo”, e táticas como as ocupações, organização de mutirões de alimentos ou a formação de black blocs podem ser cooptadas bem debaixo dos nossos narizes.

5. NÃO É PRECISO UM GRANDE NÚMERO DE FASCISTAS PARA CONCEBER O FASCISMO

Em 1919, o Fasci de Mussolini tinha 100 membros. Quando Mussolini foi nomeado primeiro-ministro em 1922, cerca de 7% a 8% da população italiana, e apenas 35 dos mais de 500 membros do parlamento, pertenciam ao seu Partito Nazionale Fascista (PNF). O Partido Alemão dos Trabalhadores tinha meros 50 membros quando Hitler participou de sua primeira reunião após a Primeira Guerra Mundial. Quando Hitler foi nomeado chanceler em 1933, apenas cerca de 1,3% da população pertencia ao NSDAP (Nationalsozialistische Deutsche Arbeiterpartei, ou Partido Nacional Socialista dos Trabalhadores Alemães). Em toda a Europa, partidos fascistas de massas emergiram daquilo que inicialmente eram pequenos núcleos durante o período entre guerras. Mais recentemente, o sucesso eleitoral de muitos partidos fascistas, minúsculos antes da crise financeira de 2008, e a recente onda de migração, demonstraram o potencial para um rápido crescimento da extrema-direita quando as circunstâncias se tornam favoráveis.

Esses partidos certamente cresceram e ambos os regimes consolidaram seu poder, conquistando apoio das elites conservadoras, industriais ansiosos, dos alienados proprietários de pequenos negócios, nacionalistas desempregados e outros. As triunfantes narrativas de resistência pós-guerra talvez tenham negado que todos, menos os ideólogos do fascismo mais comprometidos, tenham apoiado figuras como Mussolini ou Hitler, mas na verdade ambos os regimes conseguiram cultivar um amplo apoio popular, obscurecendo ainda mais nosso entendimento do que significava ser um fascista ou um nazista nos anos 1930. Nesse sentido, foram necessários alguns fascistas para conceber o fascismo. O ponto é, no entanto, que antes de conseguir tal apoio popular, os fascistas e os nazistas não eram mais que minúsculos grupos de ideólogos.

Enquanto isso, é importante notar que, ao mesmo tempo em que Mussolini montava um grupo com 100 veteranos amargos e alguns socialistas nacionalistas peculiares, e Hitler lutava pela liderança do minúsculo Partido Alemão dos Trabalhadores, a Itália e a Alemanha aparentemente estavam à beira de uma revolução social. Não havia razão para que a esquerda tivesse olhado para qualquer crescimento. Esses pequenos grupos não poderiam ter sido mais irrelevantes.

Dado o que anarquistas, comunistas e socialistas sabiam na época, não havia razão para que eles dedicassem qualquer tempo ou atenção aos primórdios do fascismo. No entanto, é impossível não nos perguntarmos o que poderia ter acontecido se eles tivessem prestado mais atenção. É uma hipótese impossível de se levar a sério, e refletir demais sobre ela significaria omitir os fatores sociais mais amplos que prepararam o terreno para a ascensão do fascismo. Não obstante, os antifascistas concluíram que, como o futuro não é escrito e o fascismo frequentemente emerge de pequenos grupos marginais, todo grupo fascista ou supremacista branco deveria ser tratado como se fossem os 100 fasci de Mussolini ou os 54 membros do Partido Alemão dos Trabalhadores que ofereceram a Hitler a base para seus primeiros passos.

A trágica ironia do antifascismo moderno é que, quanto mais bem-sucedido, mais sua razão de ser é questionada. Seus maiores sucessos estão no limbo hipotético: quantos movimentos fascistas assassinos foram cortados pela raiz nos últimos 70 anos por grupos antifas antes que sua violência pudesse se espalhar? Nós nunca saberemos – e isso efetivamente é uma coisa muito boa.

SOMOS TODAS ANTIFASCISTAS – MENOS A POLÍCIA: sobre como e com quem lutamos

A REAÇÃO BATE À PORTA

Entramos com tudo em um tempo de reação. A década progressista dá lugar a uma onda de movimentos e governos de extrema direita ganhando espaço em todo o mundo. É difícil acreditar que existe alguma surpresa nisso. Como poderíamos nos surpreender com a eleição de Trump nos EUA e Bolsonaro no Brasil, “quando Putin, Berlusconi, Erdogan, Modi e Netanyahu têm reinado por anos no mesmo modelo1” na Rússia, Itália, Turquia, Índia e Israel?

Estados Unidos e Brasil são os retardatários em uma tendência mundial de governos de direita chegando ao poder democraticamente. Trump e Bolsonaro não são fascistas se usamos a palavra com rigor histórico e uma análise apurada de suas influências e características políticas. No entanto, ambos mobilizam emoções e ressentimentos comuns ao fascismo presentes em grande parte das camadas populares, e também das classe média branca e elites conservadoras que historicamente se beneficiam de privilégios desde a época da colonização e da escravidão institucionalizada nas Américas. Eles falam para os que se sentiram “esquecidos” pelas políticas sociais de programas de governo da última década, como o caso dos democratas de Obama nos EUA, e o PT de Lula e Dilma no Brasil. Portanto, entendemos os governos de Trump e Bolsonaro como populistas de extrema direita. Eles buscam aplicar reformas e ataques a direitos sociais conquistados para reinventar uma forma de governar “em nome do povo”. Sobretudo, são governos que se mantém a forma democrática, mas praticam a violência de Estado buscando promover a segurança, são, portanto, democracias securitárias.

Estejam eles vindo de raízes ‘populares’ ou apenas apropriando seu estilo, esse grupo [de governantes] exuma aquela chamada aliança entre o soberano e seu ‘Povo’. Eles criam a aparência de um abismo no outro lado onde as elites buscam refúgio, espremidas juntas sob a obscura luz do ‘deep state’. Esse novos populistas ganharam corações com a promessa de salvaguardar tudo o que, em nome do povo, é idêntico a eles mesmos, a fim de fazê-lo se levantar, em uníssono, contra a ameaça das minorias étnicas, sexuais ou políticas – um gesto que muitas vezes parece se estender ao ponto de incluir, em um momento ou outro, quase todo mundo. Das entranhas destas massas que vagam longamente no deserto neoliberal, elas ressuscitam um novo Povo de ressentimento.”

Liaisons, In The Name of The People

A VIOLÊNCIA NÃO ACABA, MAS É DIRECIONADA CONTRA AS MINORIAS

Nenhum estado democrático reprime ou elimina definitivamente as milícias ou grupos fascistas e racistas. No Brasil não foi diferente: em 1964 vivemos um golpe de estado com armas, tanques e disposição para matar, torturar e fazer sumir milhares de pessoas. Em 2018, vimos os herdeiros do aparato militar ditatorial, que foi para o crime organizado das milícias durante a era democrática, organizarem a vitória eleitoral de seu patrono. E Jair Bolsonaro não tem nenhuma vergonha em elogiar e estimular ações ilegais como a tortura e o extermínio, seja de suspeitos de cometer algum crime ou povos originários habitando uma terra que é sua desde muito antes. E é nessa área cinza entre o legítimo e o ilegítimo, entre a violência policial legalizada e a agressão criminosa de gangues e milícias, que o fascismo opera e cresce para, quando tomar o controle do Estado, poder usar sua força total através de grupos de extermínio, das polícias e das prisões e campos de concentração mantidos e expandidos nos períodos democráticos.

Rodrigo Amorim quebrando a placa em homenagem à Marielle Franco em 2018, metralhada e morta com o motorista Anderson Gomes por milicianos. Até então, os que encomendaram suas mortes continuam desconhecidos. Sabemos apenas que quem puxou o gatilho foram ex-policiais militares que hoje estão presos.

Bolsonaro – assim como Trump nos EUA ou Puttin na Rússia – não pretende acabar ou sequer diminuir a gigantesca violência necessária pra manter o Capitalismo neoliberal em sua fase decadente e de crise permanente. O que ele pretende é canalizar essa violência o máximo possível para as minorias políticas: as populações negras, LGBTTTIQ, mulheres, indígenas, imigrantes e pobres. A imagem do “cidadão de bem” que quer ser protegido pela liberação do porte de armas é a imagem do homem branco, de classe média ou alta e heterossexual, que diz querer defender sua família e seu patrimônio da criminalidade, mas se sente muito mais ameaçado politicamente pela ascensão de membros das classes subalternas, pela liberdade das mulheres e de pessoas não heterossexuais ou praticam sexo de forma dissidente. Os que mais se beneficiam diretamente da política de liberação de armas serão os mesmos ruralistas que já praticam torturas e assassinatos nos campos e as milícias que controlam bairros e municípios inteiros em cidades como o Rio de Janeiro. Para o senhor presidente, violência se combate com medidas que apenas aumentam a violência classista, racista e sexista no país.

Para canalizar essa violência contra as minorias, esses líderes precisaram deixar claro seu projeto para serem eleitos. Bolsonaro e Trump não foram eleitos apesar de serem abertamente sexistas, racistas, homofóbicos. Eles foram eleitos justamente porque são tudo isso. E não apenas o presidente, mas vários parlamentares foram eleitos pela mesma lógica. O candidato Rodrigo Amorim, quebrou a placa em homenagem à Marielle Franco em 2018, enquanto fazia campanha para ser deputado estadual no Rio de Janeiro. Amorim foi eleito como candidato mais votado. Depois de eleito, o deputado emoldurou e pendurou a placa quebrada em seu escritório e alega que estava “restaurando a ordem” quando a quebrou. Para seus eleitores, o fato dele afrontar publicamente a memória ou qualquer homenagem a uma mulher negra, lésbica, criada na favela e que foi assassinada por policiais, é apenas mais uma “demonstração de caráter” de seu candidato.

Quando analisamos esses perfis e suas ações, concluímos que de nada adianta acusar esses políticos de serem machistas, sexistas ou mesmo fascistas. Isso não fará com que percam apoiadores porque foram essas características que atraíram seus apoiadores. A melhor reposta que podemos dar é saber enfrentá-los mostrando que sua política é apenas mais do mesmo, que serão incapazes de melhorar a vida das pessoas dentro do neoliberalismo e entregarão às pessoas apenas mais frustração. Precisamos mostrar que eles são fracos e ainda mais limitados que a organização e solidariedade entre as pessoas.

SERIAM OS POLICIAIS NOSSOS ALIADOS? – E PORQUE POLÍCIA ANTIFASCISTA É UM CONTRASSENSO

Percebemos, assim, que vivemos em um tempo no qual ideias e emoções fascistas desfilam sem muito receio de se mostrar explicitamente, tentando ganhar propulsão com discursos canalizam o ódio contra as minorias. Por vezes, com novos nomes, como Alt-Rigth (Europa e EUA) ou bolsonarismo (Brasil), mas com as mesmas práticas de eliminação e extermínio das formas de vida que ele declara como insuportáveis e indignas de viver. Hoje, esse fascismo não apenas se serve da democracia, como aprendeu a se perpetuar com uma renovada retórica democrática associada ao desejo por segurança. Eles sabem que as instituições democráticas, ao fim, os favorecem.

Belo Horizonte, 2014.

Para ficar em um exemplo rápido (e cinematográfico) sobre como as instituições na democracia favorecem o fascismo, assistam o filme “In the fade”, de Fatih Akin, vencedor em Cannes de melhor filme estrangeiro em 2018. No filme, como na vida, a polícia e o tribunal ficam do lado dos neonazistas, sejam eles alemães do PEGIDA ou gregos do Aurora Dourada. Assim acontece qualquer gangue fascista ou neonazista sob o governo de um Estado em qualquer lugar do planeta. Fascismo e Estado democrático de direito não são, necessariamente, antagônicos. E hoje isso é uma verdade por demais evidente.

No Brasil, desde que o bolsonarismo tomou forma político-eleitoral e caminhou em direção à ocupação do governo do Estado por meio da democracia, a temática do antifascismo se espalhou por vários grupos sociais e indivíduos gerando imagens, memes em mídias sociais, camisetas, adesivos, declarações inflamadas etc. É com alegria que os anarquistas, dedicados à lutas antifascista desde sempre, veem isso. Mas essa alegria não abafa a desconfiança de que essa “onda antifa” em uma esquerda mais ampla, seja apenas isso: uma onda; ou pior, uma nova grife, uma identidade ou uma tática de frente única para conter os que são vistos como radicais.

Nesse sentido, é salutar recordar o alerta do coletivo catalão Josep Gardenyes em seu libelo “Uma Aposta para o Futuro” (Edição Subta, 2015, pp. 19-20), que diz o seguinte: “insistimos na ideia de que o antifascismo é – e tem sido desde os anos 1920 – uma estratégia da esquerda para controlar os movimentos e frear as lutas verdadeiramente anticapitalistas. Ele também sempre foi um fracasso se o pensarmos como uma luta contra o fascismo. As [históricas] estratégias propriamente anarquistas para combater o fascismo foram muito mais efetivas, porque entendiam o fascismo como uma ferramenta da burguesia – e nesse sentido, da democracia –, e dessa forma eles atacaram diretamente o fascismo não no ponto onde ele entrava em conflito com a democracia (direitos, liberdades civis, moderação), mas onde ele convergia com os interesses de proprietários e governantes. (…) O totalitarismo do sistema-mundo atual é uma tecnocracia (…) ele é totalmente compatível com a democracia e não tem nenhuma necessidade de carismas nem de aliança conscientes nem pactuadas entre classes, com seus protagonistas indispensáveis e atores proativos.” O alerta é, no mínimo, pertinente.

São Roque, 2014.

Não queremos com isso dizer que os anarquistas possuem o monopólio da luta antifascista, nem tampouco desprezar ou subestimar a atual onda neofascista e pertinentes reações que ela provoca em amplos setores da sociedade. O alerta provoca uma análise apurada em dois sentidos. Primeiro, é preciso compreender as formas do fascismo contemporâneo e como elas conseguiram equacionar sua presença nas democracias hoje, diluindo as lutas antifascismo no pluralismo democrático e neutralizando seu caráter antissistêmico. Segundo, que ao tomar o antifascismo como principal atividade, os anarquistas correm o risco de cerrar fileiras com aqueles que, mais cedo ou mais, se voltarão contra os anarquistas. Os exemplos históricos são inúmeros, não iremos repetir aqui. Como versa um velho jargão militante: mais importante do que saber contra quem lutamos é saber com quem lutamos. Ao que acrescentamos: mais importante que saber o que fazer, é saber como fazer. A nossa luta já é a vida anarquista em ação.

Mesmo admitindo que uma frente, o mais ampla possível, seja importante para se combater o neofascismo, causa, no mínimo, estranhamento que agora temos que presenciar fenômenos bizarros como o surgimento dos chamados “policiais antifascistas”. Segundo reportagem veiculada pela revista Época, o movimento surgiu em setembro de 2017, composto por policiais civis e militares e demais profissionais da área de segurança pública. Um de seus criadores, um investigador da polícia civil, diz que o Policiais Antifascismo “busca discutir novas políticas de segurança inserindo o policial no debate público — inclusive no que diz respeito aos seus direitos”. A mesma matéria, informa que o movimento conta “com 10 mil membros e representações nos 26 estados brasileiros e no Distrito Federal.”2 O cerne das reivindicações do movimento é a crença de que pode haver uma polícia que respeite as liberdades civis e os direitos humanos e que os policiais devem ser vistos e se entenderem como trabalhadores, assim como o são diversos profissionais de outras áreas. Não duvidamos aqui das boas intensões das pessoas, mas não há um só motivo para acreditarmos nessa histórica instituição de opressão.

A polícia emerge, modernamente no século XIX, como um dispositivo de segurança destinado ao cuidado da população. Na antiga Prússia ela surge como medicina social; na França como instrumento das reformas urbanas como resposta às sedições dos trabalhadores; na Inglaterra aparece vinculada à medicina do trabalho e ao controle dos operários nas fábricas, além de sua faceta de proteção à propriedade do comércio marítimo. Na América do Norte, a polícia é herdeira direta das patrulhas de caça e captura de escravos fugitivos. Então, além de sua faceta repressiva contemporânea, a polícia é, desde seu início, um instrumento de governo voltado ao processos de normalização biopolíticos, como mostram as pesquisas de Michel Foucault e Jacques Donzelot. Sua forma ostensiva é mais recente e ao sul do equador foi acrescida de tecnologias de caça e controle coloniais e escravocratas. Nesse sentido, não é exagero dizer que sob qualquer regime político, a polícia é destacamento dos estados dedicado a manutenção da supremacia racial branca, do controle da classe trabalhadora, da imposição de desigualdade material e do patriarcado: todos os valores e requisitos necessários a um estado fascista. E hoje em dia, após o avanço do neoliberalismo desde os 1970, não apenas do Estado, mas de empresas de segurança privada e do desejo de cada cidadão que clama pelo morte do que lhe é insuportável, atuando como um cidadão-polícia.

São Paulo, 2016.

Assim, quando uma das lideranças do movimento diz, na mesmo entrevista, que “o policial é um garantidor de direitos”, ele não está dizendo nada além da histórica função desse peculiar dispositivo de segurança. Ele segue, justificando a existência do grupo: “a própria palavra polícia significa ‘gestão da polis. Ele [o policial] deve atuar na cidade garantindo direitos. Ele tem que entender que os direitos básicos de um cidadão são os direitos humanos e fundamentais: o direito à vida, à liberdade de expressão”. Essa declaração expõe, mesmo que involuntariamente, a vinculação da atividade policial com o dever de manter o cidadão e os grupos sociais atrelados ao Estado. Depreende-se disso que, na contingente e elástica atuação cotidiana, cada policial é um agente do golpe de Estado cotidiano que impede que se rompa o vínculo subjetivo, operado nas ditaduras e nas democracias, entre sujeito e governo de Estado. Basta reparar que em todas revoluções modernas, desde a Revolução Francesa e as Independências dos EUA e do Haiti, a única constante invariável é a permanência da polícia – ao lado das prisões, dos exércitos, dos tribunais, das fronteiras. É possível ser antifascista sendo operador de algum destes dispositivos?

A polícia não é o oposto dos fascistas. Eles abusam, sequestram, prendem, deportam e assassinam mais pessoas de cor, mulheres e LGBTTTIQ todos os anos do que qualquer grupo fascistas. Eles trabalham mais para fazer avançar a agenda supremacista branca do que qualquer organização de extrema direita independente.”

CrimethInc., What they can’t do with badges, they do witch torches.

Enquanto anarquistas, sempre tentamos deixar óbvio que o papel da polícia é impor e reforçar os desequilíbrios econômicos entre as classes, mantendo os pobres sob controle e o patriarcado e a supremacia branca operando como barreiras à igualdade no Capitalismo.

A violência policial não é um caso isolado, uma aberração local ou a característica de um determinado tipo de regime, mas um elemento fundamental para uma sociedade baseada nos direitos de propriedade privada e na autoridade centralizada do Estado. O papel da polícia é manter as desigualdades de classe, raça, gênero e nacionalidade. Eles vão garantir que as pessoas pobres continuem na pobreza, que as excluídas continuem na exclusão, e que as injustiçadas convivam com a injustiça.

Sendo assim, a polícia nunca será uma aliada porque ela é a maior inimiga de quem questiona a ordem imposta, de quem quer mudanças sociais, de quem quer uma vida sem as desigualdades criadas pelo Capitalismo e pelo Estado. Afinal, eles são os primeiros a aparecer para o conflito quando nos cansamos de apenas sofrer as misérias desse sistema e partimos para a ação.

UMA VIDA SEM FASCISMO É UMA VIDA SEM CAPITALISMO, SEM ESTADO E SEM POLÍCIA

Nenhum governo do mundo combate o fascismo até suprimi-lo. Quando a burguesia vê que o poder lhe escapa das mãos, ela recorre ao fascismo para manter o poder de seus privilégios.”

–  Buenaventura Durruti, em entrevista ao jornalista Van Passen, 1936

O papel da polícia e o das gangues fascistas não são conflitantes entre si, são complementares. Em 2011, a primeira demonstração pública em defesa das posições do então deputado Jair Bolsonaro foi organizada por skinheads neonazistas em São Paulo. Na época, Bolsonaro era apenas mais um membro desconhecido do parlamento, visto como uma piada, dando declarações racistas e homofóbicas para atrair atenção com polêmicas e escândalos. Dezenas de antifascistas compareceram para impedir que uma marcha neonazi conseguisse ainda mais atenção para Bolsonaro e a polícia ficou entre os dois grupos para impedir um confronto. Quando estamos em grande número, a polícia fica entre nós e os fascistas para “garantir a segurança de todos”. Mas quando somos minoria, os policiais deixam que os fascistas nos ataquem.

Contra-manifestação antifascista para barrar “ato cívico” chamado por skinheads neonazistas em apoio às declarações racistas e sexistas de Jair Bolsonaro em São Paulo, 2011.
Quando estamos em grande número, a polícia fica entre nós e os fascistas. Mas quando somos minoria, os policiais deixam que os fascistas nos ataquem.
Neonazistas defendendo Bolsonaro em São Paulo, 2011: Mais do que aos discursos abertos de um político, devemos prestar atenção em quem serão os primeiros a lhe demonstrar apoio.

Normalmente, a polícia ataca, prende, tortura e mata com impunidade legal. Eles não existem para impedir o crime, mas para garantir que a impunidade para atos considerados criminosos continuem sendo monopólio de quem tem poder econômico e político nas mãos. Nas melhores hipóteses, suas limitações são meramente burocráticas: quando a prisão não é em flagrante e é impossível forjar as provas; ou quando é necessário um mandado judicial para desalojar violentamente um imóvel ocupado; ou então quando uma manifestação popular toma as ruas de forma radical e a violência necessária para contê-la é ilegal ou controversa demais para ser praticada de forma explícita pelas forças policiais. Nesses casos, a ação de bandos neonazistas é útil para fazer o trabalho sujo que a polícia não quer ou não pode fazer num determinado momento.

Uma outra utilidade para a ação fascista nas ruas é nos manter ocupados demais tentando evitar que as coisas fiquem “ainda piores” e para lutar contra o sistema em si. O mesmo acontece com políticos como Bolsonaro e Trump: seus escândalos e suas medidas absurdas nos obriga a estar sempre reagindo às suas agendas invés de seguir as nossas próprias. Isso faz parecer que tudo o que queremos é restaurar alguma “normalidade” perdida no sistema democrático. Passamos a ser apenas defensores da última versão menos absurda da vida sob Capitalismo. O que é sempre o risco de soarmos como reacionários enquanto a direita se apresenta como “os rebeldes antissistema”.

parece que ocorreu uma inversão: por um lado, os progressistas se voltam para o passado, querem evitar a “decadência” dos valores democráticos, e assumem uma posição reativa (que era desde o século XIX a posição dos conservadores clássicos, dos teóricos da decadência etc.). Por outro lado, os populistas de direita, isto é, os reacionários, se tornaram “progressistas” no sentido de que querem acelerar o tempo e adiantar o futuro – mas por isso são apocalípticos. Apocalípticos porque amigos do apocalipse, porque eles não têm pudor em acelerar o processo de devastação do meio ambiente, em aniquilar pessoas (ou simplesmente deixar morrer, como no caso italiano em que impediram que um barco de refugiados atracasse) e em transformar a sociedade em uma guerra de todos contra todos em que sobrevive o mais armado – e isso não é nenhum “retorno à Idade Média”, é o próprio ápice do desenvolvimento capitalista, cuja verdade não é nenhuma versão democrática e luminosa de sociedade, mas sim esse grande Nada destrutivo.”

Felipe Catalani, A decisão fascista e o mito da regressão: o Brasil à luz do mundo e vice-versa

Se, depois de toda essa reflexão, alguém ainda acredita que se aliar a membros da polícia em alguma luta social revolucionária pode ser uma boa ideia, afirmamos que abrir as portas e confiar em agentes da repressão estatal que querem lutar contra o fascismo é expor nossos movimentos à infiltração e outros riscos extremos desnecessariamente. Após séculos de luta das classes trabalhadoras e excluídas sendo perseguidas, traídas, mortas e aterrorizadas por instituições como a polícia e o exército; e com a sombra de uma ditadura civil-militar ainda viva na memória, é difícil pensar que tais indivíduos possam ser confiáveis – ou que seus colegas o sejam. Deveríamos trazer para dentro de nossas reuniões, protestos e ações, as pessoas que convivem e compartilham o dia de trabalho com assassinos, torturadores e inimigos da liberdade? Se policiais acreditam que todos devem se opor ao fascismo ou a qualquer forma de opressão, seu caminho deve ser o mesmo de qualquer pessoa à frente de instituições repressivas ou exploradoras: desertar. Que abandonem seus cargos, seus salários, seus privilégios e expropriem o máximo de recursos e munições possíveis que devem estar em mãos revolucionárias – e mesmo assim, é possível que levemos anos ou décadas para sequer começar a dar alguma confiança a pessoas que abriram mão de toda decência humana para aceitar um salário em troca de perseguir, prender e matar.

O governo grego promoveu uma ofensiva em Exarchia, o bairro anarquista de Atenas, despejando várias ocupações e centenas de pessoas, dentre elas imigrantes e refugiados. No meio da operação, era possível ver policiais usando símbolos fascistas. Na foto, o policial usa brasão e slogan do partido fascista Aurora Dourada.

A luta antifascista entre anarquistas é a recusa ao fascismo, mas também é a afirmação da vida. Não podemos e não queremos estar ao lado de quem opera dispositivos de governo. Nesse sentido NÃO somos todas antifascistas, se nos juntamos a uma instituição criada para impedir que as pessoas transformem sua opressão em revolta.

Por essas e outras, os anarquistas sempre tiveram claro que não existe luta antifascista no interior da instituições. Derrotar o fascismo significa obstruir sua virtualidade contida em qualquer Estado, em especial nas instituições que racionalizam e operam o extermínio: a polícia, o exército, as prisões e todo sistema de justiça criminal. Além disso, a história das lutas anarquistas nos informam que, em muitos casos, a luta antifascista é uma tática utilizada por liberais democratas e socialistas autoritários para conter a radicalidade do nosso anticapitalismo e de nosso antiestatismo inegociáveis. E aí chegamos a nosso ponto: somos todos, realmente, antifascistas? O que pensar de operadores das instituições de extermínio e do racismo de Estado que declaram adesão às lutas antifascistas em momentos de recrudescimento autoritário do regime político? Pensamos, especificamente, nos que se autointitulam policiais antifascistas. Ser antifascista é viver uma vida não-fascista. Como viver essa vida quando se é um agente do Estado armado e autorizado a matar? Como conceber isso? Especialmente num país como o Brasil, onde a polícia carrega toda herança escravocrata e está estruturada segundo os regimes autoritários no país durante o século XX?

Por favor, não diluam suas causas a ponto de ir para a rua com uma turminha dessas.

Não precisamos nos aliar a mercenários armados, ensinados a obedecer sem questionar, com autorização legal para agredir e matar defendendo as desigualdades existentes em nossa sociedade. Podemos trabalhar em conjunto sob princípios de solidariedade e horizontalidade para atender às necessidades de nossas comunidades, resolver conflitos e nos defender mutuamente da violência autoritária – ou seja, da polícia, fascista ou antifascista. Não existe caminho para a liberdade que não seja através da liberdade aqui e agora. A única autonomia que construímos está nos nossos laços sociais e de solidariedade: se quisermos garantir nossa integridade física contra agressões, precisamos de redes de apoio mútuo capazes de se defender, precisamos construir autodefesa e autodeterminação, que é nossa forma de liberdade diante da abstrata e dependente ideia de segurança. Não queremos essa democracia securitária, queremos liberdade e autodeterminação: cada pessoa e comunidade agindo de acordo com sua consciência e responsabilidade coletivas, em vez da coerção inerente aos governos e aos agentes de segurança, pois estes são sempre externos aos conflitos e problemas que vida em sociedade inevitavelmente cria.

A luta antifascista deve ser aliada à luta pelo fim de todas as instituições estatais, principalmente as repressivas. Precisamos alimentar e expandir estruturas para tomada de decisão que promovam autonomia e, por fim, práticas de autodefesa que possam nos proteger daqueles que no futuro queiram se tornar nossos líderes, como nos ensinam os povos ameríndios em sua relação com as chefias. Da mesma forma que não existe luta contra opressão sem uma luta contra todo aparato policial e estatal, não existe espaço na luta antifascista para reformar uma economia capitalista, o Estado, sua polícia e suas prisões – e muito menos espaço para policiais em uma luta contra o fascismo. Se, como disse com razão um dos líderes do movimento de policiais supostamente antifascistas, a polícia é a gestão da polis, nós seremos ingovernáveis.

Não passarão: sejam polícias, sejam fascistas, ou ambos juntos.

1 In The Name of The People, LIAISONS