III. A imagem do futuro – populismo nacionalista ou revolução social?
“Os políticos profissionais, vendo que estão perdendo terreno, porque o Estado vacila com o Capitalismo, tornam-se bandidos profissionais para continuar nos mesmos postos do poder e do assalto ao erário publico. Surgem as expedições primitivas. É o fascismo.”
– Maria Lacerda de Moura, Fascismo: filho dileto da Igreja e do Capital, 1934
As revoltas de 2013 sacudiram a frágil estabilidade construída pelo governo do PT mostrando que a revolta popular não poderia ser pacificada com a conciliação de classes. A democracia não representa ninguém nem nada além dos interesses das mesmas elites, seja em qual governo for e, quando a população encontra os limites democráticos para atender às suas necessidades e ter suas vozes ouvidas, as ruas em chamas se tornam seu principal canal de expressão.
Os movimentos de luta pela gratuidade do transporte, como o MPL (Movimento Passe Livre), foram criados na tradição dos movimentos autônomos que surgiram na virada do século e sua atuação constante por mais de uma década foi fundamental para a revolta que deflagaram em 2013. Aquela foi uma revolta que fugiu de qualquer controle, seja por parte próprios movimentos ou por partidos e organizações tradicionais. Mas quando esses grupos autônomos e anticapitalistas perderam capacidade mobilização diante da repressão ainda sob o governo do PT, a direita soube contornar a situação e ganhar projeção em manifestações de rua e na internet.
No fim de 2014, o PT venceu sua quarta eleição seguida, a segunda de Dilma Rousseff. Derrotado, o candidato do PSDB, segundo maior partido do país, convocou um dos primeiros protestos pelo “Fora Dilma” e “em defesa da Democracia”, ajudando a consolidar os atos de rua que se desdobrariam nos grandes protestos pelo impeachment de Dilma Rousseff nos anos seguintes. Sem um projeto eleitoral para vencer pelo voto, os partidos da oposição organizaram seus parlamentares amplamente apoiados pela mídia e pela elite empresarial conseguem aprovar, em 2016, um impeachment que deu fim aos 13 anos de governos petista. Assumia o cargo o Michel Temer, do PMDB (hoje MDB).
O governo de Temer seguiu sua agenda conservadora e acentuou o projeto neoliberal que já estava em curso. No caminho também encontrou muita resistência popular: prédios ocupados contra a extinção do Ministério da Cultura, ocupações de mais de mil escolas e cem universidades, além de manifestações e confrontos violentos em Brasília contra o congelamento de gastos para saúde e educação em 2016, chamado para greve geral em 2017, além de uma grande manifestação que tomou o centro da capital do país que terminou com 2 ministérios incendiados e vários outros de depredados. Episódios importantes de luta e resistência que fizeram o governo recuar, mas que não comprometeram o crescimento da direita nas ruas.
Às vésperas da eleição presidencial de 2018, protestos da campanha #EleNão, convocada principalmente por movimentos de mulheres contra Bolsonaro, mostrou que milhares de pessoas ainda estavam dispostas manifestar nas ruas, mas incapazes de radicalizar suas ações e pautas como 2013 ou de comprometer a imagem e a vitória de Bolsonaro nas urnas.
Ou seja, não foram apenas os movimentos autônomos os que ganharam fôlego: reacionários também aprenderam como recrutar cada vez mais pessoas nas ruas. E como a grande esquerda fugiu da revolta popular deflagrada em 2013 e do seu potencial pela radicalização para seguir perseguindo cargos e seu projeto de gestão estatal, o resultado foi que a direita soube aproveitar do descontentamento para se apresentar como uma solução eleitoral para a falência do próprio sistema democrático. Bolsonaro venceu a eleição presidencial em 2018 porque a compreendeu melhor do que grande parte da esquerda que o modelo da democracia representativa está desgastado. O combustível do fascismo é, ao mesmo tempo, o sequestro e a reação contrárias à agitação e às revoltas populares.
O maior dos populistas ou só mais um autoritário?
Bolsonaro venceu o candidato petista com 55% dos votos no segundo turno. Mas no primeiro, a polarização esmagou o PSDB, o maior rival do PT e principal partido da direita neoliberal brasileira desde a redemocratização. O partido que governou por dois mandatos seguidos antes do PT ficou com míseros 4% dos votos na eleição de 2018. Os efeitos da polarização e radicalização promovida pelos movimentos da direita estavam impondo profundas mudanças no cenário político no país, colocando a personalidade Bolsonaro no lugar de um partido inteiro como o polo oposto ao PT.
O pior dos efeitos do bolsonarismo ainda estavam por vir. Como avisou o italiano Malatesta, demonstrou o espanhol Durruti e confirmou a brasileira Maria Lacerda de Moura, toda elite e todo governo conserva o germe do fascismo como um recurso sempre ao seu alcance para conter ou prevenir com mão de ferro os avanços da classe trabalhadora. Em momentos de crise econômica e política, personalidades e programas ao estilo fascista são capazes de seduzir as elites e o eleitorado com a promessa de saída. A nova onda populista que vemos em todo o mundo em nossa década compartilha dessa estratégia. Mesmo não sendo – ou não tendo a capacidade de ser – fascistas, políticos como Bolsonaro mobilizam emoções fascistas canalizando o ressentimento das classes médias e o desejo de retomada do controle pelas elites conservadoras contra as minorias e seus direitos conquistados. Aliás, estudos apontam que células e sites neonazistas aumentaram consideravelmente desde a eleição de Bolsonaro. Quanto mais extremo, ofensivo, racista e sexista soavam, mais suas bases se engajavam em suas campanhas. Nesse contexto, o uso da internet foi fundamental como ferramenta de aprofundamento desses sentimentos polarizados entre uma esquerda reduzida ao embate entre PT de Lula contra Bolsonaro e os movimentos conservadores, cristãos neopentecostais e neoliberais que o orbitavam, mesmo sem total harmonia entre si. Em maio, fascistas do grupo “300 Pelo Brasil”, acamparam em Brasília e marcharam até o STF com tochas e estética explicitamente inspirado nas marchas “Unite the Right”, de Charlottesville, nos EUA em 2017.
Quanto à forma de fazer campanha e tirar o melhor das suas condições, Bolsonaro inovou e venceu sem o que antes era considerado fundamental: tempo de propaganda na TV, um partido grande e conhecido, boas alianças em cada região e muito dinheiro para campanha. O uso da internet, robôs e aplicativos de mensagem compensou a falta de grandes orçamentos e tempo de TV, mobilizando informações falsas contra adversários e projetando sua imagem de rebelde outsider. A campanha de Bolsonaro custou 20 vezes menos que a do petista Fernando Haddad, segundo o TSE. Sua imagem cresceu e foi muito maior que o seu partido, ao qual que se filiou apenas alguns meses antes da eleição. O ex-capitão do Exército passou 27 anos e criou apenas 2 projetos de lei e nunca se candidatou para algum cargo do executivo local, seja prefeito ou governador. Nesses quesitos, surpreendeu e se saiu muito melhor do que seus contemporâneos Erdoğan, Modi, Orbán e Duterte. Além disso, podemos dizer que fez muito mais com muito menos do que Trump com sua longa carreira na TV, sua fortuna gasta em campanha eleitoral e a estrutura do gigante Partido Republicano à sua disposição.
Um ano após ser eleito, Bolsonaro foi expelido de seu partido e até hoje é único presidente sem partido definido na história do Brasil. Ao se eleger com o uso massivo da internet, Bolsonaro seguiu governando usando a internet como palco, sendo também o primeiro presidente a fazer pronunciamentos através de lives semanais no Facebook. Assim como Trump, manteve o tom bélico de quem estava em eterna campanha eleitoral mesmo após a vitória para seguir anunciando seu projeto de gestão pela destruição.
Mas nem tudo se resume à internet, televisão e uso de robôs em mídias sociais. A origem e a trajetória política de Bolsonaro já tem 3 décadas e toda sua família possui laços profundos com as milícias que controlam parte do crime organizado no Rio de Janeiro. Seus três filhos, todos com carreiras como parlamentares, empregaram milicianos e seus parentes em seus gabinetes, como o assassino Adriano da Nóbrega que foi condecorado por Flávio Bolsonaro, e seus colegas de milícia presos acusados de assassinar a vereadora Marielle Franco – sendo um deles, aliás, vizinho de condomínio de Jair Bolsonaro.
Muito presentes no estado do Rio de Janeiro, as milícias são grupos paramilitares compostos por policiais, ex-policiais, bombeiros, agentes de segurança, que tomam o lugar das facções criminosas e passam a vender serviços de segurança para moradores e comerciantes, monopolizam o transporte clandestino, acesso à imóveis, internet, eletricidade e outros recursos. Suas origens estão nos grupos de extermínio surgidos na década de 1960 com a ditadura militar brasileira para atuar como matadores de aluguel. Com a reabertura política nos anos 1980, o imenso poder desses grupos já dominava vários setores, consolidados pelo medo e pelo terror e, na década seguinte, elegeram diversos vereadores, deputados e prefeitos em várias cidades do Rio. Sua relação com o Estado não é totalmente de confronto ou apenas atuar “onde o Estado não chega”, mas uma simbiose corrupta e assassina do crime organizado com o Estado. Nesse contexto, os 14 anos de governos do PT não se comparam a 50 anos de atuação desses grupos que ajudaram à família Bolsonaro a conquistar cargos como parlamentares e Jair Bolsonaro à cadeira de presidente.
Combinando doutrinas militares distorcidas, obscurantismo aliado a agenda ultra neoliberal e estratégias de campanha importadas de Steve Bannon e seus comparsas, Bolsonaro trouxe uma nova forma de governar para destruir, rebaixando a democracia brasileira a níveis semelhantes aos de 1964 – com direito a secretário de Cultura citando Joseph Goebbels em pronunciamento de TV, dentre várias outras alusões ao nazismo. Por todos esses “méritos”, afirmamos que Bolsonaro é um pário duro na disputa para campeão do populismo global, e o Brasil, o maior candidato a novo epicentro desse vírus letal e seu culto à morte.
“E daí?”
Não surpreende um presidente que defende a ditadura militar, tortura, grupos de extermínios e possui relações familiares íntimas com as milícias trate com total descaso uma crise sanitária que mata centenas de milhares. Quando a pandemia finalmente deu as caras no Brasil, Jair Bolsonaro seguiu um roteiro idêntico ao de seu mestre Donald Trump: primeiro subestimou o poder da doença e contrariou cientistas e instituições de saúde inúmeras vezes, depois foi contra o fechamento do comércio e o isolamento social, se negou a trabalhar junto e liberar verbas para governos e prefeituras para conter a doença. Quando questionado sobre o número de mortes, chocou a opinião publica com respostas como “E daí?” e “Não sou coveiro”. No momento em que a gravidade da pandemia era inegável, tentou tomar a frente com soluções como o uso da hidroxicloroquina como remédio milagroso, da mesma forma que seu ídolo nos EUA. Além disso, seu governo propôs um auxílio de R$200,00 mensais para trabalhadores desempregados ou impedidos de trabalhar informalmente no período de isolamento, e quando parlamentares de esquerda aprovaram uma nova proposta de R$600,00, Bolsonaro tentou levar o crédito pela medida e conquistou uma popularidade recorde entre grupos e regiões mais pobres do país. Em agosto, com 3,5 milhões de infectados, Bolsonaro segue compartilhando notícias falsas alegando que “a maioria da população é imune ao coronavírus” e, ao comentar os mais de 100 mil mortos pela doença, disse: “vamos tocar a vida”.
Se em outras décadas, estadistas enfrentando uma pandemia despejariam discursos vazios e pacificadores, dizendo que “a segurança da população é prioridade absoluta”, hoje vemos nos líderes populistas extrema-direita um orgulho em discursar com uma chamada “autenticidade” grosseira, uma estupidez “sem filtros” e “sem demagogia”. Líderes como Bolsonaro e Trump rompem com o decoro que se espera de líderes nos gabinetes ou na mídia, seja assumindo abertamente sua ignorância quanto a campos específicos da gestão econômica (“não sou economista!”) ou proferindo ofensas racistas, misóginas e classistas para tornar ainda mais fiel sua base radicalizada. Encarnar esse ar de “novidade”, de “antissistema” e de “autenticidade”, é se aventurar onde nem as maiores figuras políticas da esquerda ou da direita costumam ir.
E assim, entre ameaças de mandar tropas ao Supremo Tribunal, declarações sensacionalista e enquanto o mundo organizava fechamentos forçados, leis marciais e medidas extremas contra a pandemia, no Brasil o governo federal organizou sua própria versão de extremismo permitindo a contaminação e a morte de maneira e proporções genocidas. Seu projeto não é apenas negar a ciência, é usar conhecimentos científicos e de gestão para promover eugenia e genocídio direcionados. Ao aceitar que 70% da população “inevitavelmente” contrairá a Covid-19, Bolsonaro e seu governo assumem o risco de deixar morrer quase 2 milhões de pessoas. Como já mostramos, esses números se concentrarão em quem já está em risco por uma questão de classe, idade, gênero, etnia e localidade.
Os movimento por justiça e transformação social precisam ter essa política de morte em mente e retomar o protagonismo quanto ao que é de fato ser rebelde, o que é enfrentar o sistema e compartilhar ferramentas para luta e solidariedade que foram apropriadas e distorcidas por nossos inimigos. As bases populistas estão questionando o que ditam instituições científicas ou de mídia que, na virada do século, apenas anticapitalistas ousavam questionar – quando ainda não era possível ver isso sendo usado pela direita organizada dentro e fora do aparelho estatal. O slogan “Odeia a mídia? Seja a mídia”, criado em meio aos movimentos antiglobalização, foi desfigurado pela sua versão direitista: descreditar fatos verificáveis e espalhar notícias falsas ou “fatos alternativos” para alcançar interesses políticos. Desafiar o monopólio da ciência nas mãos de conglomerados farmacêuticos virou trocar a popularização do acesso ao conhecimento científico por um obscurantismo que coloca vidas em risco. Subverter as instituições políticas deixou de ser um horizonte para a política de base, solidária e autogerida para dar lugar à perspectiva de que uma figura carismática pode, sozinha, se sobrepor aos 3 poderes da democracia para instaurar uma forma de governo baseado em boatos e ainda mais autoritarismo.
A imagem de um futuro para além da democracia capitalista deve ser a imagem da revolução social e do fim das classes sociais, implicando em um enfrentamento permanente de todas hierarquias, não a de figuras como Trump, Bolsonaro, Orbán destruindo a frágil estrutura garantista da democracia, sem negá-las, para implementar um estado ainda mais brutal, violento e desigual – uma democracia securitária se ajoelhando em nossos pescoços para sempre, enquanto lutamos para respirar.
Juntas, vamos respirar novamente!
[Continua na Parte 3.]