CINCO LIÇÕES HISTÓRICAS PARA ANTIFASCISTAS

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Este texto é um capítulo do livro Manual Antifascista, do autor estadunidense Mark Bray, lançado em português em 2019. Ele analisa brevemente cinco lições que muitos antifascistas extraem ou deveriam extrair da história. Cada uma delas começa com uma descrição mais factual de um determinado fenômeno histórico antes de passar para uma interpretação antifascista dos fatos em questão. Como todos os fenômenos históricos, esses fatos estão sujeitos a múltiplas interpretações. Essas certamente não são as únicas lições do antifascismo, mas esclarecem o embasamento de algumas de suas principais fundamentações históricas.

1. AS REVOLUÇÕES FASCISTAS NUNCA FORA BEM-SUCEDIDAS. OS FASCISTAS ALCANÇARAM O PODER LEGALMENTE.

Primeiro, alguns fatos importantes: a marcha de Mussolini em Roma foi apenas um espetáculo legitimando um convite anterior para formar um governo. O Putsch da Cervejaria de Hitler em 1923 falhou miseravelmente. Sua eventual ascensão ao poder veio quando o presidente Hindenburg o nomeou chanceler. A lei que lhe concedeu o poder completo foi aprovada pelo parlamento.

Para os militantes antifascistas, esses fatos históricos lançam dúvidas sobre a fórmula liberal de oposição ao fascismo. Essa fórmula equivale essencialmente na fé de um “debate fundamentado” para combater ideias fascistas, na polícia para combater a violência fascista nas ruas e nas instituições governamentais parlamentares para combater as tentativas fascistas de tomar o poder. Não há dúvidas que por algumas vezes essa fórmula funcionou. Também não há dúvidas de que algumas vezes ela falhou. O fascismo e o nazismo surgiram como apelos emocionais e antirracionais fundamentados em promessas masculinas de renovação do vigor nacional. Enquanto a argumentação política sempre é importante para fazer um apelo a uma potencial base popular do fascismo, sua nitidez se ofusca quando confrontada com as ideologias que rejeitam os termos do debate racional. A racionalidade não foi capaz de impedir os fascistas ou os nazistas. Apesar de necessária, da perspectiva antifascista, infelizmente a razão é insuficiente por si só.

Assim, não é surpresa que a história mostre que governos parlamentares nem sempre são uma barreira para o fascismo. Pelo contrário, em várias ocasiões, foram responsáveis por estender o tapete vermelho. Quando as elites econômicas e políticas do período entre guerras se sentiram suficientemente ameaçadas pela perspectiva da revolução, voltaram-se para figuras como Mussolini e Hitler para esmagar impiedosamente a dissidência e proteger a propriedade privada. Embora seja um erro reduzir inteiramente o fascismo a um último recurso de um sistema capitalista ameaçado, esse elemento de sua composição desempenhou um papel importante e muitas vezes decisivo em suas vitórias. Quando os líderes autoritários do período entre guerras se sentiam muito menos ameaçados, implementavam muitas vezes políticas fascistas de cima para baixo. Para a maioria dos revolucionários, isso significa que o antifascismo deve necessariamente ser anticapitalista. Enquanto o capitalismo continuar a fomentar a luta de classes, eles dizem, o fascismo sempre surgirá como uma solução autoritária para conter a revolução popular.

Quanto à polícia contra a violência fascista – houve vezes que a polícia prendeu e perseguiu fascistas, mas o registro histórico mostra que, junto com os militares, eles também estão entre os mais ansiosos para “restauração da ordem”. Estudos mostram que uma alta porcentagem de policiais gregos votou no Aurora Dourada. Nos EUA, está claro que muitos policiais receberam Trump como o presidente das “Blue Lives Matter” (uma alusão satírica do movimento antirracista Black Lives Matter), que permitiria que a aplicação da lei continuasse com as agressões e assassinatos nas desprotegidas comunidades negras e latinas. Recentemente, foi revelado que o FBI vem investigando de forma alarmante (embora não surpreendente) altos níveis de infiltração de supremacistas brancos na polícia por décadas. Além disso, independentemente da composição da força policial dos EUA, o fato que ela se origina das patrulhas escravocratas no Sul e da oposição ao movimento trabalhista no Norte nos dá uma visão do papel da supremacia branca dentro do sistema de “justiça” criminal.

Tudo isso para dizer que o fato de que as revoltas fascistas sempre falharam não deve diminuir as preocupações sobre seu potencial insurrecional. A “estratégia de tensão” fascista na Itália, o desenvolvimento do conceito de “lobo solitário” e “resistência sem líder” promovido pelo líder norte-americano da Klan, Louis Beam, e a luta armada fascista que se desenvolveu em ambos os lados nos conflitos na praça Euromaidan na Ucrânia atestam o perigo material da violência fascista insurrecional. Não obstante, historicamente o fascismo ganhou acesso aos corredores do poder não derrubando seus portões, mas convencendo seus porteiros gentilmente a abri-los.

2. MUITOS LÍDERES E TEÓRICOS ANTIFASCISTAS DO PERÍODO ENTRE GUERRAS NÃO LEVARAM O FASCISMO VERDADEIRAMENTE A SÉRIO ATÉ QUE FOSSE TARDE DEMAIS.

Para cada revolução, houve uma contrarrevolução. Para cada ataque da Bastilha havia um Termidor. Depois da Comuna de Paris, centenas de pessoas foram executadas e outras milhares presas e deportadas. Mais de 5 mil presos políticos foram executados e 38 mil foram presos após o fracasso da Revolução Russa de 1905, que também testemunhou 690 pogroms antissemitas que mataram mais de 3 mil judeus. Os radicais europeus e as minorias étnicas de modo algum eram estranhos à violência da reação tradicional.

No entanto, o fascismo representava algo novo. Inovações ideológicas, tecnológicas e burocráticas criaram um veículo para o imperialismo e o genocídio que os europeus haviam exportado de todo o mundo quando trouxeram suas guerras de extermínio de volta para casa.

Sem surpresa, muitos comentaristas de esquerda conceituaram incialmente o fascismo dentro dos parâmetros das forças contrarrevolucionárias existentes na época. De acordo com a Federação Socialista dos Trabalhadores, os fascistas italianos eram “no sentido mais estrito, uma Guarda Branca”, referindo-se aos contrarrevolucionários da Revolução Russa. O Partido Comunista da Grã-Bretanha os chamou de “os Black and Tans italianos”, se referindo às forças contrarrevolucionárias britânicas na Guerra da Independência da Irlanda. Na década de 1920, alguns marxistas usaram a análise do comunista húngaro Geörgy Lukács de “terror branco” para argumentar que os squadristi de Mussolini eram apenas um baluarte não-ideológico da classe dominante.

Por outro lado, vários comentaristas destacaram os recursos exclusivos do fascismo. Eles reconheceram a novidade do flerte nacionalista com o socialismo e seu elitismo populista. Eles observaram como setores anteriormente antagônicos, como os latifundiários tradicionais e capitalistas burgueses, podiam formar um movimento contrarrevolucionário unido. O foco marxista na dinâmica de classes subjacente ao fascismo revelou novos elementos dessa intrigante doutrina que os observadores centristas não foram capazes de captar. No entanto, esse foco também tendeu a limitar o perigo potencial que o fascismo poderia representar para os confins de seu suposto papel de guarda-costas da classe dominante, e assim os marxistas e muitos outros falharam em antecipar como o alcance de sua violência se estenderia além do que era “necessário” para proteger o capitalismo. Além disso, embora o fascismo do período entre guerras tenha se desenvolvido principalmente a partir de círculos eleitorais da classe média com o apoio da classe alta, à medida que os movimentos fascistas cresciam, às vezes, mas nem sempre, eles conquistavam apoiadores na classe trabalhadora – um fato que os marxistas demoraram a aceitar.

Independente do conteúdo de suas análises, muitos políticos socialistas e comunistas não agiram como se a própria existência de seus movimentos estivesse em jogo. Os socialistas italianos assinaram o Pacto de Pacificação com Mussolini em 1921, e nem eles nem os comunistas achavam que a ascensão do Duce ao poder representaria mais do que uma nova oscilação para a direita no velho pêndulo da política parlamentar burguesa. Dessa forma, eles não eram totalmente diferentes da maioria dos socialistas espanhóis que colaboraram com o governo militar meio-fascista de Primo de Rivera na década 1920. Na Alemanha, os comunistas acreditavam que o fascismo já havia chegado quando os “governos presidenciais” do início da década de 1930 começaram a governar por decreto. No entanto, nem os supostos “governos presidenciais” fascistas nem a chancelaria de Adolf Hitler foram suficientes para convencer a liderança do partido que eles enfrentavam uma ameaça existencial. Para a liderança do KPD, o fascismo não pedia resistência por quaisquer meios necessários, mas sim paciência. Seu slogan era “Hitler primeiro, depois nós”. Na virada do século, os esquerdistas tinham razões para antecipar que épocas de repressão iriam e viriam. O fascismo mudou as regras do jogo.

O primeiro reconhecimento substancial da essência do perigo fascista veio com a “Revolta de Fevereiro” de 1934, quando os socialistas austríacos lutaram contra as incursões do autoritário chanceler Dollfuss nos centros socialistas (instigadas por Mussolini). A revolta foi brutalmente reprimida, deixando 200 mortos, 300 feridos e o partido na clandestinidade. No entanto, sua bravura inspirou os mineiros socialistas espanhóis que se rebelaram mais tarde naquele ano nas Astúrias. Seu slogan era “Melhor Viena do que Berlim”, onde a ascensão de Hitler ao poder não foi combatida pela força. Quando a Guerra Civil Espanhola eclodiu, o antifascismo foi amplamente entendido como uma luta desesperada contra o extermínio.

A tendência dos teóricos e políticos esquerdistas em conceituar excessivamente o fascismo com base no paradigma da contrarrevolução tradicional impediu a capacidade da esquerda de se ajustar à nova ameaça que enfrentava. Uma vez que as formas de resistência sempre devem ser calibradas contra aquilo que está sendo resistido, cabe aos antifascistas reavaliar continuamente seus arsenais teóricos, estratégicos e táticos, se baseando nas mudanças das ideologias e de práxis de seus adversários da extrema-direita. Matthew N. Lyons colocou essa lição em prática ao criticar escritores que argumentam que a alt-right deveria só ser chamada de neonazista. Embora muitos membros da alt-right claramente sejam neonazistas, Lyons argumenta que isso “internaliza a infeliz ideia de que as políticas de supremacia branca são basicamente as mesmas…. Que não é preciso compreender nosso inimigo”. Conceber o inimigo nos termos de um paradigma ultrapassado custou muito caro aos antifascistas. Em algum ponto, a evolução da extrema-direita pode significar transcender completamente a estrutura do “fascismo”, à medida que nos afastamos cada vez mais do século XX.

É essencial que os antifascistas desenvolvam uma compreensão clara e precisa do fascismo. No entanto, a fim de compreender a natureza robusta e flexível da política antifascista, devemos reconhecer a relação entre dois dos muitos registros do antifascismo: o analítico e o moral.

O registro analítico consiste em mobilizar definições e interpretações historicamente informadas sobre o fascismo para elaborar uma estratégia antifascista adequada aos desafios específicos contra grupos e movimentos com ideologias fascistas. Métodos de oposição a grupos neonazistas podem não fazer sentido contra outros grupos de extrema-direita. Compreender sua diferença deve ser o que mantém as escolhas táticas e estratégicas bem informadas.

O registro moral se desenvolveu com o poder retórico do epíteto “fascista” – chamar alguém ou algo de fascista – no período do pós-guerra. Ele é colocado em jogo quando a lente antifascista é direcionada a fenômenos que tecnicamente podem não ser fascistas, mas são fascistóides.

Por exemplo, os Panteras Negras estavam errados ao chamar os policiais que matavam negros impunemente de “porcos fascistas” se eles pessoalmente não possuíssem crenças fascistas ou se o governo dos EUA não fosse literalmente fascista? Em uma manifestação antifa em Madrid, vi uma bandeira do arco-íris com o slogan “homofobia é fascismo”. A existência de homofóbicos não-fascistas invalida o argumento? Os guerrilheiros que lutaram contra Franco na Espanha ou Pinochet no Chile se equivocaram ao chamar sua luta de “antifascista” se, de acordo a maioria dos historiadores, esses regimes não foram tecnicamente fascistas?

Como já discutimos, é importante analisar cada um desses casos e muitos outros para podermos desenvolver uma análise bem afinada. No entanto, o registro moral do antifascismo compreende como o “fascismo” se tornou um significante moral que aqueles que lutam contra uma variedade de opressões têm utilizado para destacar a ferocidade dos inimigos políticos que enfrentam e os elementos de continuidade que eles compartilham com o fascismo real. A Espanha de Franco pode ter sido mais um regime militar católico tradicionalista do que fascismo per se, mas isso pouco importava para aqueles que eram perseguidos pela Guarda Civil.

O desafio em definir o fascismo embaça a linha entre esses dois registros. Além disso, o registro analítico contém uma crítica moral, assim como o registro moral implica em uma ampla análise da relação entre uma determinada fonte de opressão e o fascismo. Embora seja verdade que, em certo ponto, o epíteto fascista perde um pouco seu poder se for usado de forma muito genérica, um componente-chave do antifascismo é se organizar contra ambas políticas, fascistas e fascistóides, em solidariedade com todos aqueles que sofrem e lutam. Questões de definições devem influenciar nossas táticas e estratégias, não nossa solidariedade.

3. POR RAZÕES IDEOLÓGICAS E ORGANIZATIVAS, A LIDERANÇA SOCIALISTA E COMUNISTA DEMOROU MAIS QUE SUA BASE PARA AVALIAR COM PRECISÃO A AMEAÇA DO FASCISMO.

Como inicialmente muitos socialistas e comunistas consideravam o fascismo uma variação da política contrarrevolucionária tradicional, eles se concentraram muito mais em combater uns aos outros do que seus inimigos fascistas. Ambas as frentes argumentavam que, se unissem o proletariado sob sua liderança, superariam qualquer obstáculo da direita.

Assim, enquanto alguns socialistas de base se mantiveram lado a lado com o Arditi Del Popolo para lutar contra os camisas negras italianos no início da década de 20, os quadros do partido se retiraram para retomar sua trajetória eleitoral legalista. Quando esse caminho definitivamente foi bloqueado, o partido cambaleou para conseguir mudar seus rumos.

De forma similar os socialistas alemães optaram, na mesma época, por um curso estritamente legalista nas décadas de 1920 e 30, apesar do crescente desconforto dos membros do partido. Embora os socialistas do Reichsbanner, e mais tarde na Frente de Aço, tenham pressionado por medidas mais agressivas, o aparato do partido estava mal equipado para considerar estratégias alternativas. Da mesma forma, a base do socialismo austríaco lutava para empurrar a liderança do seu partido para a autodefesa militante frente aos ataques da extrema-direita. Na Grã-Bretanha, os membros do Labour Party e do Trades Union Congress confrontaram os fascistas na rua, apesar das advertências de seus líderes. A liderança trabalhista condenou os membros que participaram da Batalha de Cable Street – quando vários grupos enfrentaram os camisas negras de Oswald Mosley no quarteirão judeu do East End em Londres – e se recusou a apoiar os que se juntaram às Brigadas Internacionais para combater na Espanha. Como argumenta o historiador Larry Ceplair, os sociais-democratas “haviam jogado o jogo parlamentar por muito tempo e seus líderes se tornaram ideológica e psicologicamente incapazes de organizar, ordenar ou aprovar qualquer tipo de resistência armada ou revolução preventiva”.

Não obstante, muitos socialistas independentes, que eram muito menos sobrecarregados pela ideologia partidária legalista e pela estratégia eleitoral ditada por uma direção, parecem ter sido mais sensíveis às mudanças de condições na base e muito mais preparados para enfrentar o fascismo.

No início da década de 1920, a Internacional Comunista acreditava que a tarefa mais urgente da revolução era traçar uma clara e antagônica distinção entre o marxismo-leninismo e a social-democracia, para que ela pudesse liderar a onda de insurgência que parecia estar engolfando o continente. Esse objetivo voltou à tona com o início do “terceiro período” do Comintern em 1928. O modelo organizacional leninista de “Centralismo Democrático” ditava uma cadeia de comando disciplinada do Comintern em Moscou por intermédio dos partidos nacionais para suas filiais regionais e quadros de cada bairro. Esse modelo permitiu que o movimento comunista internacional agisse em uníssono por vastas extensões geográficas, mas também significava que as intermináveis disputas entre a elite do partido em Moscou produziam um impacto maior nas políticas do Comintern do que as condições materiais de cada local.

A linha “social-fascista” foi um desses exemplos. Muitas lideranças nacionais a adotaram a contragosto e rapidamente a negligenciaram com a mudança do Comintern para a política de Frente Popular em 1935. Os comunistas e os socialistas de base geralmente não se odiavam tanto quanto seus líderes. Na verdade, as primeiras iniciativas de unidade entre socialistas e comunistas na França e na Áustria, por exemplo, vieram de baixo. Todos esses exemplos demonstram algumas das desvantagens da organização hierárquica.

4. O FASCISMO ROUBA DA IDEOLOGIA, DA ESTRATÉGIA, DA CULTURA E DO IMAGINÁRIO DE ESQUERDA.

O nazismo e o fascismo surgiram no desejo da burguesia capitalista de libertar o nacionalismo, o militarismo e uma masculinidade “decadente” intrínseca à frente dos governos italiano e alemão, e de capturar as políticas populares coletivistas da esquerda socialista “degenerada”. Mesmo antes de Hitler assumir, o Partido Alemão dos Trabalhadores (predecessor do NSDAP) já usava uma considerável dose de vermelho em suas bandeiras e cartazes, e seus membros chamavam uns aos outros de “camaradas”. Isso produziu paradoxos anti-ideológicos e antirracionais como o “nacional-sindicalismo” e o “nacional-socialismo”. Fascistas e nazistas “de esquerda” foram expurgados à medida que seus partidos conquistavam poder e se uniam às elites econômicas, embora a cooptação nacionalista da retórica popular da classe trabalhadora tenha desempenhado um papel fundamental para fazê-los chegar até lá.

Com base nas suas boas relações com os empresários, os nazistas foram responsáveis por criar novos postos de trabalho para os desempregados. De certa forma, essa era uma variação colaboracionista entre classes, do papel do sindicato como um intermediário para alcançar o emprego em uma indústria. As tabernas das Stormtroops (SA) nazistas claramente floresceram inspiradas na tradição socialista, que datava do século XIX.

Eles também forneceram comida e abrigo gratuito para seus apoiadores no período da Grande Depressão. Essa foi uma ruptura marcante com os conservadores tradicionais, que demonstravam desprezo pelos pobres e desempregados e, no máximo, contribuíam ocasionalmente para instituições de caridade apolíticas ou religiosas.

Esse modelo de caridade política de extrema-direita foi adotado pela Aurora Dourada grega, a CasaPound italiana, o Hogar Social Madrid, e a britânica National Action, todos os quais começaram a distribuir alimentos e mantimentos grátis para gregos, italianos, espanhóis – apenas “brancos”. Os ativistas da CasaPound começaram a imitar as ocupações autonomistas em prédios abandonados, e a Hogar Social Madrid não apenas começou com ocupações, mas também se organizou contra a expulsão de espanhóis étnicos em uma clara tentativa de capitalizar com o vibrante movimento de esquerda espanhol.

Mais profusamente, os fascistas do pós-guerra continuaram a se voltar para a esquerda revolucionária e para seus insights estratégicos. Os que seguiam a linha da “Terceira Posição” procuraram aplicar teorias maoístas de revolução no Terceiro Mundo às metas de “libertação europeia”, que implicavam em uma remoção forçada de “não-europeus”. Na década de 1980, uma facção francesa chamada Troisième Voie procurou usar uma “estratégia trotskista” para se infiltrar no Front National, a fim de aparelhá-lo por dentro. Os fascistas ucranianos tentaram se apropriar do legado do líder anarquista ucraniano Nestor Makhno, enquanto as bases fascistas espanholas Autónomas elogiavam o anarquista Buenaventura Durruti.

Começando no final dos anos 80 e início dos anos 90, e ganhando força no final dos anos 2000, os fascistas em toda a Europa tentaram copiar até a tática black bloc dos autonomistas alemães. Esses “nacionalistas autônomos” vestidos de preto, que às vezes usam o logotipo das bandeiras antifascistas com slogans nacionais-socialistas ou kaffiyehs palestinos, tentaram imitar o apelo da esquerda radical defendendo o anticapitalismo, antimilitarismo e anti-sionismo na Alemanha, Grécia, República Tcheca, Polônia, Ucrânia, Inglaterra, Romênia, Suécia, Bulgária e Holanda. Essa tendência começou a declinar na Europa Ocidental por volta de 2013. A ideia de “nacional-anarquismo” é outra nova variação dessa farsa. Os “nacionais anarquistas” abusam do conceito anarquista de autonomia para defender “comunidades étnicas” separadas e homogêneas, incluindo uma pátria só de brancos.

Muitos outros exemplos poderiam ser citados, mas esses são suficientes para demonstrar como o antifascismo não se trata apenas de um escape aventuresco na oposição ao fascismo, mas sim da proteção Against the Fascist Creep, como sugere o título do maravilhoso trabalho “Les autonomes nationalistes en Allemagne” de Alexander Reid Ross. Eles também demonstram a importância da ideologia de esquerda. Sem estabelecer como eles se encaixam, conceitos como “autonomia”, “libertação nacional”, ou mesmo “socialismo”, e táticas como as ocupações, organização de mutirões de alimentos ou a formação de black blocs podem ser cooptadas bem debaixo dos nossos narizes.

5. NÃO É PRECISO UM GRANDE NÚMERO DE FASCISTAS PARA CONCEBER O FASCISMO

Em 1919, o Fasci de Mussolini tinha 100 membros. Quando Mussolini foi nomeado primeiro-ministro em 1922, cerca de 7% a 8% da população italiana, e apenas 35 dos mais de 500 membros do parlamento, pertenciam ao seu Partito Nazionale Fascista (PNF). O Partido Alemão dos Trabalhadores tinha meros 50 membros quando Hitler participou de sua primeira reunião após a Primeira Guerra Mundial. Quando Hitler foi nomeado chanceler em 1933, apenas cerca de 1,3% da população pertencia ao NSDAP (Nationalsozialistische Deutsche Arbeiterpartei, ou Partido Nacional Socialista dos Trabalhadores Alemães). Em toda a Europa, partidos fascistas de massas emergiram daquilo que inicialmente eram pequenos núcleos durante o período entre guerras. Mais recentemente, o sucesso eleitoral de muitos partidos fascistas, minúsculos antes da crise financeira de 2008, e a recente onda de migração, demonstraram o potencial para um rápido crescimento da extrema-direita quando as circunstâncias se tornam favoráveis.

Esses partidos certamente cresceram e ambos os regimes consolidaram seu poder, conquistando apoio das elites conservadoras, industriais ansiosos, dos alienados proprietários de pequenos negócios, nacionalistas desempregados e outros. As triunfantes narrativas de resistência pós-guerra talvez tenham negado que todos, menos os ideólogos do fascismo mais comprometidos, tenham apoiado figuras como Mussolini ou Hitler, mas na verdade ambos os regimes conseguiram cultivar um amplo apoio popular, obscurecendo ainda mais nosso entendimento do que significava ser um fascista ou um nazista nos anos 1930. Nesse sentido, foram necessários alguns fascistas para conceber o fascismo. O ponto é, no entanto, que antes de conseguir tal apoio popular, os fascistas e os nazistas não eram mais que minúsculos grupos de ideólogos.

Enquanto isso, é importante notar que, ao mesmo tempo em que Mussolini montava um grupo com 100 veteranos amargos e alguns socialistas nacionalistas peculiares, e Hitler lutava pela liderança do minúsculo Partido Alemão dos Trabalhadores, a Itália e a Alemanha aparentemente estavam à beira de uma revolução social. Não havia razão para que a esquerda tivesse olhado para qualquer crescimento. Esses pequenos grupos não poderiam ter sido mais irrelevantes.

Dado o que anarquistas, comunistas e socialistas sabiam na época, não havia razão para que eles dedicassem qualquer tempo ou atenção aos primórdios do fascismo. No entanto, é impossível não nos perguntarmos o que poderia ter acontecido se eles tivessem prestado mais atenção. É uma hipótese impossível de se levar a sério, e refletir demais sobre ela significaria omitir os fatores sociais mais amplos que prepararam o terreno para a ascensão do fascismo. Não obstante, os antifascistas concluíram que, como o futuro não é escrito e o fascismo frequentemente emerge de pequenos grupos marginais, todo grupo fascista ou supremacista branco deveria ser tratado como se fossem os 100 fasci de Mussolini ou os 54 membros do Partido Alemão dos Trabalhadores que ofereceram a Hitler a base para seus primeiros passos.

A trágica ironia do antifascismo moderno é que, quanto mais bem-sucedido, mais sua razão de ser é questionada. Seus maiores sucessos estão no limbo hipotético: quantos movimentos fascistas assassinos foram cortados pela raiz nos últimos 70 anos por grupos antifas antes que sua violência pudesse se espalhar? Nós nunca saberemos – e isso efetivamente é uma coisa muito boa.

SOMOS TODAS ANTIFASCISTAS – MENOS A POLÍCIA: sobre como e com quem lutamos

A REAÇÃO BATE À PORTA

Entramos com tudo em um tempo de reação. A década progressista dá lugar a uma onda de movimentos e governos de extrema direita ganhando espaço em todo o mundo. É difícil acreditar que existe alguma surpresa nisso. Como poderíamos nos surpreender com a eleição de Trump nos EUA e Bolsonaro no Brasil, “quando Putin, Berlusconi, Erdogan, Modi e Netanyahu têm reinado por anos no mesmo modelo1” na Rússia, Itália, Turquia, Índia e Israel?

Estados Unidos e Brasil são os retardatários em uma tendência mundial de governos de direita chegando ao poder democraticamente. Trump e Bolsonaro não são fascistas se usamos a palavra com rigor histórico e uma análise apurada de suas influências e características políticas. No entanto, ambos mobilizam emoções e ressentimentos comuns ao fascismo presentes em grande parte das camadas populares, e também das classe média branca e elites conservadoras que historicamente se beneficiam de privilégios desde a época da colonização e da escravidão institucionalizada nas Américas. Eles falam para os que se sentiram “esquecidos” pelas políticas sociais de programas de governo da última década, como o caso dos democratas de Obama nos EUA, e o PT de Lula e Dilma no Brasil. Portanto, entendemos os governos de Trump e Bolsonaro como populistas de extrema direita. Eles buscam aplicar reformas e ataques a direitos sociais conquistados para reinventar uma forma de governar “em nome do povo”. Sobretudo, são governos que se mantém a forma democrática, mas praticam a violência de Estado buscando promover a segurança, são, portanto, democracias securitárias.

Estejam eles vindo de raízes ‘populares’ ou apenas apropriando seu estilo, esse grupo [de governantes] exuma aquela chamada aliança entre o soberano e seu ‘Povo’. Eles criam a aparência de um abismo no outro lado onde as elites buscam refúgio, espremidas juntas sob a obscura luz do ‘deep state’. Esse novos populistas ganharam corações com a promessa de salvaguardar tudo o que, em nome do povo, é idêntico a eles mesmos, a fim de fazê-lo se levantar, em uníssono, contra a ameaça das minorias étnicas, sexuais ou políticas – um gesto que muitas vezes parece se estender ao ponto de incluir, em um momento ou outro, quase todo mundo. Das entranhas destas massas que vagam longamente no deserto neoliberal, elas ressuscitam um novo Povo de ressentimento.”

Liaisons, In The Name of The People

A VIOLÊNCIA NÃO ACABA, MAS É DIRECIONADA CONTRA AS MINORIAS

Nenhum estado democrático reprime ou elimina definitivamente as milícias ou grupos fascistas e racistas. No Brasil não foi diferente: em 1964 vivemos um golpe de estado com armas, tanques e disposição para matar, torturar e fazer sumir milhares de pessoas. Em 2018, vimos os herdeiros do aparato militar ditatorial, que foi para o crime organizado das milícias durante a era democrática, organizarem a vitória eleitoral de seu patrono. E Jair Bolsonaro não tem nenhuma vergonha em elogiar e estimular ações ilegais como a tortura e o extermínio, seja de suspeitos de cometer algum crime ou povos originários habitando uma terra que é sua desde muito antes. E é nessa área cinza entre o legítimo e o ilegítimo, entre a violência policial legalizada e a agressão criminosa de gangues e milícias, que o fascismo opera e cresce para, quando tomar o controle do Estado, poder usar sua força total através de grupos de extermínio, das polícias e das prisões e campos de concentração mantidos e expandidos nos períodos democráticos.

Rodrigo Amorim quebrando a placa em homenagem à Marielle Franco em 2018, metralhada e morta com o motorista Anderson Gomes por milicianos. Até então, os que encomendaram suas mortes continuam desconhecidos. Sabemos apenas que quem puxou o gatilho foram ex-policiais militares que hoje estão presos.

Bolsonaro – assim como Trump nos EUA ou Puttin na Rússia – não pretende acabar ou sequer diminuir a gigantesca violência necessária pra manter o Capitalismo neoliberal em sua fase decadente e de crise permanente. O que ele pretende é canalizar essa violência o máximo possível para as minorias políticas: as populações negras, LGBTTTIQ, mulheres, indígenas, imigrantes e pobres. A imagem do “cidadão de bem” que quer ser protegido pela liberação do porte de armas é a imagem do homem branco, de classe média ou alta e heterossexual, que diz querer defender sua família e seu patrimônio da criminalidade, mas se sente muito mais ameaçado politicamente pela ascensão de membros das classes subalternas, pela liberdade das mulheres e de pessoas não heterossexuais ou praticam sexo de forma dissidente. Os que mais se beneficiam diretamente da política de liberação de armas serão os mesmos ruralistas que já praticam torturas e assassinatos nos campos e as milícias que controlam bairros e municípios inteiros em cidades como o Rio de Janeiro. Para o senhor presidente, violência se combate com medidas que apenas aumentam a violência classista, racista e sexista no país.

Para canalizar essa violência contra as minorias, esses líderes precisaram deixar claro seu projeto para serem eleitos. Bolsonaro e Trump não foram eleitos apesar de serem abertamente sexistas, racistas, homofóbicos. Eles foram eleitos justamente porque são tudo isso. E não apenas o presidente, mas vários parlamentares foram eleitos pela mesma lógica. O candidato Rodrigo Amorim, quebrou a placa em homenagem à Marielle Franco em 2018, enquanto fazia campanha para ser deputado estadual no Rio de Janeiro. Amorim foi eleito como candidato mais votado. Depois de eleito, o deputado emoldurou e pendurou a placa quebrada em seu escritório e alega que estava “restaurando a ordem” quando a quebrou. Para seus eleitores, o fato dele afrontar publicamente a memória ou qualquer homenagem a uma mulher negra, lésbica, criada na favela e que foi assassinada por policiais, é apenas mais uma “demonstração de caráter” de seu candidato.

Quando analisamos esses perfis e suas ações, concluímos que de nada adianta acusar esses políticos de serem machistas, sexistas ou mesmo fascistas. Isso não fará com que percam apoiadores porque foram essas características que atraíram seus apoiadores. A melhor reposta que podemos dar é saber enfrentá-los mostrando que sua política é apenas mais do mesmo, que serão incapazes de melhorar a vida das pessoas dentro do neoliberalismo e entregarão às pessoas apenas mais frustração. Precisamos mostrar que eles são fracos e ainda mais limitados que a organização e solidariedade entre as pessoas.

SERIAM OS POLICIAIS NOSSOS ALIADOS? – E PORQUE POLÍCIA ANTIFASCISTA É UM CONTRASSENSO

Percebemos, assim, que vivemos em um tempo no qual ideias e emoções fascistas desfilam sem muito receio de se mostrar explicitamente, tentando ganhar propulsão com discursos canalizam o ódio contra as minorias. Por vezes, com novos nomes, como Alt-Rigth (Europa e EUA) ou bolsonarismo (Brasil), mas com as mesmas práticas de eliminação e extermínio das formas de vida que ele declara como insuportáveis e indignas de viver. Hoje, esse fascismo não apenas se serve da democracia, como aprendeu a se perpetuar com uma renovada retórica democrática associada ao desejo por segurança. Eles sabem que as instituições democráticas, ao fim, os favorecem.

Belo Horizonte, 2014.

Para ficar em um exemplo rápido (e cinematográfico) sobre como as instituições na democracia favorecem o fascismo, assistam o filme “In the fade”, de Fatih Akin, vencedor em Cannes de melhor filme estrangeiro em 2018. No filme, como na vida, a polícia e o tribunal ficam do lado dos neonazistas, sejam eles alemães do PEGIDA ou gregos do Aurora Dourada. Assim acontece qualquer gangue fascista ou neonazista sob o governo de um Estado em qualquer lugar do planeta. Fascismo e Estado democrático de direito não são, necessariamente, antagônicos. E hoje isso é uma verdade por demais evidente.

No Brasil, desde que o bolsonarismo tomou forma político-eleitoral e caminhou em direção à ocupação do governo do Estado por meio da democracia, a temática do antifascismo se espalhou por vários grupos sociais e indivíduos gerando imagens, memes em mídias sociais, camisetas, adesivos, declarações inflamadas etc. É com alegria que os anarquistas, dedicados à lutas antifascista desde sempre, veem isso. Mas essa alegria não abafa a desconfiança de que essa “onda antifa” em uma esquerda mais ampla, seja apenas isso: uma onda; ou pior, uma nova grife, uma identidade ou uma tática de frente única para conter os que são vistos como radicais.

Nesse sentido, é salutar recordar o alerta do coletivo catalão Josep Gardenyes em seu libelo “Uma Aposta para o Futuro” (Edição Subta, 2015, pp. 19-20), que diz o seguinte: “insistimos na ideia de que o antifascismo é – e tem sido desde os anos 1920 – uma estratégia da esquerda para controlar os movimentos e frear as lutas verdadeiramente anticapitalistas. Ele também sempre foi um fracasso se o pensarmos como uma luta contra o fascismo. As [históricas] estratégias propriamente anarquistas para combater o fascismo foram muito mais efetivas, porque entendiam o fascismo como uma ferramenta da burguesia – e nesse sentido, da democracia –, e dessa forma eles atacaram diretamente o fascismo não no ponto onde ele entrava em conflito com a democracia (direitos, liberdades civis, moderação), mas onde ele convergia com os interesses de proprietários e governantes. (…) O totalitarismo do sistema-mundo atual é uma tecnocracia (…) ele é totalmente compatível com a democracia e não tem nenhuma necessidade de carismas nem de aliança conscientes nem pactuadas entre classes, com seus protagonistas indispensáveis e atores proativos.” O alerta é, no mínimo, pertinente.

São Roque, 2014.

Não queremos com isso dizer que os anarquistas possuem o monopólio da luta antifascista, nem tampouco desprezar ou subestimar a atual onda neofascista e pertinentes reações que ela provoca em amplos setores da sociedade. O alerta provoca uma análise apurada em dois sentidos. Primeiro, é preciso compreender as formas do fascismo contemporâneo e como elas conseguiram equacionar sua presença nas democracias hoje, diluindo as lutas antifascismo no pluralismo democrático e neutralizando seu caráter antissistêmico. Segundo, que ao tomar o antifascismo como principal atividade, os anarquistas correm o risco de cerrar fileiras com aqueles que, mais cedo ou mais, se voltarão contra os anarquistas. Os exemplos históricos são inúmeros, não iremos repetir aqui. Como versa um velho jargão militante: mais importante do que saber contra quem lutamos é saber com quem lutamos. Ao que acrescentamos: mais importante que saber o que fazer, é saber como fazer. A nossa luta já é a vida anarquista em ação.

Mesmo admitindo que uma frente, o mais ampla possível, seja importante para se combater o neofascismo, causa, no mínimo, estranhamento que agora temos que presenciar fenômenos bizarros como o surgimento dos chamados “policiais antifascistas”. Segundo reportagem veiculada pela revista Época, o movimento surgiu em setembro de 2017, composto por policiais civis e militares e demais profissionais da área de segurança pública. Um de seus criadores, um investigador da polícia civil, diz que o Policiais Antifascismo “busca discutir novas políticas de segurança inserindo o policial no debate público — inclusive no que diz respeito aos seus direitos”. A mesma matéria, informa que o movimento conta “com 10 mil membros e representações nos 26 estados brasileiros e no Distrito Federal.”2 O cerne das reivindicações do movimento é a crença de que pode haver uma polícia que respeite as liberdades civis e os direitos humanos e que os policiais devem ser vistos e se entenderem como trabalhadores, assim como o são diversos profissionais de outras áreas. Não duvidamos aqui das boas intensões das pessoas, mas não há um só motivo para acreditarmos nessa histórica instituição de opressão.

A polícia emerge, modernamente no século XIX, como um dispositivo de segurança destinado ao cuidado da população. Na antiga Prússia ela surge como medicina social; na França como instrumento das reformas urbanas como resposta às sedições dos trabalhadores; na Inglaterra aparece vinculada à medicina do trabalho e ao controle dos operários nas fábricas, além de sua faceta de proteção à propriedade do comércio marítimo. Na América do Norte, a polícia é herdeira direta das patrulhas de caça e captura de escravos fugitivos. Então, além de sua faceta repressiva contemporânea, a polícia é, desde seu início, um instrumento de governo voltado ao processos de normalização biopolíticos, como mostram as pesquisas de Michel Foucault e Jacques Donzelot. Sua forma ostensiva é mais recente e ao sul do equador foi acrescida de tecnologias de caça e controle coloniais e escravocratas. Nesse sentido, não é exagero dizer que sob qualquer regime político, a polícia é destacamento dos estados dedicado a manutenção da supremacia racial branca, do controle da classe trabalhadora, da imposição de desigualdade material e do patriarcado: todos os valores e requisitos necessários a um estado fascista. E hoje em dia, após o avanço do neoliberalismo desde os 1970, não apenas do Estado, mas de empresas de segurança privada e do desejo de cada cidadão que clama pelo morte do que lhe é insuportável, atuando como um cidadão-polícia.

São Paulo, 2016.

Assim, quando uma das lideranças do movimento diz, na mesmo entrevista, que “o policial é um garantidor de direitos”, ele não está dizendo nada além da histórica função desse peculiar dispositivo de segurança. Ele segue, justificando a existência do grupo: “a própria palavra polícia significa ‘gestão da polis. Ele [o policial] deve atuar na cidade garantindo direitos. Ele tem que entender que os direitos básicos de um cidadão são os direitos humanos e fundamentais: o direito à vida, à liberdade de expressão”. Essa declaração expõe, mesmo que involuntariamente, a vinculação da atividade policial com o dever de manter o cidadão e os grupos sociais atrelados ao Estado. Depreende-se disso que, na contingente e elástica atuação cotidiana, cada policial é um agente do golpe de Estado cotidiano que impede que se rompa o vínculo subjetivo, operado nas ditaduras e nas democracias, entre sujeito e governo de Estado. Basta reparar que em todas revoluções modernas, desde a Revolução Francesa e as Independências dos EUA e do Haiti, a única constante invariável é a permanência da polícia – ao lado das prisões, dos exércitos, dos tribunais, das fronteiras. É possível ser antifascista sendo operador de algum destes dispositivos?

A polícia não é o oposto dos fascistas. Eles abusam, sequestram, prendem, deportam e assassinam mais pessoas de cor, mulheres e LGBTTTIQ todos os anos do que qualquer grupo fascistas. Eles trabalham mais para fazer avançar a agenda supremacista branca do que qualquer organização de extrema direita independente.”

CrimethInc., What they can’t do with badges, they do witch torches.

Enquanto anarquistas, sempre tentamos deixar óbvio que o papel da polícia é impor e reforçar os desequilíbrios econômicos entre as classes, mantendo os pobres sob controle e o patriarcado e a supremacia branca operando como barreiras à igualdade no Capitalismo.

A violência policial não é um caso isolado, uma aberração local ou a característica de um determinado tipo de regime, mas um elemento fundamental para uma sociedade baseada nos direitos de propriedade privada e na autoridade centralizada do Estado. O papel da polícia é manter as desigualdades de classe, raça, gênero e nacionalidade. Eles vão garantir que as pessoas pobres continuem na pobreza, que as excluídas continuem na exclusão, e que as injustiçadas convivam com a injustiça.

Sendo assim, a polícia nunca será uma aliada porque ela é a maior inimiga de quem questiona a ordem imposta, de quem quer mudanças sociais, de quem quer uma vida sem as desigualdades criadas pelo Capitalismo e pelo Estado. Afinal, eles são os primeiros a aparecer para o conflito quando nos cansamos de apenas sofrer as misérias desse sistema e partimos para a ação.

UMA VIDA SEM FASCISMO É UMA VIDA SEM CAPITALISMO, SEM ESTADO E SEM POLÍCIA

Nenhum governo do mundo combate o fascismo até suprimi-lo. Quando a burguesia vê que o poder lhe escapa das mãos, ela recorre ao fascismo para manter o poder de seus privilégios.”

–  Buenaventura Durruti, em entrevista ao jornalista Van Passen, 1936

O papel da polícia e o das gangues fascistas não são conflitantes entre si, são complementares. Em 2011, a primeira demonstração pública em defesa das posições do então deputado Jair Bolsonaro foi organizada por skinheads neonazistas em São Paulo. Na época, Bolsonaro era apenas mais um membro desconhecido do parlamento, visto como uma piada, dando declarações racistas e homofóbicas para atrair atenção com polêmicas e escândalos. Dezenas de antifascistas compareceram para impedir que uma marcha neonazi conseguisse ainda mais atenção para Bolsonaro e a polícia ficou entre os dois grupos para impedir um confronto. Quando estamos em grande número, a polícia fica entre nós e os fascistas para “garantir a segurança de todos”. Mas quando somos minoria, os policiais deixam que os fascistas nos ataquem.

Contra-manifestação antifascista para barrar “ato cívico” chamado por skinheads neonazistas em apoio às declarações racistas e sexistas de Jair Bolsonaro em São Paulo, 2011.
Quando estamos em grande número, a polícia fica entre nós e os fascistas. Mas quando somos minoria, os policiais deixam que os fascistas nos ataquem.
Neonazistas defendendo Bolsonaro em São Paulo, 2011: Mais do que aos discursos abertos de um político, devemos prestar atenção em quem serão os primeiros a lhe demonstrar apoio.

Normalmente, a polícia ataca, prende, tortura e mata com impunidade legal. Eles não existem para impedir o crime, mas para garantir que a impunidade para atos considerados criminosos continuem sendo monopólio de quem tem poder econômico e político nas mãos. Nas melhores hipóteses, suas limitações são meramente burocráticas: quando a prisão não é em flagrante e é impossível forjar as provas; ou quando é necessário um mandado judicial para desalojar violentamente um imóvel ocupado; ou então quando uma manifestação popular toma as ruas de forma radical e a violência necessária para contê-la é ilegal ou controversa demais para ser praticada de forma explícita pelas forças policiais. Nesses casos, a ação de bandos neonazistas é útil para fazer o trabalho sujo que a polícia não quer ou não pode fazer num determinado momento.

Uma outra utilidade para a ação fascista nas ruas é nos manter ocupados demais tentando evitar que as coisas fiquem “ainda piores” e para lutar contra o sistema em si. O mesmo acontece com políticos como Bolsonaro e Trump: seus escândalos e suas medidas absurdas nos obriga a estar sempre reagindo às suas agendas invés de seguir as nossas próprias. Isso faz parecer que tudo o que queremos é restaurar alguma “normalidade” perdida no sistema democrático. Passamos a ser apenas defensores da última versão menos absurda da vida sob Capitalismo. O que é sempre o risco de soarmos como reacionários enquanto a direita se apresenta como “os rebeldes antissistema”.

parece que ocorreu uma inversão: por um lado, os progressistas se voltam para o passado, querem evitar a “decadência” dos valores democráticos, e assumem uma posição reativa (que era desde o século XIX a posição dos conservadores clássicos, dos teóricos da decadência etc.). Por outro lado, os populistas de direita, isto é, os reacionários, se tornaram “progressistas” no sentido de que querem acelerar o tempo e adiantar o futuro – mas por isso são apocalípticos. Apocalípticos porque amigos do apocalipse, porque eles não têm pudor em acelerar o processo de devastação do meio ambiente, em aniquilar pessoas (ou simplesmente deixar morrer, como no caso italiano em que impediram que um barco de refugiados atracasse) e em transformar a sociedade em uma guerra de todos contra todos em que sobrevive o mais armado – e isso não é nenhum “retorno à Idade Média”, é o próprio ápice do desenvolvimento capitalista, cuja verdade não é nenhuma versão democrática e luminosa de sociedade, mas sim esse grande Nada destrutivo.”

Felipe Catalani, A decisão fascista e o mito da regressão: o Brasil à luz do mundo e vice-versa

Se, depois de toda essa reflexão, alguém ainda acredita que se aliar a membros da polícia em alguma luta social revolucionária pode ser uma boa ideia, afirmamos que abrir as portas e confiar em agentes da repressão estatal que querem lutar contra o fascismo é expor nossos movimentos à infiltração e outros riscos extremos desnecessariamente. Após séculos de luta das classes trabalhadoras e excluídas sendo perseguidas, traídas, mortas e aterrorizadas por instituições como a polícia e o exército; e com a sombra de uma ditadura civil-militar ainda viva na memória, é difícil pensar que tais indivíduos possam ser confiáveis – ou que seus colegas o sejam. Deveríamos trazer para dentro de nossas reuniões, protestos e ações, as pessoas que convivem e compartilham o dia de trabalho com assassinos, torturadores e inimigos da liberdade? Se policiais acreditam que todos devem se opor ao fascismo ou a qualquer forma de opressão, seu caminho deve ser o mesmo de qualquer pessoa à frente de instituições repressivas ou exploradoras: desertar. Que abandonem seus cargos, seus salários, seus privilégios e expropriem o máximo de recursos e munições possíveis que devem estar em mãos revolucionárias – e mesmo assim, é possível que levemos anos ou décadas para sequer começar a dar alguma confiança a pessoas que abriram mão de toda decência humana para aceitar um salário em troca de perseguir, prender e matar.

O governo grego promoveu uma ofensiva em Exarchia, o bairro anarquista de Atenas, despejando várias ocupações e centenas de pessoas, dentre elas imigrantes e refugiados. No meio da operação, era possível ver policiais usando símbolos fascistas. Na foto, o policial usa brasão e slogan do partido fascista Aurora Dourada.

A luta antifascista entre anarquistas é a recusa ao fascismo, mas também é a afirmação da vida. Não podemos e não queremos estar ao lado de quem opera dispositivos de governo. Nesse sentido NÃO somos todas antifascistas, se nos juntamos a uma instituição criada para impedir que as pessoas transformem sua opressão em revolta.

Por essas e outras, os anarquistas sempre tiveram claro que não existe luta antifascista no interior da instituições. Derrotar o fascismo significa obstruir sua virtualidade contida em qualquer Estado, em especial nas instituições que racionalizam e operam o extermínio: a polícia, o exército, as prisões e todo sistema de justiça criminal. Além disso, a história das lutas anarquistas nos informam que, em muitos casos, a luta antifascista é uma tática utilizada por liberais democratas e socialistas autoritários para conter a radicalidade do nosso anticapitalismo e de nosso antiestatismo inegociáveis. E aí chegamos a nosso ponto: somos todos, realmente, antifascistas? O que pensar de operadores das instituições de extermínio e do racismo de Estado que declaram adesão às lutas antifascistas em momentos de recrudescimento autoritário do regime político? Pensamos, especificamente, nos que se autointitulam policiais antifascistas. Ser antifascista é viver uma vida não-fascista. Como viver essa vida quando se é um agente do Estado armado e autorizado a matar? Como conceber isso? Especialmente num país como o Brasil, onde a polícia carrega toda herança escravocrata e está estruturada segundo os regimes autoritários no país durante o século XX?

Por favor, não diluam suas causas a ponto de ir para a rua com uma turminha dessas.

Não precisamos nos aliar a mercenários armados, ensinados a obedecer sem questionar, com autorização legal para agredir e matar defendendo as desigualdades existentes em nossa sociedade. Podemos trabalhar em conjunto sob princípios de solidariedade e horizontalidade para atender às necessidades de nossas comunidades, resolver conflitos e nos defender mutuamente da violência autoritária – ou seja, da polícia, fascista ou antifascista. Não existe caminho para a liberdade que não seja através da liberdade aqui e agora. A única autonomia que construímos está nos nossos laços sociais e de solidariedade: se quisermos garantir nossa integridade física contra agressões, precisamos de redes de apoio mútuo capazes de se defender, precisamos construir autodefesa e autodeterminação, que é nossa forma de liberdade diante da abstrata e dependente ideia de segurança. Não queremos essa democracia securitária, queremos liberdade e autodeterminação: cada pessoa e comunidade agindo de acordo com sua consciência e responsabilidade coletivas, em vez da coerção inerente aos governos e aos agentes de segurança, pois estes são sempre externos aos conflitos e problemas que vida em sociedade inevitavelmente cria.

A luta antifascista deve ser aliada à luta pelo fim de todas as instituições estatais, principalmente as repressivas. Precisamos alimentar e expandir estruturas para tomada de decisão que promovam autonomia e, por fim, práticas de autodefesa que possam nos proteger daqueles que no futuro queiram se tornar nossos líderes, como nos ensinam os povos ameríndios em sua relação com as chefias. Da mesma forma que não existe luta contra opressão sem uma luta contra todo aparato policial e estatal, não existe espaço na luta antifascista para reformar uma economia capitalista, o Estado, sua polícia e suas prisões – e muito menos espaço para policiais em uma luta contra o fascismo. Se, como disse com razão um dos líderes do movimento de policiais supostamente antifascistas, a polícia é a gestão da polis, nós seremos ingovernáveis.

Não passarão: sejam polícias, sejam fascistas, ou ambos juntos.

1 In The Name of The People, LIAISONS

Crise política e Golpe de Estado em uma perspectiva anarquista – pt. 05 de 07

5. Dos levantes de 2013 ao golpe de 2016 – uma nova direita se ergue dos protestos populares.

“Na verdade, ao ouvir os gritos de alegria que vinham da cidade, Rieux lembrava-se de que esta alegria estava sempre ameaçada. Porque ele sabia o que esta multidão eufórica ignorava e se pode ler nos livros: o bacilo da peste não morre nem desaparece nunca, pode ficar dezenas de anos adormecido nos móveis e na roupa, espera pacientemente nos quartos, nos porões, nos baús, nos lenços e na papelada. E sabia, também, que viria talvez o dia em que, para a desgraça e ensinamento dos homens, a peste acordaria os seus ratos e os mandaria morrer numa cidade feliz.”

Albert Camus – A Peste.

A base social do golpe diz: “Nós ♥ a polícia!”

As ruas em disputa

Nos levantes de junho de 2013, multidões marchavam de forma incontrolável para cercar e invadir os palácios do Poder Legislativo e do Governo Federal com pedras e coquetéis molotov. O estopim havia sido o aumento das tarifas dos ônibus. O protagonismo era autônomo e horizontal nas ruas de todo o país, rompendo com o silêncio imposto por uma década de governo do Partido dos Trabalhadores. A luta levou a uma vitória inédita dos novos movimentos sociais autônomos em escala nacional, com pessoas se organizando para além das formas tradicionais dos movimentos, partidos e sindicatos. A descrença nos processos democráticos e na classe política como um todo era ainda mais forte, o que indicava que essa seria a chance de novas formas de políticas autônomas e da ação direta se tornarem as principais alternativas – a chance que anarquistas sempre esperaram para difundir suas metodologias.

Ao longo de décadas, as elites no governo (inclusive as da esquerda partidária e sindical) colaboraram para esvaziar, descontextualizar e depreciar a ideia em torno de “fazer política”. Este fazer, que ficou resumido à prática institucional, recuperou seu real significado: as pessoas ocupando as ruas estavam fazendo política em cada gesto, em cada escolha, em cada afeto. As manifestações se transformaram em um corpo vivo proporcionando uma experiência intensa e potente de construção coletiva. Para muitas pessoas que nunca haviam participado de protestos de rua, aquela foi a primeira vez em que saíram da “neutralidade” para demarcar uma posição, e elas nem sempre eram coesas: haviam vozes dissonantes e interesses diversos tanto em diálogo como em confronto e disputa. As elites conservadoras, principalmente, passaram a construir estratégias para cooptar as multidões e oferecer as soluções que muitas delas desejavam – como as saída do PT do governo. Desde então, as ruas voltaram a ser o palco de intensas disputas políticas no Brasil, tanto para quem queria justiça social, como para quem queria um regime mais autoritário.

20 de junho de 2013: faixas e mensagens contra o governo do PT e com um tom nacionalista eram vistas desde os primeiros protestos contra o aumento da passagem em São Paulo.

Em 2005, um esquema de corrupção organizado pelo alto comando do PT veio a público e manchou para sempre a imagem do partido, provando que ele era tão corrupto quanto qualquer outro. Após vencer as eleições, o governo de Lula não tinha maioria no Congresso e a solução encontrada pelos dirigentes do PT foi pagar uma mesada (o Mensalão) aos deputados para que aprovassem leis favoráveis ao governo. O escândalo envolvendo ministros, deputados, empreiteiros e empresários foi amplamente usado pela imprensa que achava possível destruir todo o apoio ao PT na eleições seguintes. Mas o plano não funcionou. Um novo agente político ainda fez a diferença para a reeleição de Lula nas eleições de 2006: as classes pobres e excluídas que foram beneficiadas por programas sociais nos primeiros anos do governo.

O escândalo do Mensalão em 2005 foi um ensaio para que as elites aprendessem como agir em 2016. Não foi possível neutralizar o PT quando enquanto ele ainda contava com vasto apoio das classes pobres e dos grandes movimentos sociais em meio a uma conjuntura econômica favorável. Os levantes de 2013 mostraram que o PT já não dialoga nem comanda a juventude rebelde ou as classes médias urbanas. E rapidamente a grande mídia usou esse momento de ruptura para cooptar a mensagem das ruas para um sentimento anti-PT. Na mesma época, a economia entrava em declínio e os escândalos de corrupção manchavam mais uma vez a imagem do partido no governo. Então, com esse contexto favorável, a direita e a burguesia entenderam que era preciso uma cooperação entre a Polícia Federal e o Poder Judiciário que investigava os escândalos, com a mídia fazendo uma cobertura tendenciosa e manipuladora das investigações. Outro elemento fundamental seriam os novos movimentos de direita compostos por jovens em sintonia com partidos conservadores nacionais e organizações do neoliberalismo internacional: eles seriam responsáveis por criar uma nova base social alinhada aos interesses da direita para dar legitimidade ao golpe como “uma demanda do povo”. A forma como isso se desenrolou em muito se parece com as Revoluções Coloridas que desestabilizaram a Ucrânia e a Síria nos últimos anos.

Tendo isso em mente, olhamos para as conquistas de 2013 como uma lição com acertos que fortaleceram os movimentos autônomos, mas também erros que abriram caminho para a regeneração da direita e do conservadorismo. Foi possível convidar novas pessoas para uma forma diferente de luta pautada na horizontalidade e sem partidos políticos. Muita gente viveu isso de maneira intensa. Mas erramos quando não conseguimos expandir a luta para além de demandas que apenas reformam o Capitalismo. Também não conseguimos impedir que parte das pessoas que estiveram nas ruas se interessassem pelos discursos da direita. Com um discurso imediatista, medidas de impacto a curto prazo e narrativas que mexem com os medos e inseguranças do cidadão médio urbano, a direita conseguiu avançar e convidar milhões para as ruas em protestos contra a corrupção (que segundo contava a mídia, ela havia sido inventada pelo Partido dos Trabalhadores).

Conservadores do mundo se unindo

Movimentos de direita emergindo logo após agitações populares não é um problema só do contexto brasileiro, mas uma tendência mundial nos últimos anos. Da Venezuela à Ucrânia, da Grécia aos Estado Unidos, grandes momentos de agitação popular levaram pessoas às ruas e tornaram manifestações e ocupações de espaços públicos uma ferramenta atraente para quem quer promover uma causa ou pressionar governantes. Observamos que, após muitos levantes de caráter autônomo, radical e horizontal, movimentos de direita e de extrema-direita, em diferentes países, se sentiram mais à vontade para aproveitar a revolta popular para ir às ruas difundir suas agendas.

Manifestantes de direita declaram apoio a Dolnald de Trump enquanto atacam Dilma Rousseff

No caso do Brasil, esses novos conservadores pegaram carona na onda de protestos que, obviamente, não ajudaram a criar, para difundir discursos de legitimidade para o golpe. Esses grupelhos disputaram por espaço nas ruas e atenção da nova geração de manifestantes e da mídia, para rapidamente começarem a organizar seus próprios protestos e construir uma base social. Desde o início, a nova direita é apoiada por instituições e think tanks financiados pelo 1% mais rico – a elite da elite nacional e internacional – para influenciar processos políticos em todo o mundo. Podemos falar um pouco mais das três principais organizações que foram decisivas para a renovação da direita no Brasil.

O movimento Vem pra Rua é liderado por Rogério Chequer, investidor milionário que morava nos EUA e é ligado à juventude do PSDB – a direita da social democracia burguesa. Voltou para o Brasil como empresário e publicitário e logo se tornou porta-voz do movimento que pedia a saída da presidente Dilma. Outro movimento de destaque é o Revoltados Online, que só aceita cristãos em sua diretoria, apóia políticos abertamente fascistas como o deputado Jair Bolsonaro, deseja a volta da ditadura militar e faz dinheiro com a venda de bugigangas anti-PT na internet.

O maior e mais obscuro é o Movimento Brasil Livre (MBL). Desde o nascimento, o grupo parece querer pegar carona na insatisfação popular: o nome é propositalmente criado soar semelhante ao do MPL (Movimento Passe Livre), e confundir quem procurar pela rede de coletivos autônomos e de organização horizontal que convidou os protestos que iniciaram os levantes de junho de 2013. Tendo à sua frente líderes jovens, o MBL pretende representar a “juventude que saiu do Facebook” para marchar nas ruas pela liberdade absoluta para o mercado, privatizações e o fim dos programas sociais.

O MBL foi criado em 2013, para ser o rosto público da organização Estudantes Pela Liberdade (EPL), fundada em 2012 como uma versão da Students For Liberty (SFL), dos Estados Unidos. Ambas são bancadas pela Atlas Network, uma rede composta por 11 organizações de direita patrocinadas pelos magnatas do petróleo dos EUA conhecidos como os irmão Koch. Quando membros do EPL quiseram participar dos protestos de rua, precisaram criar o MBL porque a legislação da receita federal estadunidense (IRS) não permite que as fundações participem de manifestações políticas. Segundo seu presidente, o objetivo da Atlas é “encher o mundo de think tanks que defendam o livre mercado”.

Logo após a saída de Dilma, o novo presidente Michel Temer convidou o MBL para ajudar com a comunicação do seu governo e tornar mais palatável as reformas impopulares que atacam a Previdência e os direitos trabalhistas – o movimento decidiu se afastar do governo que ajudou a erguer quando notou que os escândalos de corrupção tornaram impossíveis de serem encobertos.

As estratégias usadas por esses movimentos de direita se assemelha muito àquelas usadas para fazer campanha para Donald Trump nos EUA. O uso de notícias falsas, dados manipulados, discursos de ódio e polarizações sem qualquer profundidade política para erguer um ídolo e atacar inimigos tem sido útil para os trolls brasileiros, assim como foi para os americanos.

A Quimera da nova direita. (por Fagulha.org)

Pecisamos considerar o interesses desses movimentos e dos magnatas que os financiam em desestabilizar governos progressistas e preparar o terreno para políticas ultra liberais. Tais fatos não podem ser vistos como desconectados do contexto geopolítico global. Ainda em meio aos tumultos de 2013, o Wikileaks vazou documentos evidências de que o governo Obama espionava a presidente Dilma Rousseff, e especialmente a Petrobrás – uma das maiores empresas estatais petrolíficas do mundo. Logo após o golpe de 2016, o então ministro das Relações Exteriores do governo Temer iniciou procedimentos para acabar com a participação obrigatória do Brasil na exploração do petróleo, e entregar as reservas do pré-sal para multinacionais como a Chevron.

Não podemos ignorar o embate entre oriente e ocidente pelo petróleo brasileiro: a China, uma grande parceira econômica do Brasil nos últimos anos, pressiona para ter acesso às reservas enquanto empresas e o governo dos EUA voltam a atenção para o petróleo sulamericano – inclusive usando a espionagem. A Guerra Fria já se foi, mas forças internacionais disputam influência política ter acesso aos recursos naturais do país – herança colonial do paíse que nunca deixou de ser dependente da venda de commodities e mão de obra barata para o mercado externo.

Anarquistas e outros movimentos de resistência ao Capitalismo, precisam estar cientes dessas disputas globais travadas nos territórios onde construímos nossa resistência. Indígenas zapatistas que se levantaram em armas em 1994 em Chiapas, no México, sabiam que estariam em risco por declararem independência em uma terra rica em recursos naturais e minerais cobiçados pelo o capital mexicano e estadunidense. O mesmo tipo de desafio enfrenta a revolução de deflagrada em Rojava, no norte da Síria, ao pegar em armas pelo fim do capitalismo, do patriarcado e do colonialismo numa das regiões mais ricas em petróleo do mundo, totalmente imersa em conflitos internacionais pelo controle de suas reservas. No Brasil, a luta de povos indígenas, como os Mundurukus do Pará, é um exemplo de resistência contra o projeto de desenvolvimento econômico genocida retomado durante o governo PT: construir 8 usinas hiedrelétricas ao longo do rio Tapajós, destruindo comunidades, impactando o ambiente e ameaçando a vida selvagem. Os Mundurukus, povo guerreiro conhecido como “decepador de cabeças”, já ocupou e paralisou duas vezes a construção da usina de Belo Monte, no coração da Floresta Amazônica e prometem entrar em guerra contra a construção da usina de São Luís e pela demarcação de suas terras.

O capitalismo global, e seus centros de comando aglomerados nos países ricos do norte, estão dispostos a transformar qualquer território da periferia global em fazenda para alimentar suas economias – e neutralizar qualquer forma de organização popular que ameace seus interesses. O solo onde pisamos, o bioma em que vivemos, assim como nossos corpos, nossos desejos e nosso tempo é um campo de batalha entre colônias e metrópoles – quanto maior seu valor para o mercado, mais intensa é a batalha.

Como mostram as Zonas a Defender (ZAD’s), no território francês, é possível fazer da resistência aos projetos de infraestrutura do Capitalismo (aeroportos, barragens, usinas, estradas) o ponto de partida da nossa resistência política e econômica. Não só apenas nos opor ou bloquear seus projetos, mas erguer no meio dessas barricadas territórios livres do controle do Estado e do Mercado.

ZAD e Rojava: autonomia, liberdade e autogestão, contra o capitalismo e toda forma de opressão.

Continua…