Camarada Serge: notícias da revolta popular na França

As ruas da França estão em chamas desde que protestos e greves que começaram em janeiro se transformaram em um verdadeiro levante contra reforma da previdência social que visa aumentar a idade mínima de aposentadoria. A polícia comandada pelo governo de Emmanuel Macron tenta reprimir o movimento que já se tornou uma das maiores onda de protestos da atualidade e novos focos surgem em centenas de cidades.

No sábado, dia 25 de março, no oeste da França, um protesto de 30 mil manifestantes contra a construção de um reservatório de água em Sainte-Soline e seus dramáticos impactos sociais e ambientais culminou em mais repressão e violência policial. Um camarada conhecido com Serge foi atingido na cabeça por explosivos da polícia e teve atendimento negado pelos capangas de Emmanuel Macron. Abaixo, disponibilizamos a tradução de alguns comunicados e chamados de seus amigos e parentes.

Camarada internado e com risco de morte após a manifestação em Sainte-Soline

Nosso camarada S. foi atingido na cabeça por uma granada explosiva durante a manifestação contra reservatórios de água neste sábado, 26 de março, em Sainte Soline.

Apesar de seu estado grave, a prefeitura impediu conscientemente, em um primeiro momento, que os serviços de emergência interviessem e apenas depois de algum tempo o transportaram para uma unidade de atendimento apropriada. Ele está atualmente em terapia intensiva neurocirúrgica. Seu prognóstico vital ainda está comprometido.

A onda de violência sofrida pelos manifestantes deixou centenas de feridos, com vários atentados graves à integridade física, conforme anunciado pelos diversos relatórios de informação disponíveis. Os 30.000 manifestantes tinham o objetivo de bloquear o local da megabacia [grandes reservatórios de água destinados à agroindústria] de Sainte-Soline, um projeto de apropriação privada de água por uma minoria em benefício de um modelo capitalista que não tem mais nada a oferecer além de morte. A violência do braço armado do estado democrático é a expressão mais clara disso.

Logo em seguida do movimento contra a reforma da previdência, a polícia mutila e tenta assassinar para impedir a sublevação, para defender a burguesia e seu mundo. Nada impedirá nossa determinação em acabar com o reinado deles.

Na terça-feira, 28 de março, e nos dias seguintes, vamos fortalecer as greves e bloqueios, sair às ruas, por S. e todos os feridos e presos de nossos movimentos.

Vida longa à revolução.

Camaradas de S.

PS: Se você tiver alguma informação sobre as circunstâncias dos ferimentos infligidos a S., entre em contato conosco: s.informations@proton.me

Gostaríamos que este comunicado fosse distribuído o mais amplamente possível.

Traduzido do Francês

Polícia sob ataque dos manifestantes em Sainte-Soline, 25 de março de 2023.

Comunicado dos Pais de Serge (S.) em 29 de março de 2023

Esta é a tradução de uma declaração dos pais de um ativista que permanece em coma cinco dias após a violência policial em Sainte-Soline.

Após o ferimento causado por uma granada GM2L, durante a manifestação de 25 de março de 2023 organizada em Sainte-Soline contra os projetos de bacias de irrigação, nosso filho Serge está atualmente em um hospital lutando por sua vida.

Apresentamos queixa por tentativa de homicídio e obstrução voluntária à chegada dos serviços de emergência e por violação de segredo profissional no âmbito de inquérito policial e apropriação indébita de informação constante do arquivo para tal.

Na sequência dos vários artigos publicados na imprensa, muitos dos quais imprecisos ou enganosos, gostaríamos de dar a conhecer que:

  • Sim, Serge está na lista “S” (lista de observação da “Segurança do Estado”) – como milhares de ativistas na França de hoje.

  • Sim, Serge teve problemas legais – como a maioria das pessoas que lutam contra a ordem estabelecida.

  • Sim, Serge participou de muitas manifestações anticapitalistas – como milhões de jovens em todo o mundo que acham que uma boa revolução não seria demais e como milhões de trabalhadores que lutam atualmente contra a reforma previdenciária na França.

Acreditamos que esses não são atos criminosos que manchariam nosso filho, mas, ao contrário, esses atos são creditados a ele.

Os pais de Serge
29 de março de 2023

Vídeo sobre a Batalha das Mega Bacias em Sainte Soline: legendas em português disponíveis.

 


Uma atualização sobre Serge

Apresentamos uma segunda declaração escrita pelos companheiros e próximos de Serge, divulgada na quarta-feira, 29 de março.

Enquanto nosso camarada Serge continua lutando pela vida que o Estado tentou tirar dele, estamos testemunhando uma nova onda de violência contra ele. A mídia está tentando retratá-lo como um homem que deveria ser fuzilado. Hoje, ele ainda está em coma, em estado crítico. Enviamos nossa solidariedade a Mickaël e a todos que sentiram a força bruta da violência policial cair sobre eles.

A mídia burguesa continua repetindo incessantemente palavras cuidadosamente escolhidas pelo Estado para construir, do nada, o inimigo que quer combater. Sua fachada falsa vai desmoronar diante das muitas narrativas que corrigiram e reescreveram o curso dos acontecimentos. A polícia usou granadas com o objetivo específico de causar danos físicos e mentais aos manifestantes; eles são responsáveis ​​por impedir que os socorristas evacuem os feridos, mesmo que isso signifique deixar nossos camaradas morrerem.

Os serviços de inteligência têm distribuído livremente as informações que coletaram sobre Serge para redações em todo o país. O objetivo deles é nos obrigar a nos definirmos nas palavras usadas pela polícia. Aqui, não vamos nos envolver com as versões deliberadamente abreviadas da identidade de Serge que a polícia tem circulado. Não acreditamos que qualquer verdade sobre ele possa ser encontrada nos arcanos da propaganda estatal e da mídia. Como revolucionário, Serge tem participado com todas as suas forças e por muitos anos em muitas lutas de classes contra a nossa exploração, sempre com vistas à ampliação e fortalecimento da vida e vitória do proletariado.

E, de fato, não podemos nos deixar esmagar.

Apelamos a todos aqueles que o conhecem para dizer aos outros ao seu redor quem ele é. Lembre-se: Serge, em luta, recusa a estratégia do estado de separar bons e maus manifestantes. Com ele e para ele, defendemos esta linha.

Na terça-feira, 28 de março, pessoas de todos os lugares se comprometeram a mostrar sua solidariedade ao movimento contra a reforma previdenciária na França. Também recebemos muitas mensagens de camaradas internacionais. Nós os agradecemos calorosamente e os encorajamos a continuar e apoiar o movimento. Mais ações já estão planejadas e encorajamos as pessoas a se juntarem e multiplicarem sem restrições, na França e no resto do mundo.

Queremos que este comunicado seja compartilhado o mais amplamente possível.

PS: Há muitos rumores sobre a condição médica de Serge. Não os compartilhe. Nós manteremos você atualizado.

Para entrar em contato conosco:

s.informations@proton.me

Camaradas de S.

Revolta na região peruana: Entrevista com companheir@s da Editorial Ande 

 

“Mais do que misturar espontaneidade com a defesa de Castillo, ou independência política de classe com sua subordinação a um caudilho, parece-nos que o processo atual, com todas as suas limitações, é um momento crucial. Não tanto pelos propósitos do movimento, mas pelo que ele representa em termos de experiência e aprendizado para a classe trabalhadora.”   

Em 7 de dezembro de 2022, Pedro Castillo foi afastado do cargo de presidente do Peru, após tentar fechar o Congresso, em meio a disputas entre a casta política e suas diferentes instituições, assumindo em seu lugar a então vice-presidente Dina Boluarte (que pertence ao mesmo partido político de esquerda  do presidente deposto, Peru Libre). Ao longo dos dias, isso desencadeou uma onda de protestos que até hoje mantêm um nível muito alto de conflito social, deixando já mais de 60 pessoas assassinadas nas mãos de uma repressão estatal extremamente brutal, com vários massacres em suas mãos (a mais violenta até agora, a de Juliaca, ocorreu em 9 de janeiro, e custou a vida de pelo menos 18 manifestantes).

Seria um grave erro classificar o atual movimento somente a partir da defesa exclusiva do ex-presidente: a agudização da luta de classes na região peruana expressa, com seus limites, o cansaço pelas sufocantes condições de vida em geral da população e da institucionalidade política.

 Nesse sentido, compartilhamos esta entrevista com o grupo Editorial Ande [1] – a quem agradecemos por ter tempo para nos responder- que fornece informações cruciais e uma análise lúcida da situação naquela região, contextualizando nacional e internacionalmente a situação atual ciclo de protestos, explicando sua gênese, avaliando seus limites e projeções, esclarecendo o panorama da luta de classes em geral, incluindo as lutas internas da classe capitalista e seus representantes políticos à direita e à esquerda.

Incentivamos a sua leitura, discussão e divulgação.                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                 

1- No Chile, os setores antagônicos têm acompanhado de perto as notícias vindas do Peru,  que impressiona pela massividade das mobilizações e pelo alto nível de repressão estatal. Em particular, há algumas semanas aconteceu a chamada Marcha de los Cuatro Suyos. Em que consistia, quais eram os seus objetivos e alcance, e como tem sido a repressão?

Saudamos o interesse em querer desvendar o processo de luta de classes que vem se desenvolvendo nos últimos meses no Peru e agradecemos também pela entrevista. É bem verdade que o nível de repressão se tornou mais agudo, sendo maior do que o registrado nos últimos anos em outros países latino-americanos. A repressão no Peru, ao que nos parece, só é superada pela ocorrida na Colômbia, no contexto dos protestos de 2021 contra a reforma tributária de Iván Duque. Embora seja importante destacar que no Peru beiramos 2.000 feridos e mais de 60 mortos em apenas 2 meses, enquanto o massacre na Colômbia durou mais de 1 ano quando os membros da primera línea ainda estavam reprimidos. Se a repressão estatal continuar ou se intensificar como se tem visto até agora, isso poderia ser facilmente comparado ao que foi exercido pelas ditaduras latino-americanas dos anos 1970.

Um esclarecimento, a  Marcha de los Cuatro Suyos foi realizada em 2000 contra a ditadura cívico-militar de Alberto Fujimori. Justamente por isso, a atual marcha de 19 de janeiro foi chamada de 2ª Marcha de los Cuatro Suyos. A razão é muito geral: em ambas as datas houve uma concentração massiva de mobilizações desde regiões do interior do Peru até a capital Lima e lutaram contra políticos que assumem explicitamente a gestão do poder estatal de forma autoritária. Também foi chamada de “Toma de Lima”, embora nos interesse apontar que os aspectos fundamentais da luta não têm muito a ver com tais rótulos.

A marcha foi antes de tudo diversificada, massiva e desorganizada. Era formado essencialmente pela classe trabalhadora do campo e da cidade, e também estudantes. O proletariado das regiões de Puno, Ayacucho, Arequipa, Cusco, Apurímac, viajaram para Lima dias antes da marcha, sendo interceptado e intimidado pela polícia nas estradas ou bairros a caminho da capital. Apesar desses obstáculos, a grande maioria das delegações chegou ao seu destino. Aproximadamente 50.000 manifestantes se mobilizaram em Lima. Havia pelo menos três rotas de marcha. Uma que se mudou para o Kennedy Park, ou seja, para Miraflores, bairro conhecido por ser o centro de operações e residência tradicional de um amplo setor da burguesia de Lima. Outro caminho traçado pela Confederación General de Trabajadores del Perú (CGTP), que consistia em realizar um desfile pelas avenidas Grau, Abancay e Nicolás de Piérola para finalmente retornar à praça 2 de Mayo. Outro grande fluxo de manifestantes autoconvocados se dirigiu ao Congresso, que estava protegido pela polícia nacional, e por isso acabou enfrentando a polícia no cruzamento das avenidas Abancay e Nicolás de Piérola.

O baixo nível de organização refletiu-se na dispersão das marchas e dos diferentes percursos, mas sobretudo porque não foi formulada uma estratégia ou objetivo comum. Em muitos casos os grupos limitaram-se a cumprir os percursos traçados; em outros, os manifestantes se aproximaram das dependências dos meios de comunicação, ou perto das casas de políticos, ou burgueses para demonstrar seu descontentamento. Um contingente maior buscava chegar ao Congresso.

Em relação à repressão, é importante destacar que ela se concentra e tem se concentrado no parte sul do país. Em Lima houve uma forte repressão, mas não houve aniquilação direta da classe trabalhadora como em Juliaca, Ayacucho ou Andahuaylas. Sim, houve dezenas de detidos. Em outras regiões como Cusco, Puno e Arequipa houve tentativas de tomar o aeroporto. E nesta última região houve até um óbito.

 

2- Qual é o pano de fundo dessa onda de protestos que parece estar em ascensão? Como avalia este movimento no contexto global de crise, atualmente marcado pela guerra e pelo recente ciclo de revoltas?

 O cenário das lutas atuais no Peru se desenvolve como um momento de luta de classes em todo o mundo, determinado pela crise do capital. Observamos uma recessão técnica por dois trimestres consecutivos, principalmente nos ramos produtivos de países imperialistas como Estados Unidos, Alemanha e Inglaterra. Da mesma forma, a taxa de desemprego é gerada em ramos específicos dos setores de hidrocarbonetos, mineração, gás e plantas de petróleo, tendo em conta o aumento do emprego no setor de serviços. Há também altas taxas de inflação, principalmente nos setores de alimentação e habitação, aspectos que mais atingem a classe trabalhadora. Atrelado a isso, a guerra interimperialista, imanente à crise, Leva a um aumento no preço do petróleo e do gás gerando um efeito dominó nos preços dos produtos em todo o mundo. A escassez de fertilizantes se traduz em menor produção nos setores agrícolas em todo o mundo, enquanto as grandes empresas ligadas ao processamento e venda de combustíveis e aos bancos quebram ou entram em crise.

O Peru é um país que depende da importação de combustíveis, fertilizantes e alimentos; por outro lado, sua economia primário-exportadora o torna sensível a choques econômicos externos. Assim, todo esse aumento de preços vem afetando diretamente o custo de vida de sua população. Por exemplo, quando o custo do transporte aumenta, todas as mercadorias transportadas aumentam seus preços. A falta de fertilizantes leva a uma produção menor e seus altos custos aumentam o preço dos produtos agrícolas. Juntos, sua moeda é desvalorizada, entre outros fatores, pelo aumento da inflação e pela elevação dos juros pelo Reserva Federal dos Estados Unidos, tendo seus efeitos mais agudos nos últimos meses. A isto podemos acrescentar que o impacto da guerra teve um efeito contrário ao esperado, reduzindo o preço dos metais. Tudo isso gerou um aumento da inflação de mais de 2 pontos, atingindo o maior nível em 26 anos com 8,46% e mais de 15% nos alimentos. Isso faz com que produtos básicos para o consumo da classe trabalhadora, como a batata, por exemplo, aumentem seu preço em mais de 100%. O crescimento do Produto Interno Bruto em 2022 vem diminuindo, com queda de 3,8% para 1,7% no último trimestre.

Nesse cenário se localiza o processo de lutas interburguesas dentro do Estado que se desenrola de forma mais transparente desde 2016. Isso é muito bem visualizado com a destituição de presidentes e no confronto entre os poderes do Estado. Esse processo arrasta a classe trabalhadora a se posicionar pelas frações burguesas. No entanto, 2020 apresentou um cenário em que o proletariado da agroexportação do litoral sul e norte do país se levantou em greve. Foi um passo dos enfrentamentos interburguesas para um claro processo de luta de classes. A causa direta foi a tentativa de ampliação de um regime trabalhista para agroexportadores que foi instalado no governo Fujimori (2000) e que só flexibiliza e precariza o proletariado. Contratos temporários, utilização de services, estabilidade zero no emprego, salários reduzidos, etc., são características desse sistema de trabalho. No entanto, esse processo esteve ligado à pandemia, onde vimos claramente como o Estado beneficiou abertamente a burguesia e, da mesma forma, as disputas interburguesas no Peru que revelaram a corrupção e os interesses dos representantes da burguesia no Estado. Não se tratava apenas de uma eclosão da luta de classes, vinculada de forma temporária, mas de forma essencial. Essas disputas entre a burguesia abrem um cenário propício para que as lutas do proletariado explodam. Um cenário semelhante se apresenta agora. Passamos dos conflitos interburgueses para a luta de classes, onde o proletariado busca derrubar representantes da burguesia no Estado, embora no momento seja apenas uma mudança de tais representantes.

 

3- Nos primeiros dias, o movimento parecia se expressar com intensidade diferente nas províncias em relação a Lima. O que explicaria isso? Como esse fenômeno se desenvolveu?

As lutas foram mais ativas nas regiões fora de Lima, no começo e agora mesmo. Os trabalhadores das regiões mais agitadas, como Apurímac, mantêm uma renda mensal de S/. 714 de Puno com uma renda média de S/. 805. Isso equivale a 189 e 213 dólares por mês, respectivamente, embora sendo a média é certo que esse rendimento é ainda menor para os mais pobres. Na região sul peruana, destaca-se também o alto índice de anemia em crianças, com incidência em torno de 50% em Apurímac e Ayacucho e 70% em Puno. São esses trabalhadores explorados e precários no processo de acumulação do capital imperialista vinculados às mineradoras que saem às ruas para lutar. A indignação cresceu de sul a norte, impulsionada pelos trabalhadores da cadeia de montanhas da região sul, que tem uma grande história de luta, aos poucos foram convocados diferentes setores e regiões, o movimento se expandiu para incluir a própria Lima, tradicionalmente conservadora.

 

4- Vimos que a imprensa burguesa tem sido particularmente hostil às manifestações (“Isto é terrorismo”, “A polícia defende o Peru”, “É violência política, não é protesto social”, são algumas das manchetes que viram depois da marcha para Lima). Existem elementos específicos que explicam esse comportamento ou é apenas uma continuação de seu tradicional papel criminalizador?

A imprensa atual no Peru, como em grande parte da América Latina, é controlada e concentrada por um punhado de famílias. O Grupo El Comercio da família Miró Quesada controla aproximadamente 80% da imprensa escrita e um domínio na imprensa digital com 28% da mídia disponível nesse setor. Em dois de seus jornais mais populares, como Peru 21 e Trome, os trabalhadores que se manifestaram foram diretamente acusados de serem terroristas. O veículo de extrema-direita Willax, que pertence a corporação Erasmo Wong, é ainda mais obstinado no “terruquear”, pedindo abertamente para “atirar na cabeça” dos manifestantes. A partir desses grupos de imprensa constituinte e intimamente ligados à grande burguesia do Peru, que vem se espalhando a ideia de que quem se manifesta é vândalo ou terrorista. Esta posição nada mais é do que a expressão de seus “tradicionais” interesses de classe em um momento de agudização da luta de classes. Assim como os níveis repressivos se agudizaram diante da irrupção do proletariado, o papel da grande imprensa teve um movimento semelhante, tentando dar legitimidade à repressão estatal diante da opinião pública. Assim, o principal elemento para explicar a posição da grande imprensa é o próprio processo de luta e o medo gerado nos setores burgueses pela ação direta dos trabalhadores.

 

5- Qual tem sido a participação das minorias revolucionárias, anarquistas ou comunistas, durante o desenrolar destes dias?

 Em Lima verificamos a participação de anarquismos libertários, comunismo tradicional dos PCs e organizações social-democratas em geral. Certamente, existem minorias de ex-trotskistas, maoístas da velha guarda que deixaram suas antigas posições e assumiram uma posição revolucionária. Além disso, há novas organizações mais próximas das leituras da esquerda comunista alemã, holandesa e italiana, refeitas com a influência da Neue Marx-Lektüre e suas diversas vertentes. Mais tarde, anarquistas individualistas e marxistas com posição de classe, mas amplamente dispersos, têm participado também. Embora em geral, infelizmente, o grosso das organizações em marcha seja de tendência reformista e proclame como medida máxima a Assembleia Constituinte.

 

6- Qual tem sido o papel desempenhado pelas organizações mais tradicionais, como partidos de esquerda, sindicatos ou organizações indígenas?

 A maioria dos partidos de esquerda no Peru há muito se caracteriza por uma prática e um programa parlamentarista e reformista. Este procedimento se refletiu no apoio constante ao governo Castillo, que em nenhum momento representou alternativa alguma — como toda alternativa burocrática e parlamentar— para a classe trabalhadora. Basta recordar as lutas de março-abril que aconteceram em Junín, Ica, Cajamarca e outras regiões, devido à crise econômica desencadeada pela guerra russo-ucraniana e o correspondente aumento dos preços dos combustíveis e fertilizantes. O ex-presidente ignorou as reivindicações dos trabalhadores, chamando-os de valentões pagos pela direita, o que foi seguido por alguns partidos de esquerda como o Izquierda Socialista; enquanto isso, a maioria deles — como Patria Roja, ML 19 e Movimiento por la Unidad Popular— entenderam os acontecimentos como uma “traição” por parte de Pedro Castillo rumo as promessas de uma Assembleia Constituinte e de uma verdadeira alternativa popular e de esquerda, com uma menção tangencial ou nula ao contexto econômico mundial e muito menos ao proletariado como sujeito revolucionário.

Essa visão estreita da esquerda voltou a se manifestar nas lutas atuais. No plano teórico, encontram como motor das lutas atuais um processo de democratização que emergiu “de baixo”, cujos objetivos são a inclusão total de todos os membros da sociedade no jogo da democracia, cuja expressão seria a convocação a novos eleições e a tão aclamada — de maneira mais eufórica e repetitiva por esses partido  exclusivamente— a Assembléia Constituinte. No nível prático, eles têm divulgado suas proclamações parlamentares nas marchas e querendo se apropriar e direcionar à vontade o impulso subversivo dos trabalhadores. Como pode ser visto nos processos políticos do Chile e da Colômbia, a canalização das lutas para uma solução parlamentar — por meio de uma Assembleia Constituinte ou por meio da eleição de um novo presidente de esquerda, respectivamente — não faz mais do que atenuar e apaziguar os esforços dos trabalhadores, essa é a sua verdade natureza: são a esquerda do capital, reformistas, conciliadores de classes — quando não negam justamente a existência das classes —, não buscam a emancipação dos trabalhadores

Quanto aos sindicatos, eles têm uma relação estreita com os partidos de esquerda descritos acima. É o caso da Confederación General de Trabajadores del Perú (CGTP), que ao longo desses processos de luta manteve o mesmo discurso da Assembleia Constituinte e inclusive explorou a possibilidade de participar de uma Reunião de Acordo Nacional com a Presidenta Dina Boularte, que muito provavelmente teria sido realizado se não fosse o massacre de 18 manifestantes em Juliaca, Puno. É evidente o radicalismo dos trabalhadores, que se levantaram e se organizaram pelos seus próprios meios, ao qual pela mesma força das circunstâncias se somam a esquerda reformista e os sindicatos a ela alinhados.

7- Qual é a composição do movimento? Quão heterogêneo é? Tem traços de autonomia e espontaneidade ou limita-se a apoiar Pedro Castillo? Ou até que ponto as duas coisas se misturam?

 Em termos geográficos, o movimento é liderado principalmente por trabalhadores do campo da cidade de Central Sierra e do sul do país. A mobilização na capital é bastante pequena e tende a ser composta por universitários e setores mobilizados pelos partidos políticos da esquerda reformista, além de pequenos grupos de orientação diversa e autoconvocados. Estes últimos são os mais ativos nas tarefas de autodefesa que ocorrem nos confrontos com a polícia. Em termos gerais, a maioria dos manifestantes são trabalhadores (empregados ou desempregados, rurais ou urbanos). Onde uma certa heterogeneidade se manifesta é nos vários slogans que se agitam e na perspetiva estratégica que se defende. Os principais slogans são: a convocação de novas eleições, o que significaria uma mudança de poder executivo e legislativo; a convocação de uma Assembléia Constituinte e a renúncia de Dina Boluarte. Inicialmente, houve setores mais ligados ao antigo governo que agitaram —e continuam agitando— o pedido de libertação de Pedro Castillo e sua reintegração como presidente da república. Com o passar do tempo, esse pedido foi perdendo força, pois a tendência predominante é um descontentamento generalizado com o funcionamento das instituições burguesas. A principal limitação reside no fato de que a crítica do quadro institucional e dos partidos políticos burgueses ainda não foi capaz de reconhecer o papel desempenhado pelo reformismo e pela esquerda do capital na reprodução da miséria. Isso dá a políticos como Pedro Castillo alguma margem de manobra enquanto tentam capitalizar o descontentamento dos trabalhadores. Mas de forma alguma se pode dizer que a mobilização se limita a apoiá-lo. Essa confusão ocorre porque a saída de Pedro Castillo foi efetivamente o estopim das mobilizações. Mas seria um erro limitar-se a este evento e não analisar o contexto geral marcado pela crise e pela crescente decomposição das instituições burguesas. Mais do que misturar espontaneidade com a defesa de Castillo, ou independência política de classe com sua subordinação a um caudilho, parece-nos que o processo atual, com todas as suas limitações, é um momento crucial. Não tanto pelos propósitos do movimento, mas pelo que ele representa em termos de experiência e aprendizado para a classe trabalhadora.

 

8- Para onde é mais provável que o movimento se dirija? Quais são suas projeções? Tem perspectivas comunistas que poderiam ser desenvolvidas?

Falar de uma perspectiva comunista dirigindo o atual processo no Peru é um exagero e uma impossibilidade a curto prazo, devido às condições ideológicas da classe trabalhadora e à feroz criminalização contra o comunismo e as ideias revolucionárias. No entanto, o Peru é um país de extremos, se por um lado a direita parasitária tomou o poder por mais décadas do que em outros países latino-americanos, não deixando espaço para ação — mesmo para soluções reformistas —; por outro lado, nossa história de lutas foi marcada por grupos radicais que se levantaram contra o Estado. O terreno político peruano não tem sido propício ao desenvolvimento de um progressismo duradouro, entre outras coisas, devido ao nível de vínculos entre a burguesia e o imperialismo e porque a violência capitalista é muito profunda. Esse panorama desanimador foi revertido nas últimas marchas no Peru porque o que acaba sendo questionado, além das aspirações reformistas, é o Estado e a própria propriedade burguesa. Ou seja, o movimento da luta de classes no Peru expressa vozes conscientes do essencial. Nesse contexto, nasceu nosso grupo, sólido em princípios e com objetivos claros; acreditamos, por nossa experiência, que a classe trabalhadora exige e precisa do necessário desenvolvimento de um caminho revolucionário que só é possível por meio de sua associação como classe.

 

9- Em relação à casta política, como ela está enfrentando a crise? Está dividida? Existem partidos ou grupos que apoiam as manifestações? Existe uma clara diferenciação pontual entre esquerda e direita?

A casta política no Peru está aparentemente dividida. Ou seja, embora existam setores da direita e até mesmo da “extrema direita” fujimorista que apoiam as eleições antecipadas e a saída de Dina Boluarte, na prática todos eles, inclusive os partidos de esquerda, querem canalizar a mobilização dos trabalhadores para canais institucionais. Enquanto uns propõem uma Assembleia Constituinte e outros apenas eleições, e se envolvem em “grandes polémicas” no parlamento sobre essas diferenças que se apresentam como antagonismos irreconciliáveis; em termos reais, todos os partidos políticos querem restabelecer a calma política que garanta a plena continuidade da acumulação do capital. Assim, explica-se que não só a esquerda apoia as manifestações e que há centristas e até liberais participando da mobilização. Claro, enfatizando a necessidade de não violar a propriedade privada e o respeito à autoridade. Neste sentido, pode dizer-se que não existem diferenças substantivas, embora a nível imediato existam.

11- Como a solidariedade internacional poderia ser efetiva contra a repressão brutal e o eventual desenvolvimento de perspectivas anticapitalistas dentro do movimento na região peruana?

A luta de classes é um fenômeno mundial porque o próprio modo de produção capitalista o é; a ofensiva desse modo de produção vem crescendo e transformando em elementos de acumulação todas as esferas em que nos desenvolvemos. Estamos cientes de que a luta do proletariado está eclodindo em diferentes espaços e regiões, dadas as consequências da crise mundial. Tal solidariedade internacional deve se expressar na unidade dos trabalhadores em seus países e na formação de vínculos entre seus setores mais organizados, porque, apesar de existirem mediações concretas nas nações, as causas de nossa luta encontram-se nas tendências e contratendências do modo de produção capitalista. O proletariado peruano vem se esclarecendo no processo de luta com o aperfeiçoamento de seus métodos de luta e o aperfeiçoamento de suas organizações; no entanto, o reformismo ainda se impôs como a principal saída da crise devido à continuidade difusa das tarefas democrático-burguesas que desempenharam durante os últimos 50 anos. Diante disso, uma verdadeira solidariedade internacional dos grupos revolucionários deve ajudar a revelar o fracasso da social-democracia em suas tentativas de instalar e difundir soluções ilusórias para a classe proletária e, por outro lado, posicionar-se contra a violência policial e as políticas intervencionistas dos imperialismos. Colocar as coisas em seus termos reais é contribuir para o caminho necessariamente revolucionário dos trabalhadores em todo o mundo.

[1]     O grupo se apresenta como “uma editora comunista que traduz, edita, imprime e publica livros de diversos gêneros e saberes de diversas partes do mundo, sempre vinculado a pensar a sociedade e buscar transformá-la”.

 

Entrevista retirada do site dos companheiros do Vamos hacia la vida, realizada em 14 de fevereiro de 2023.

PORQUE 2013 AGORA? – Novo vídeo por Antimídia

É cada vez mais comum ver pessoas e organizações de esquerda defenderem uma narrativa que busca responsabilizar as Jornadas de Junho de 2013 pela ascensão do fascismo bolsonarista, traçando paralelos entre o uso da tática black bloc e os ataques fascistas em Brasília no dia 8 de janiero de 2023. Há quem defenda que junho de 2013 teria sido orquestradas por forças ocultas para desestabilizar o governo de esquerda.  Mas essa versão não se sustenta quando analisamos o contexto de greves e movimentos sociais no período.
Assista ao vídeo editado por Antimídia, compatilhe, difunda e debata:

Não começou em 2013, não vai terminar em 2023

2013 foi o auge de uma série histórica de protestos, paralisações e ocupações que vão de 2011 a 2016, segundo uma expressão local e tendências globais derivadas da crise de 2008. Foi um ano de lutas populares, no qual houve o maior número de greves desde o fim da ditadura civil-militar (1964-1985). Foram mais de duas mil greves. Mil e cem apenas no setor privado. Aderiam a essas manifestações trabalhadores que não viam mais os sindicatos como seus representantes e que procuravam deixar manifesta sua insatisfação com a situação e a precariedade das condições de trabalho e vida. Várias categorias entraram em greve de forma autônoma, contrariando seus próprios sindicatos.

Os governos petistas alimentaram uma insatisfação popular ao gastar bilhões em megaempreendimentos, como a hidrelétrica de Belo Monte e as obras do Programa de Aceleração do Crescimento, da Copa do Mundo e das Olimpíadas, que levaram à remoção de comunidades periféricas e povos indígenas de suas terras. A esquerda vivia seu delírio de grande nação desenvolvimentista. E para garantir que a nação se desenvolvesse em direção ao progresso foi mobilizada a presença cada vez mais militarizada do Estado nas favelas, periferias e regiões onde habitam povos tradicionais. Muitas dessas obras incentivaram ainda mais o uso do automóvel, o que impulsionou movimentos orgânicos em defesa do transporte público e livre de tarifas e catracas, por mobilidade urbana e em defesa dos espaços públicos.

E enquanto a gestão do PT levou alguns movimentos sociais para dentro das instituições, por meio de conselhos participativos que nada decidem, tirando deles o papel de pressionar o Estado por mudanças, a característica autônoma e horizontal desses novos movimentos os tornou mais atraentes para a atuação política das pessoas, seguindo uma onda global do período de recusa da representação. Em todo planeta se dizia; “Não nos representam!”. Eles ganharam corpo e adesão popular por abordar o que era esquecido pela esquerda no governo, que a solução não era uma mera questão de gestão do neoliberalismo, e exigiam mudanças mais radicais.

Repressão e violência de Estado

Ao se confrontar com manifestações horizontais, sem lideranças definidas e que se recusavam a ser assimiladas, as organizações da esquerda brasileira descobriram que estavam desconectadas das demandas populares e começaram a atacar e deslegitimar a revolta. A maior parte dos partidos de esquerda lançou notas se desvinculando e criticando a ação de supostos anarquistas. Alguns inclusive ajudaram os aparatos de repressão do Estado e entregando pessoas à polícia.

O governo do Partido dos Trabalhadores e seus aliados não hesitaram em responder à indignação popular com criminalização através do aparelhamento das polícias e da aprovação de uma lei antiterrorista. Lei que tem pouco sentido em um país cuja única prática terrorista foi, e continua sendo, o terrorismo do Estado. No entanto, respondia-se a mais uma demanda internacional para a realização dos megaeventos.

Um povo que se volta contra aquele que diz ser o “governo do povo” não poderia ser um povo. A filósofa Marilena Chaui disse numa palestra para Policiais Militares do Rio de Janeiro que quem aderia à tática Black Bloc era fascista. Para tais intelectuais, até hoje, 2013 não foi uma revolta popular, mas o início do fascismo brasileiro.

Dentro dessa lógica, parte da esquerda vê 2013 como o início de uma reação das classes médias privilegiadas às conquistas sociais alcançadas durante os governos do PT, manipuladas para servir aos interesses dos inimigos imperialistas de sempre. Para inserir esses contratempos em uma narrativa global, se adotou a noção de “guerra híbrida”.

Guerra híbrida?

Guerra híbrida é um conceito, cunhado por militares estadunidenses. Uma primeira referência à expressão aparece em um artigo de 2005 escrito pelo general James Mattis e pelo tenente-coronel Frank Hoffman, ambos das forças armadas dos EUA, cujo objetivo era projetar cenários de guerras futuras. A expressão-conceito foi popularizada ao descrever as ações da Rússia durante a anexação da Crimeia em 2014. A intenção era criar na esquerda uma repulsa a mobilizações populares. Para isso difunde-se a ideia de que todas as manifestações e lutas contra opressões, como as lutas antirracista, feminista e da comunidade LGBTQIA+, assim como manifestações autônomas e contra a política representativa e as instituições, seriam na verdade demandas implantadas por governos imperialistas para desestabilizar governos.

Essa narrativa vem do livro Guerras Híbridas, que fez sucesso com a esquerda brasileira depois de 2013. Seu autor, Andrew Korybko, é um analista politico que se alinha às políticas do Estado russo e seus interesses geopolíticos. Ele defende o regime fascista de Viktor Orbán na Hungria e o AfD, partido alemão de extrema direita. Em 2016 apoiou a candidatura de Donald Trump à presidência dos Estados Unidos, para “acabar com o totalitarismo do politicamente correto”.

Korybko estrutura seu livro no pensamento geopolítico de Aleksandr Dugin, intelectual russo, conservador e cristão, que é uma das principais influências do Presidente russo Vladimir Putin. Foi Dugin que fundou o Partido Nacional-Bolchevique depois do fim da União Soviética, uma vertente do fascismo conhecida como nazbol. O nome é homenagem ao nazismo e ao comunismo bolchevique, que um dia, segundo ele, serviram de contraponto à expansão dos Estados Unidos. O símbolo do partido é similar à bandeira nazista, mas com uma foice e martelo pretos em vez da suástica no centro.

Misturando elementos do comunismo com outros da extrema-direita, busca seduzir pessoas da esquerda para um projeto político que é essencialmente fascista. Muito de seu programa pode parecer atraente para pessoas libertárias e de esquerda – pois é anticapitalista e anti-imperialista; elogia aspectos de sociedades e tradições não-ocidentais e pré-coloniais ao mesmo tempo em que condena o Estado-Nação. Essas posições – por mais necessárias que possam ser para um programa radical de esquerda – não são nem boas nem más em si mesmas; antes, são instrumentos, ferramentas para a criação de um novo mundo.

A influência de Dugin vai desde o coordenador de campanha de Trump, Steve Bannon, até o filósofo do Bolsonarismo, Olavo de Carvalho, com o qual colaborou.

Guerra midiática

As jornadas de junho de 2013 contaram com a presença popular massiva. As pessoas que protestavam em peso eram, claramente, das camadas excluídas, camelôs, moradoras de rua, faveladas, trabalhadoras precarizadas e, claro, boa parte da chamada classe média.

Ao perceber a escala das manifestações, a grande mídia considerou que a insatisfação popular poderia ser manipulada discursiva e midiaticamente. Mas mesmo com os ataques diários da imprensa corporativa, o apoio popular não parava de crescer em solidariedade contra brutalidade da violência Estatal. A tática black block, que embora não fosse novidade, ganhou destaque em meio aos protestos e teve amplo apoio popular. As mídias digitais e as redes sociais ajudaram nesse sentido, desmentindo a constante desinformação da imprensa corporativa, e permitiram que as imagens da violência Estatal fossem mostradas diretamente à população.

Quando a guerra da informação fracassou em domesticar a revolta, o Estado iniciou o processo de mobilização intensa das forças de repressão com protagonismo militar, criação de inquéritos policiais para perseguir manifestantes, arrancando pessoas de suas casas para prendê-las e treinamento para policiais atuarem em manifestações em países como Inglaterra e França. Com a repressão, as forças da ordem obtiveram mais êxito em gerir e abafar a revolta.

Fracasso da esquerda, vitória da direita

A esquerda institucional fracassou em aproveitar essas mobilizações para avançar suas pautas mais radicais (considerando que seu objetivo deveria ser esse, mas estava evidente que não era). Nem mesmo suas pautas reformistas avançaram. E até hoje se recusa em reconhecer que 2013 foi produto de uma insatisfação com o modelo de o inclusivo promovido pelos governos petistas e reação ao seu limite que havia chegado com o fim do ciclo das commodities pós crise de 2008. Até ali acreditava-se que era possível integrar a população ao mercado de consumo através de uma economia baseada no extrativismo. E não ousou perturbar as estruturas que sustentam a desigualdade no país.

Continuar a negar a legitimidade dessas manifestações é garantir a permanente criminalização do protesto e das dissidências.

Por outro lado a direita soube tirar proveito da insatisfação popular. E pela primeira vez desde 1964, voltou com força às ruas. Enquanto isso, tudo o que os setores majoritários de esquerda fizeram foi clamar pela legalidade e pela ordem. Inúmeras pessoas e organizações que se dizem de esquerda abriram mão de apoiar lutas sociais contra as opressões para defender as próprias instituições opressivas do Estado burguês.

Daqui pra frente

A volta de Lula ao jogo político é uma forma do sistema restabelecer a fé nas instituições burguesas como a democracia representativa. De certa maneira, está se tentando restabelecer os acordos entre elites econômicas, políticas e militares que fundaram a nova república e foram abaladas pelas manifestações de junho de 2013. Mas agora num arranjo ainda mais à direita e até mesmo com amplos setores da esquerda defendendo o fortalecimento de polícias, tribunais e prisões em nome da defesa do chamado “Estado democrático de direito”.

O novo governo petista precisará de alianças cada vez mais amplas para defender avanços sociais cada vez mais tímidos, ao mesmo tempo em que as condições econômicas e políticas que no passado permitiram sua governabilidade agora tendem a se deteriorar.

A estabilidade que buscam não virá apenas através de bolsas, auxílios ou políticas de inclusão. Veremos cada vez mais o aumento da vigilância e do controle, com dispositivos de segurança que multiplicam o encarceramento em massa e o genocídio dos povos pretos, indígenas e marginalizados, seja na cidade ou no campo.

O retorno de Lula e do PT ao governo pode ser uma conjuntura favorável, mas não vai durar muito. O Estado jamais extinguirá completamente o fascismo, pois depende dele para restabelecer o controle quando perde legitimidade política.

Enquanto os povos não ocuparem e tiverem autonomia sobre seus territórios e suas vidas, a pacificação e a conciliação de classes do lulismo apenas abafarão as revoltas populares, enquanto legitimam e fortalecem as instituições do Estado. E quando a esquerda perder o poder novamente, uma nova tomada fascista voltará a ser uma ameaça.


Mais sobre o tema:

A REVOLTA – essa ingovernável que perturba o sono dos governantes – artigo de 2020.

2013: memórias e resistências,  de Camila Jourdan

NÃO EXISTE OPOSIÇÃO INSTITUCIONAL AO FASCISMO: Análises sobre a escalada da violência da extrema-direita no Brasil

Com Vandalismo! – Documentário de 2014 que vai à “linha de frente” para registrar os confrontos e entrevistar os manifestantes para mostrar as motivações dos atos de desobediência civil.

O 8 de Janeiro no Brasil – A Escalada Fascista do Capitólio ao Planalto

Em 8 de janeiro de 2023, manifestantes apoiadores do ex-presidente derrotado Jair Bolsonaro invadiram prédios do governo em Brasília, numa imitação grotesca do fiasco que os eleitores de Donald Trump fizeram na capital dos EUA, Washington, no 6 de janeiro de 2021 . A seguir, analisamos partes um pouco da trajetória que levou a esses eventos e discutem o que antifascistas enfrentam por lá como consequência desses protestos.

Estas ações da extrema-direita brasileira coloca questões que anarquistas e outros antifascistas devem enfrentar em todo o mundo.

Quem está conduzindo os esforços da extrema-direita para escalar o conflito civil e transformar as instituições estatais em um campo de batalha? Embora muitos nos Estados Unidos tenham sugerido o envolvimento de Steve Bannon, o Brasil e a América Latina em geral têm uma longa história de golpes liderados por militares locais e forças de direita e apoiados por centristas e conservadores dentro do governo dos Estados Unidos. Ao contrário de Trump, o próprio Bolsonaro esteve ausente do Brasil durante o assalto aos prédios, tendo fugido antes do fim de seu mandato presidencial. Provavelmente é um erro reduzir esses eventos às maquinações de alguns autocratas.

Quem quer que esteja por trás da incursão, por que o desastre de 6 de janeiro de 2021 foi considerado bem-sucedido o suficiente para valer a pena ser repetido? O objetivo dos participantes era tomar o poder, exercer pressão sobre o novo governo ou provocá-lo a uma reação exagerada, legitimar táticas extralegais como um passo para a construção de um movimento fascista? Ou não há objetivo racional aqui, apenas os efeitos colaterais das estratégias de campanha dos demagogos de extrema-direita, a crescente polarização de uma sociedade fragmentada e a atração irresistível dessas táticas meméticas?

Como as populações marginalizadas que são alvo dos movimentos fascistas podem se mobilizar para se defender sem legitimar as mesmas instituições de Estado que tanto fascistas quanto centristas empregam contra elas? Como os anarquistas e outros que investem em mudanças sociais profundas podem impedir que os “rebeldes” de extrema-direita monopolizem a maneira como o público em geral vê as táticas que nós também precisaremos usar, embora em busca da libertação?

Esperamos que a seguinte contribuição ajude nossos camaradas a refletir sobre essas questões.


As Eleições Não Param o Fascismo

Desde a derrota de Jair Bolsonaro para o cargo de presidente do Brasil e a vitória de Luís Inácio Lula da Silva por uma margem de menos de 2% em 30 de outubro de 2022, as mobilizações da extrema-direita foram escalando em proporção e em violência nas ruas. Logo após o anúncio da vitória petista, manifestantes se mantiveram acampados diante de quartéis do Exército, fechando parte de vias, contestando o resultado das eleições e clamando por intervenção militar. Muitos desses acampamentos, que contavam com banheiros químicos, barracas e cozinha, eram financiados por empresários e políticos alinhados ao bolsonarismo e à extrema-direita que, posteriormente, tiveram contas bloqueadas e mandados de busca e apreensão ordenadas pelo Superior Tribunal Federal em novembro.

Como já tratamos, muitos caminhoneiros organizados por grupos patronais realizaram bloqueios em centenas de estradas pelo país, com a total conivência da Polícia Rodoviária Federal. Quando os bloqueios foram desmobilizados, movimentações urbanas passaram a prevalecer, com acampamentos diante de quartéis. Os acampamentos que começaram um caráter mais diverso, contando com idosos e crianças, passou para um perfil predominantemente masculino, marchando pela noite e dispostos a agir de forma mais contundente. Ações como linchamentos de pessoas que tentavam atravessar bloqueios, sequestros e até casos tortura de qualquer um que discordasse de suas táticas ou visões se tornaram comuns.

Uma ocupação pró-Bolsonaro. Os interesses de classe dos participantes são bem claros.

Na noite de 12 de dezembro, durante a diplomação do presidente Lula e seu vice Alckimin, a base de rua radicalizada do bolsonarismo avançou mais um passo: grupos que estavam acampados em Brasília, atacaram uma Delegacia e a sede da Polícia Federal, cinco ônibus e três carros foram incendiados como resposta à prisão de um homem indígena, também pastor evangélico e bolsonarista. Serere Xavante foi acusado de organizar atos golpistas, praticar ameaças e promover ataques ao Estado Democrático de Direito, teve a prisão decretada pelo ministro do Supremo Tribunal Federal, Alexandre de Moraes. Ainda assim, evidências já apontaram a imensa permissividade das autoridades policiais com a ação criminosa de bolsonaristas.

A mídia e diversos juristas acreditaram que bastaria chamar o que está acontecendo de terrorismo e tratar com prisões e penas duras seus participantes para barrá-los. Tal iniciativa é parte do processo pacificador que professa a fé nas leis e nas instituições que nada fizeram até agora para interromper de fato tais ações, deixando as ruas livres para o fascismo. O STF tentou responder mais uma vez com a prisão de dezenas de envolvidos nos atos e no financiamento dos acampamentos. A esquerda, como de costume, voltou a apostar que as instituições e a repressão policial e jurídica bastariam para fazer os protestos recuar.

A imagem de ônibus em chamas, antes o símbolo da luta contra a repressão do estado e a exploração capitalista, vista nos atos contra aumento da tarifa em 2013, contra a Copa da FIFA em 2014 ou tão comum contra ações da polícia nas periferias, agora está prestes a se tornar o retrato do “terrorismo de direita”. O papel de “defensor da lei e da ordem” passa então a ser adotado pela esquerda legalista e institucional que sob a tutela de um novo governo petista.

Como Trump em janeiro de 2021, Bolsonaro não suportou uma derrota em sua reeleição, porém, não estava no país no dia dos protestos e abandonou seus apoiadores para lutarem sozinhos por seu sonho golpista. Partiu no dia 30 de dezembro, com comitiva e familiares, o avião presidencial parte (com tudo pago com dinheiro público) para sua última viagem em direção a Orlando nos EUA. No Brasil, o General Mourão, vice-presidente, passa a ser o presidente em exercício. Esse fez um pronunciamento enaltecendo a alternância de poder, relativizando o papel central das Forças Armadas em duvidar das eleições e nas tensões institucionais provocados. Ambos são vistos por parte da extrema-direita como traidores, o que apenas deixou os bolsonaristas sem Bolsonaro ainda mais enraivecidos e dispostos a radicalizar ainda mais.

Na véspera do Natal de 2022, um episódio quase acelerou a escalada de violência fascista: um motorista de um caminhão de combustível encontrou um artefato explosivo no veículo e alertou a polícia – vale ressaltar que não houve investigação que levasse à ameaça de bomba, se não fosse o motorista, os policiais nunca encontrariam nada. O autor da tentativa de atentado, George Washington de Sousa, de 54 anos, foi preso e confessou ter a intenção de explodir o veículo perto do aeroporto de Brasília antes da posse de Lula, forçando então o ainda presidente Bolsonaro a instaurar um estado de sítio. No apartamento do autor ainda foram encontradas uma coleção de armas pesadas que o homem alegou ter adquirido ao longo de anos, motivado pelos discursos de Bolsonaro, além de mais explosivos oriundos de garimpos para outros atentados. Tudo isso chamou atenção das autoridades policiais e jurídicas, além da equipe de Lula para como os acampamentos bolsonaristas estavam servindo para o recrutamento e radicalização da extrema-direita.

No dia 01 de janeiro de 2023, Lula foi empossado sob forte esquema de segurança e se tornou o único presidente eleito três vezes pelo voto democrático no Brasil – e Bolsonaro o primeiro presidente a não conseguir se reeleger, também o primeiro na era democrática a se recusar a passar a faixa presidencial em cerimônia de posse. As imagens de representantes dos povos indígenas, trabalhadores, negros, deficientes e excluídos passando a faixa para Lula percorreram o mundo com otimismo, como se paliativos para uma sociedade capitalista em franco declínio e desagregação social não fossem apenas uma breve melhora superficial antes do colapso.

Mas a sensação de calmaria e otimismo após a “vitória do fascismo nas urnas” não duraria nem mesmo uma semana.

8 de janeiro de 2023, em Brasília.

O Motim dos Escoltados

Os protestos e acampamentos da extrema-direita diminuiram em número, mas continuaram por mais de dois meses. Nos primeiros dias do ano, um ato foi chamado para o domingo, dia 08 de janeiro. Cerca de 100 ônibus levaram 4 mil pessoas que estavam nas portas dos quartéis em diversas cidades do país seguiram em ônibus fretados para a capital Brasília, somando forças para um grande ato de repúdio à posse de Lula como presidente. Eles argumentam que, além das eleições terem sido fraudadas, Lula seria o chefe de uma quadrilha de criminosos que quer roubar o Brasil para “financiar o comunismo”.

Com a chegada dos ônibus à capital, os fascistas com a camisa da seleção e bandeiras do Brasil seguiram em marcha tranquilamente no início da tarde, sem nenhum tipo de interferência ou incômodo policial em um local que comumente é fortemente policiado e de difícil acesso , rumo aos prédios do Congresso Nacional, STF e Palácio do Planalto (sedes dos três poderes federais, legislativo, judiciário e executivo do Brasil). Lá destruíram janelas, equipamentos e mobiliário, danificando ou roubando objetos históricos e raríssimas obras de arte de Portinari, Di Cavalcanti, Brecheret e outros avaliados em milhões de dólares. Roubaram documentos e armas dentro do Gabinete de Segurança Institucional (GSI), no térreo do Palácio do Planalto, sede do poder executivo, o que levanta a hipótese de terem acesso previamente a informações sobre a localização desses objetos.

Como nos eventos do Capitólio em 6 de Janeiro de 2020 nos EUA, os manifestantes filmaram tudo o que faziam eles mesmos, mostrando o rosto e postando ao vivo nas redes sociais sem nenhum tipo de preocupação com a possível atribuição de crime posteriormente. Ironicamente, conseguiram atacar os prédios e humilhar as autoridades dos 3 Poderes da República, poderes esses em que muitos confiaram que livrariam a sociedade do fascismo após as eleições deu um governo de esquerda e progressista.

A invasão contou com a total conivência e colaboração da Polícia Militar do Distrito Federal, comandada pelo governador Ibaneis Rocha (antigo aliado de Bolsonaro), não havendo qualquer oposição ou repressão policial por pelo menos 3 horas. Policiais facilitaram a entrada dos invasores, e somente às 18h a polícia decidiu tomar alguma iniciativa e cercar os prédios. Diversos vídeos mostram policiais tirando selfies e rindo enquanto manifestantes invadiam o Congresso e outros flagram policiais sendo elogiados e confraternizando com os “manifestantes” dentro dos prédios invadidos.

8 de janeiro, 2023, Brasília.

Somente após as 20h é que as polícias incluindo a Força Nacional, tão eficiente em atacar professores, estudantes ou povos indígenas protestando no mesmo local, conseguiu “conter” pacificamente o protesto e prender entre cerca de 200 pessoas. Nos vídeos podemos ver a polícia retirando os bolsonaristas pacificamente, sem feridos ou mortos, sendo a policia brasileira a mais letal do mundo.

A reação institucional aos fascistas só começou, de fato, quando o presidente eleito Lula, que estava em uma cidade no interior de São Paulo, fez um pronunciamento condenando os atos e emitindo um decreto de Intervenção Federal na Segurança Pública do Distrito Federal, nomeando o Secretário de Segurança Pública do Ministério da Justiça, Ricardo Cappelli, como interventor até o dia 31 de janeiro de 2023. Na prática, isso significa tirar as polícias do governo do estado do caso (Polícia Militar e Polícia Civil) e entregar o caso para as polícias do governo federal (Força Nacional de Segurança e Polícia Federal). Pela noite, o Ministro da Justiça e Segurança Pública, fez um pronunciamento dizendo que investigações foram abertas, os financiadores dos ônibus foram identificados e que cerca de 200 pessoas haviam sido detidas.

O Ministro da Justiça Flávio Dino, ex-juiz e ex-governador do estado do Maranhão, também se pronunciou, fazendo uma fala comedida onde tentou resguardar a institucionalidade, tratando os atos e as pessoas envolvidas como radicais isolados que seriam tratados como criminosos, esvaziando o conteúdo político do evento (embora o tenha chamado de tentativa de golpe de Estado). O ministro da Suprema Corte, Alexandre de Moraes, muito atuante durante toda gestão de Bolsonaro como uma espécie de “guardião da ordem institucional democrática”, também se pronunciou de forma dura e determinou o afastamento do governador do DF, conhecido quadro político do bolsonarismo.

No dia seguinte aos eventos, o quadro era de certa perplexidade da imprensa e das autoridades, apesar de tais ações estarem há meses anunciadas nas redes bolsonaristas, que estão apostando que a situação será pacificada pela atuação das instituições e pela persecução criminal aos golpistas envolvidos na ação, o que nós duvidamos.

Uma Manifestação Local de Uma Onda Fascista Global

Há muitas semelhanças com o aconteceu nos Estados Unidos em 6 de janeiro de 2021, a chamada “Invasão do Capitólio”, porém, também há diferenças significativas, começando pela liderança política dos fascistas.

Jair Bolsonaro sempre se posicionou como apoiador de Donald Trump, alinhando-se com movimentos globais de extrema direita, como os da Polônia e da Hungria. A família Bolsonaro tem conexões com Steve Bannon, que orientou filhos de Jair Bolsonaro durante a campanha presidencial de 2018 e em 2022 alegou que a eleição de Jair Bolsonaro era a segunda mais importante para o seu movimento. Após a derrota, Bannon e Trump, aconselharam Bolsonaro a contestar o resultado das eleições. Ainda assim, não é possível afirmar que haja interferência direta de Bannon ou da extrema-direita internacional.

A motivação para as duas invasões de prédios do governo também é semelhante no conteúdo da suposta conspiração: apoiadores de Bolsonaro alegam que as eleições foram fraudadas em favor de uma elite globalista simpática ao comunismo e à China, com o objetivo de desestabilizar governos nacionalistas para disseminam o que chamam de “ideologia de gênero”, incentivam o uso de drogas e promovem os interesses de cartéis criminosos internacionais. Seguindo o exemplo da alt-right em outras partes do mundo, eles se declaram liberais em seu programa econômico e conservadores em seu programa cultural. Assim, eles afirmam defender a família cristã tradicional como meio de espalhar a supremacia branca, o ódio às pessoas LGBTQI+ e a ansiedade sobre uma suposta ameaça comunista.

A forma de ação também guarda semelhança coma invasão do Capitólio nos EUA, uma turba fascista que não reconhecem a legitimidade das instituições e do processo eleitoral que derrotou o candidato deles, reivindicam ser representantes do povo e invadiram as sedes físicas dos poderes constituídos para depredar, gerar caos e enfrentamento com a esperança de suspender o resultado das eleições. Usam slogans associados ao que se chama de populismo de direita, dizendo que as instituições estão sendo manipuladas por uma elite globalista contra os interesses do povo que, no caso, são eles.

Tanto em 6 de janeiro de 2021 quanto em 8 de janeiro de 2023, uma turba fascista que se dizia a verdadeira representante do povo e se recusava a reconhecer a legitimidade do processo eleitoral que derrotou seu candidato invadiu a sede física dos poderes constituídos para gerar o caos na esperanças de suspender o resultado das eleições.

Após décadas de gestão democrática, durante as quais praticamente todos os partidos a aceitaram como a única forma possível de fazer política na era da globalização capitalista, a extrema direita recolocou a política no campo da disputa e do confronto. Está cada vez mais claro que o consenso construído no pós-Segunda Guerra Mundial em torno da fórmula capitalismo + democracia liberal + direitos humanos, que ignorava as contradições e desigualdades inerentes ao sistema capitalista e estatal, foi rompido. Significativamente, é a direita que aposta nessa ruptura, endossando explicitamente a insurgência e guerra civil, enquanto a maior parte da esquerda ainda se apega às instituições democráticas e à gestão de uma paz cada vez mais precária.

Os acontecimentos no Brasil diferem dos ocorridos nos Estados Unidos na medida em que os bolsonaristas se concentravam em algo mais antigo que o culto a Trump, algo que é próprio da história política brasileira: a nostalgia da ditadura que se instalou por um golpe civil-militar com a ajuda dos Estados Unidos em 1964 e fidelidade a todos os aspectos da ditadura que persistem na sociedade brasileira.

Na formulação do psicanalista Aziz Ab’Sáber: “O que resta da ditadura no Brasil? Tudo, menos a ditadura.”

Bolsonaristas golpistas aproveitando a conivência da polícia para posarem como rebeldes.

Além disso, diferente do que se passou nos EUA após a eleição de Biden, as Forças Armadas Brasileiras, composta por oficiais formados em escolas militares permeadas pelo discurso anticomunista do contexto de Guerra Fria e pelo revisionismo histórico que chama o golpe civil-militar de “revolução de 64”, são parte fundamental dos movimentos golpistas. O bolsonarismo (podendo ser chamado assim o atual neofascismo brasileiro e as movimentações de extrema direita no país) social e eleitoral é composto por inúmeros oficiais da reserva do exército, marinha e aeronáutica, além disso, os oficiais da ativa mal disfarçam seu apoio aos manifestantes e fazem, desde 2014, declarações públicas de sua oposição aos partidos e candidatos de esquerda. A prova mais evidente do apoio das Forças Armadas aos movimentos golpistas é a tolerância aos acampamentos nas portas dos quartéis de todo país, algo que não seria admitido se o teor das manifestações fosse outro.

A coalizão liderada pela esquerda institucional que ganhou as eleições em outubro, como temos repetido, acreditou novamente na institucionalidade e em um acordo nomeou para o Ministério da Defesa, José Múcio, um político de direita amigo dos militares cujo partido PTB tem como lema: “Deus, Família, Pátria e Liberdade” . O resultado foi que o próprio presidente Lula em sua declaração sobre os atos admitiu que o Ministro da Defesa não agiu como deveria para desocupar a porta dos quartéis.

Anarquistas e outros antifascistas marcham em 9 de janeiro de 2023 em várias cidades contra a ameaça do fascismo no Brasil.

O que se passa hoje no Brasil é uma manifestação inequívoca e radical da força que a extrema-direita tem ganhado no mundo nos últimos anos, impulsionada por um fascismo social difuso que sempre existiu na sociedade brasileira mas que a democracia instalada com a Constituição de 1988 não soube ou não quis combater, a começar pela participação dos militares no próprio processo de retomada retomada democrática nos anos 1980 e o seu “papel constitucional” como supostos garantidores dos poderes do Estado.

A maior vergonha para a esquerda como um todo – e especialmente para aqueles que se consideram radicais – é que o governo de Jair Bolsonaro e suas milícias reorganizaram toda a estrutura do Estado, desmantelando a saúde pública, a educação e as proteções ambientais enquanto miravam negros e indígenas pessoas, mulheres e pessoas LGBTQI+, tudo em meio a uma pandemia global que matou no Brasil mais pessoas do que a média per capita mundial. No entanto, fomos incapazes de responder a esses eventos – nem com uma greve geral, nem fechando cidades e rodovias, nem invadindo o palácio do presidente.

Agora, todas essas ações, que deveríamos ter tomado para nos defender contra a extrema direita, estarão associadas à extrema direita. Isso contribui para um discurso que pode nos paralisar, impossibilitando a alavancagem necessária contra os fascistas fora e dentro das instituições estatais, sem falar nos outros partidos que também usarão as instituições do governo para continuar impondo os piores efeitos do capitalismo sobre nós.

Nosso desafio agora é continuar fomentando a revolta e, principalmente, não sabotar o caminho da insurreição quando o aparato do estado está na mão da centro-esquerda e as ruas estão nas mãos dos fascistas e forças de segurança. Para isso, será , será preciso saber provocar a desordem sem ceder as chantagens dos mantenedores da ordem, com seu eterno moralismo defensor da propriedade privada ou estatal.

Ato em Belo Horizonte, 9 de janeiro de 2023 contra a ameaça fascista no Brasil.

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Violência, democracia e segurança nas eleições de 2022 no Brasil

VÍDEO: “Chama a Polícia!” – Sobre a criminalização da ação direta e a legitimação das instituições.