artigo: ANARQUIA EM TEMPOS DE CRISE E DE DEMOCRACIA

presidiariosMuro

“As novas épocas não começam de repente.
Meu avô já vivia num tempo novo,
Meu neto com certeza ainda vai viver no antigo.
A carne nova é comida com os velhos garfos.”

Bertolt Brecht

O MURO

A cena é simbólica: no gramado da Esplanada dos Ministérios, presidiários erguem um muro de metal para separar manifestantes que vão acompanhar a votação do processo de Impeachment da presidente Dilma Rousseff no dia 17 de abril de 2016. Do lado direito, ficarão grupos pró-Impeachment, do lado esquerdo, os que defendem a continuidade do governo petista.

Quando comparada aos protestos e conflitos que tiveram essas ruas e esse gramado como palco nos últimos anos, tal cena parece um pouco perturbadora: em vez de marchar em direção aos palácios para atirar sua raiva contra seus portões e pressionar autoridades, manifestantes que querem um ou outro tipo de governo se preparam para assistir deputados decidindo sobre nosso futuro, divididos por baias como gado, para que não briguem entre si.

Os presidiários levantando o muro são vistos aqui como imagem de todas as pessoas que estão excluídas dos processos políticos em nossa sociedade e não poderão tomar partido ou expressar sua opinião nessa disputa. Seu verdadeiro papel talvez seja nos lembrar de que não importa quem fique no poder depois do processo de Impeachment: nada irá mudar a condição das classes excluídas e silenciadas. O mesmo se aplica ao homem de cinquenta anos que ateou fogo em si mesmo na frente do Palácio do Planalto e foi levado ao hospital com cerca de 70% do corpo queimado no exato dia em que o muro era erguido. Seu gesto se compara ao de Mohamed Bouazizi, tunisiano que se matou com gasolina e fogo em frente a um prédio público e foi o estopim das revoltas hoje conhecidas como Primavera Árabe. Ambos os atos denunciam a violência de uma sociedade que cala e isola indivíduos até que não sobre nada além da solidão e do desespero. Na impossibilidade de se encontrar com outros corpos para organizar a revolta, a opção é transformar o desespero em potência – com a diferença de que a do brasileiro não iniciou nenhum grande levante.

O cenário tem, portanto, os elementos chave para perceber o momento político do país: palácios intocados; um muro separando manifestantes que oferecem mais uma ameaça para si mesmos do que para as autoridades; e as pessoas que – por não poder ou não querer – não terão voz nesse teatro.

dia 17 de abril, durante a votação do Impeachment na Câmara.
dia 17 de abril, durante a votação do Impeachment na Câmara.

As ruas em disputa

Para entender de onde veio essa polarização, precisamos voltar um pouco no tempo. Em 2013, a situação era bem diferente em diversos contextos. Multidões incontroláveis marchavam de forma imprevisível para cercar e invadir os palácios do Poder Legislativo e do Governo Federal com pedras e coquetéis molotov. O protagonismo era autônomo e horizontal nas ruas de todo o país, rompendo com o silêncio imposto por uma década de governo do Partido dos Trabalhadores. Movimentos que traziam a bagagem das lutas antiglobalização do início dos anos 2000 inspiraram pessoas a tomarem as ruas em mais de 100 cidades do país contra o aumento das passagens no transporte urbano. A luta levou a uma vitória inédita dos novos movimentos sociais autônomos em escala nacional, com pessoas se organizando para além das formas tradicionais dos movimentos, partidos e sindicatos. A descrença nos processos democráticos e na classe política como um todo era ainda mais forte, o que indicava que essa seria a chance de novas formas de políticas autônomas e da ação direta se tornarem as principais alternativas – a chance que anarquistas sempre esperaram para difundir suas metodologias.

Por décadas, as elites no governo (inclusive as da esquerda partidária e sindical) colaboraram para esvaziar, descontextualizar e depreciar a ideia em torno de “fazer política”. Este fazer, que ficou resumido à prática institucional, recuperou seu real significado: as pessoas ocupando as ruas estavam fazendo política em cada gesto, em cada escolha, em cada afeto. As manifestações se transformaram em um corpo vivo proporcionando uma experiência intensa e potente de construção coletiva. Para muitas, aquela foi a primeira vez em que saíam de um campo “neutro” para demarcar uma posição, e elas nem sempre eram coesas: haviam vozes dissonantes e interesses diversos tanto em diálogo como em confronto e disputa.

20 de junho de 2013: faixas e mensagens contra o governo do PT e com um tom nacionalista eram vistas desde os primeiros protestos contra o aumento da passagem em São Paulo.

Essa potência coletiva também chamou a atenção das elites que brigam pelo poder do Estado. Essas elites passaram a construir estratégias para cooptar as multidões e oferecer as soluções que muitas delas desejavam mas ainda não organizavam, como as saída do PT do governo. Desde então, as ruas voltaram a ser o palco de intensas disputas políticas no Brasil, tanto para quem queria mudanças sociais radicais, como para quem queria uma renovação conservadora.

Após as eleições presidenciais de 2014, no entanto, o protagonismo desses movimentos autônomos nos protestos de rua foi ofuscado pela polarização entre a esquerda governista e uma nova direita que não aceita mais um mandato presidencial do PT. Essa última, iniciou a uma onda conservadora que deu apoio e legitimidade para que políticos membros das classes mais conservadoras e oligárquicas finalmente conseguissem tirar, o PT do poder através do Impeachment da presidente Dilma Rousseff em 2016 e colocassem em seu lugar o seu vice-presidente, Michel Temer, encabeçando o governo mais conservador e reacionário das últimas décadas. Assim, a crise política que tomou o Brasil, principalmente após os escândalos de corrupção envolvendo os governos de Lula e Dilma, foi útil para ascensão de uma nova direita nas ruas e o fortalecimento dos partidos tradicionalmente conservadores que estavam sedentos por voltar ao topo do poder. Por um momento, esses grupos tornaram-se os mais fortes atores nas ruas. Somente após o afastamento da presidente, quando em que vimos direitos básicos e movimentos sociais na mira do novo governo temporário de Michel Temer, lutas populares retomam sua força para resistir ao declínio da democracia brasileira, expandindo as ocupações de escolas iniciadas por secundaristas no fim de 2015 e ocupando prédios ligados ao Ministério da Cultura.

junho de 2013: 60 mil pessoas cercam o Palácio do Itamaraty com uma mensagem muito mais empoderada.

Os levantes não respeitam fronteiras – e a reação também?

Esse fenômeno, com movimentos de direita emergindo logo após agitações populares, não é um problema só do contexto brasileiro. É preciso analisar a conjuntura local com olhos atentos ao contexto internacional. Da Venezuela à Ucrânia, da Grécia aos Estado Unidos, grandes momentos de agitação popular levaram pessoas às ruas nos últimos anos e tornaram manifestações e ocupações de espaços públicos uma ferramenta atraente. Podemos notar que, após a onda mundial de levantes iniciados em 2011 com a Primavera Árabe, onde o caráter autônomo, radical e horizontal se tornou relevante, observamos que movimentos de direita e de extrema-direita, em diferentes países, se sentiram mais à vontade para aproveitar a revolta popular para ir às ruas difundir suas agendas.

Enquanto multidões gritam pelo Impeachment da presidente Dilma Rousseeff linchando quem usa vermelho ou tem “cara de esquerdista”, Donald Trump chama atenção e conquista apoio de milhões de pessoas nas eleições presidenciais nos Estados Unidos com uma campanha neoliberal, abertamente anti-imigrante e cheia de declarações racistas e sexistas. Tudo isso menos de um ano depois que o movimento Black Lives Matter (Vidas Negras Importam) se espalhou pelo país em resposta aos constantes assassinatos de jovens negros por policiais brancos. No Egito, os levantes que levaram à queda da ditadura de Mohamed Morsi, abriram caminho para que um golpe militar se instalasse no país, com um poder tão ou mais totalitário que a ditadura anterior. Na Grécia, a desilusão com a esquerda, que chegou ao poder com uma campanha de anti-austeridade em 2014 para rapidamente trair quem votou em seu candidato, abriu espaço para que partidos da extrema direita se fortalecessem usando a mesma pauta. Na Ucrânia, protestos que começaram em 2014 ocupando praças como fizeram manifestantes na Primavera Árabe ou nas centenas de cidade que aderiram ao movimento Occupy, deram lugar a confrontos de enormes proporções protagonizados por neo-nazistas e todo tipo de fascistas contra a polícia. E logo o resultado foi o início de uma guerra civil separatista de caráter nacionalista.

Onde há muros, há o que esconder.
Onde há muros, há o que esconder.

Tendo isso em mente, olhamos para as vitórias de 2013 como uma lição com acertos que fortaleceram os movimentos autônomos, mas também erros que abriram caminho para a regeneração da direita e do conservadorismo. Foi possível convidar novas pessoas para uma forma diferente de fazer protestos com mobilização horizontal a apartidária, conquistando uma vitória inédita em forma e dimensão. Mas mesmo sentindo a necessidade de ampliar as pautas, não foi possível expandir a luta para além de demandas do transporte coletivo, que apenas reformam o Capitalismo. Não conseguimos impedir que parte das pessoas que convidamos para as ruas se interessassem pelos discursos da direita. Quando convidamos a população para nos organizar de forma apartidária, fortalecendo estratégias que não buscam a via eleitoral, por exemplo, encontramos milhares de pessoas que, como dito acima, já estavam descrentes em partidos e na política institucional. Mas grupos de direita também combatiam a presença de partidos políticos nas ruas e ganharam a simpatia de mutias pessoas com sua versão de “apartidarismo” – ou melhor, partido único fascista – como solução para a corrupção e outros “males da sociedade”.

Os novos “movimentos sociais” conservadores e partidos de direita usam a corrupção generalizada da democracia brasileira como uma forma de criar vilões específicos, como se a elite política e econômica pudesse ser dividida entre “corruptos” e “honestos”. Valores vagos, moralistas e que mantêm o debate afastado do que realmente importa: a opressão sistemática das classes pobres e populações periféricas e minoritárias. Esse discurso que, com ajuda da mídia, clama por punição aos corruptos que não fazem parte das alianças dos grupos mais poderosos e a prisão comum para o menor de idade que roubou um celular, ainda parece propor uma agenda atraente atraente para a população. Com um discurso imediatista, medidas de impacto a curto prazo e narrativas que mexem com os medos e inseguranças do cidadão médio urbano, a direita conseguiu avançar e convidar milhões para as ruas contra a corrupção, mas apenas a praticada pelo Partido dos Trabalhadores. Todos os outros partidos, inclusive o dos proponentes do Impeachment, que possuem processos abertos em casos de corrupção e outros crimes, saem ilesos desse teatro.

Devemos refletir sobre os diferentes eventos que acompanhamos em todo o país desde os levantes de 2013 e o que eles têm a nos ensinar. Toda vez que protestos começarem a surgir em diferentes cidades, em regiões onde há muito tempo não acontece algo do tipo, é possível que as pessoas se juntem em massa às mobilizações sociais. Mas cada indivíduo ou grupo terá seus próprios motivos para expressar sua revolta. E talvez eles não tenham nenhum objetivo claro ainda, ou objetivos bem diferentes dos nossos enquanto anticapitalistas. Se quisermos convidar ou inspirar as pessoas a agir, devemos cuidar para que não apenas nossos métodos ou estratégias sejam inspiradores. Porque eles mostram o que é possível fazer através da ação direta, com organização, autonomia e poder social. Para ir além, devemos mostrar que é possível querer ou desejar outra sociedade, outra vida. Qualquer pessoa pode organizar uma marcha, bloquear uma via, iniciar um movimento, ocupar uma praça por meses até lutar com a polícia para conseguir seus objetivos. O desafio é fazer isso de uma forma que distribua nosso poder coletivo e não fortaleçam relações ou instituições que concentram o poder na mão de poucos.

Manifestantes na Av. Paulista contra Dilma, em março de 2016

Da crise em diante

Momentos de crise podem dar lugar a lutas e reformas que vão aliviar tensões do sistema, mas também podem abrir a oportunidade para explorar outras saídas radicalmente diferentes. Cabe a nós analisar nossos passos nesse últimos anos, entendermos que não somos as únicas pessoas propondo soluções e compreender que que tipo de crise vivemos para antecipar que tipo de soluções o Estado e os capitalistas vão tentar nos impor. Não devemos esperar as mesmas dinâmicas favoráveis da mesma forma agora, ou nos próximos anos. Estamos diante de um novo cenário. Não somos mais uma surpresa para o Estado e nem a mais atraente novidade para a população, como foi em 2013. E tanto a esquerda partidária e autoritária quanto a direita em sua pior roupagem despertaram inspiradas pelas vitórias dos movimentos autônomos para disputar o protagonismo das lutas sociais.

Diferentemente dessa direita que emerge logo após nossas revoltas populares, não queremos reformas que garantam os privilégios das classe médias e altas enquanto esmagam ainda mais as classes baixas, as periferias urbanas, as populações negras e LGBTTQ, assim como indígenas e imigrantes. Divergimos também da esquerda autoritária e/ou partidária descolada quando ela quer reformas que custam nossa autonomia, abrindo mão de nos organizar e desenvolver nossas capacidade de construção coletiva para eleger alguém que “nos represente de verdade”, para “mudar o sistema de dentro”. Não queremos eleger outro “herói” ou “heroína” do povo, não queremos ninguém da nossa classe, cor ou gênero no controle das instituições que nos oprimem. Pois sabemos que, para governar, eles precisam levar junto a elite que não vai abrir mão de seu poder econômico e sua influência obscura sobre toda a classe política, da direita à esquerda.

Queremos desenvolver nossas habilidades e nosso poder de nos organizar para além dessas instituições, torná-las obsoletas e destituí-las de uma vez por todas de seu poder. Autonomia, autogestão, horizontalidade não são apenas “estilos” de se fazer política, hashtags ou palavras estilosas que se tornaram populares recentemente. São formas de luta que espelham o fim que buscamos: sociedades livres, autônomas, autogeridas e horizontais. Para que não haja muros entre nós, minorias excluídas e nem palácios intocados.

Estaremos aqui, mesmo se ninguém convidar.

Do 15M ao Podemos – A regeneração da democracia espanhola e a maldita promessa do caos

A regeneração da democracia espanhola e a maldita promessa do caos

Em maio de 2011, manifestações inspiradas pela Primavera Árabe ocuparam várias praças pela Espanha com protestos antigovernamentais organizados através da democracia direta e assembleias gerais. Essa foi a primeira onda desse tipo de movimento que se espalhou pela Europa e pelo mundo. Cinco anos depois, aquela energia que começou como uma pressão por políticas participativas acabou canalizada para a formação de novos partidos espanhóis. Isso seria uma corrupção do discurso do movimento das praças ocupadas ou a sua conclusão lógica?

Depois das revoltas em 2013 pelo trasnporte coletivo, e nos anos seguintes contra os mega-eventos, vimos no Brasil uma intensificação das disputas políticas que levaram a uma polarização entre esquerda e direita institucional. As vias da autonomia e da horizontalidade parecem terem sido ofuscadas por essa disputa. Enquanto a direita que cresceu e saiu vitoriosa com golpe institucional que tirou o PT do poder, vemos uma crescente tendência dos movimentos socias que participaram de lutas autônomas a considerarem as eleições como um espaço a ser “ocupado”. Se não soubermos pelo que estamos lutando quando lutamos por “mais democracia”, estaremos reconstruindo as relações e as ferramenta que falharam e ainda falham em nos garantir liberdade, igualdade e autonomia.

I. Ascensão

Primavera de 2011

“Esta é a nossa revolução! Não há barricadas, nada de romântico assim, mas o que podemos esperar? É uma merda, mas já sabíamos que este é o mundo em que vivemos. “

Eu estava ombro a ombro com uma amiga, abrindo caminho através das multidões que se apinhavam, das dezenas de milhares se juntavam para além do isolamento democrático para tomar a Praça Catalunya, no centro de Barcelona. Estávamos no nosso caminho de volta de uma copiadora onde xs funcionárixs, também tomadxs pela empolgação do momento, nos deixaram imprimir mais quinhentas cópias da  última carta aberta com um bom desconto, facilmente pagas com os trocados que as pessoas foram deixando na jarra de doações que estava na mesa de informações que nós, anarquistas, tínhamos montado.

Em menos de uma hora, todos os panfletos já havia sido levados, encontramos mais pessoas que compartilhavam algumas de nossas ideias, tinha um casal se envolvendo nos debates e uma outra breve discussão. Décadas de isolamento social tinham ido embora em uma súbita e inesperada manifestação de angústia social, raiva, esperança, desejo de se relacionar. Um milhão de necessidades individuais para a expressão de necessidades colectivas: “Sim, eu também preciso disso”. Um milhão de vozes solitárias reconhecendo-se num grito que todas elas traziam juntas: “Sim, eu também estou aqui”, um milhão de histórias de solidão encontrando-se em uma alienação compartilhada: “Sim, eu também sinto isso”. Era difícil não se deixar levar. Sentimos isso também.

Mas, naquela comuna de alienação, também sentimos um certo cinismo. Era mais do que apenas arrogância ou que um mero olhar torto para as pessoas enquanto elas gritavam todas as noites, “¡aqui comenza la Revolución!” (A revolução começa aqui). A verdade é que a gente duvidava do entendimento comum sobre o que uma revolução realmente implica.

E nossas dúvidas não surgiam sem motivo. Estar sozinhx nas ruas por anos, tentando espalhar ideias críticas, tentando abrir pequenos espaços de liberdade, sendo algemadx ou agredix, quando ninguém mais dá a mínima, quando todo mundo parece satisfeito assistindo às suas televisões, enquanto o planeta morre ao seu redor, certamente, isso pode tornar você um pouco arrogante. Isso pode torná-lx amargx e cínicx, e te fazer se sentir superior, e completamente alheix às mudanças inesperadas que sacodem o sistema que você passou a vinda inteira lutando contra. Mas também pode lhe dar perspectiva. E pode fazer você perguntar: “Por que essas pessoas estão nas ruas agora, só quando os seus próprios benefícios sociais são ameaçados, sendo que elas não levantavam um dedo quando eram outras pessoas sendo comidas vivas?” Ou então: “Por que a mídia está dando tanta atenção a este fenômeno, mesmo que muitas vezes seja uma atenção negativa, sendo que essa mídia ignorava completamente nossas lutas durante anos?”

Milhares de pessoas enchem a Plaza del Sol em Madrid durante a mobilização 15M em 2011.
Milhares de pessoas enchem a Plaza del Sol em Madrid durante a mobilização 15M em 2011.

Quando o movimento de ocupação das praças eclodiu no dia 15 de maio (15M) de 2011 por todo o Estado Espanhol, nos jogamos nele. Parte dxs anarquistas rejeitaram o movimento abertamente pela dificuldade de encontrar a real motivação daquela caótica desordem. Outra parte dava, acriticamente, seu selo de aprovação para qualquer coisa que parecia ter o apoio das massas. Mas nos recusamos a desistir das perspectivas e experiências que acumulamos ao longo dos anos de luta solitária quando alguns poucos grupos estavam insistindo que o sistema em que vivíamos era inaceitável.

Nem todxs nós interpretamos essas experiências da mesma forma, assim como não desenvolvemos as mesmas estratégias no meio do movimento de ocupação das praças. Só posso dar uma perspectiva dessa história; no entanto, é uma história que ajudamos a construir coletivamente, lutando lado a lado e disputando posições umxs com xs outrxs. Não há consenso na história do movimento e nem mesmo da participação anarquista, mas ao mesmo tempo, ninguém chegou na sua versão particular de eventos sozinhx.

Um elemento que todos compartilhávamos era uma crítica à democracia. Havia uma história apoiando a nossa posição. Em 1975, Francisco Franco morreu. Um ditador fascista que foi apoiado por Hitler e Mussolini e, mais discretamente pelos governos britânicos, dos EUA e o francês. A aberta aceitação que o Ocidente demonstrou em 1949 revelou mais uma vez a tolerância que um sistema mundial democrático pode ter com ditaduras que tiveram sucesso na prevenção de revoluções.

Em 1976, o grupo pela independência basca ETA explodiu uma bomba que matou o sucessor escolhido por Franco. O país foi inundado por greves e protestos. Ações armadas foram se multiplicando, mas não havia um grupo vanguardista com a esperança de controlar ou que representasse todo o movimento. Nenhuma figura que poderia ser cooptada ou destruída. Era o início da Transição.

Percebendo a inevitabilidade de um governo democrático, os fascistas se transformaram em conservadores, constituindo o Partido Popular e, em troca da legalização e uma chance de estar no poder, eles convidaram comunistas e socialistas para negociações, dando origem a um novo sindicato institucionalizado e legal: o CCOO. E também um novo partido político, o partido Socialista dos Trabalhadores da Espanha (PSOE). O PSOE governou o país de 1982 a 1996 e em 2010 eles estavam novamente no poder quando os burocratas da União Europeia e financiadores bancários exigiram medidas de austeridade. Eles rapidamente atenderam.

Mas, em meados dos anos 70, nem todos entraram na onda. Muitas pessoas rejeitaram negociações com os fascistas, ou rejeitaram qualquer tipo de governo e qualquer forma de capitalismo completamente. Conforme os anos se transformaram em décadas, esses redutos tornaram-se cada vez mais isolados, até que fossem levados pela marginalização institucional, judicial e pelos meios de comunicação para dentro de um gueto político reduzido. Nesta altura, os “irreductibles” poderiam ser majoritariamente encontrados dentro de um movimento anarquista que era muito mais fraco e mais vulnerável do que tinha sido antes da Guerra Civil, que colocou Franco no poder.

Essxs anarquistas continuaram a lutar, em grande parte, desenvolvendo um caráter antissocial como uma ferramenta para resistir aos efeitos psicossociais de extrema marginalização, bem como facilitar uma crítica da sociedade democrática como uma estrutura de controle majoritário e midiática. Mas, como as revoltas começaram a tomar países vizinhos vários anos antes do início da crise econômica, algumxs anarquistas começaram a dar atenção às possibilidades de uma revolta social generalizada, e começaram a mudar os seus métodos e suas análises para serem capazes de incentivar e participar em tais revoltas, na esperança aparentemente improvável que uma delas pudesse começar por aqui. Mas, em poucos anos, coincidindo com o início da crise, as revoltas se multiplicaram e se aproximaram – se não geograficamente, ao menos ideologicamente.

Antes do movimento 15M começar, Barcelona já tinha assistido a uma greve geral de um dia, com participação massiva, onde os discursos anticapitalistas eram frequentes, se não predominantes, e que resultou em ocupações de grande porte, tumultos, saques, e confrontos com a polícia, constituindo um importante passo na reapropriação de táticas de rua que fariam outras vitórias possíveis nos anos seguintes. Um protesto combativo no Primeiro de Maio tinha mudado o trajeto normal pelo centro da cidade para passar através de vários bairros ricos, deixando um rastro de destruição e uma pequena ação de vingança econômica.

O movimento 15M eclodiu apenas duas semanas mais tarde, e seus discursos oficiais pediam pacifismo total e protestos simbólicos para conseguir uma democracia melhor e mais saudável através de uma reforma constitucional. Quase nenhuma menção foi feita, dentro deste discurso oficial, sobre as condições de vida diária, de autodefesa colectiva contra a austeridade e a auto-organização direta de nossa sobrevivência. Mas de onde veio esse discurso oficial e como ele foi produzido em uma multidão enorme e heterogênea?

O 15M não era enorme desde o início. Na verdade, na primeira assembleia, em Barcelona, na primeira noite na Praça Catalunya, haviam apenas uma centena de pessoas presentes. Algumas delas membros da “Democracia Real Ya”, um novo grupo com sede em Madrid que tinha produzido o primeiro chamado para os protestos e ocupações em todo o país. Seu discurso era extremamente reformista e não fez nenhuma menção às ondas crescentes de protesto real e conflito social que vinham aumentando na Espanha, nem à construção fora de uma tradição de luta que trazia um grande conhecimento coletivo. Essas histórias estavam ausentes de sua perspectiva, o que talvez fosse a única maneira que encontraram para poder chamar as pessoas para um movimento baseado no pacifismo e na reforma legalista. Eles mencionaram a “Primavera Árabe”, sobretudo o levante no Egito, mas apenas da maneira mais comedida e manipuladora. Eles descreveram a insurreição egípcia como se ela fosse um movimento não-violento que já tinha atingido seus objetivos – quando na verdade, é óbvio e já era óbvio para qualquer pessoa com uma perspectiva radical, que a luta só estava começando.

Nessa primeira assembleia, usaram uma velha tática trotskista. Membros do movimento se espalharam por todo o círculo e tentaram forçar o grupo a adotar um consenso preestabelecido que casava com os encaminhamentos que haviam trazido de Madrid. Mas ficou claro que esses ativistas não eram experientes  nessa tática, pois estavam todos vestindo camisetas idênticas onde estava escrito “Democracia Real Ya”. No minuto em que alguém do movimento de esquerda independente catalão disse que a ocupação Barcelona deve estabelecer seu próprio caminho ao invés de seguir Madrid, a multidão concordou. Haviam poucxs anarquistas naquela primeira noite, mas xs presentes também se certificaram de que xs ativistas reformistas não fossem capazes de limitar o movimento desde o início.

* * *

“Quem é a favor?” – pergunta a pessoa com o microfone. Algumas milhares de pessoas levantam as mãos ao ouvirem sua voz dos alto-falantes.

“Quem é contra?”. Umas cinquenta pessoas levantam as mãos. Por uma questão de ordem, algumas pessoas fazem uma contagem rápida. É claro que o número de votos negativos não é suficiente para ser considerado relevante. Seria preciso uma centena para bloquear uma decisão.

“Quem quer mais debate?” Uma dúzia de mãos levantadas. Mais uma vez, aquém do mínimo necessário para enviar a proposta de volta para uma segunda rodada de debate.

“A proposta passou.” Os moderadores fazem uma pausa antes de passar para o próximo item. A multidão, talvez umas dez mil pessoas, espera sentada com uma paciência tolerante mas também muito entediante.

“O que acabamos de votar?” –  Ouvi uma jovem estudante perguntando a outra. Não seria exagero dizer que essa era uma das perguntas mais frequentes naquele mês de ocupação.

Em apenas uma semana neste grande experimento de democracia direta, a abstenção já tinha se tornado a opção mais comum nas assembleias. Na maioria dos votos, a abstenção atingiu proporções que igualam ou ultrapassam a porcentagem dos que escolhem não votar nas eleições e referendos de uma democracia representativa comum.

Não é nenhuma surpresa. Empoderamento não era mais do que um slogan na praça ocupada. Até mesmo quando haviam apenas cem pessoas numa assembleia, já não era possível que todas participassem. Uma vez que o número de participantes cresceu de centenas para milhares, comissões e subcomissões começaram a aparecer como cogumelos depois de uma chuva. Moderadores experientes começaram a dirigir as assembleias, colocando em prática técnicas para um processo de consenso diferenciado que tinha sido desenvolvido durante o movimento antiglobalização. As propostas foram desenvolvidas e consensuadas em comissões, então elas tiveram que ser claramente lidas para ser ratificada pela assembleia geral. Uma centena de pessoas, pelo que me lembro, podia bloquear uma decisão, e um número menor poderia enviá-la de volta à comissão para mais debate.

Para realmente ter qualquer influência significativa sobre uma decisão, alguém teria que gastar duas a quatro horas durante o dia em uma reunião de comissão para redigir a proposta, para além das várias horas que a Assembleia Geral da noite costuma durar. Propostas mais difíceis eram avaliadas durante dias ou uma semana inteira e em qualquer caso você tinha que ir para as reuniões das comissões a cada dia se quisesse ter certeza de que a proposta mais antiga não tinha sido anulada por uma nova. Obviamente, apenas um pequeno número de pessoas com um certo nível de independência econômica poderia participar plenamente nestas estruturas diretamente democráticas. Mas mesmo que todas as pessoas tivessem tal independência econômica, as próprias estruturas funcionavam como funis, limitando e concentrando a participação para que uma massa grande e heterogênea pudesse produzir decisões homogêneas, unificadas e enumeradas. Em qualquer assembleia ou comissão, certos estilos de comunicação e de tomada de decisão são favorecidos, enquanto outros estão em desvantagem.

A democracia direta não passa de uma democracia representativa em uma escala menor. Inevitavelmente, ela recria a especialização, a centralização e a exclusão que associamos com as democracias existentes. Em quatro dias, uma vez que as multidões excedeu 5.000 pessoas, o experimento de democracia direta já estava repleto de falso consenso e manipulações, minorias sendo silenciadas, aumento da abstenção de votos e dominação de especialistas e políticos internos.

Em um caso exemplar, anarquistas na Sub-Comissão de Auto-Organização e Democracia Direta queriam organizar um debate simples sobre a não-violência. A iniciativa quase não aconteceu porque a Sub-Comissão precisava de dias para debater e chegar ao consenso sobre como exatamente ela queria fazê-lo. No final, duas pessoas decidiram ignorar a comissão e juntar-se com outrx anarquista que não estava participando da Auto-Organização. Os três realizaram uma conversa e um debate bem-sucedidos em apenas um dia, fazendo o que um grupo de cinquenta pessoas não tinha conseguido ao longo de uma semana.

No entanto, não era tão fácil fazer as coisas por causa dos muitos obstáculos que os ativistas da democracia colocavam no caminho de qualquer ação direta que não tinha o seu selo de aprovação. Por duas vezes, reservamos o sistema de som e o espaço central na praça para debater a política de não-violência que tinha sido imposta a força em todo o movimento. Todas as vezes, a nossa reserva desaparecia misteriosamente e, na terceira vez, o sistema de som foi reservado para outro evento na mesmo horário que tínhamos programado nosso debate. Derrotadxs, decidimos realizar o debate com apenas um megafone na beira da praça. Seria menor, efetivamente marginalizadxs, mas insistimos em registrar nosso desacordo com uma posição que realmente só uma pequena minoria de ativistas impôs com sucesso sobre todo o movimento.

Fomos para a tenda da Comissão de Atividades para informar novamente sobre nossos planos. Em uma história digna de um romance do Kafka, o garoto na mesa olhou para seu formulário, um pequeno pedaço de papel todo cagado escrito de caneta e nos disse que não poderíamos fazer o nosso evento no local onde queríamos. “Por quê?”, perguntei, me preparando para ir a fundo na questão. Seria este ainda outro truque dos novos especialistas em democracia direta para proteger seu falso consenso em torno da não-violência?

A resposta foi muito mais patética do que eu esperava: “Porque os nossos formulários são divididos em colunas diferentes, veja, uma coluna para cada espaço na praça… Mas esse espaço que vocês querem, ao longo da escadaria… Bom, ele não é um espaço oficial.”

“Tudo bem, nós não ligamos. Só escreve ele aí.”

“Mas, mas, não posso. Não há uma coluna para ele “.

“Tá bom, é só fazer uma coluna.”

“Humm, não posso.”

“Meu deus! Olha aqui qual está vago… o Espaço Rosa, só escreve que nosso evento é no Espaço Rosa e na hora mudamos ele pra lá.”

Em apenas duas semanas, sem qualquer treinamento prévio, a revolução espanhola tinha criado burocratas perfeitos!

Mapa da Plaza del Sol, 20 de maio de 2011

 

Mapa da Plaza del Sol, final de maio 2011

Exemplos de manipulação do processo não faltaram. No início, a assembleia decidiu, de uma maneira bem anarquista, não lançar manifestos unificados falando por todo mundo. Posteriormente, as pessoas falavam suas próprias ideias nas assembleias e em espaços informais ao longo do dia. Nós, anarquistas, montamos uma banquinha de literatura onde distribuíamos cartas abertas e panfletos, publicando textos novos todos os dias. Estávamos contentes em nos expressarmos no diálogo com o resto, ao invés de tentar representar todo o movimento. Mas os militantes no meio daquela confusão toda ansiavam por algum manifesto unificado, alguma lista de exigências com as quais eles poderiam pressionar os políticos no poder. Eles só viam as enormes multidões como números, meios para um fim.

Posteriormente, eles formaram uma Comissão de Conteúdo a fim de formular o “conteúdo” ou as ideias do movimento, como se toda a praça ocupação foi apenas um cesto vazio, uma besta irracional esperando pela assembleia para ratificar uma lista de crenças e posições comuns. Na tenda anarquista, debatemos se devíamos ou não participar das comissões. Alguns de nós foram firmemente contra, mas como anarquistas, não buscávamos um consenso. Aquelxs que queriam participar não precisavam de nossa permissão. E pelo menos uma coisa boa saiu de sua participação: muitos exemplos da corrupção intrínseca e autoritarismo da democracia em todos os níveis.

Quando a participação anarquista impediu que trotskistas, ativistas da Democracia Real e outras militâncias de base produzissem um tipo de conjunto de demandas unificadas e manifestos que a assembleia geral havia vetado anteriormente, a Comissão foi dividida em uma dúzia de subcomissões. Todos os dias, em várias subcomissões, militantes faziam as mesmas propostas que tinham sido derrotadas no dia anterior, até o dia em que houve uma reunião na qual nenhumx dxs seus opositorxs estavam presentes. As exigências foram passadas através da Comissão e posteriormente ratificada pela assembleia geral, que havia ratificado quase todas as propostas que tinham passado por ela antes dessa.

Por outro lado, após uma semana de debate, os anarquistas na Auto-Organização e na Sub-Comissão da Democracia Direta chegaram a um consenso duramente conquistado com defensorxs da democracia direta para uma proposta de descentralizar a assembleia, o que significa que a heterogeneidade e as diferenças seriam respeitadas, e a assembleia seria transformada em um espaço para se compartilhar propostas e iniciativas, mas não para ratificá-las. Isso porque, no novo sistema, todxs seriam livres para realizar as ações que bem entendessem, e não precisaria de qualquer permissão burocrática. A proposta significaria a derrota total dos militantes, porque a assembleia não seria mais uma massa que poderiam controlar para seus próprios fins. Todxs seriam livres para organizar as suas próprias iniciativas e tomar suas próprias decisões. O funil seria transformado em um campo aberto.

A proposta anarquista de descentralizar a assembleia foi votada duas vezes, sempre conseguindo um apoio esmagador, mas curiosamente foi derrotada em procedimentos técnicos ambas as vezes. Os moderadores dramatizaram e gaguejaram, tentaram atrasar o processo e inventar obstáculos. Quando já não podiam impedir a votação, a proposta teve uma maioria mais expressiva do que talvez qualquer outra pauta naquelas semanas. Tentaram assustar as pessoas para barrar a proposta, insistindo que fosse lida várias vezes, para que todo mundo tivesse certeza de que entenderam suas implicações, e sugeriram que tirassem um dia a mais para refletir sobre ela, mas todas essas táticas acabaram saindo pela culatra. No final, esta foi uma das poucas propostas que todas as pessoas na assembleia prestaram atenção, discutindo e votando com a consciência total.

Cerca de apenas cinquenta pessoas votaram contra a proposta de descentralizar a assembleia. As mesmas cinquenta pessoas que votaram por mais debate, mesmo não tendo absolutamente nenhuma intenção de debater, então, a proposta foi descartada. A proposta alcançou um consenso consistente na Subcomissão. Mais debate não mudaria nada. Ela só voltaria mais uma vez para a assembleia geral e seria bloqueada novamente. Graças à democracia direta, cinquenta pessoas poderiam controlar vinte mil.

Esta ação demonstrou que tínhamos razão, tivemos muito apoio, e a assembleia era uma farsa. E isto, por si só, foi uma vitória. Mas a democracia direta não pode ser reformada a partir de dentro. Ele tem que ser destruída.

Muitas pessoas passaram a levar as comissões e a assembleia geral mais a sério do que o esperado. De fato, debates férteis entre grupos de cinquenta ou cem pessoas acontecia nas comissões, e a assembleia serviu parcialmente como uma plataforma para pessoas que não se conheciam expressarem suas queixas e construir um senso de coletividade. Mas só o fato de subverter as estruturas da burocracia e da centralização, para criticar as dinâmicas de poder que elas criaram e dar lugar a algo mais vibrante e livre na sombra da assembleia geral já eram coisas que valiam a pena.

Mas havia muito mais na ocupação das praças do que essas estruturas burocráticas frustrantes. O centro oficial do movimento, de fato, era pequeno em comparação com as margens caóticas. Estas margens eram todos os espaços na praça exterior ao das tendas das comissões e às duas horas de assembleia geral que aconteciam todas as noites. Durante todo o dia, a praça foi um espaço extenso e caótico de auto-organização, onde as pessoas atendiam suas necessidades logísticas, às vezes passando por canais oficiais, às vezes não. Foi feita uma biblioteca, um jardim, um centro internacional de tradução, uma cozinha com grandes fornos e fogões solares. E o tempo todo aconteciam shows, oficinas, debates e tendas de massagem, além de inúmeras conversas menores, debates, e encontros. As pessoas bebiam, debatiam, celebravam, dormiam, namoravam, faziam amizades. Era um caos, no sentido literal: padrões surgiam e desapareciam e não havia espaço central a partir do qual tudo podia ser observado, muito menos controlado.

Considere o programa reconhecido oficialmente: você só tinha que ir para a tenda da Comissão de Atividades para ver toda a programação. Partindo desse ponto, um agente da polícia poderia registrar todos os eventos que estavam acontecendo, o que estava sendo falado, o que estava sendo organizado. Uma pessoa nova, querendo participar, poderia vir e saber onde se envolver, e seu guia seria um pedaço de papel, uma agenda, ao invés de um novo amigo. Militantes podiam monopolizar os espaços e horários mais importantes, dando prioridade a certas reuniões ou eventos e marginalizando outros (ou poderiam até mesmo fazer eventos indesejados desaparecem, como aconteceu com o nosso debate sobre não-violência). Não é nenhuma coincidência que os interesses externos de controle estatal, os interesses internos de controle hierárquico e os interesses de eficiência impessoal ou racional, todos convergem nas estruturas de democracia direta.

Por outro lado, as margens não oficiais eram muito mais vivas e dinâmicas. A maioria das novas amizades e cumplicidades, as conversas mais significativas, face-a-face, e a maioria das experiências comuns satisfatórias, que faziam as pessoas voltarem, ocorreram nas margens caóticas do acampamento. Um punhado de pessoas poderiam organizar um debate ou um pequeno show sem ter que se esgotar passando por comissões e subcomissões. Poupando suas energias para o que realmente importava – a atividade em si – alguns indivíduos poderiam preparar um evento de qualidade por sua própria iniciativa, e uma multidão de cem, ou mesmo quinhentas pessoas, podiam espontaneamente se reunir e participar.

Mesmo durante as assembleias gerais, as margens caóticas não poderiam ser extintas. Milhares de pessoas boicotaram as votações. Algumxs de nós se recusaram sobretudo, como anarquistas, a legitimar tais exercícios e farsas autoritárias em nome do povo, como um corpo coletivo apagado pela imposição artificial de unidade. Muitas pessoas não votaram porque acharam a assembleia chata (muito parecido com a criança na sala de aula sonhando acordada, não porque ela é pouco inteligente, mas porque ela é, de fato, mais inteligente do que aquilo, porque ela não está envolvida pelo modelo autoritário e pacificador de educação). Outras não votaram porque, uma vez que as multidões tinham ultrapassado cinquenta mil, elas não poderiam chegar perto o suficiente para ouvir. As margens da praça tornaram-se um país ingovernável de conversas sussurradas, críticas e discordâncias com o que era falado no centro.

Não eram todos esses outros espaços à margem também espaços de tomada de decisão? Não tomamos decisões a cada momento de nossas vidas? Por que o espaço formalizado e masculino de uma assembleia é mais legítimo do que a cozinha comum, onde muitas decisões e conversas também acontecem? Por que ela é mais legítimo do que as centenas de aglomerados de pequenas conversas e debates que ocorrem durante o dia, em pequena escala, permitindo que as pessoas se expressem mais intimamente e mais plenamente?

Mesmo se participássemos de cada decisão formal, será que essas seriam as mesmas decisões as quais chegaríamos em espaços confortáveis, espaços de vida e não de política? Será possível que os nossos “eus” formais se tornem uma mera representação, uma manipulação produzida durante algumas horas chatas de reuniões que é usada para nós mesmxs nos controlarmos durante todos os outros momentos de nossas vidas?

“Não faça isso”, diz o ativista que se acha uma espécie de líder para a pessoa que começou a pixar um banco, “este é um protesto pacífico”. O líder fala com toda a legitimidade de um mandato popular. Supostamente, há um consenso sobre a questão da não-violência para este protesto, organizado pela assembleia da praça. No entanto, que tipo de consenso precisa ser continuamente reafirmado? Por que as pessoas que participaram da assembleia se rebelaram com tanta frequência contra as decisões que supostamente as representavam?

Nem precisa dizer que os defensores da democracia direta e suas estruturas oficiais fizeram tudo o que podiam para suprimir as zonas caóticas na praça. A tenda anarquista, por exemplo, nunca tinha permissão oficial e tentaram nos expulsar logo no primeiro dia que a montamos. Deixamos claro que eles teriam de usar a força para nos tirar de lá e, sendo assim, todo mundo iria ver em que consiste a sua democracia. Eles teriam feito isso se não fôssemos um bando de pessoas afiadas e calejadas pelos anos de luta nas ruas. Em vez disso, eles montaram cedo algumas barracas da comissão sobre o nosso local na manhã seguinte. Apenas encontramos um outro local.

A Comissão “Convivência” (um termo classista, muitas vezes racista que é sistematicamente utilizada pela administração da cidade) ocupou-se de tentar expulsar as pessoas que estavam bebendo na praça, mas não os jovens estudantes brancos, apenas os mais velhos, homens sem-teto geralmente imigrantes que dormiam na praça. Eles também tentaram várias vezes expulsar os imigrantes sem documentos que tinham que trabalhar vendendo cervejas ou bolsas nas ruas e que, muitas vezes, tinham que correr da polícia. Os membros da Comissão tentaram negar o acesso destes imigrantes ao espaço seguro que tínhamos criado na praça, e só pararam quando algumas pessoas do nosso grupo decidiram meter o dedo na cara deles, dizendo que estavam sendo racistas e que, se precisasse, iam usar a violência para que parassem com isso.

Chamar o movimento 15M de imperfeito não é o mais preciso. Todas as dinâmicas opressivas, todos os hábitos da passividade e do autoritarismo na nossa sociedade nos seguiram para dentro da praça. Mas ali, naquele espaço coletivo, tínhamos a oportunidade de enfrentá-los. As estruturas de democracia direta apenas mascaravam ou exacerbavam essas dinâmicas; elas eram tentativas fracas de controlar o caos que passava despercebido. Mesmo algumxs anarquistas não conseguiram ver isso. Como muitas outras pessoas distraídas com a aura da oficialidade – os títulos e processos, comissões, programações e diagramas. Tudo aquilo era uma farsa. A imposição de um modelo oficial foi montado para desviar nossa atenção e, ao mesmo tempo, controlar nossa participação. Espero que da próxima vez saibamos não levar isso tão a sério.

Com o tempo, o movimento 15M diminuiu, novamente imerso nos conflitos sociais que deram origem a ele, e que continuaram inabalados. Por um tempo, muitxs anarquistas em Barcelona participaram com milhares de outras pessoas nas assembleias de bairro que substituíram a ocupação  da Praça Catalunya.

Protestos contra desalojos devido a hipotecas se tornaram frequentes. Houveram ocupações de escolas e hospitais contra as medidas de austeridade. Greves gerais e confrontos nas ruas. Protestos contra novas leis repressivas. Ondas de prisões e contra-mobilização. A luta continuou.

Assembléia de bairro, Maio de 2011.

O surgimento desses movimentos nos ensinou uma série de coisas. Suas origens confirmaram certas teorias anarquistas sobre conflito social. Eles não foram mecanicamente desencadeados por condições materiais, como se tendessem a vir antes da crise ou dos piores efeitos econômicos da austeridade. Eu diria que não existem condições materiais, apenas interpretações das pessoas sobre suas condições. (Na verdade, toda a categoria chamada “material” parece mais uma tentativa grosseira de parecer científica, embora se baseie em uma dicotomia que vem desde as origens do ocidente e da civilização cristã.)

Os verdadeiros estopins dos movimentos e das revoltas foram uma empatia coletiva ou a sedução causada pelas revoltas que aconteceram em outros países, uma sensação coletiva de insegurança ou de avaliação de que o Estado tinha se tornado fraco; a indignação coletiva em resposta às medidas de um governo visto como um insulto à dignidade das pessoas e como ameaça ao seu bem-estar, e uma interpretação coletiva de que as condições ainda podiam se agravar.

Respostas institucionais nos mostraram que os governos muitas vezes reagem desajeitadamente aos movimentos emergentes, contribuindo para seu crescimento e radicalização, ao passo que os participantes reformistas ou sedentos de poder são os mais eficientes e espertos na criação de organizações que espelham o controle estatal dentro dos próprios movimentos, impedindo-os de desenvolver perspectivas revolucionárias.

Além disso, uma série de hipóteses sobre o pacifismo foram confirmadas: 1) nossa sociedade treina pessoas para apoiar acriticamente o pacifismo nos movimentos sociais, e assim, a corrente predominante de pacifismo se move progressivamente longe de uma prática que promove mudança social para uma prática de pacificação total; 2) a mídia, a polícia e os futuros líderes dos movimentos (e partidos) conspiram para impor o pacifismo; 3) a evolução natural dos movimentos leva a romper com a não-violência e desenvolver táticas mais empoderadoras. Mas os acontecimentos também nos deram a oportunidade de ver quando as multidões deixam de dar ouvidos demais aos aspirantes a líderes de movimentos sociais. Elas tendem a abandonar seu compromisso com a não-violência e a apoiar ou ao menos tolerar passivamente certas táticas ilegais ou destrutivas.

Por outro lado, o compromisso das lideranças com a democracia era mais profundo. Havia uma preocupação compartilhada, um apoio cego aos valores da democracia que lhes permitia legitimar a sua liderança sobre o que tinha sido um movimento anárquico.

O Democracia Real Ya fez um excelente trabalho de formulação de políticas medíocres definidas pelo seu populismo, vitimização, reformismo e moralismo. Usando termos comuns, carregados de valores tais como “democracia” (bom) e “corrupção” (ruim), eles criaram uma armadilha discursiva que recebeu apoio esmagador para todas as suas propostas enquanto desviava ou incluía falsamente propostas que iam além. Suas declarações incluíam linguagem revolucionária e o sentimento altamente popular que “vamos mudar tudo”, enquanto oferecia uma lista de demandas que basicamente hierarquizava o que era de maior valor para vender para o resto das pessoas. Tudo começou com a reforma da lei eleitoral, passando por leis para uma maior supervisão dos banqueiros e atingiu, no seu extremo mais radical, uma recusa em pagar os empréstimos de resgate para empresas privadas. Tudo foi estruturado em torno de demandas feitas ao governo existente, mas enfeitado em linguagem populista. Assim, o slogan popular anarquista Ningú ens representa (Ninguém nos representa), foi distorcido para dizer, “Nenhum dos políticos atualmente no poder nos representam: queremos políticos melhores para fazer isso”.

No entanto, para realizar este ato de equilíbrio, eles tiveram que adotar princípios de organização vagamente antiautoritárias herdados do movimento antiglobalização, como o compromisso de chamar assembleias e não ter porta-vozes ou partidos políticos. Propostas baseadas na ação direta ou em sentimentos de rejeição ao governo e ao capitalismo foram facilmente neutralizadas dentro deste modelo ideológico. As ações diretas seriam paternalisticamente toleradas enquanto projetos paralelos bonitinhos que não atrapalhassem o projeto maior de implementar demandas reformistas. A rejeição ao governo e ao capitalismo seriam aplaudidas e linkadas à retórica popular em uso, e corrompida para representar uma oposição aos políticos atualmente no poder e a banqueiros específicos.

A única maneira de contestar essa cooptação da revolta popular foi concentrar a crítica na democracia em si. Rapidamente descobrimos que a ideia de democracia direta foi a principal barreira teórica que protegia a democracia representativa existente. E ativistas da democracia direta, incluindo anarquistas, eram a ponte delicada entre os militantes parasitas e esse corpo social.

A experiência na praça nos ensinou na prática o que já tínhamos discutido na teoria: de que a democracia direta recria a democracia representativa; que não são certas características que podem ser reformadas (financiamento de campanha, limites de mandato, referendos populares), mas os ideais mais centrais da democracia que são inerentemente autoritários. A coisa bonita sobre o acampamento na praça foi que ele tinha vários centros de tomada de decisão e criação. A assembleia central funcionava para suprimir isso e, se tivesse conseguido, a ocupação teria morrido muito mais cedo. Ela não teve sucesso, em parte graças à intervenção anarquista.

A assembleia central não deu à luz nem uma única iniciativa. Ao invés disso, o que ela fez foi dar legitimidade às iniciativas trabalhadas nas comissões; mas este processo não deve ser retratado em termos positivos. Esta concessão de legitimidade era na verdade um roubo da legitimidade de todas as decisões tomadas nos vários espaços ao longo da praça que não foram incorporados em uma comissão oficial. Várias vezes, representantes autonomeados desta ou daquela comissão tentaram suprimir as iniciativas espontâneas que não levavam seu selo de legitimidade. Em outras ocasiões, comissões, moderadores e militantes internos contrariavam especificamente decisões tomadas na assembleia central, mas só quando isso favorecia uma maior centralização. Esta não é uma questão de corrupção ou de um modo ruim. A democracia sempre subverte os seus próprios mecanismos para favorecer quem está no poder.

Inúmeras vezes vimos na praça uma correlação entre a democracia e a paranoia de controle: a necessidade de que todas as decisões e iniciativas passem por um ponto central, a necessidade de tornar legível a atividade caótica de uma ocupação feita de multidões a partir de um único ponto de vista – ou, por assim dizer, de uma sala de controle. Este é um impulso estatista. A necessidade de impor a legibilidade em  situações sociais – que são sempre caóticas – é compartilhada por ativistas da democracia que pretendem impor uma nova estrutura organizacional brilhante; pelo cobrador de impostos que precisa que toda atividade econômica seja visível para então ser reapropriada; e pelo policial, que deseja uma vigilância total, a fim de controlar e punir. Também achei que muitxs anarquistas de diversas linhas ideológicas não foram capazes de ver a diferença teórica crucial entre as oposições democracia representativa versus democracia direta / consenso e centralização versus descentralização, porque em ambos os casos, esses termos em conflito se transformaram em sinônimos na prática. Por esta razão, decidi reabilitar o termo “caos” no meu uso pessoal, uma vez que é um termo assustador que nenhum populista no contexto atual iria usar e abusar. E isso se relaciona diretamente com teorias matemáticas que expressam o tipo de organização acéfala mutável, conflituosa e renovadora que anarquistas estão pedindo.

Chamam isso de Democracia
Chamam isso de Democracia

II. Ossificação

Outono de 2015

Junts pel Sí, a coalizão pró-independência que reúne os principais partidos de direita e de esquerda na Catalunha, ganhou as eleições regionais. Juntamente com a CUP – uma plataforma ativista popular que toma decisões em assembleias, e que surgiu a partir dos movimentos sociais para aproveitar mais de 10% dos votos–, eles têm uma maioria no parlamento catalão e anunciaram que vão fazer uma declaração unilateral de independência, transformando o parlamento em uma assembleia constituinte para uma nova constituição, rompendo com Espanha. Enquanto isso, o Partido Socialista e Partido Popular, que até há quatro anos governavam o país em um sistema de dois partidos inabalável, ameaçam entrar com uma ação legal desde Madrid. Podemos, um partido político ativista inspirado no Syriza, promete um referendo sobre a questão da independência para a Catalunha, o País Basco, a Galícia, se forem eleitos e chegarem ao poder. Eles sugerem a possibilidade de uma nova constituição, transformando a Espanha em uma nação de nações. Os jornais e a TV estão cheios disso todos os dias. Todo mundo aguarda, com expectativa.

Na primavera, as plataformas de ativistas, algumas delas com menos de um ano de idade, ganharam as eleições em Madrid, Valência e Barcelona. Em Donostia, o recém legalizado partido pela independência basca, Bildu, já estava no poder. Estes constituem quatro das cidades mais importantes da Espanha, incluindo as duas maiores.

A nova prefeita de Barcelona, Ada Colau, já foi ativista dos movimentos de moradia e já foi presa em um ato de desobediência civil para impedir um despejo que foi bem noticiado na mídia. Todo mundo discute sobre se ela vai cumprir suas promessas e proteger as famílias que não podem pagar as hipotecas de serem expulsas de suas casas. Será que ela vai criar emprego digno? Será que ela vai parar os estragos do turismo que estão refazendo a cidade? Todo mundo aguarda, com expectativa.

Madrid Plaza del Sol, mais uma vez cheia de pessoas, durante uma manifestação convocada pelo Podemos em 2015.
Madrid Plaza del Sol, mais uma vez cheia de pessoas, durante uma manifestação convocada pelo Podemos em 2015.

Um novo texto anarquista de Barcelona, “Uma aposta no futuro”, argumenta que esses novos partidos políticos são o resultado da morte do movimento 15M. Os aspirantes a líderes não conseguiram transformar diretamente movimento em um novo partido político, embora certamente tivessem tentado. Em todo o país, centenas de milhares de pessoas deram uma chance para a auto-organização em assembleias. E diante disso, elas alcançaram exatamente nada. Alguns anos mais tarde, em um clima de decepção geral, passividade e desmobilização, o Podemos e outros partidos políticos novos, como o Barcelona en Comu, foram formados. Plataformas de ativistas-que-viraram-partidos-políticos, como a CUP ou Compromis em Valência, prepararam-se para agarrar uma fatia maior do bolo. Os poucos remanescentes das assembleias de bairros ou do 15M, totalmente depenados, tornaram-se ferramentas de recrutamento para um partido ou outro.

A democracia espanhola foi se regenerando. As pessoas, depois de terem falhado, estão mais uma vez prontas para depositar a sua confiança nos políticos, contanto que eles sejam novos rostos fazendo novas promessas. A democracia direta revelou como ela se transforma novamente em democracia representativa, à medida que aumenta sua escala.

Nesta conjuntura, podemos ver como a democracia direta protegeu e revitalizou a democracia representativa. Coerente com sua ênfase na participação formal, superficial e regulamentada em um espaço alienado da política – a assembleia central como o juiz de todas as tomadas de decisões –, o movimento pela democracia direta buscou propor um conjunto de exigências com base na reforma institucional e do consenso social.

O que isso significa nos detalhes da vida cotidiana e da luta? Como todas as outras formas de governo, a democracia direta preserva e até mesmo celebra a política como uma esfera alienada da vida. Na verdade, a política – gestão da polis – é diretamente democrática nas suas origens. Em uma das alienações originais, as pessoas são feitas espectadores para as decisões que determinam como elas vivem.

As assembleias são uma ótima maneira de tomar certas decisões em situações específicas, mas a democracia direta dá precedência à assembleia geral sobre o grupo de afinidade, sobre a cozinha, sobre o círculo de estudo, sobre a oficina de trabalho e mais de um milhão de outros espaços em que nos organizamos por nós mesmxs. Este é um paralelo exato sobre como todos os governos concedem uma legitimidade exclusiva a qualquer forma de tomada de decisão que eles controlarem dentro dos canais institucionais. Um governo dirigido por estadistas carismáticos vai dar preferência a um congresso ou parlamento, um governo dirigido por tecnocratas vai dar prioridade aos bancos centrais e as comissões estaduais … e um governo dirigidos por ativistas de base a caminho da profissionalização vai dar prioridade à assembleia.

Em uma das revoluções que definiu modelos na era moderna, os bolcheviques fizeram uso dos sovietes – que funcionavam como assembleias democráticas e que anarquistas contemporâneos como Voline diziam estar prontas para cooptação – até que eles haviam consolidado seu Estado burocrático o suficiente para não precisar mais da estrutura anterior. A compatibilidade entre o que foi uma democracia direta (ou pelo menos federativa) e o “centralismo democrático” bolchevique que a aboliu e assumiu o controle não nos deve passar despercebido. Não é história antiga, mas um padrão que continua a se repetir.

A democracia direta se diferencia de outras formas de governo através de uma ênfase no princípio do “autogoverno”. Anti-autoritárixs que defendem a democracia direta podem evitar esse termo, mas na verdade ele é bastante preciso. A democracia direta envolve as pessoas no seu próprio governo, o que quer dizer a sua própria alienação em relação à tomada de decisão social. Podemos ver isso na forma como as pessoas em Praça Catalunya acabaram abstendo-se ou passando batido pelas pautas nas assembleias noturnas. Ao ser dada uma oportunidade de autogoverno, elas estavam sendo reeducadas, de uma forma muito direta, precisa e de mãos dadas com o exato significado de governo. Não é por acaso que, logo em seguida, uma grande proporção dessas massas estava mais uma vez pronta para apoiar um partido político e reproduzir todos os mesmos problemas de impotência e alienação que as havia trazido para as praças em primeiro lugar.

Quando nós, anarquistas, dirigimos nossa raiva e nossas críticas aos defensores da democracia direta, não é porque somos tão dogmáticxs, tão encantadxs olhando nosso próprio umbigo ou purificando nossos minúsculos espaços de dissidência que preferimos atacar um aliado do que ir para cima dos verdadeiros bandidos dentro dos bancos, salas de reuniões e parlamentos. Pelo contrário, o motivo é que o movimento pela democracia direta constitui a extensão mais eficaz do Estado dentro das nossas lutas de libertação. No final, não somos vítimas. Vivemos em uma sociedade opressiva porque a cada dia ajudamos a reproduzir essa opressão. É por esta razão que criticamos. Assim como uma limitada “autogestão” no local de trabalho pode lhe transformar em seu próprio patrão, autogoverno lhe transforma em sua própria comandante, e não há nada mais triste do que ser o agente ativo em sua própria alienação. Em suma, o autogoverno significa ser o seu pior inimigo.

É por isso que era lógico para um movimento baseado na democracia direta defender demandas baseadas na reforma institucional e consenso social: o olhar do movimento já estava fixado em tomar o poder centralizado – o poder que decorre da nossa alienação e impotência – ao invés de destruí-lo. Em vez de propor o fim das instituições dominadoras, ativistas da democracia direta propuseram maneiras de corrigi-las. Em vez de buscar a abolição de uma sociedade hierárquica, em vez de escolher os lados nos antagonismos de classe, do colonialismo, e do patriarcado, eles procuraram a unidade social. Afinal de contas, a sociedade é a máquina que os políticos desejam dirigir, por isso não faz sentido para os aspirantes a políticos tentar desmontá-la.

Essa inclinação reformista desviou o movimento de uma rota de colisão com as autoridades. Os valores da democracia direta suprimiram um conflito mais radical que veio se preparando, como visto nos distúrbios durante o Primeiro de Maio, as greves gerais e assim por diante. E a verdade é que o conflito serve como um laboratório, como um caldeirão para a revolução. Ao limitar o conflito, o movimento para a democracia colocou uma desvantagem em nosso processo de aprendizagem coletiva e nos roubou as experiências que poderiam ter oferecido um vislumbre de um horizonte revolucionário, um sem governantes, sem exploração, sem dominação.

As promessas reformistas dos pretensos líderes conseguiram algo mais. Redirecionando a atenção para a questão dos resgates, dos fundos públicos, da corrupção do governo e assim por diante, eles distraíram as pessoas da possibilidade vital de responder à austeridade no terreno da vida diária, com a auto-organização coletiva das nossas necessidades. E porque nenhuma reforma foi atingida através das assembleias, a maioria das pessoas as consideram como um fracasso. Interessante e inspiradoras mas, acima de tudo, derrotas. Certamente, os pragmáticos estavam corretos em dizer que a auto-organização na escala da sociedade é uma utopia idealista.

Essa propaganda enganosa cegou muitas pessoas para os avanços que as assembleias alcançaram de fato. Elas constituíram um importante primeiro passo – nos encontrar, começando um grande diálogo social – em direção à auto-organização da vida. E serviram como uma ferramenta para aumentar nosso poder, nossa capacidade de tomar o espaço público e transformá-lo em espaço comum. Na luta pelas nossas vidas, essa é uma grande vitória. Mas o pensamento por trás democracia direta não propõe colocar o poder de volta em nossas mãos para além de um nível simbólico e formalista, porque para o autogoverno funcionar, o poder deve permanecer centralizado, alienado.

Cuidado com o que deseja.
Cuidado com o que deseja.

Podemos culpar a democracia e os seus ingênuos proponentes de tentar vender essa ideia de revolução fadada ao fracasso desde o início, ou por não perceber, depois de tantas falhas semelhantes antes dela, que a revolução não é pragmática ou cautelosa. Mas que ela deve ser levada para além dos nossos horizontes, em direção ao imprevisível, ao incerto, aos limites mais distantes da nossa imaginação, ou então morrerá.

Mas não assistimos passivamente esse fracasso. Acho que, como um todo, nós – aqui, me refiro simplesmente a mim mesmx e a amigxs que eu estava em contato mais próximo naqueles dias – rapidamente aprendemos como prevenir que aspirantes a cargos políticos tomassem ou centralizassem as novas assembleias. Ou, no caso da assembleia da Praça Catalunya, que rapidamente se tornou grande demais para funcionar de forma empoderadora. Aprendemos como tornar evidentes as suas falhas e como tirar o potencial máximo de outros espaços de organização e de encontro. Muitas vezes, isso significava nos opor ao modelo de assembleia centralizada baseada em um processo de decisão unitário com o nosso próprio modelo baseado nas diferenças, na pluralidade, por múltiplas vias de tomada de decisão e sobre a total liberdade de ação, o que significa que qualquer pessoa poderia fazer o que quisesse sem permissão de uma assembleia, desde que cultivando o respeito mútuo para que os inevitáveis conflitos entre as diferentes correntes de atividade fossem construtivas e não paralisantes e destrutivas.

O que não aprendemos a fazer, vendo agora em retrospectiva, foi lançar propostas que uma grande parte da assembleia poderia se animar em participar; propostas resultantes de uma análise radical; propostas de soluções para a austeridade com base na ação direta e a auto-organização imediata de nossas necessidades, fora e contra as imposições do capitalismo.

Como o texto acima argumenta, na verdade, não é nossa responsabilidade como anarquistas chegar com as soluções para o resto da sociedade, mas se não somos capazes de descobrir como usar assembleias heterogêneas para avançar projetos antiautoritários baseados em apoio mútuo em resposta às necessidades reais das pessoas, como podemos esperar que qualquer outra pessoa faça isso?

É neste sentido que as assembleias acabaram sendo inúteis. Ninguém se atreveu a dar o passo de usá-las para cumprir nossas necessidades coletivas. O capitalismo e o governo democrático estavam esperando, como sempre, para intervir e oferecer suas próprias soluções.

21 de maio de 2011: Mesmo se nos reunirmos para protestar contra as eleições, acabaremos entrando ou criando um novo partido ao invés de começar a resolver os nossos problemas diretamente.

Essa falha poderia ser o assunto para um livro inteiro, ou melhor, para um processo de aprendizagem coletiva envolvendo milhares de pessoas sonhadoras e revolucionárias e as gerações que virão. Para concluir, como um simples gesto de apontar outros caminhos para avançar a partir deste impasse, vou mencionar dois componentes que senti falta: imaginação e habilidades.

Imaginação

É a capacidade de cria o nosso imaginário: visões de outros mundos em que nossos desejos e projeções podem residir, ou até mesmo prosperar, nos momentos em que o capitalismo não permite espaços autônomos nos quais as relações comunais podem se desenvolver. Não é por acaso que os movimentos revolucionários de hoje não  imaginam outros mundos, nem é uma coincidência que grande parte da produção capitalista suprime a imaginação de seus consumidores, oferecendo imaginários prontos, cada dia mais elaborados, mais visualmente estimulantes, mais interativos, para que as pessoas não tenham mais que imaginar qualquer coisa para si mesmos, porque mil mundos e fantasias já vêm pré-fabricadas. Todas as antigas fantasias que são utilizadas para criar nossos sonhos já foram fixadas em produções de Hollywood, com atores convincentes, terrenos plenamente representados, e trilhas sonoras emocionantes. Não sobra nada para recriarmos por nós mesmxs, apenas para consumir.

No atual mercado de ideias, parece que os únicos imaginários que descrevem o nosso futuro são o apocalipse ou a colonização de outros planetas da ficção científica. Aliás, a segunda é a última fronteira para a expansão capitalista, agora que este planeta está sendo rapidamente consumido e a primeira é a única alternativa que o capitalismo permite pensar que existe para além do seu domínio. Nos encorajam a imaginar que viveremos nos únicos mundos que podem ser concebidos de dentro da perspectiva capitalista.

Radicais e revolucionárixs de cem anos atrás sempre sonharam e planejaram um mundo sem Estado e sem capitalismo. Algumas dessas pessoas cometeram o erro de transformar seus sonhos em modelos, diretrizes dogmáticas que, na prática funcionavam como pontos de referência que permitiam julgar quem pensava ou agia diferente. Mas hoje estamos diante de um problema muito maior: a ausência de imaginários revolucionários e a quase atrofia total da imaginação em nós mesmas e no resto da sociedade. E a imaginação é o órgão mais revolucionário em nosso corpo, porque é o único capaz de criar novos mundos, de viajar para fora do capitalismo e da autoridade do Estado, e de nos permitir superar os limites da insurreição que se tornaram tão evidentes nestes últimos anos.

Hoje, conheço poucas pessoas que podem imaginar o que a anarquia pode ser. A incerteza não é o problema. Como sugeri anteriormente, a incerteza é um dos fundamentos da organização caótica e é apenas a neurose autoritária dos Estados que nos obriga a impor a segurança ou a certeza sobre uma realidade que está sempre mudando. O problema é que esta falta de imaginação constitui uma ausência do mundo. Uma parte vital de nós não está mais lá, como costumava estar, além do horizonte, no limiar entre claro e escuro, discernindo, modulando, e dando boas-vindas a cada novo personagem que entra em nossas vidas. O mundo da dominação já não tem de lidar com nossos mundos despedaçados, as várias formas de paraísos e recompensas prometidas pelas autoridades já não têm de superar o ridículo dos nossos contos de fadas, e as grandes sombras projetadas pelas estruturas de dominação não contêm milhares de possibilidades de coisas que poderíamos construir sobre suas ruínas; agora eles são apenas sombras vazias e obscuras.

As nossas perspectivas, no entanto, não são irremediavelmente sombrias. A imaginação pode ser sempre renovada e revigorada, embora devemos enfatizar a importância radical deste trabalho se as pessoas estão mais uma vez dispostas a criar, compartilhar e discutir novos mundos possíveis ou profundas transformações deste mundo. Eu diria que esta tarefa é ainda mais importante do que a contrainformação. Alguém que deseja a revolução sempre pode se educar, mas alguém que não pode sequer conceber uma transformação vai ser impermeável aos argumentos mais bem documentados.

Habilidades

O que complementa nossa falta de imaginação é a nossa falta de habilidades, embora não tão grave quanto a primeira. Desde a Segunda Guerra Mundial, atrofiar habilidades tem sido uma característica essencial do capitalismo. As habilidades que precisamos para sobreviver no mercado capitalista são completamente redundantes, totalmente inúteis para a sobrevivência em qualquer outro modo de vida. Sem as habilidades para construir, para curar, para corrigir, para transformar, para alimentar, apoio mútuo e auto-organização não podem ser nada mais do que slogans superficiais e vazios. O que estamos organizando? Apenas uma outra reunião, outro protesto? Que tipo de ajuda estamos mutualizando? Compartilhando nossa miséria, compartilhando o lixo que o capitalismo ainda não descobriu como fazer para comercializar?

Felizmente, algumas pessoas ainda sabem como curar, como cuidar, como alimentar, como construir, e mais pessoas estão começando a aprender a fazer isso. No entanto, geralmente essas não são tratadas como atividades revolucionárias, nem são praticadas de uma forma revolucionária. Qualquer pessoa pode aprender terapias naturais ou jardinagem, transformar isso em um negócio e o capitalismo ficará contente em tolerar uma nova habilidade – mas só enquanto houverem consumidores ricos o suficiente para servirem de patronos.

É só quando essas habilidades são postas a serviço de uma imaginação revolucionária e uma postura coletivamente combativa contra as instituições dominantes que a possibilidade de criar um novo mundo surge. Ao mesmo tempo, devemos deixar nosso imaginário mudar e crescer enquanto entram em contato com nossas habilidades construtivas e a combatividade que cultivamos. E as práticas de negação, sabotagem, e autodefesa coletiva que foram aprendidas nesse espaço de antagonismo devem ser postas a serviço dos nossos projetos construtivos e de nosso imaginário,

As raízes do Podemos.
As raízes do Podemos.

A regeneração da democracia, aqui e em outros lugares, deu um novo sopro de vida para as estruturas de dominação que vinham perdendo a credibilidade para tantas pessoas. Um futuro sombrio se ergue e talvez estejamos nos afastando cada vez mais de qualquer possibilidade revolucionária. Mas a realidade caótica do universo nos oferece uma promessa: nada é previsível, o futuro não está escrito e as estruturas mais rígidas estão quebradas, ridicularizadas e esquecidas no veloz e selvagem rio dos tempos.

Aparentemente, sistemas impenetráveis se desintegram e novas formas de vida emergem. Temos todos os motivos para aprender com nossos erros, renovar a nossas convicções nas teorias que os eventos recentes confirmaram e, mais uma vez, convidar todas as pessoas que querem participar dessa busca sonhadora pela liberdade total. As soluções fáceis e falsas promessas oferecidas pelos autointitulados pragmáticos – alguns deles sinceros, outros com fome de poder – só vão nos levar a uma derrota igual às que sofremos muitas vezes antes. As pessoas vão aprender a reconhecer isso, se não deixarmos a memória desaparecer.

Lembrem-se de como chegamos até aqui.
Lembrem-se de como chegamos até aqui.

 


NOTA: Esse texto faz parte de uma série e um debate internacional analisando a Democracia sob uma perspectiva anarquista. Não só a democracia representativa burguesa é abordada, mas também as experiências de democracia direta nos diversos movimentos e levantes ao redor do mundo nos últimos anos.

Outros textos serão publicados desenvolvendo a questão localmente. Encorajamos também um debate fora das redes. Convide e organize debate sobre a relação entre democracia e anarquaia na sua região.

Um grupo de discussão está sendo organizado via Crabgrass e pode ser acessado no link: we.riseup.net/democracyandanarchy
Para participar do fórum, siga os passoss:

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6. Leia e critique os artigos, responda ou crie suas próprias questões. Em breve mais textos traduzidos ou escritos em português serão postados.
7. Se puder, escreva suas próprias análises e ajude na tradução de mais textos.

 

DA DEMOCRACIA À LIBERDADE – parte 4 de 4

 

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NOTA: Esse texto faz parte de uma série e um debate internacional analisando a Democracia sob uma perspectiva anarquista. Para saber mais e participar, veja o primeiro artigo.

Rumo à Liberdade: Pontos de Partida

O anarquismo não representa a forma mais radical de democracia, mas um paradigma totalmente diferente de ação coletiva.”

Uri Gordon, Anarquia Viva!

A clássica defesa da democracia é de que ela é a pior forma de governo — com exceção de todas as outras. Mas se o governo em si é o problema, precisamos voltar à prancheta.

Reimaginar a humanidade sem governo é um projeto ambicioso; dois séculos de teoria anarquista apenas riscam o verniz. Para o propósito desta análise, vamos concluir com alguns valores básicos que podem nos levar para além da democracia, e algumas propostas gerais sobre como entender o que podemos fazer ao invés de governar. A maior parte do trabalho ainda está por ser feita.

Horizontalidade, Descentralização, Autonomia, Anarquia

Se pararmos para analisar, a democracia não alcança os valores que nos atraíram nela em primeiro lugar — igualdade, inclusão, autodeterminação. Ao lado destes valores, devemos adicionar horizontalidade, descentralização e autonomia como suas contrapartes indispensáveis.

A horizontalidade se popularizou muito desde o fim do século XX. Começando com a insurreição Zapatista e ganhando impulso com o movimento anti-globalização e a rebelião na Argentina, a ideia de estruturas sem lideranças espalhou-se até mesmo para o mundo dos negócios.

Mas a descentralização é tão importante quando a horizontalidade se não quisermos ficar presos em uma tirania de iguais, na qual todo mundo tem que concordar com algo para que alguém possa fazê-lo. Ao invés de um único processo pelo qual toda iniciativa tem que passar, a descentralização significa diversos locais de tomada de decisão e diversas formas de legitimidade. Desta maneira, quando o poder for distribuído de forma desigual em um dado contexto, isso poderá ser contrabalanceado em outro local. A descentralização significa preservar as diferenças – a diversidade ideológica e estratégica é uma fonte de força para os movimentos e comunidades, assim como a biodiversidade no mundo natural. Nós não devemos nem nos segregar em grupos homogêneos sob o pretexto da afinidade nem reduzir nossas políticas aos mínimos denominadores comuns.

A descentralização implica em autonomia – a habilidade de agir livremente a partir da sua própria iniciativa. A autonomia pode ser aplicada a qualquer nível ou escala – uma única pessoa, um bairro, um movimento, uma região inteira. Para ser livre, você precisa de controle sobre o que está imediatamente ao seu redor e sobre os detalhes de sua vida diária; quanto mais autossuficiente você for, mais garantida está a sua autonomia. Isso não precisa significar suprir todas as suas necessidades de forma independente; pode também significar o tipo de interdependência que te dá influência sobre as pessoas de quem você depende. Nenhuma instituição única deveria ser capaz de monopolizar o acesso a recursos ou relações sociais. Uma sociedade que promove autonomia exige o que um engenheiro chamaria de redundância: uma grande gama de opções e possibilidades em todo aspecto da vida.

Se queremos fomentar a liberdade, não basta afirmarmos somente a autonomia1. Uma nação-estado ou partido político pode afirmar autonomia; assim como os nacionalistas e os racistas. O fato de que uma pessoa ou grupo é autônomo nos diz muito pouco se as relações que cultivam com outros são igualitárias ou hierárquicas, inclusivas ou exclusivas. Se quisermos maximizar a autonomia para todas pessoas ao invés de simplesmente buscarmos ela para nós mesmos, temos que criar um contexto social no qual ninguém é capaz de acumular poder institucional sobre os outros. Temos que criar anarquia.

Desmistificando as Instituições

As instituições existem para nos servir, e não o contrário. Elas não têm nenhum direito inerente à nossa obediência. Nós nunca devemos investir nelas mais legitimidade além das nossas necessidades e desejos. Quando os nossos desejos entram em conflito com os conflitos de outras pessoas, podemos ver se um processo institucional pode produzir uma solução que satisfaça a todas; mas assim que damos a uma instituição o poder de resolver nossos conflitos e de ditar nossas decisões, estamos abdicando de nossa liberdade.

Isto não é uma crítica de algum modelo organizacional específico, ou uma defesa das estruturas “informais” ao invés das “formais”. Em vez disso, é um pedido de que tratemos todos os modelo como provisórios – que os reavaliemos e os reinventemos constantemente. Onde Thomas Paine queria coroar a lei como rainha, onde Rousseau teorizou o contrato social e onde os entusiastas mais recentes do sonho capitalista de uma sociedade baseada somente em contratos, nós contrapomos que quando as relações estão verdadeiramente no melhor interesse de todas participantes, não há a necessidade de leis ou contratos.

Da mesma forma, este não é um argumento em favor do mero individualismo, nem de tratar as relações como descartáveis, nem de nos organizarmos apenas com aqueles com quem compartilhamos as mesmas opiniões. Em um mundo superlotado e independente, não podemos nos recusar a coexistir ou coordenar-nos com os outros. O negócio é simplesmente que não devemos buscar legislar as relações.

Ao invés de deferirmos uma manual ou um protocolo, podemos avaliar as instituições de forma constante: elas recompensam a cooperação, ou a competição? Elas distribuem a iniciativa, ou criam gargalos de poder? Elas oferecem a cada participante a oportunidade de alcançar todo o seu potencial em seus próprios termos, ou impõem imperativos externos? Elas facilitam a resolução de conflitos em termos mutualmente aceitáveis, ou punem aqueles que fogem de um sistema codificado?

Ele expressou para nós que nunca deveríamos nos permitir sermos tentados por qualquer consideração de reconhecer o direito à existência de leis e instituições se a nossa consciência os condenava. Ele nos advertiu a não nos importarmos se uma maioria, não importa o quão grande, se opuser aos nossos princípios e opiniões; as maiores maiorias eram algumas vezes apenas quadrilhas organizadas.”

August Bondi, escrevendo sobre John Brown

Criando Espaços de Encontro

Ao invés de locais formais para a tomada de decisões centralizada, nós propomos uma variedade de espaços de encontro onde as pessoas podem se abrir para a influência umas das outras e encontrar outras que compartilham as suas prioridades. Encontro significa transformação mútua: estabelecer pontos comuns de referência, preocupações comuns. O espaço de encontro não é um corpo representativo vestido da autoridade para fazer as decisões por outras pessoas, nem um órgão governante usando a decisão da maioria ou o consenso. É uma oportunidade para as pessoas experimentarem agir em diferentes configurações de forma voluntária.

A assembleia geral que aconteceu imediatamente antes dos protestos contra o Tratado de Livre Comércio das Américas em 2001 em Quebec, Canadá, foi um clássico espaço de encontro. Esta reunião juntou uma vasta gama de grupos autônomos que vieram de todos os lugares do mundo protestar contra o tratado. Ao invés de tentar tomar decisões vinculativas, os participantes apresentaram as iniciativas que os seus grupos haviam preparado e se coordenaram para o benefício mútuo sempre que possível. Muitas decisões foram tomadas depois em discussões informais entre os grupos. Através desses meios, milhares de pessoas conseguiram sincronizar as suas ações sem a necessidade de uma liderança central, sem dar a polícia muita ideia da grande variedade de planos que iriam se desenrolar. Se a assembleia geral tivesse empregado um modelo organizacional destinado a produzir unidade e centralização, os participantes poderiam ter passado a noite inteira discutindo de forma infrutífera sobre objetivos, estratégias e quais táticas permitir.

A maioria dos movimentos sociais das últimas duas décadas foram modelos híbridos sobrepondo espaços de encontro com alguma forma de democracia. No Occupy, por exemplo, os acampamentos serviam como espaços de encontro sem fins definidos, enquanto as assembleias gerais tinham a intenção formal de funcionar como órgãos diretamente democráticos para a tomada de decisões. A maioria destes movimentos alcançou os seus maiores efeitos porque os encontros que eles facilitaram abriram oportunidades para ação autônoma, não porque eles centralizaram a atividade do grupo através da democracia direta. Se nós abordarmos o encontro como a força motriz destes movimentos, ao invés de como material bruto para ser moldado pelo processo democrático, isso pode nos ajudar a priorizar o que fazemos melhor.

Anarquistas frustrados com as contradições do discurso democrático têm algumas vezes se recolhido para se organizarem baseados apenas na afinidade preexistente. Mas a segregação nos leva à estagnação e à rixas. É melhor nos organizarmos com base nas nossas condições e necessidades para podermos entrar em contato com todas as outras pessoas que os partilham conosco. Somente quando compreendermos a nós mesmos como nós dentro de coletividades dinâmicas, ao invés de entidades à parte possuidoras de interesses estáticos, poderemos fazer algum sentido da rápida metamorfose pela qual as pessoas passam durante experiências como o movimento Occupy – e o tremendo poder do encontro de nos transformar se estivermos abertos a isso.

Cultivando Coletividade, Preservando a Diferença

Se nenhuma instituição, contrato ou lei deve ser capaz de ditar as nossas decisões, como iremos concordar sobre quais responsabilidades nós temos uns com os outros?

Alguma pessoas sugerem uma distinção entre grupos “fechados”, nos quais os participantes concordam em responder uns aos outros pelas suas ações, e grupos “abertos” que não precisam alcançar o consenso. Mas isso nos leva à pergunta: como traçamos uma linha entre os dois? Se nós respondemos aos nossos companheiros em um grupo fechado somente até o momento em que decidimos deixá-lo, e podemos deixá-lo a qualquer momento, isso não é muito diferente de participar de um grupo aberto. Ao mesmo tempo, nós estamos todos envolvidos, queiramos ou não, em um grupo fechado compartilhando um único espaço inescapável: o planeta. Então não é uma questão de distinguir os espaços nos quais temos que responder aos outros dos espaços nos quais podemos agir livremente. A questão é como fomentar tanto a responsabilidade quanto a autonomia em todos os níveis da escala.

Com este fim, nós partimos para criar coletividades mutuamente gratificantes em todos os níveis da sociedade – espaços nos quais as pessoas se identificam umas com as outras e tem motivos para fazer a coisa certa para com os outros. Elas podem assumir muitas formas, de cooperativas de habitação a assembleias de bairro a rede internacionais. Ao mesmo tempo, nós reconhecemos que teremos que reconfigurá-las constantemente de acordo com quanta intimidade e interdependência se provarem benéficas para os participantes. Quando uma configuração precisar mudar, não precisa ser um sinal de fracasso: pelo contrário, isso mostra que os participantes não estão competindo por hegemonia. Ao invés de tratar a tomada de decisões em grupo como uma busca pela unanimidade, nós podemos abordá-la como um espaço para que as diferenças se manifestem, para que os conflitos aconteçam e para as transformações acontecerem quando diferentes constelações sociais convergem e divergem. Descordar e dissociar-se pode ser tão desejável quanto chegar a um acordo, contanto que aconteçam pelas razões certas; as vantagens de se organizar em maiores números devem ser o suficiente para desencorajar as pessoas de se dividirem gratuitamente.

Nossas instituições devem nos ajudar a trazer à tona nossas diferenças, e não suprimi-las ou submergi-las. Algumas testemunhas que voltaram de Rojava relatam que quando uma assembleia lá não consegue atingir o consenso, ela se divide em dois, dividindo os recursos entre as partes. Se isto for verdade, oferece um modelo de associação voluntária que é um grande avanço sobre a unidade coerciva da democracia.

Resolvendo conflitos

Algumas vezes, dividir-se em grupos separados não basta para resolver conflitos. Para descartar a coerção centralizada, nós temos que inventar novas formas de abordar disputas. Conflito entre as pessoas que se opõem ao Estado é uma das principais formas de preservar a sua supremacia2. Se quisermos criar espaços de liberdade, não devemos nos tornar tão divididos a ponto de não conseguirmos defender esses espaços, e não devemos resolver conflitos de forma que crie novos desequilíbrios de poder.

Uma das funções mais básicas da democracia é oferecer uma forma de encerrar disputas. Eleições, tribunais e a polícia, todos servem para decidir sobre os conflitos sem necessariamente resolvê-los; o Estado de Direito efetivamente impõe um modelo de lidar com as disputas onde o vencedor leva tudo. Ao centralizar a força, um Estado forte é capaz de obrigar os participantes de um conflito a suspender as hostilidades mesmo em termos que sejam mutuamente inaceitáveis. Isso lhe permite suprimir formas de luta que interferem no seu controle, como a guerra de classes, enquanto alimenta formas de conflito que sabotam a resistência horizontal e autônoma, como a guerra de gangues. Nós não podemos entender a violência religiosa e étnica da nossa época sem levar em consideração as formas em que as estruturas do Estado a provocam e a exacerbam.

Quando nós concedemos às instituições legitimidade inerente, isto nos oferece uma desculpa para não resolver os conflitos, confiando, ao invés disso, na interferência do Estado. Isso nos dá um álibi para encerrar as disputas à força e excluir aqueles que estão em desvantagem estrutural. Ao invés de tomarmos a iniciativa para resolver as coisas diretamente, nós acabamos em uma disputa por poder.

Se nós não reconhecemos a autoridade do Estado, não temos tais desculpas: devemos encontrar resoluções mutuamente satisfatórias ou então sofreremos as consequências de uma luta contínua. Isso nos dá um incentivo para levarmos a sério as necessidades e percepções de todas as partes, para desenvolver habilidades de reduzir as tensões. Não é necessário fazer com que todos concordem, mas temos que encontrar formas de viver com as diferenças que não produzam hierarquia, opressão ou antagonismo sem sentido. A primeira coisa a se fazer nessa direção é remover os incentivos que o Estado nos oferece para não resolvermos os conflitos.

Infelizmente, muitos dos modelos de resolução de conflitos que já foram utilizados pelas comunidades humanas agora estão perdidos, substituídos à força pelo sistema de tribunais das antigas Atenas e Roma. Podemos observar modelos experimentais de justiça transformativa para termos uma ideia das alternativas que teremos que desenvolver.

Recusando-se a Ser Governado

Para visualizar como seria uma sociedade horizontal e descentralizada, podemos imaginar redes de coletivos e assembleias que se interligam e se sobrepõem, nas quais as pessoas organizam-se para suprir suas necessidades diárias – comida, abrigo, cuidados médicos, recreação, discussão, companhia. Sendo interdependentes, elas teriam boas razões para resolver as disputas de forma amigável, mas ninguém poderia forçar outra pessoa a permanecer em um arranjo que não fosse saudável ou satisfatório. Em resposta às ameaças, elas se mobilizariam em formações temporárias, traçando conexões com outras comunidades ao redor do mundo.

De fato, muitas sociedades sem Estado se organizavam de forma um pouco parecida com essa ao longo da história humana. Hoje, modelos como esse continuam a aparecer nas interseções das tradições indígena, feminista e anarquista.

O princípio de que a maioria tem o direito de governar a minoria, praticamente resume todo governo em uma mera competição entre dois grupos de pessoas, sobre quais delas deverão ser as mestres, e quais as escravas; um competição que, por mais sangrenta, nunca poderá, pela natureza das coisas, ser encerrada, enquanto as pessoas se recusarem a ser escravas.”

Lysander Spooner, No Treason

Isso nos traz de volta ao nosso ponto de partida – à Atenas do dias modernos. Na cidade onde a democracia cresceu, milhares de pessoas agora se organizam sob faixas anarquistas em redes horizontais e descentralizadas. No lugar da exclusividade da antiga cidadania ateniense, a suas estruturas são abrangentes e sem fins definidos; elas abraçam os migrantes fugidos da Síria, pois elas sabem que o seu experimento em liberdade deve crescer ou perecer. No lugar do aparato coercitivo do governo, elas buscam manter uma distribuição descentralizada de poder reforçada por um compromisso coletivo de solidariedade. Ao invés de se unir para impor o governo da maioria, elas cooperam para prevenir a possibilidade de governo em si.

Este não é um modo de vida ultrapassado, mas o fim de um erro que dura muito tempo.

Da Democracia à Liberdade

Vamos voltar ao ponto alto dos levantes. Milhares de nós inundam as ruas, encontrando uns aos outros em novas formações que nos oferecem uma empolgante e desconhecida consciência do agir. De repente tudo se interliga: palavras e atos, ideias e sensações, histórias pessoass e eventos mundiais. Certeza – finalmente, nos sentimos em casa – e incerteza: finalmente, um horizonte aberto. Juntos, nos descobrimos capazes de coisas que nunca imaginamos.

O que é belo nesses momentos transcende qualquer sistema político. Os conflitos são tão essenciais como os momentos de inesperado consenso. Isso não é o funcionamento da democracia, é a experiência de liberdade – de pegar nossos destinos em nossas próprias mãos coletivamente. Nenhum conjunto de procedimentos poderia institucionalizar isto. É um prêmio que devemos arrancar das garras do hábito e da história repetidas vezes.

Da próxima vez que uma janela de oportunidades se abrir, ao invés de reinventarmos a “real democracia” mais uma vez, vamos deixar o nosso objetivo ser a liberdade, a liberdade em si.

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Fim da última parte.


1. “Autonomia” vem do grego antigo prefixo auto-, eu, e nomos, lei: quem dá a si mesmo a própria lei. Isto sugere uma compreensão da liberdade pessoal em que um aspecto do eu – digamos, o superego – permanente controla os outros e determina todo o comportamento. Kant define autonomia como auto-regulamentação, em que o indivíduo obriga-se a cumprir com as leis universais da moral objetiva em vez de agir de acordo com seus desejos. Por outro lado, um anarquista pode argumentar que devemos a nossa liberdade para a interação espontânea das forças inumeráveis dentro de nós, não para a nossa capacidade de forçar um único comando sobre nós mesmos. Qual dessas concepções de liberdade devemos abraçar é uma questão que terá repercussões sobre tudo, desde como podemos imaginar a liberdade em escala planetária até a forma como entendemos os movimentos das partículas subatômicas.

2. Por exemplo as Autodefensas no México que se organizaram para defender-se contra os cartéis que são praticamente tão opressivos quanto o governo em algumas partes do México, só para acabar se destruindo em guerras de gangues.

DA DEMOCRACIA À LIBERDADE – parte 2 de 4

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NOTA: Esse texto faz parte de uma série e um debate internacional analisando a Democracia sob uma perspectiva anarquista. Para saber mais e participar, veja o primeiro artigo.

Democracia Representativa – Um Mercado para o Poder

O governo dos E.U.A. tem mais em comum com a república da Roma antiga do que com Atenas. Ao invés de governar diretamente, os cidadãos romanos elegiam representantes para encabeçar uma complexa burocracia. Enquanto o território romano se expandia e a riqueza enchia seus cofres, pequenos fazendeiros perdiam o seu sustento e uma massa de desalojados inundou a capital; o descontentamento forçou a República a estender os direitos a voto para segmentos cada vez maiores da população, mas a inclusão política não adiantou para impedir a estratificação da sociedade romana. Tudo isso parece vagamente familiar.

A República Romana terminou quando Júlio César chegou ao poder; a partir daí, Roma foi governada por imperadores. Mas pouca coisa mudou para o romano comum. A burocracia, o exército, a economia e os tribunais continuaram a funcionar da mesma forma.

Aquelas pessoas que acreditam que em uma grande distinção entre democracia e monarquia não conseguem apreciar como uma instituição política pode passar por tantas transformações e mesmo assim continuar a mesma. Mas um rápido olhar nos mostra que em toda a evolução da monarquia inglesa, com todas suas ampliações e revoluções, e mesmo com o seu salto através do mar para uma colônia que se tornou uma nação independente e então um poderoso Estado, as mesmas atitudes e funções estatais foram preservadas essencialmente sem qualquer mudança.”

Randolph Bourne, The State

Vamos pular dezoito séculos até a Revolução Norte-Americana. Indignados por terem que pagar impostos para um governo no qual não tinham representação, os súditos norte-americanos do Império Britânico se rebelaram e estabeleceram a sua própria democracia representativa1, que logo ficou completa com um Senado ao estilo romano. Entretanto, mais uma vez, a função do Estado permanece inalterada. Aqueles que lutaram para se livrar do rei descobriram que pagar impostos para um governo no qual tinham representação era pouco diferente. O resultado foi uma série de revoltas – a Rebelião de Shay, a Rebelião do Whisky, a Rebelião de Frie, e outras – todas as quais foram brutalmente reprimidas. O novo governo democrático obteve sucesso em pacificar a população quando o Império Britânico fracassou, graças à lealdade de muitas pessoas que tinham se revoltado contra o rei: pois afinal esse governo os representava, não é mesmo2?

Esta história se repetiu muitas e muitas vezes. Na revolução francesa de 1848, o chefe do departamento de polícia do governo provisório entrou no escritório deixado pelo chefe do departamento de polícia do rei e assumiu os mesmos documentos que seu antecessor havia deixado. No século 20, nas transições de ditaduras para democracias na Grécia, Espanha e Chile, e mais recentemente na Tunísia e no Egito, os movimentos sociais que derrubaram ditadores tiveram que lutar contra a mesma polícia, que agora respondia ao regime democrático. Isso é o kratos, o que alguns tem chamado de Estado Profundo (Deep State), passando de um regime para o seguinte.fig-7web

Leis, tribunais, prisões, agências de inteligência, cobradores de impostos, exércitos, polícia – a maioria dos instrumentos de poder coercitivo que consideramos opressivos em uma monarquia ou ditadura operam da mesma maneira em uma democracia. Mesmo assim, quando nos permitem que votemos em uma urna para decidir quem os supervisionará, supostamente devemos enxergá-los como nossos, mesmo quando são usados contra nós. Esse é o maior feito de dois séculos e meio de revoluções democráticas: ao invés de abolir os meios através dos quais os reis governavam, elas popularizaram esses meios.

Uma Assembleia Constituinte é o meio utilizado pelas classes privilegiadas, quando uma ditadura não é possível, ou para prevenir uma revolução, ou, quando uma revolução já explodiu, para parar o seu progresso com a desculpa de estar legalizando-o, e para retomar o quanto for possível dos ganhos que o povo teve durante o período revolucionário.”

Errico Malatesta, “Contra a Assembleia Constituinte como contra a Ditadura.”

A transferência de poder dos governantes para assembleias serviu para parar prematuramente os movimentos revolucionários desde a Revolução Norte-Americana. Ao invés de implementar as mudanças que queriam através da ação direta, os rebeldes confiaram essa tarefa a seus novos representantes no comando do Estado – somente para verem seus sonhos serem traídos.

O Estado é de fato poderoso, mas uma coisa que ele não pode fazer é dar liberdade aos seus súditos. Ele não pode, pois o seu próprio ser deriva da sujeição deles. Ele pode sujeitar os outros, ele pode comandar e concentrar recursos, ele pode impor deveres e tarefas, ele pode distribuir direitos e concessões – os prêmios de consolação para os governados –, mas ele não pode oferecer auto-determinação. Kratos pode dominar, mas não pode libertar. Ao invés disso, a democracia representativa promete a oportunidade de governar uns aos outros de forma rotativa: uma monarquia distribuída e temporária, tão difusa, dinâmica, mas ainda hierárquica como o mercado de ações. Na prática, uma vez que esse poder é delegado, ainda existem governantes que detêm um imenso poder comparado a todos os demais. Geralmente, como as famílias Bush e Clinton, eles vêm de uma classe dominante de fato. Esta classe dominante tende a ocupar os escalões superiores de todas as outras hierarquias de nossas sociedade, formais e informais. Mesmo que um político cresça no meio do povo, quanto mais ele exercita a autoridade, mais os seus interesses divergem dos interesses dos governados. O verdadeiro problema não são as intenções dos políticos; é o aparato do Estado em si.

Competindo pelo direito de dirigir o poder coercitivo do Estado, os competidores nunca questionam o valor do Estado em si, mesmo que na prática eles sempre se encontrem na ponta que recebe a sua força. A democracia representativa oferece uma válvula de escape: quando as pessoas estão descontentes, elas se voltam para as próximas eleições, aceitando o Estado como inevitável. E de fato, se você quer parar o lucro das corporações e a devastação ambiental, não é o Estado o único instrumento poderoso o suficiente para isso? Ignorando assim o fato de que foi o Estado que estabeleceu as condições que tornaram isso possível em primeiro lugar.

Eleições livres para mestres não é a abolição dos mestres de escravos. Poder escolher entre uma grande variedade de bens e serviços não significa liberdade se esses bens e serviços sustentam controles sociais sobre uma vida de trabalho e medo – isto é, se eles sustentam a alienação. E a reprodução espontânea de necessidades sobrepostas pelo indivíduo não estabelece autonomia; ela apenas testemunha a eficácia dos controles.”

Herbert Marcuse, O Homem Unidimensional

Basta de falar da desigualdade na política e na democracia. E a desigualdade econômica que tem servido à democracia desde o princípio? Você acharia que um sistema baseado no governo da maioria iria diminuir a desigualdade entre ricos e pobres, uma vez que os pobres são a maioria. Mas mesmo assim, como na Roma antiga, o atual crescimento da democracia é acompanhado de abismos enormes entre os que têm e os que não têm. Como pode ser?

Assim como o capitalismo substituiu o feudalismo na Europa, a democracia representativa provou-se mais sustentável que a monarquia pois ela oferecia mobilidade dentro das hierarquias do Estado. O dólar e a urna são mecanismos para distribuir poder hierarquicamente de forma que alivie as pressões sobre as próprias hierarquias. Em contraste com a inércia política e econômica da era feudal, o capitalismo e a democracia redistribuem o poder ininterruptamente. Graças à essa flexibilidade dinâmica, o possível rebelde tem mais chances de melhorar o seu status dentro da ordem prevalecente do que lutando contra ela. Consequentemente, a oposição costuma reenergizar o sistema político ao invés de ameaçá-lo.

A democracia representativa está para a política como o capitalismo está para a economia. Os desejos do consumidor e do eleitor são representados por valores que prometem o empoderamento individual mas ainda assim concentram poder no topo da pirâmide incansavelmente. Enquanto o poder estiver concentrado lá, é muito fácil bloquear, comprar ou destruir qualquer pessoa que ameace a pirâmide em si.

Isto explica por que, quando os ricos e poderosos vêm os seus interesses ameaçados pelas instituições da democracia, eles foram capazes de suspender a lei para lidar com o problema – veja o destino cruel dos irmãos Gracchi, que eram dois senadores que tentaram implementar a reforma agrária na Roma antiga, e de Salvador Allende no Chile. Dentro da estrutura do Estado, a propriedade sempre supera a democracia3.

Na democracia representativa, assim como na competição capitalista, todos supostamente têm uma chance, mas apenas uns poucos podem chegar ao topo. Se você não venceu, você não deve ter se esforçado! É a mesma racionalização usada para justificar as desigualdades do sexismo e do racismo: vejam, seus preguiçosos, vocês poderiam ser o Gilberto Gil ou a Dilma se vocês tivessem se esforçado mais. Mas não existe espaço suficiente no topo para todos nós, não importa o quanto nos esforcemos.

Quando a realidade é gerada pela mídia e o acesso à mídia é determinado pela riqueza, as eleições são simplesmente campanhas publicitárias. A competição do mercado irá ditar quais lobistas terão os recursos para determinar o cenário no qual os eleitores tomarão suas decisões. Nessas circunstâncias, um partido político é simplesmente uma empresa oferecendo oportunidades de investimento no governo. É tolice esperar que os representantes políticos se oponham aos interesses dos seus clientes quando eles dependem diretamente do seu poder.”

Crimethinc, “Work”

Democracia Direta: Governo sem o Estado

Isso nos traz ao presente. A África e a Ásia estão presenciando novos movimentos em favor da democracia; enquanto isso, muitas pessoas na Europa e nas Américas, que estão desiludidas com os fracassos da democracia representativa, colocaram as suas esperanças na democracia direta, trocando o modelo da República Romana para o modelo mais antigo de Atenas. Se o problema é que o governo não responde às suas necessidades, a solução não seria deixar o governo mais participativo, de forma que teremos nós mesmo o poder ao invés de delegá-lo a políticos?

Mas o que exatamente isto significa? Significa votar em leis ao invés de votar em deputados? Ou derrubar o governo atual e instituir um governo de assembleias federadas em seu lugar? Ou outra coisa?

A verdadeira democracia existe somente na participação direta do povo, e não através da atividade de representantes. Parlamentos têm sido uma barreira legal entre o povo e o exercício da autoridade, excluindo as massas da política significativa e monopolizando a soberania em seu lugar. As pessoas ficam apenas com uma fachada de democracia, cuja manifestação são longas filas para depositar suas cédulas eleitorais”.

Mu’ammer al Gaddafi, The Green Book

Por um lado, se a democracia direta é apenas uma forma mais participativa e mais demorada de dirigir o Estado, ela pode nos oferecer mais influência nos detalhes do governo, mas vai preservar a centralização de poder que é inerente a ele. Temos um problema de escala aqui: podemos imaginar 190 milhões de eleitores diretamente conduzindo as atividades do governo brasileiro? A resposta padrão é que assembleias locais enviariam representantes a assembleias regionais, que por sua vez enviariam representantes a uma assembleia nacional – mas assim, mais uma vez, estamos falando de democracia representativa. Na melhor das hipóteses, ao invés de eleger representantes periodicamente, podemos imaginar uma incessável série de referendos decretados lá de cima.

Uma das versões mais robustas desta visão é a democracia digital, ou e-democracia, promovida por grupos como o Partido Pirata . O Partido Pirata já foi incorporado no sistema político existente; mas na teoria, podemos imaginar uma população conectada através da tecnologia digital, tomando todas as decisões sobre a sua sociedade pelo voto da maioria em tempo real. Em um sistema assim, o governo da maioria ganharia uma legitimidade irresistível; e mesmo assim o maior poder estaria nas mãos dos tecnocratas que administrariam o sistema. Codificando os algoritmos que decidiriam quais informações e quais questões seriam votadas, eles moldariam a estrutura conceitual dos participantes de uma forma milhares de vezes mais invasiva que as propagandas políticas em ano de eleição.

O projeto digital de reduzir o mundo à representação se assemelha ao programa da democracia eleitoral, no qual somente os representantes agindo através dos canais preestabelecidos pode exercer o poder. Ambos se opõe a tudo que é incomputável e irredutível, forçando toda humanidade dentro de um padrão uniforme arbitrário. Moldada como democracia eletrônica, eles apresentariam a oportunidade de votarmos em uma vasta gama de assuntos, enquanto tornariam a própria infraestrutura inquestionável – quanto mais participativo for um sistema, mais ’legítimo’”.

Crimethinc, “Deserting the Digital Utopia”

Mas mesmo se pudéssemos fazer tal sistema funcionar perfeitamente – nós queremos manter o governo centralizado da maioria em primeiro lugar? O simples fato de ser participativo, não torna um sistema político menos coercitivo. Enquanto a maioria tiver a capacidade de impor as suas decisões sobre a minoria, estamos falando de um sistema político idêntico em espírito ao que governa o Brasil hoje – um sistema que também precisaria de prisões, polícia, cobradores de impostos, ou então, outras formas de realizar as mesmas funções. A verdadeira liberdade não é uma questão de quão participativo é o processo de responder perguntas, mas a extensão até onde podemos definir as perguntas nós mesmos – e a possibilidade de impedirmos que os outros imponham suas respostas sobre nós. As instituições que operam em uma ditadura ou em um governo eleito não são menos opressivas quando são utilizadas diretamente por uma maioria sem a mediação de representantes. Em última análise, até mesmo o Estado mais diretamente democrático é melhor em concentrar poder do que em maximizar a liberdade.

Por outro lado, nem todo mundo acredita que democracia é uma forma de governo do Estado. Alguns defensores da democracia tentaram transformar o discurso, argumentando que a verdadeira democracia só acontece fora do Estado e em oposição ao seu monopólio de poder. Para os oponentes do Estado, esta parece ser uma manobra estratégica, pois se apropria da legitimidade investida na democracia ao longo de três séculos de movimentos populares e propaganda estatal auto-elogiosa. Mas existem três problemas fundamentais com esta abordagem.

Primeiro, isso ignora a história. A democracia surgiu como uma forma de governo estatal; praticamente todos exemplos históricos conhecidos de democracia foram executados via Estado ou pelo menos por pessoas que aspiravam governar. As associações positivas que temos com a democracia como conjunto de aspirações abstratas vieram só mais tarde.

fig-14webEm segundo lugar, é confuso. As pessoas que promovem a democracia como alternativa ao Estado raramente traçam uma distinção significativa entre os dois. Se você descartar a representação, a força coercitiva e o Estado de Direito, mas mantiver todas as outras características que fazem da democracia uma forma de governo – a cidadania, o voto e a centralização da legitimidade em uma estrutura única de tomada de decisões – você acaba ficando com os processos do governo sem os mecanismos que os tornam eficientes. Isso combina o pior dos dois mundos. Ele praticamente garante que aquelas pessoas que se aproximarem da democracia anti-Estado esperando que ela cumpra a mesma função que o Estado se desapontarão, enquanto cria uma situação na qual a democracia anti-Estado terá a tendência de reproduzir as dinâmicas associadas à democracia de Estado em escala menor.

É uma batalha perdida. Se o que você quer dizer com a palavra democracia só pode ocorrer fora da estrutura do Estado, usar um termo que tem sido associado com a política estatal por 2.500 anos irá criar uma ambiguidade considerável4. No fim das contas, a maioria das pessoas irá assumir que o que você chama de democracia é compatível com governo. Isto prepara o terreno para que estratégias e partidos estatistas reconquistem a legitimidade com o público, mesmo depois de terem sido completamente desacreditados. Os partidos políticos Podemos, na Espanha, e Syriza, na Grécia, ganharam impulso nas praças ocupadas de Barcelona e Atenas graças à sua retórica sobre democracia direta, somente para conseguirem chegar no governo onde agora se comportam como qualquer outro partido político. Eles ainda estão fazendo democracia, apenas de forma mais eficiente e concreta. Sem uma linguagem que diferencie o que eles fazem no parlamento do que o que as pessoas estavam fazendo nas praças, este processo irá se repetir muitas vezes.

Devemos todos ser governantes e governados simultaneamente, ou então um sistema de governantes e dominados é a única alternativa… Liberdade, em outras palavras, só pode ser mantida através do compartilhamento de poder político, e esse compartilhamento acontece pelas instituições políticas.”

Cindy Milstein, “Democracy Is Direct”

Quando nós identificamos o que fazemos quando estamos nos opondo ao Estado como democracia, nós preparamos o terreno para que nossos esforços sejam reabsorvidos pelas estrutura representativas maiores. A democracia não é apenas uma forma de gerenciar o aparato do governo, mas também uma maneira de recriá-lo e legitimá-lo. Candidatos, partidos, regimes e mesmo a forma de governo podem mudar de tempos em tempos, quando se torna claro que não podem solucionar os problemas de seus constituintes. Desta forma, o próprio governo – a fonte de pelo menos alguns desses problemas – consegue sobreviver. A democracia direta é apenas o seu rosto mais novo.

Mesmo sem as familiares armadilhas do Estado, qualquer forma de governo precisa de alguma forma de determinar quem pode participar da tomada de decisões e em quais termos – mais uma vez, quem é considerado como demos. Essas estipulações podem ser vagas num primeiro momento, mas se tornarão mais concretas quando a instituição envelhece e quando os riscos aumentam.

E se não houver como fazer cumprir as decisões – se não houver kratos – os processos de tomada de decisões do governo não terão mais peso que as decisões tomada pelas pessoas de forma autônoma5. Este é o paradoxo de um projeto que busca o governo sem o Estado.

Estas contradições ficam claras o suficiente no municipalismo libertário de Murray Bookchin como uma alternativa ao governo estatal. No municipalismo libertário, Bookchin explica, uma organização exclusiva e abertamente vanguardista, governada por leis e uma Constituição, tomaria as decisões pelo voto da maioria. Candidatos concorreriam em eleições do conselho municipal, com o objetivo a longo prazo de estabelecer uma confederação que substituiria o Estado. Uma vez que a confederação estiver estabelecida, a participação será obrigatória mesmo que os municípios participantes queiram desistir. Quem tenta manter o governo sem o Estado provavelmente terminará com algo parecido com o Estado, mas com outro nome.

A distinção importante não é entre democracia e Estado, mas entre governo e autodeterminação. Governo é o exercício da autoridade sobre um determinado espaço ou Estado: quer o processo seja ditatorial ou participativo, o resultado final será a imposição do controle. Por contraste, a autodeterminação significa que cada um poderá dispor do seu potencial de acordo com seus próprios termos: quando as pessoas a praticam juntas, elas não estão governando umas às outras, mas alimentando uma autonomia cumulativa. Acordos aceitos livremente não precisam de imposição; já sistemas que concentram a legitimidade em uma única instituição ou processo de tomada de decisões sempre precisam.

É estranho usar a palavra democracia para a ideia de que o Estado é inerentemente indesejado. A ideia correta para esta ideia é anarquismo. O anarquismo se opõe a toda exclusão e dominação em favor de uma descentralização radical das estruturas de poder, dos processos de tomada de decisão e das noções de legitimidade. Não é uma forma de governar de maneira completamente participativa, mas de tornar impossível de se impor qualquer forma de governo.

Consenso e a Fantasia do Governo Unânime

No sentido estrito da palavra, nunca houve uma verdadeira democracia, e nunca haverá… Não dá pra imaginar que todas as pessoas sentariam permanentemente em um assembleia para lidar com assuntos públicos.”

Jean-Jacques Rousseau, Do Contrato Social

Se os denominadores comuns do governo democrático são a cidadania e o policiamento – demos e kratos – a democracia mais radical expandiria estas categorias para incluir o mundo todo: cidadania universal, policiamento comunitário. Na sociedade democrática ideal, toda pessoa seria um cidadão9 e todo cidadão seria um policial6. No extremo oposto desta lógica, a maioria no governo significaria governo através do consenso: não o governo da maioria, mas o governo unânime. Quanto mais nos aproximamos da unanimidade, mais legítimo o governo parece ser – então um governo feito através do consenso não seria o governo mais legítimo de todos? Então, mais uma vez, não haveria a necessidade para ninguém fazer o papel de polícia.

Obviamente, isto é impossível. Mas vale a pena refletir que tipo de utopia estaria implicada em idealizarmos a democracia direta como uma forma de governo. Imagine o tipo de totalitarismo necessário para produzir coesão suficiente para governar uma sociedade via processo de consenso – para conseguir que todos concordem. Isso é que é reduzir as coisas para o mínimo denominador comum! Se a alternativa para a coerção é abolir as discordâncias, certamente deve haver uma terceira opção.

Este problema veio à tona durante o movimento Occupy. Alguns participantes entendiam que as assembleias gerais eram as instituições que governavam o movimento; da sua perspectiva, seria anti-democrático se pessoas agissem sem autorização unânime. Outros abordavam as assembleias como espaços de encontro sem autoridade vinculativa, nos quais as pessoas poderiam trocar influências e ideias, formando constelações fluidas em torno de objetivo para a tomada de ações. Os primeiros se sentiram traídos quando seus companheiros de movimento se envolveram em táticas que não haviam sido concordadas na assembleia geral; os últimos argumentaram que não fazia sentido dar poder de veto a uma massa de pessoas reunidas arbitrariamente que incluía, literalmente, qualquer um que estivesse passando na rua.

Talvez a resposta seja que as estruturas de tomada de decisões devem ser descentralizadas e baseadas no consenso, de forma que uma concordância universal seja desnecessária. Este é um passo na direção certa, mas coloca novas questões. Como as pessoas se dividiriam em entidades políticas? O que dita a jurisdição de uma assembleia ou os assuntos sobre os quais ela pode tomar decisões? Quem determina de quais assembleias uma pessoa pode participar, ou quem será mais afetado por uma certa decisão? Como serão resolvidos os conflitos entre assembleias? As respostas a essas questões ou irão institucionalizar um conjunto de regras que governará a legitimidade, ou priorizarão formas voluntárias de associação. No primeiro caso, as regras se calcificarão com o passar do tempo, e as pessoas recorrerão ao protocolo para resolver disputas. No último caso, as estruturas de tomada de decisões vão constantemente mudar, se dividir, entrar em conflito e ressurgir em processos orgânicos que dificilmente poderão ser chamados de governo. Quando os participantes de um processo de tomada de decisões são livre para se desligar dele ou se envolver em atividades que contradizem as decisões, então o que está acontecendo não é governo – é simplesmente uma conversa.

Democracia significa governo através da discussão, mas só é eficiente se você conseguir fazer as pessoas pararem de falar.”

Clement Attlee, Primeiro Ministro do Reino Unido, 1957

Por um lado, é uma questão de ênfase. O nosso objetivo é produzir instituições ideais, tornando elas o mais horizontais e participativas possível mas delegando a elas uma autoridade final? Ou o nosso objetivo é maximizar a liberdade, e neste caso qualquer instituição em particular que criarmos será subordinada à liberdade e portanto dispensável? Mais uma vez: o que é legítimo, as instituições ou nossas necessidades e desejos?

Mesmo na melhor das hipóteses, instituições são apenas meios para alcançar um determinado fim; elas não possuem valor em si mesmas. Nenhuma pessoa deve ser obrigada a aderir ao protocolo de uma instituição que suprime a sua liberdade ou falha em suprir suas necessidades. Se todo mundo for livre para se organizar com os outros de forma estritamente voluntária, esta seria a melhor forma de gerar mecanismos sociais que estariam realmente de acordo com os interesses dos participantes: pois tão logo uma estrutura não estivesse funcionando para todos os envolvidos, eles teriam que reajustá-la ou substituí-la. Esta abordagem não levará toda sociedade ao consenso, mas é a única forma de garantir que o consenso será que significativo e desejável quando ele surgir.

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Fim da segunda parte.


1. Esse é um paradoxo fundamental dos governos democráticos: são estabelecidos através de uma luta que consiste um crime contra a ordem anterior, e passam a santificar a lei — legitimando a nova ordem dominante como se ela desse sentido e continuidade à revolta.

2. “A obediência à lei é a verdadeira liberdade”, diz um memorial aos soldados que suprimiram Shays Rebellion.

3. Assim como os capitalistas “libertárias” suspeitam que mesmo as atividades do governo mais democrático interferem no pleno funcionamento do livre mercado, o partidário da democracia mais pura pode ter certeza que, enquanto existem desigualdades econômicas, os ricos sempre exercem influência desproporcional sobre os processos democráticos mais cuidadosamente construídos. No entanto, governo e economia são inseparáveis. O mercado depende do Estado para fazer valer os direitos de propriedade, enquanto que, no fundo, a Democracia é um meio de transferir fundir e investir poder político: é um mercado para a participação e capacidade de influenciar.

4. O argumento de que as democracias que governam o mundo hoje não são verdadeiras democracias é uma falácia. Se, após uma investigação, percebe-se que nenhuma única democracia existente faz jus ao que você quer dizer com a palavra, você pode precisar de uma expressão diferente para o que você está tentando descrever. Isto é como comunistas que, confrontado com todos os regimes comunistas autoritários e assassinos do século XX, argumentam que nenhum deles foi comunista “de verdade”. Quando uma ideia é tão difícil de implementar que milhões de pessoas, tendo à sua disposição uma parte considerável dos recursos da humanidade e fazendo o seu melhor em um período de séculos, não pode produzir um único modelo que funcione, é hora de voltar à prancheta de desenho. Dê anarquistas um décimo das oportunidades marxistas e democratas tiveram, e depois podemos falar se a anarquia funciona!

5. Sem instituições formais, as organizações democráticas muitas vezes fazer cumprir as decisões deslegitimando ações iniciadas fora de suas estruturas e incentivando o uso da força contra eles. Daí a cena clássica em que lideranças em protestos atacam manifestantes que decidem fazer algo que não foi previamente tirado em assembléia através de um processo democrático centralizado.

6. Na verdade, a palavra “polícia” é derivada de polis, a antiga palavra grega para cidadão.