CONTRA A RESIGNAÇÃO — Entrevista Sobre a Situação de Mónica Caballero e Francisco Solar

Em julho de 2020 a polícia do Chile prendeu Mónica Caballero e Francisco Solar com acusações que os ligam a atentados a bomba. Mónica e Francisco já são perseguidos pelos estados chilenos e espanhóis com acusações semelhantes por mais de 10 anos. Suas detenções ocorrem em um momento no qual o Estado acentua a perseguição e os golpes contra iniciativas anárquicas, sobretudo após a insurreição que toma as ruas do Chile desde 2019 e atravessam o período de pandemia.

Mónica e Francisco durante julgamento.

A solidariedade a todas as pessoas que lutam por um mundo livre do estado e do capitalismo é, por definição uma luta internacionalista. Primeiramente, por princípios, mas também porque a colaboração e o intercâmbio entre as forças policiais e militares para reprimir movimentos e indivíduos rebeldes é também uma luta global. Como apontam camaradas da rede CrimethInc.:

“O caso contra Mónica e Francisco no Chile oferece um vislumbre de um possível futuro após as revoltas anti-polícia em andamento. Podemos ter certeza de que o governo dos Estados Unidos prestou muita atenção às estratégias que governos como da França, de Hong Kong, e do Chile usaram para reprimir rebeliões dentro de suas fronteiras — e podemos acreditar que o governo brasileiro está buscando aprender as mesmas lições. Quando um estado democrático como o Chile consegue empregar uma estratégia de repressão, isso representa um passo à frente para todos os outros governos democráticos que também buscam subjugar sua população.”

Portanto, para dar continuidade às publicações em solidariedade permanente com Mónica e Francisco, realizamos uma entrevista com Familiares y Amigxs de Presxs Subversivxs y Anarquistas da região chilena. Para além da atualização sobre o processo, tratamos da importância da solidariedade ativa com as pessoas presas e as recentes lutas no território dominado pelo Estado chileno.


Nos últimos anos, Mónica e Francisco foram alvo de acusações e prisões tanto no território dominado pelo Estado chileno em 2010 (no que ficou conhecido como “Caso bombas”) quanto no espanhol alguns anos depois. Gostaríamos que vocês comentassem um pouco sobre esse histórico de perseguição e qual foi o impacto nos espaços e na luta em geral.

Para contextualizar um pouco e contar brevemente sobre os casos repressivos nos quais ambxs compas estiveram envolvidxs, é necessário começar em 2010. O Estado buscou dar um ponto final aos diferentes ataques com explosivos por parte de grupos anarquistas e anticapitalistas, e assim lançou uma arremetida contra distintxs companheirxs anarquistas sob acusações de formar parte de uma “Associação Ilícita Terrorista”, golpeando distintas expressões antiautoritárias. Após passar muitos meses na prisão, uma longa greve de fome e mobilizações, xs companheirxs conseguiram ser soltxs para enfrentar um extenso julgamento do qual foram posteriormente absolvidxs.

Um pouco depois, Mónica e Francisco partiram para a Espanha e em 2013 foram detidxs pelo ataque explosivo à basílica de Pilar. A colaboração entre os Estados foi evidente desde o primeiro momento e cabe observar que durante a investigação pelo ataque e antes das detenções, diferentes informes policiais e agentes de inteligência viajavam de um lado a outro, dando recomendações de por onde direcionar a investigação e confirmando as suspeitas em torno axs companheirxs.

Após um rápido julgamento, foram condenadxs a 12 anos de prisão, para logo conseguirem baixar sua pena para 4 anos e meio, conseguindo ser expulsxs para o Chile em 2017, com o correspondente circo midiático e perseguição policial que durou vários meses.

Em 24 de julho de 2020, dia em que foram sequestradxs pelo Estado chileno, Mónica e Francisco tiveram suas prisões preventivas decretadas por 6 meses para investigação. Recentemente, esgotado esse tempo, um novo prazo foi estipulado e a prisão foi prorrogada sem que tenha havido uma sentença. Qual é a situação do processo? Existe alguma previsão de data para que seja realizado o julgamento?

A situação processual é a seguinte: Francisco é acusado pelo envio de dois pacotes explosivos para a 54ª Delegacia de polícia e ao ex-ministro do interior Rodrigo Hinzpeter (cúmplice de uma brutal repressão durante o seu mandato), o artefato enviado para a polícia conseguiu explodir enquanto que o destinado ao ex-Ministro por acaso não foi aberto e conseguiram descobrí-lo logo após a primeira explosão; Mónica e Francisco são acusadxs do duplo atentado explosivo em uma imobiliária no bairro dos ricos durante a revolta.

Ambxs estão formalizadxs sob a lei de controle de armas, além de várias acusações de homicídios frustrados. Quando foram detidxs, o tribunal lhes deu um prazo de 6 meses de investigação, data que foi renovada agora em fevereiro de 2021. É possível que se prolongue esse período investigativo por 2 anos antes de acontecer o julgamento.

Acreditamos que se a procuradoria quisesse já poderia realizar o julgamento, mas também ao que parece esta demora teria a ver com a participação da equipe de investigação em outros julgamentos ou talvez com a revisão minuciosa do processo judicial para que nenhum erro seja cometido, como ocorreu no “Caso bombas”.

Sob o argumento sanitário de combate ao Covid-19, tanto Mónica e Francisco como as demais pessoas presas foram impedidas de receber visitas, o que as deixou em uma espécie de isolamento ainda mais severo dentro da prisão. Como está a situação no momento? As visitas já voltaram a ocorrer? Como Mónica e Francisco se encontram neste momento?

A situação segue restrita basicamente a uma visita, somente uma pessoa durante 2 horas a cada três semanas. Cada prisão e regime tem suas particularidades. No caso da Mónica, ela tem de escolher esta semana se deseja ter uma visita ou se receber uma encomenda (alimento que entra na prisão, entregue por pessoas solidárias), enquanto que no caso de Francisco as limitações o obrigam a receber somente visitas de sua família “sanguínea”. Desde “Familiares y amigxs de Presxs Subversivxs y anarquistas” temos participado informando e lutando, com diferentes formas de agitação, pela volta das visitas.

Concretamente, ambxs se encontram bem, vivendo diferentes realidades da prisão. Francisco, por sua vez, se encontra sob estrito isolamento, grande parte do dia trancado, com escassa ou nenhuma luz solar, enquanto que Mónica está na _Sección de Connotación Pública_, isolada do resto da população penal, tendo de conviver com presas que estão isoladas das demais por serem acusadas de crimes considerados intoleráveis e que podem ser alvo de vingança das outras presas.

Apesar das distintas realidades, ambxs se encontram bem de ânimo, têm acesso a telefones da gendarmeria para poder se comunicar com amigxs e companheirxs, sempre perguntando sobre o exterior e por demais compas que estão na prisão.

O território dominado pelo Estado chileno é muito convulsivo e tem um histórico intenso de insurreições e lutas anárquicas. Das que mais temos notícias são a intensificação do levante mapuche dos últimos anos, sobretudo com as recuperações territoriais, e a revolta de 18 de outubro de 2019. Nos chegam informações de várixs mapuches presxs e assassinadxs (como foi o caso mais recente da compa Emília BAU, morta por sicários de um condomínio privado em Panguipulli), assim como outras mais de 2 mil pessoas detidas, muitas feridas e outras assassinadas por carabineiros. Nos parece muito evidente que a prisão das pessoas envolvidas nas lutas é um golpe dos Estados para tentar apagar a chama insurreta que arde nas ruas. Gostaríamos que vocês comentassem um pouco sobre a situação atual das lutas por aí e como analisam essa reação das forças repressivas.

O panorama repressivo é amplo, assim como a luta. Sem dúvida, desde 18 de outubro, quando começou a revolta no Chile, por um lado marcou um antes e depois, mas ao mesmo tempo uma continuidade e agudização. É inegável que muita gente está na prisão por relação com a luta, em dezembro de 2019 se chegou ao número de 2500 presxs da revolta, cifra que logo foi caindo paulatinamente. É uma realidade ampla e diversa, mais do que um grupo homogêneo e com posições claras.

Sobre xs presxs da revolta, igual que xs mortxs e multiladxs, produto da repressão naquele pocesso, é necessário assinalar que nem todxs são companheirxs revolucionárixs, mas sim pessoas que se levantaram contra a ordem imperante, pelos motivos mais variados.

É uma realidade ampla e diversa, com muitas posições políticas, desde as mais anárquicas e irreconciliáveis até posturas cidadãs e de gente desejosa de integrar o sistema, passando por muitas outras que simplesmente estavam cansadas e saíram a protestar espontaneamente com muita raiva. É importante assumir essa diversidade para não cair em romantizações, idealizar situações ou forçar dinâmicas que não são assim.

É justamente considerando essa realidade que surgiram diferentes iniciativas solidárias com xs presxs da revolta, como também em memória e vingança axs mortxs e multiladxs, assim como contra o Estado.

Mesmo com a perseguição constante por parte do Estado, Mónica e Francisco se mantiveram em combate com a cabeça erguida , sobretudo na prisão. Inclusive escreveram um comunicado que aborda a necessidade de sintonia entre as lutas dentro e fora das prisões. Ela e ele conseguem ter contato com as outras pessoas subersivas que também estão na prisão? E com as que estão fora? Está permitido o acesso a libros e cartas, por exemplo?*

Mónica e Francisco têm feito parte de um entorno de proximidade com xs companheirxs na prisão há anos, ambxs eram visitas frequentes de compas subversivxs presxs. Portanto, essa relação se mantém inquebrantável, mas simplesmente mudou de forma e modalidade. Francisco, apesar de estar na mesma unidade penal, tem pouco contato direto com quem se encontra na Segurança Máxima e quase nenhum contato direto (cara a cara) com quem está na Alta Segurança, mas mesmo assim redes e vínculos são fortalecidos, existindo comunicação fluída entre todxs xs companheirxs.

Como uma amostra se pode observar o escrito em conjunto entre distintxs companheirxs, escrito desde dentro, chamado “Ante la revuelta, el plebiscito y la situación judicial: Comunicado de prisionerxs de la guerra social por la destrucción de la sociedad carcelaria

Como vocês analisam a importância da solidariedade transpassar tanto os muros das prisões quanto a fronteira entre os Estados?

Esse é um dilema necessário e interessante, um desafio para a luta anárquica. No caso dxs companheirxs, já nos deparamos com a questão da solidariedade internacionalista em 2010 com o “Caso bombas” onde se forjaram informalmente belas redes e sintonia internacional com xs detidxs. Por outra parte, quando foram presxs na Espanha essa pergunta se dirigia a nós, sobre nossa capacidade de articulação e de transpassar as fronteiras. Hoje xs compas estão presxs aqui, existe um monte de cotidianidade de urgência para resolver, desde o doméstico, a encomenda, o dinheiro, o legal etc., que sempre se requer ajuda.

Mas esse é somente um aspecto da solidariedade, existindo por outra parte a difusão e agitação do caso e talvez mais importante e nutritivo são os debates públicos em torno das prisões dxs companeirxs. Trazer para as ruas, deixar que falem somente e exclusivamente desde sua condição de prisioneirxs e ir contribuindo na luta.

Em outra dimensão, existe um temor que a solidariedade com ambxs esteja cheia de resignação, de que não valha a pena lutar e que somente sobraria aceitar com resignação uma possível condenação para logo ter de se encarregar dos gastos da vida dxs companheirxs na prisão. Esse cenário é realmente o pior.

Por fim, como as pessoas solidárias podem apoiar a campanha pela liberdade de Mónica e Francisco? Exite algum canal no qual se pode acompanhar as informações e comunicados?

Os textos e informativos nós subimos nas páginas de contrainformação, tratamos de ser bem explicitxs e regularmente publicar atualizações e informações relevantes. Nos distanciamos das posturas que buscam passar desapercebidas ou baixar a cabeça diante disso. Xs companheirxs estão presxs por ações na luta, são parte da luta há anos e corresponde manter um diálogo e informação com todxs que estejam deste lado da barricada.

Sobre as formas com as quais se pode apoiar, essa resposta radica na capacidade criativa de cada pessoa, desde a difusão e agitação, até a coleta de dinheiro, como também a comunicação direta com elxs mediante cartas, xs contemplar em projetos ou simplesmente levantar uma iniciativa solidária própria.


PARA SABER MAIS:

O FOGO QUE ARDE DESDE A CORDILHEIRA

CHILE: CARTAS DE PRESOS ANARQUISTAS EM SOLIDARIEDADE A MÓNICA E FRANCISCO

Uma Nova Onda de Repressão no Chile – CrimethInc.

Poster em Solidariedade a Mónica e Francisco para imprimir – A.N.A.

Democracia: a Tentação Patriótica

Nesse artigo, o anarquista e pesquisador Uri Gordon analisa os usos da palavra democracia e a aproximação do discurso democrático, como estratégia de alguns anarquismos contemporâneos. O texto enfatiza as diferenças entre as práticas libertárias e as democráticas – enquanto governo representativo – e os diferentes significados de palavras comuns a ambos, como liberdade e igualdade. Leia os artigos da coleção de críticas anarquistas à democracia clicando aqui.


Como a maioria dos conceitos políticos, democracia é uma noção “essencialmente contestável” — seu significado é, em si próprio, um campo de batalhas. O que as ideologias políticas fazem, como práticas vulgarizadoras de expressão política, é “desproblematizar” ou fixar o significado desses conceitos, situando-os em relações específicas. O termo “igualdade”, por exemplo, pode significar equitativo acesso às vantagens (liberalismo), equitativa responsabilidade para com a comunidade nacional (fascismo), ou equitativo poder em uma sociedade sem classes (anarquismo). Nessa leitura, não há como objetivamente determinar o significado desses conceitos — o que existe são usos distintos, cada um deles regularmente agrupado com outros conceitos, em uma ou outra enunciação ideológica.

Gostaria, portanto, de suspender a discussão a respeito da compreensão conceitual “apropriada” de democracia e, em vez disso, questionar as escolhas estratégicas do emprego desse termo. Vale a pena, para anarquistas, ressignificar “democracia” de modo a apontar para a eliminação do Estado e das formas de dominação? Indica-se dois argumentos. O primeiro é que as invocações anarquistas de democracia são um fenômeno relativamente novo e tipicamente estadunidense. O segundo é que essa invocação é problemática, porque sua estrutura retórica e a segmentação por públicos-alvo quase inevitavelmente terminam recorrendo a sentimentos patrióticos e mitos da origem nacional.

Até a mais democrática das democracias…

Historicamente, “democracia” não é uma palavra que anarquistas costumaram usar em referência a suas próprias perspectivas e práticas. Uma pesquisa nos escritos de proeminentes ativistas e teóricos anarquistas do século XIX e início do século XX revela que, nas raras ocasiões em que empregaram esse termo, ele foi usado em seu sentido convencional, estatista, para se referir às instituições democráticas e aos direitos efetivamente existentes no Estado burguês. Democracia significava governo representativo, como oposto à monarquia ou à oligarquia.

Pierre-Joseph Proudhon claramente viu a democracia nesses termos. No capítulo 1 de O que é a Propriedade, publicado em 1840, Proudhon escreveu:

“O povo, tanto tempo vítima do egoísmo monárquico, julgou libertar-se definitivamente ao declarar que só ele era soberano. Mas o que era a monarquia? A soberania de um homem. O que é a democracia? A soberania do povo ou, melhor dizendo, da maioria nacional. (…) mas afinal não há revolução no governo visto que o princípio continua a ser o mesmo. Ora, hoje mesmo temos a prova de que não se pode ser livre na mais perfeita democracia”[1].

A questão para Proudhon é a soberania em si, e não quem ou o que a legitima. No capítulo 7 de A Filosofia da Miséria, livro de 1847, Proudhon também objeta qualquer “sistema de autoridade, seja qual for sua origem, monárquica ou democrática”[2]. Em nenhum momento Proudhon faz distinções entre uma “real” e uma “assim chamada” democracia; o termo simplesmente se refere ao governo exercido por meio da representação política.

Essa abordagem atravessa a tradição anarquista. Em 1873, no livro Estatismo e Anarquia, Mikhail Bakunin ataca os marxistas afirmando que “por governo popular (…) entendem o governo do povo por meio de um pequeno número de representantes eleitos pelo povo (…) uma mentira que esconde o despotismo da minoria dirigente, mentira ainda mais perigosa por ser apresentada como a expressão da pretensa vontade popular”[3]. Alexander Berkman ressoou uma crítica semelhante no periódico Mother Earth, de outubro de 1917:

“A democrática autoridade do governo da maioria é o último pilar da tirania. O último, e o mais forte (…) o despotismo que é invisível porque não é personificado, poda a paixão de Sansão e o deixa sem vontade. Ai do povo onde o cidadão é um soberano cujo poder está nas mãos de seus mestres! É uma nação de escravos solícitos”[4].

E, finalmente, Errico Malatesta, em texto de 1924, também trata a “democracia” apenas em termos de um sistema de governo:

“Até mesmo na mais democrática das democracias, é sempre uma pequena minoria que domina e que impõe pela força a sua vontade e os seus interesses. (…) Assim, desejar realmente o ‘governo do povo’ no sentido em que cada um possa fazer valer sua própria vontade, suas próprias ideias, suas próprias necessidades, é fazer com que ninguém, maioria ou minoria, possa dominar os outros; dito de outra forma, é querer necessariamente a abolição do governo, isto é, de toda organização coercitiva, para substituí-la pela livre organização daqueles que têm interesses e objetivos comuns”[5].

Em todos esses casos, não há tentativa de alinhar o anarquismo à democracia, ou de construir esta última em quaisquer outros termos que não aqueles das instituições democráticas convencionais. A associação entre anarquismo e democracia vai aparecer somente por volta dos anos 1980, nos escritos do estadunidense Murray Bookchin.

A negação de Bookchin ao anarquismo no final de sua vida é irrelevante aqui, pois, desde o fim dos anos 1970, suas considerações sobre a democracia permaneceram consistentes, quando eram formuladas em termos de uma estratégia recomendada aos anarquistas. Ecoando a crítica de Martin Buber acerca da expansão do “princípio político” de poder descendente e da autoridade centralizada à custa do “princípio social” de relações horizontais e espontâneas[6], Bookchin vê como única via promissora para a resistência a “descoberta da comunidade, da autonomia, de uma relativa autossuficiência, autoconfiança e democracia direta” em nível local que, fomentada “pela sua própria lógica, se encontrem em oposição explícita às crescentemente invasoras instituições políticas”[7]. Essa visão é claramente de um localismo anarquista, baseado em “assembleias populares livres”, “coletivização dos recursos”, e delegação de funções limitadas a temas de coordenação administrativa. Entretanto, a questão permanece: deve ser esse arranjo promovido pela linguagem da democracia (tanto direta quanto participativa)? Qual é o apelo dessa linguagem, em primeiro lugar?

Vendendo o Anarquismo como Democracia

Colocado de forma bem direta, a associação do anarquismo com a democracia é uma manobra retórica de duas vias que visa aumentar a atração de públicos mainstream pelo anarquismo. O primeiro componente dessa manobra é carregar nas conotações positivas que a democracia contém no discurso político estabelecido. Em vez da imagem negativa (e falsa) do anarquismo como algo estúpido e caótico, reforça-se uma imagem positiva que pega carona na “democracia” como um termo amplamente aprovado na mídia de massa, no sistema educacional, e no discurso do dia a dia. A aprovação aqui não é a de um conjunto específico de instituições ou procedimentos de tomada de decisão, mas a da associação da democracia com liberdade, igualdade e solidariedade — a dos sentimentos que entram em ação quando a democracia é posta em oposição binária à ditadura, sendo celebrada como o que distingue os “países livres”, no Ocidente, dos outros regimes.

Já o segundo componente dessa manobra é subversivo: ele procura retratar as sociedades capitalistas atuais como não sendo democráticas de fato, uma vez que elas alienam o poder da tomada de decisão do povo para colocá-lo nas mãos da elite. Isso equivale a um argumento de que as instituições e procedimentos que o público mainstream associa à democracia — governo por representação — não são, de fato, democráticos, ou são, no máximo, a realização muito limitada e estanque dos valores que eles dizem incorporar. A verdadeira democracia, nesse sentido, só poderia ser local, direta, participativa e deliberativa, sendo viável, em última estância, em uma sociedade sem Estado e sem classes. O objetivo retórico dessa manobra, como um todo, é gerar no público um sentimento de indignação por ter sido enganado: enquanto o apego emocional à “democracia” é confirmado, a crença de que ela realmente existe é negada.

Há dois problemas com essa manobra, um conceitual e outro mais substancial. O problema conceitual é que ela introduz uma noção verdadeiramente idiossincrática de democracia, tão ambiciosa a ponto de desqualificar quase todas as experiências políticas que se enquadrem em um entendimento comum desse termo — incluindo todos os sistemas eleitorais nos quais os representantes não têm um mandato estrito e não são imediatamente revogados. Ao reivindicar que os regimes “democráticos” atuais não são de fato democráticos, e que a única democracia digna desse nome é uma versão de sociedade anarquista, os anarquistas estão pedindo para o povo reconfigurar seu entendimento da democracia de uma forma bastante extrema. Embora seja possível manter esse novo uso com coerência lógica, ele é tão rarefeito e contrário ao uso comum que seu potencial como pivô para a opinião pública é altamente questionável.

 “Ocupe a América: Somos os 99%”
“Ocupe a América: Somos os 99%”

O segundo problema é mais grave. Ao mesmo tempo em que a associação com a democracia pode buscar apelo apenas em suas conotações igualitárias e libertárias, ela também enreda o anarquismo com a natureza patriótica do orgulho na democracia, que ele próprio subverte. O apelo não é simplesmente o de um desenho abstrato para as instituições participativas, mas de instituições participativas recuperadas da tradição revolucionária estadunidense. Bookchin é bem explícito quanto a isso quando convida os anarquistas a “começarem a falar no vocabulário das revoluções democráticas”[8] ao passo em que desenterrariam e ampliariam seu conteúdo libertário:

“Esse passado burguês [americano] tem características libertárias: as town meetings [assembleias municipais] da Nova Inglaterra. Controle municipal e local, o mito americano de que quanto menos governo, melhor, a crença americana na independência e no individualismo. Todas essas coisas são antiéticas para uma economia cibernética, uma economia corporativa e um sistema político altamente centralizado (…). Eu sou a favor da democratização da república e da radicalização da democracia, e de que isso seja feito no nível da base: o que envolverá o estabelecimento de instituições libertárias que sejam totalmente consistentes com a tradição americana. Não podemos voltar à Revolução Russa ou Espanhola. Essas revoluções são alheias ao povo norte-americano”[9].

As formulações de Cindy Milstein em seu artigo “Democracia é Direta” funcionam explicitamente no sentido de preencher esse programa, procurando argumentar a partir dos mitos de origem estadunidenses:

“Dado que os Estados Unidos são mantidos como um pináculo da democracia, parece particularmente apropriado voltar às tensões de uma democracia radicalizada que lutou tão valentemente e perdeu tão esmagadoramente na Revolução Americana. Precisamos nos dedicar a essa projeto inacabado (…). Como todas as grandes revoluções modernas, a Revolução Americana gerou uma política baseada em ‘assembleias cara a cara’ confederadas dentro e entre cidades (…). Aquelas de nós que vivem nos Estados Unidos herdaram esse autoaprendizado em democracia direta, ainda que apenas em ecos vagos (…) [são] valores arraigados que muitos ainda consideram: independência, iniciativa, liberdade, igualdade. Eles continuam a criar uma tensão muito real entre autogestão de base e representação de cima para baixo”[10].

O apelo ao consenso de que a política estadunidense foi fundada em uma revolução popular e democrática, genuinamente animada pela liberdade e igualdade, está destinado a atingir sentimentos patrióticos existentes, mesmo quando enfatiza suas consequências subversivas. Milstein até invoca o Discurso de Gettysburg de Abraham Lincoln quando critica as agendas reformistas que “trabalham com uma noção de democracia circunscrita e neutralizada, na qual a democracia não é do povo, não vem do povo e nem é pelo povo, mas é apenas supostamente em nome do povo”[11]. Ainda assim, esse é um movimento perigoso, uma vez que se fundamenta em uma crítica limitada do patriotismo em si, e permite que os mitos de origem aos quais ele apela permaneçam intocados pelas críticas da identidade coletiva e da exclusão colonial. Ao notar a necessidade de não branquear as injustiças raciais, de gênero e outras que foram parte do “evento histórico que criou este país”, Milstein só pode oferecer uma exortação genérica para “lidar com a relação entre essa opressão e os momentos liberadores da Revolução Americana”[12].

Dado que esse apelo é voltado a participantes não-anarquistas, há pouca ou nenhuma garantia de que tal luta poderia realmente acontecer. O sentimento patriótico ao qual se apela aqui é mais frequente do que um componente de uma narrativa nacionalista maior, que dificilmente participa de uma crítica decolonial (que, por si só, deveria ter muitas dúvidas acerca das raízes iluministas ocidentais que marcam as noções de cidadania e esfera pública). A celebração da democracia nos termos que invocam diretamente aos primórdios da política estadunidense pode acabar reforçando, em vez de questionar, a fidelidade ao Estado-nação que reivindica, ainda que falsamente, ser a portadora da herança democrática do período colonial. Isso é especialmente pungente no contexto das recentes ondas de mobilização, que revelam precisamente essa mistura de quintessência de meios de organização e ação influenciados por anarquistas, e discursos claramente patrióticos e nacionalistas — da revolução egípcia que abraça as forças armadas, ao sentimento jeffersoniano que impregna o movimento Occupy, até o nacionalismo absoluto da revolução ucraniana.

“As recentes ondas de mobilização, que revelam precisamente essa mistura de quintessência de meios de organização e ação influenciados por anarquistas, e discursos claramente patrióticos e nacionalistas.”

Há, realmente, uma razão para perscrutar essa questão, qual seja, a dos sentimentos democráticos e nacionalistas que foram expressos por movimentos pelos quais os anarquistas, de fato, têm boas razões para sentir certa afinidade. O mais proeminente desses são as lutas comunitárias em Chiapas, no sudeste do México, conectadas ao Exército Zapatista de Libertação Nacional (EZLN), e o movimento revolucionário em Rojava (ou Curdistão Sírio). Ambos não apenas empregaram a linguagem da democracia para expressar formas de sociedade descentralizadas e igualitárias, mas também para avançar uma agenda explícita de libertação nacional. O movimento curdo endossou Bookchin publicamente como uma fonte de inspiração. Isso significa que os anarquistas estão errados ao manter a solidariedade ativa com esses movimentos? Minha resposta é “nã o” — mas devido a uma diferença crucial que também reclama o argumento geral acima. Usar a linguagem da democracia e de libertação nacional não é mesma coisa para as minorias sem Estado no Sul Global e para os cidadãos de países capitalistas avançados, nos quais a independência nacional já é um fato consumado. Os primeiros não apelam para mitos patrióticos de origem engendrados por um Estado-nação existente, com seus privilégios e injustiças, mas a uma possibilidade de descentralização radical, diferente e não experimentada, que engendra uma “libertação nacional” potencialmente sem Estado. Certamente, isso carrega seu próprio risco, mas os anarquistas no Norte não estão em posição de pregar sobre esses assuntos.

Assim, nós voltamos ao ponto principal: ao menos para anarquistas nos EUA e no Oeste Europeu, a escolha de usar a linguagem da democracia é baseada no desejo de mobilizar e subverter uma forma de patriotismo que é, em última análise, vinculada ao establishment. Com isso, corre-se o risco de fortalecer os sentimentos nacionalistas que pretende minar. Os anarquistas sempre tiveram um problema de imagem pública. Tentar desfazer isso através de uma conexão com o mainstream democrático e os sentimentos nacionalistas é um risco que não vale a pena.


Uri Gordon é professor na Faculdade de Ciências Sociais da Universidade de Nottingham, Reino Unido. Contato: uri.gordon@nottingham.ac.uk.


Notas:

  1. Pierre-Joseph Proudhon. What is Property?. Traduzido por Benjamin Tucker. New York, Humboldt, 1890 [1840].
  2. Pierre-Joseph Proudhon. The Philosophy of Poverty. Traduzido por Benjamin Tucker. Cambridge, Wilson, 1888 [1847].
  3. Mikhail Bakunin. Statism and Anarchy. Traduzido por Marshall S. Shatz. Cambridge, Cambridge University Press, 1990 [1873].
  4. Alexander Berkman. “Apropos” in Mother Earth Bulletin, 1.1, 1917. Disponível em https://libcom.org/library/mother-earth-bulletin (acesso em: 14/02/2017).
  5. Errico Malatesta. “Democracy and Anarchy” in The Anarchist Revolution: Polemical Articles 1924-1931. Traduzido por Gillian Fleming e Vernon Richards. London, Freedom, 1995 [1924].
  6. Martin Buber. “Society and the State” in Pointing the Way. Traduzido por Maurice Friedman. New York, Harper, 1957 (Reprinted in Anarchy, 54).
  7. Murray Bookchin. The American Crisis II. Comment 1.5. 1980. Disponível em http://dwardmac.pitzer.edu/Anarchist_Archives/bookchin/BookchinCW.html (acesso em: 14/02/2017).
  8. Murray Bookchin. “Radicalising Democracy (interview)” in Kick It Over, n. 14, 1985. Disponível em http://dwardmac.pitzer.edu/Anarchist_Archives/bookchin/raddemocracy.html (acesso em: 14/02/2017).
  9. Idem.
  10. Cindy Milstein. “Democracy is Direct” in Anarchism and its Aspirations. Oakland, AK Press, 2010 [2000], disponível em https://theanarchistlibrary.org/library/cindy-milstein-anarchism-and-its-aspirations.
  11. Idem.
  12. Ibidem.

Para Barrar o Golpe Fascista!

Nosso último artigo foi transformado em vídeo pelo coletivo Antimídia. Para quem não conhece, a Antimídia é um coletivo anarquistas, membro da rede internacional Kolektiva, produtor de vídeos informativos e educativos, produzindo materiais sobre acontecimentos atuais e temas caros à luta anticapitalista e anticolonial de todas as épocas. Dentre nossas recentes colaborações estão o vídeo e textos da Outra Campanha.

Assista, compartilhe, passe a diante e organize a resistência!

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Enquanto centenas de milhares de pessoas tombam vítimas da COVID-19 em todo território ocupado pelo Estado Brasileiro, Bolsonaro se prepara para assegurar seu controle do Estado: difundindo discursos de fraude eleitoral, armando seus apoiadores e buscando obter mais controle sobre as polícias. Como barrá-lo e impedir que sejamos controlades por um regime ainda mais autoritário e violento?

 

Do Genocídio Pandêmico a Um Levante Fascista – O que Precisamos para Barrar Bolsonaro

Agentes de saúde antes de examinar o corpo de uma pessoa em durante o surto de coronavírus em Manaus.

A pandemia da Covid-19 no Brasil chega a números absurdos 210 mil pessoas mortas, cidades entrando em colapso. Sabíamos que o bolsonarismo deixaria um legado de repressão, violações e morte. Mas a crise sanitária está elevando as consequências ao extremo da devastação humana e ecológica. Em Manaus falta oxigênio e vítimas da Covid-19 e outras enfermidades morrem sufocadas enquanto o presidente e seus ministros dizem que “não podem fazer nada”. Não existe mais auxílio emergencial e os despejos seguem mesmo durante a pandemia, a letalidade policial aumentou 7% em relação à 2019 (cerca de 6 mil execuções) e o desemprego atinge índices históricos.

Para agravar o cenário, o presidente se isola entre a extrema-direita global, negando a pandemia, sabotando qualquer iniciativa e discursos médicos-científicos que viabilizem a vacinação e recomendando falsos “tratamentos precoce” da doença com hidroxicloroquina e vermífugos – ideia que até mesmo Donald Trump abandonou meses antes de perder as eleições.

Bolsonaro é o último chefe de Estado que segue como apoiador declarado, e ainda fiel, dos delírios de Trump, reproduzindo sua narrativa de fraude eleitoral e sendo o único líder mundial que apoia os discursos que justificam a invasão do Congresso estadunidense por uma multidão de fascistas no dia 6 de janeiro.

Multidão invade o Capitólio impulsionada por discurso de Trump com bandeiras racistas e neonazistas: serão eles a imagem do futuro?

E vai além: Bolsonaro é o único caso do mundo de um candidato que mesmo tendo ganho a eleição alegou, sem provas, que o sistema eleitoral brasileiro é fraudulento e que, caso o país não abandone as urnas eletrônicas, voltando as antigas cédulas para votação de papel, haverá manipulação também na eleição presidencial de 2022. Com isso, sinaliza que seria necessário haver uma reação à suposta fraude do futuro, nos moldes da invasão ao Capitólio que ele acaba de celebrar.

Por mais que certas mitologias insistam, a história não se repete. Mas é fácil encontrar padrões de atuação política e discursos entre grupos ou líderes mundiais que compartilham interesses e um mesmo momento histórico. Como o fracassado Trump, Bolsonaro surfa na mobilização de grupos sociais que transformam seu ressentimento em ação política autoritária, supremacista e estridente. Essa onda que garante uma base de apoio reduzida, mas fiel e ativista. Seus apoiadores funcionam por meio de uma lógica identitária onde fatos ou dados científicos não têm relevância se não reforçarem suas próprias crenças e nem favorecerem as políticas do seu líder. Nesse caso, seguir recomendações médicas não é uma questão de saúde e cuidado de si e dos outros, mas apenas uma polêmica na disputa limitada entre a extrema-direita reacionária e social-democracia gestora, identificada, no Brasil, com os anos de governo do PT.

Nessa lógica de identificação sectária e paranóica, sua base mais radical é inflamada para realizar nas ruas e outros locais o que o discurso do presidente e seu time (ainda) não podem fazer abertamente: a violência física e o assassinato direto da oposição. Embora saibamos que suas políticas são responsáveis pela morte de milhares de pessoas, seja na pandemia, nos desastres ambientais ou pela mão da polícia, o discurso de Bolsonaro e sua família ainda é tratado como uma “metáfora” ou como “mera brincadeira” por seus defensores mais poderosos da mídia ou em cargos públicos. Quando diz que a “ditadura matou pouco”, ou que o que o Brasil passou entre 1964 à 1985não foi uma ditadura”, ou mesmo quando diz que vai “metralhar a esquerda”, Bolsonaro se foge de qualquer responsabilidade alegando que não está falando literalmente ou está sendo mal interpretado. Mas, assim como Trump incentivando (e depois elogiando) neonazistas que atiraram e mataram manifestantes antirracistas em agosto 2020 e invadiram o Congresso em janeiro de 2021 para manter seu governo no poder, o comportamento de Bolsonaro abre caminho para que seus apoiadores se sintam ainda mais encorajados a agir no mundo real.

As políticas de liberação de armas no Brasil e propostas de isenção de impostos sobre elas caminham para facilitar o acesso a armamentos para quem tem dinheiro para isso e se identifica com o discurso reacionários do presidente. As 180 mil novas armas registradas em 2020 já são um recorde, representando um aumento de 91% em relação a 2019 e um aumento geral de 183% desde o início do governo.

Bolsonaro demonstra querer formar uma base radicalizada – e armada – para defender seus interesses nas ruas conforme o exemplo trumpista. No contexto estadunidense, onde a posse legal de armas como pistolas ou fuzis já é parte da cultura, Trump foi capaz de insuflar seus apoiadores até que um de seus apoiadores, membro de uma milícia supremacista, matou duas pessoas e feriu uma terceira com tiros de AR-15 em agosto de 2020, num protesto antirracista em Kenosha, com a conivência da polícia.

Com tantas novas armas nas mãos de pessoas que se influenciaram pela propaganda bolsonarista, não é difícil imaginar manifestações de onde partidários do presidente acabem abrindo fogo ou praticando outras formas de violência contra outros manifestantes ou minorias que já são alvo do racismo, sexismo e xenofobia.

E se há alguma dúvida quanto a atuação da polícia, os recentes esforços do governo federal em tirar o controle das Polícias Militar e Civil dos governos estaduais e transferi-lo para Brasília (revisão do Projeto de Lei nº 4.363, de 2001), revelam o interesse de centralizar o comando das forças policiais, assim como acontece com as Forças Armadas. Vale lembrar que o golpe de estado organizado pela extrema direita na Bolívia em 2019 foi executado pela polícia, sem que o Exército tentasse impedir.

Além disso, Bolsonaro concede agrados e praticamente se tornou um paraninfo oficial de formaturas em academias de polícia. A polícia é uma das bases políticas mais sólidas de Bolsonaro, e o presidente constantemente encaminha propostas que fortalecem esse apoio. Como a que amplia o excludente de ilicitude para a polícia, isentando policiais de punição por qualquer ato ilegal cometido em serviço, ou seja: estimulando para que matem ainda mais!

Sobre a Violência

O discurso armamentista da direita é baseado na antiga ideia de que o “cidadão de bem” deve ter o direito de defender sua propriedade. Numa sociedade capitalista e patriarcal, isso significa: homens brancos, possuidores de imóveis ou terras com liberdade para usar a violência contra quem não tem. O Estado, que detém o monopólio da violência legal, mas garante “legitimidade” para que o rico possa matar pobres quando se sentir ameaçado – mas jamais vai tolerar que pobres, pretos, mulheres, indígenas e outros grupos marginalizados possam se defender da mesma forma contra agentes do Estado ou do Capital. A autodefesa é negada para todos esses grupos. Em outras palavras, só pode se defender quem já tem a proteção do Estado, como uma extensão da defesa ao direito de propriedade. E quem já é alvo, deve permanecer sem defesa ou sofrer duras punições casto tente revidar.

Mas não é somente a direita que trabalha para manter esse monopólio da autodefesa. Quando parte da esquerda condena protestos “violentos”, os bloqueios, o vandalismo, a desobediência e o contra ataque à violência policial, ela está complementando o mesmo discurso armamentista de Bolsonaro e seus apoiadores. Mesmo sem uma intenção explícita, as consequências de seu discurso pacificador afirmam: esses corpos não têm o direito de se defender, não podem revidar, devem traduzir seu ódio e sua insatisfação para um canal “legítimo” dentro de instituições que foram criadas pela elite para controlá-los e silenciá-los. Desnecessário dizer que quem concede essa legitimidade é a mesma lei burguesa que acolhe a violência policial e criminaliza qualquer resistência.

Vamos nos defender: a polícia sempre estará do lado do fascismo!

É compreensível que líderes de movimentos e partidos de esquerda reproduzam esse discurso, pois precisam da legitimação do poder estatal para disputar seus cargos e o controle das instituições. Se candidatos como Guilherme Boulos, que mandou integrantes do movimento sem-teto agredir adeptos da tática Black Blocs em atos em São Paulo, estimularem a desobediência e o confronto com a polícia, como esperar que a mesma polícia vá obedecer suas ordens caso sejam eleitos? Ou pior, como convencerão as pessoas que elas não devem desobedecer ou atacar a polícia quando ela estiver cumprindo as suas ordens?

Assistimos ao fim da representatividade democrática, desgastada e ineficiente. Com a perda da confiança em seus processos, o fracasso em prover o bem-estar geral dentro do neoliberalismo, a violência e o autoritarismo se tornam os únicos recurso para manter o comando do Estado. Sendo assim, nenhuma pessoa ou grupo que almeja um dia controlar esses governos e polícias irá nos salvar do fascismo, pois nunca agirão contra essas instituições que sempre abriram caminho e sustentaram regimes fascistas.

Nossa Ação é Direta

Em meio a um cenário de radicalização e promessa de violência, é inútil esperar que polícias, leis ou exércitos impeçam a escalada do fascismo dentro e fora das instituições. A história recente nos mostra que todo aparato criado sob a justificativa de reprimir extremistas e fascistas, especialmente após os atentados de 11 de setembro, acabam sendo usados contra movimentos sociais e minorias. Nos EUA pós 2001, movimentos anticapitalistas, antifascistas e de libertação animal e da terra (Animal Liberation Front e Earth Liberation Front), se tornaram os principais alvos do combate ao “terrorismo doméstico”, mesmo nunca causando uma única morte ou atentado contra qualquer pessoa.

Fascistas e outros tipos de nacionalistas e populistas como Bolsonaro, Trump, Modi, Putin e Erdogan tendem a levar a balança do jogo político todo para a direita. Por isso pensar apenas numa polarização entre direita x esquerda nas urnas não é o suficiente, pois exclui do espectro político movimentos pela libertação real, anticapitalista e antiautoritária. Políticos e grupos neoliberais e conservadores reconhecem que a gestão genocida de Bolsonaro ou a tentativa fracassada de golpe com apoio de neonazistas orquestrada por Trump, são extremos perigosos. Como vemos no embate entre o governador de São Paulo e o governo federal, neoliberais como João Dória, que oferece ração para estudantes e pessoas em situação de rua e que manda a PM atirar para matar, vão se apresentar como a oposição moderada ao bolsonarismo. O risco que os fascistas nos apresentam é tornar o antifascismo um mero resgate das políticas assim como eram ontem, ou pior, que as mantenha como estão hoje. Com o medo do que pode ser pior, a esquerda se torna paralítica ou até mesmo reacionária diante de rupturas radicais.

Não é raro surgir na mídia ou na internet discursos de petistas – ou do próprio Lula – acusando os levantes de 2013 de serem os responsáveis pela escalada conservadora e fascistóide que levou ao impeachment de Dilma Rousseff em 2016 e elegeu Bolsonaro. Ao fazer isso, tentam garantir que qualquer ação política fora de sua gestão eleitoral/estatal seja suprimida e sugerem que na era PT o povo brasileiro viveu uma plena revolução, com igualdade para todas e fim da opressão – como se os bancos não tivessem lucros recordes, a reforma agrária tenha sido paralisada, os movimentos abafados e a população carcerária aumentado dramáticos 620%.

As recentes mobilizações no Chile, Argentina, México e Estados Unidos conseguiram vitórias e importantes avanços porque não esperaram para revidar à violência policial e das leis. Decidiram romper com a institucionalidade e o controle burocrático da esquerda acostumada com os palácios, reformas paralisadoras e a conciliação de classe. Mesmo quando a luta é por mudanças legais e institucionais, como a legalização do aborto na Argentina ou a derrubada da constituição chilena em vigor desde a ditadura de Pinochet, a pressão direta das pessoas nas ruas, tomando, ocupando e bloqueando a normalidade são muito mais eficientes. Se quisermos saúde de gratuita de qualidade, o fim dos despejos e acesso a recursos e alimentos durante e após a pandemia, não podemos esperar que governantes se antecipem, e sim tomar a iniciativa em nossas mãos.

Anarcafeministas com os escudos roubados da polícia da Cidade do México, em 28 de setembro.

As mobillizações no Brasil em 2020, durante a pandemia, provam que os maiores sindicatos, movimentos e partidos da oposição são os últimos a tomarem alguma inciativa no mundo real para mudar algo. Uma das maiores e mais importante paralisação de trabalhadores foi organizada por entregadores e entregadoras rompendo com o isolamento da informalidade forçada pelos aplicativos de delivery. As mais combativas manifestações que barraram fisicamente carretas e passeatas bolsonaristas foram puxadas por torcidas e movimentos antifascistas nos quatro cantos do país.

É fundamental impedir os encontros e marchas para que fascistas não tenham espaço para fazer propaganda e recrutar novos membros paras suas fileiras. No entanto, percebemos que quando a esquerda está nas ruas em busca de palanque eleitoral e em defesa da institucionalidade, ela vai aceitar recuar e protestar contra o fascismo distante dos fascistas – como foi o caso de movimentos em São Paulo que negociaram a paz com a Polícia Militar para protestar alternadamente com os movimentos de direita.

Nota de repúdio: manifestantes em frente ao 3º Distrito Policial de Minneapolis, onde trabalhavam os assassinos de George Floyd.

Para o dia 23 de janeiro estão marcados diversos atos pelo Brasil contra a política genocida de Jair Bolsonaro e sua equipe. No entanto, não são apenas movimentos de base e a esquerda que estão convidando pessoas para irem às ruas no momento em que a popularidade do presidente despenca – a direita conservadora que vem rompendo com o governo que ajudou a eleger também está determinada a tentar limpar sua imagem voltar ainda mais fortes. Não podemos deixar que neoliberais e fundamentalistas cristãos monopolizem as revoltas que estão por vir e se tornem a imagem da resistência ao bolsonarismo nas ruas. Se falharmos, em breve veremos cenas como a do dia 6 de janeiro nos EUA, com manifestantes tentando novamente invadir o Congresso ou o STF em nome de um regime ainda mais autoritário e assassino.

Organizar a solidariedade, revidar avanços fascistas, tomar as ruas, ocupar para morar e plantar e, não menos importante, impor consequências aos ricos e ao Estado para pressionar por mudanças estruturais é a única garantia de que não teremos nossas demandas amortecidas ou cooptadas por pretensas lideranças. Os levantes do dia 20 de novembro de 2020, dia da Consciência Negra, após a morte de João Alberto em uma loja do Carrefour em Porto Alegre já nos mostram o potencial da coordenação informal em escala nacional da revolta que trazemos latente contra toda essa política de morte impregnado nas estruturas desse sistema.

Somente formas de ação popular e radicais vão ser capazes de defender comunidades de ataques fascistas e impedir que seus movimentos ocupem as ruas com suas ideias vazias e cheias de ressentimento.

A luta é radical e pela vida. E só poder ser agora.

De Ferguson a Porto Alegre: FOGO NOS RACISTAS, NOS FASCISTAS E NOS CAPITALISTAS!