Copa do Mundo: autoritarismo, nacionalismo e negócios

Cartaz na Alemanha convocando para o boicote à Copa do Mundo de Futebol no Catar.

A Copa do Mundo FIFA no Catar acabou, mas, infelizmente, outras virão. A próxima, em 2026, será dividida entre México, Canadá e EUA e já podemos prever os impactos para os pobres e minorias desses locais tão marcados pela segregação e ataques à comunidades indígenas e negras. Mas por agora, convidamos todo o mundo a relembrar a trajetória da Copa do Mundo desde sua estreia em 1930 no Uruguai, passando pela sua relação com a Itália de Mussolini e as ditaduras civis-militares na América Latina, como na Argentina e no Brasil, fazendo a ponte entre esporte, identidade nacional, racismo, polícias e, é claro, negócios.

Como abordamos em uma publicação de 2014, para a máfia internacional do esporte conhecida como FIFA, o torneio é o seu maior negócio, transmitido para metade da população do globo e gerando um faturamento de cerca de 40 bilhões de reais. Na sua última edição, a primeira em um país árabe, a Copa do Mundo ganhou manchetes e até documentários dedicados a expor os impactos sociais e os altos custos para trabalhadores e trabalhadoras em condições sub-humanas que ergueram e operaram as estruturas do maior megaevento do planeta no Catar.

O pequeno país do Sudoeste Asiático, de apenas 2,8 milhões de habitantes é considerado o mais rico do mundo devido à abundância de petróleo e gás natural, o que colabora para as suspeitas de suborno para que membros da FIFA votassem para que país árabe sediasse o evento. Governado pela monarquia absolutista (Emirado) hereditária, imperam a censura à imprensa, a supressão aos direitos da mulheres e a criminalização da homossexualidade e toda comunidade LGBTQIA+ pelo Direito Islâmico.

Mesmo sendo tão rico, Catar não contava com toda a mão de obra necessária para erguer uma cidade praticamente do zero e 7 estádios em menos de uma década. Com apenas 380 mil cidadãos nascidos no Qatar e 90% da população total composta por imigrantes, o governo impulsionou a contratação de mais de 5 milhões de imigrantes, principalmente da Índia, Paquistão, Nepal e Bangladesh para trabalhar na construção dessas megaestruturas, incluindo estradas, aeroportos, hotéis e muito mais sob o calor assassino de 52ºC, que matou ao menos 571 trabalhadores nepaleses, chegando à soma total de quase 7 mil trabalhadores mortos – muitos, devolvidos às suas famílias em uma caixa com o nome do falecido do lado de fora.

Trabalhadores em obras da Copa do Catar.

Esses milhares de trabalhadores imigrantes foram submetidos a um regime de trabalho conhecido como Kafala, uma forma escravidão moderna, muito semelhante com o que vemos no agronegócio brasileiro, onde trabalhadores já chegam endividados para pagar pelo transporte que os levou até o local de trabalho e têm seus documentos confiscados enquanto estiverem trabalhando. A maioria estava alojada em instalações imundas sem água ou esgoto apropriados, defecando em buracos no chão e tomando banho em baldes.

Apesar de parecer que apenas agora direitos humanos básicos e as comunidades pobres e minorias estejam sob ataque para uma Copa do Mundo, lembramos as absurdas consequências das Copas realizadas no Brasil e na África do Sul, em 2014 e 2010 respectivamente. No primeiro, serviu para vender uma falsa imagem de integração racial e superação do sistema de Apartheid, enquanto removia favelas, sem-tetos e prostitutas dos centros urbanos. No segundo, removeu cerca de 250 mil pessoas de suas casas nos governos Lula-Dilma do PT, de abrir caminho para operações de pacificação e as UPPs no Rio de Janeiro.

Em todos os megaeventos esportivos há oportunidade para governos e capitalistas reorganizarem suas atividades e a estrutura das cidades. No caminho, vemos a falta de consideração com os interesses da população e a resistência popular. A situação piora conforme as condições sociais e econômica do país. Em 2006, a Suécia se recusou a receber a Copa do Mundo FIFA por preferir investir os altos custos públicos necessários para construir moradias. Nas recentes Olimpíadas de Tóquio em 2020, protestos também foram abafados quando denunciavam os riscos de um torneio em meio à pandemia. Como alegou o Secretário-Geral da FIFA em 2013, governos autocráticos e menos transparentes são os mais ideais para a realização de uma copa do mundo, o que explica o desvio das democracias centrais do capitalismo na última década, como Japão e Alemanha, para desembocar em países marcados pela desigualdade como Brasil e África do Sul, passando por regimes autocráticos como Rússia e Catar. Mesmo assim, além da oportunidade de reorganização do espaço e das relações de trabalho no capitalismo global, é possível ver e aprender com as lutas populares e anticapitalistas em diferentes partes do planeta resistindo e denunciando os efeitos dos megaeventos.

Vou falar uma coisa que é loucura, mas menos democracia às vezes é melhor para organizar uma Copa do Mundo[…]. Quando você tem um chefe de Estado muito forte que pode decidir, como talvez Putin possa fazer em 2018… isso é mais fácil para nós organizadores do que um país como a Alemanha… onde você tem que negociar em diferentes níveis.”

Jerome Valcke, Secretário-geral da FIFA, 2013.

MEGAEVENTOS COMO DINAMIZADOR ECONÔMICO E POLÍTICO

Numa economia neoliberal cada vez mais globalizada e urbana, as cidades são os principais palcos da acumulação de capital. Para atrair investimentos para um país, é necessário tornar suas cidades polos atrativos para investidores. Isso inclui ter uma vasta mão de obra disponível, um mercado consumidor voraz inserido na linguagem publicitária global e, principalmente, dispor das estruturas de serviços e produtos necessários para ser competitiva a nível global: polos industriais e de pesquisa, aeroportos internacionais, hotéis de luxo, centros de convenção, complexos portuários, centros comerciais, etc. O país que quer competir por investimentos e uma posição de destaque na economia mundial deve usar suas cidades como instrumentos para tal competição.

A visibilidade é crucial nesse processo: os eventos da Copa são transmitidos para mais de 3 bilhões de pessoas em 204 países, abrindo caminho para a venda e a exploração de imagens e publicidade em escala global. Uma influência que as grandes corporações e governos não querem abrir mão. Por isso, em conjunto, eles vão trabalhar para aprimorar a estrutura urbana com o objetivo de concentrar mais poder e capitais. Essa dinâmica integra um novo processo pós-colonial de unificação e uniformização urbana e mercadológica da economia mundial, voltada para o benefício dos ricos e mascarada sob o discurso de “legado dos megaeventos”. Como se tais obras fossem para o uso e o benefício da população como um todo. Pelo contrário, vemos o aumento de uma infraestrutura voltada para a circulação de automóveis e privatização do uso do espaço público ao invés de melhorias no transporte coletivo e nas políticas de mobilidade e acesso à cidade. Vemos a expansão de um mercado imobiliário “financeirizado” e especulativo ao invés da garantia de moradia digna e o fim da concentração fundiária urbana e rural. Além de importar um modelo de urbanização elitista para cidades já marcadas pela desigualdade social, a imposição dessas políticas demanda uma implementação policial e legal para lidar com a instabilidade e os conflitos inerentes a esse sistema, e conter a resistência política dos setores sociais mais afetados que vão combater a tirania por trás dos eventos.

Uma Breve História da Copa do Mundo

Para entender um aparato ou instituição, é preciso olhar para trás, para sua origem, para identificar a que fins ele foi criado. Em nossos esforços para entender a Copa do Mundo, voltamos a 1930, quando a primeira Copa foi realizada no Uruguai. Aquele pequeno país, que completou 100 anos de nacionalidade naquele ano, fez de tudo para sediar a Copa do Mundo e usá-la como ferramenta para consolidar uma identidade nacional.

Esses esforços incluíram a construção de novas estradas, estruturas urbanas e o maior estádio do mundo, além de pagar as despesas de viagem e hospedagem de todas as equipes que iriam competir – algo que nunca mais ocorreu a nenhum país-sede. Através de um esquema de fraudes e ameaças, o Uruguai foi premiado com o campeonato mundial e colheu a recompensa desejada de um renovado espírito nacionalista. Em três anos, o presidente deu um golpe de estado apoiado pela polícia, pelo exército e pelo partido político nacionalista.

Quatro anos depois, o bicampeonato aconteceu na Itália de Mussolini. Com saudações fascistas antes das partidas e a ameaça de morte pairando sobre toda a seleção italiana, o campeonato voltou a ser concedido ao país-sede. A comodidade de ser anfitriã e campeã em uma ditadura, quando o clamor nacionalista é sempre bem-vindo, pôde ser percebida em 1978, quando a Argentina sediou e conquistou a Copa no auge de uma sangrenta ditadura que “desapareceu” cerca de 30 mil pessoas. Também marcou a primeira vez que os eventos foram transmitidos daquele país para televisões de todo o mundo, destacando a ligação entre Copas do Mundo, ditaduras (seja com ou sem eleições), publicidade e melhorias na infraestrutura empresarial e de consumo. Com o tempo não foi mais necessário que países-sede comprassem suas vitórias para conseguir mobilizar sentimentos nacionalistas e proporcionar mais controle sobre os fluxos de riqueza e a criação de novos mercados para as elites locais e multinacionais.

Cartazes promovendo o boicote à Copa na Argentina, em meio à ditadura militar que matava e torturava milhares de pessoas.

Mais tarde, na década de 1980, tanto a Copa do Mundo quanto os Jogos Olímpicos passaram a servir de motores para a expansão do neoliberalismo global. Os eventos esportivos internacionais começaram a refletir a presença e a influência de corporações multinacionais que queriam que suas marcas fossem vistas por bilhões de pessoas e vendidas em todo o mundo.

Há também uma relação mais direta com a transformação urbana no discurso que justifica a construção de uma estrutura a ser deixada como “legado urbano”, como forma de ingressar na lista global de cidades capazes de atrair investimentos, turismo e publicidade em uma economia cada vez mais globalizada. Isso coincide com a diminuição do papel do Estado na gestão das demandas urbanas e o surgimento de um superávit financeiro internacional em busca de novos terrenos para se materializar como expansão comercial.

As políticas habitacionais perdem espaço para um mercado especulativo em que estradas, conjuntos arquitetônicos, shopping centers, portos e aeroportos são financiados com dinheiro público, mas apenas para que empreiteiras, imobiliárias e outros cartéis possam lucrar. Consequentemente, os aluguéis e o valor financeiro das propriedades disparam, forçando os moradores de bairros inteiros a se mudarem – se já não tiverem sido deslocados por despejos forçados, que podem assumir a forma de operações militares de boa-fé quando os moradores estão ocupando sem o devido status legal .

No Brasil, como na maioria dos países subdesenvolvidos ou em desenvolvimento, as políticas de gentrificação e renovação urbana assumem uma forma particularmente violenta porque atingem regiões e populações em situação precária abaixo dos padrões mínimos de vida encontrados nos países ricos. Esses bairros e favelas geralmente compreendem a maior parte das áreas suburbanas das grandes cidades, crescendo sem infraestrutura estatal ou planejamento urbano, pois as pessoas constroem suas casas da maneira que podem – sem recursos básicos, como serviços de água ou esgoto, e em solo vulnerável a chuvas, inundações , e deslizamentos de terra. As únicas instituições estatais sempre presentes são as forças policiais e militares.

Quando um megaevento se aproxima, essas favelas, prédios de ocupação autônoma ou terrenos improdutivos ocupados por movimentos rurais serão desmatados por todos os meios necessários. No Rio de Janeiro, as portas dos prédios a serem despejados foram pintadas com um número de identificação por funcionários da prefeitura, assim como os nazistas faziam com as vítimas do Holocausto; os moradores tiveram um prazo para deixar suas casas e não puderam recorrer aos meios legais para buscar uma indenização justa.

Foi assim que o Brasil violou sistematicamente as leis internacionais de direito à moradia, das quais é signatário, negando às comunidades afetadas a oportunidade de discutir os projetos que as desalojaram. Se um megaevento como a Copa do Mundo traz ganhos para um país, a questão é quem vai se beneficiar. Certamente não serão populações pobres e desprivilegiadas. João Havelange, ex-presidente brasileiro da FIFA (1974-1998), afirmou “vender um produto chamado futebol”, argumentando que “política e futebol não se misturam”. Sabemos que há muita política e poder por trás desse “produto”.

Um agente do estado escrevendo na parede de uma casa marcada para ser despejada na Favela Vila Autódromo, no Rio de Janeiro.

O PT de Lula e a Copa do Mundo

Um mega-evento não acontece no vazio ou sem um contexto amplo. Desde sua origem carrega as intenções de grupos corporativos e das máfias no comando da máquina estatal que vão se aprimorando a cada edição, seja para implementar novas políticas e mudanças urbanísticas que, sem um bom pretexto, jamais se tornariam prioridade, seja para acelerar ou otimizar um processo de globalização econômica ou tecnológica ou mesmo para renovar e integrar uma protocolo global de policiamento e militarização. O fato de o Brasil ter se candidatado para sediar os três maiores megaeventos do planeta em menos de uma década nos alerta para o que está por trás de tamanha ambição. O país recebeu a Copa do Mundo em 2014 e as Olimpíadas em 2016 e foi um forte candidato a sediar a Expo 2020, perdendo para Dubai: respectivamente o primeiro, o segundo e o terceiro maior evento do mundo.

Quais as intenções e os verdadeiros beneficiados desses empreendimentos? Qual o contexto de tamanha disputa por visibilidade mundial? A FIFA e o COI (Comitê Olímpico Internacional) há muito tempo perceberam que seus eventos tem o potencial de atrair para um país grande visibilidade e investimentos de toda parte do mundo. Portanto, têm a cobiça de governantes locais que querem fazer história dispondo de popularidade e de pretextos para usar massivos recursos públicos para “modernizar” cidades e mercados imobiliários e alavancar empreendimentos privados, enquanto necessidades urbanísticas populares, como educação, saúde e qualidade de vida em geral são negligenciados. O Brasil foi eleito em 2007 para sediar a Copa do Mundo de 2014. Era o primeiro ano do segundo mandato do PT, com Lula como presidente. E seu governo, desde o início, desenhou projeções a longo prazo para se estabelecer como potência mundial, tanto econômica quanto militar.

Em 2004 Lula enviou 1200 soldados para o Haiti numa intervenção com o objetivo de “estabilizar” o país em crise desde a queda do presidente Aristide. Foi a primeira vez que o Brasil liderou uma intervenção militar internacional e se deu através dos pedidos dos EUA e da França. Lula esperava com isso obter apoio dos dois países para se candidatar a uma cadeira permanente no Conselho de Segurança da ONU quando esse passasse por uma reforma. Até hoje não aconteceu reforma e o Brasil não conseguiu a cadeira, mas se manteve presente em 9 das 16 operações de manutenções da paz da ONU ao redor do mundo. Mas o governo petista foi com sua missão no Haiti até o limite e levou a seleção brasileira de futebol para uma partida com a seleção haitiana na capital Porto Príncipe, num amistoso conhecido como “Jogo da Paz”, que comemorava o “sucesso” da ocupação e marcava o início de uma campanha de desarmamento da população. O evento contou com um desfile dos jogadores brasileiros em tanques de guerra enquanto eram ovacionados pela multidão.

A ambição e a megalomania de Lula eram tanta, que não se importou em dizer que a Copa seria do capital privado e em seguida abrir os cofres público para realizar o torneio mais caro de todos os tempos, que custou mais, inclusive, que as últimas três Copas juntas: Japão e Coreia do Sul em 2002, Alemanha em 2006 e África do Sul em 2010 custaram 30 bilhões de dólares. A Copa no Brasil em 2014 custou mais de 40 bilhões. A reforma de sete grande estádios e a construção de pelo menos cinco novos que não serão usados após o torneio (Brasília, Cuiabá, Manaus, Natal e Recife) foi quase inteiramente feita com dinheiro público. No total, foram disponibilizados 12 estádios de alto padrão, sendo que a própria FIFA exigia somente oito. Os planos de Lula e do Partido dos Trabalhadores eram muito grandiosos para caber em apenas dois mandatos, por isso houveram ainda desdobramentos de seus projetos no segundo mandato de Dilma, o quarto com o PT na Presidência da República.

Dilma foi ministra nos oito anos em que Lula foi presidente: primeiro como ministra das Minas e Energia e depois na Casa Civil. Foi também a mãe do PAC (Programa de Aceleração do Crescimento) que retomou investimentos dos capitais da especulação urbana. Agora, vai precisar lidar com a tremenda dívida pública deixada como parte do verdadeiro legado da Copa do Mundo enquanto se prepara para as Olimpíadas já em 2016, também conquistadas durante a gestão de Lula. Só para a Copa no Brasil, a FIFA fechou mais de 900 contratos comerciais com empresas parceiras e patrocinadoras que tiveram monopólios na venda de produtos ligados ao torneio na região dos estádios e Fan Fests, além de alimentos, bebidas e serviços. Mesmo assim, o governo isentou a FIFA de pagar mais de 1 bilhão em impostos para realizar a Copa mais cara da história, mas também a mais lucrativa: 9 bilhões de reais foram arrecadados pela entidade que diz não ter fins lucrativos. Para os governantes ligados à realização dos megaeventos, o maior lucro é político e eleitoral. Para a FIFA, as empresas que ela mesma indica para planejar as obras de infraestrutura e para as empresas e empreiteiras que, não por acaso, são parte dos grupos que financiam campanhas eleitorais do Partido dos Trabalhadores, há um lucro financeiro de cifras bilionárias garantido pelo investimento de recursos públicos locais e pela força da repressão policial.

Ou seja, é importante perceber que o PT não esteve nem poderia estar sozinho em seus projetos. Ele foi o partido que mais recebeu doações privadas nos últimos anos, chegando a 79 milhões de reais em 2013, enquanto o PSDB, PMDB e PSB juntos conseguiram apenas 46 milhões de reais. Em 2014, ano da reeleição de Dilma Rousseff, o PT recebeu 47 milhões de reais das empreiteiras investigadas pela Lava Jato antes do primeiro turno, enquanto PMDB obteve 38 milhões e o PSDB 28 milhões. Havia, obviamente, uma simbiose de poderes econômicos e políticos entre o Partido dos Trabalhadores e aqueles que controlam grandes capitais no país – a despeito do que esbravejam a direita partidária e organizada ou a classe média conservadora quando acusam o partido da presidente de querer instaurar uma “ditadura soviética” no país.

O verdadeiro legado da Copa: um estado de emergência para manter a desigualdade social.

Os maiores resultados e o real legado da Copa já foram contabilizados muito antes do primeiro jogo: 250 mil pessoas desalojadas para realização de obras de infraestrutura sem serem realocadas devidamente; inúmeras obras que já estão subutilizadas depois do evento à custos bilionários de mais corrupção e desvios de verbas públicas que podiam ir para outras áreas precarizadas, como saúde, moradia e educação; ao menos dez operários morreram nas obras e suas famílias seguem sem as devidas indenizações. Outras das consequências tomaram a cena durante as semanas antes e durante o evento, e provavelmente vão perdurar por muito tempo: como trabalhadoras ambulantes impedidas de trabalhar durante a Copa nas regiões próximas das zonas de exclusão da FIFA tiveram suas licenças canceladas indefinidamente, exploração sexual de menores, e a repressão intensa a quem se organiza e protesta para denunciar tudo isso – afinal, nenhuma dessas medidas poderiam ser aplicadas sem a força bruta policial. Com as revoltantes condições impostas pela FIFA, vimos o Estado brasileiro testando e implementando novas políticas e aparatos para controlar o inimigo interno, o questionamento e o protesto. Momentos como esse, um megaevento mundial que abala a economia e as paixões forjadas no espetáculo, no ufanismo e no nacionalismo de um país inteiro, servem de pretexto e experimento para a articulação de uma nova ordem de controle estatal e corporativo dentro de um Estado de Exceção permanente.

“Não vai ter Copa do Mundo!”

A Lei Geral da Copa (n. 12.663/2012) firmada em 2012 com o Governo Federal e a FIFA, uma instituição privada, foi a maior ofensiva legal contra o povo brasileiro com o objetivo de garantir que os “padrões FIFA” de organização de eventos viabilizassem a realização da Copa das Confederações 2013 e a Copa do Mundo 2014. Essa lei custou ao povo a suspensão de direitos e normas constitucionais que já são tão precárias para a maioria. Um tribunal de plantão foi armado para julgar em menos de 48 horas greves ocorridas durante a Copa. Enquanto trabalhadores perdiam o direito de denunciar suas condições e lutar por melhorias, a FIFA podia evadir riquezas e não pagar impostos por fazer seus negócios dentro do território brasileiro. Uma Secretaria Extraordinária de Segurança Pública para Grandes Eventos foi criada ferindo princípios federativos e democráticos. A privatização do espaço público também foi institucionalizada com a determinação do uso de “ruas exclusivas” para a FIFA e seus parceiros, onde até mesmo o comércio local seria obrigado a manter as portas fechadas dentro do perímetro de exclusão em torno dos estádios.

A autorregulação, também inconstitucional, permitiu que a própria FIFA atuasse no mercado sem qualquer intervenção estatal, estipulando o preço que quisesse para ingressos, suspendendo quase totalmente o direito à meia-entrada e qualquer aplicação do Código de Defesa do Consumidor. Além disso, foi permitido o trabalho voluntário de mais de 20 mil pessoas durante a Copa, que se sujeitaram a trabalhar sem a proteção de direitos trabalhistas básicos e fora das normas constitucionais, em situação análoga à escravidão. Sendo que o trabalho voluntário só é previsto por lei para instituições não-lucrativas que tenham fins “cívicos, culturais, educativos, recreativos ou de assistência social” – o que sabemos não ser nenhum dos casos da FIFA. Também foi permitido o uso do trabalho infantil em atividades ligadas ao jogos, como a de gandula, o que é proibido no Brasil desde 2004.

Polícia de choque no Brasil, junho de 2013.

Policiamento Global

Os megaeventos mundiais que forjam paixões no calor do espetáculo oferecem a oportunidade de experimentar levar o controle estatal e corporativo a um estado de exceção permanente, quando as leis e a Constituição podem ser quebradas em nome de mais segurança, mesmo quando violam os direitos dos cidadãos que dizem proteger.

O Estado montou um amplo aparato jurídico para criminalizar os movimentos sociais pautado em definições inteiramente subjetivas. Os movimentos sociais foram caracterizados como “forças opostas”; os protestos foram definidos como algo que “causaria pânico” ou “provocaria ou instigaria ações radicais e violentas”. Contra estes, o governo autorizou a atuação das Forças Armadas. O estado também estabeleceu tribunais especiais para lidar com casos relacionados à Copa do Mundo e aprovou novos regulamentos que permitem que os tribunais respondam a ações de protesto, como bloqueios de estradas, com leis antiterrorismo especialmente severas. Além disso, o governo brasileiro gastou bilhões de dólares em tanques com canhões de água, drones e outros robôs controlados à distância, e armas “menos letais” – ainda capazes de incapacitar e matar seus alvos – para conter a chamada “agitação civil” e proteger contra o “terrorismo”. Enquanto mísseis riscavam o céu em Gaza, depois que tiros e bombas israelenses mataram duas mil pessoas durante a ofensiva em território palestino em 2014, drones vendidos por Israel monitoravam os estádios da Copa do Mundo no Brasil.

Em 13 de julho, 1.500 policiais cercaram um protesto próximo ao Estádio do Maracanã, no Rio de Janeiro, atacando-o com bombas e balas de borracha; prenderam 30 manifestantes. Tanques cercaram as favelas. Caminhões do Exército estavam estacionados próximos aos estádios e às Fan Fests da FIFA, proporcionando um clima de repressão ostensiva. É claro que o Estado brasileiro vê seus pobres e movimentos sociais como seus próprios palestinos ou haitianos; as favelas são sua Faixa de Gaza ou Porto Príncipe.

No entanto, pode-se ver cartazes de apoio à resistência palestina exibidos juntamente com cartazes condenando a Copa do Mundo de 2014. Isso comunicou que a solidariedade, assim como a repressão, é “tão global quanto o capital”.

Armas fabricadas no Brasil foram usadas para reprimir a revolta do Parque Gezi na Turquia em 2013.

Durante a revolta do Parque Gezi, na Turquia, vimos imagens de pessoas exibindo cartuchos de gás lacrimogêneo e balas de borracha marcadas com a bandeira brasileira. Especulamos que fossem fabricados pela empresa Condor, uma das maiores produtoras mundiais de armas menos letais, localizada no estado do Rio de Janeiro. Em 2014, vimos 34 tanques alemães empregados na segurança da Copa do Mundo. Esses tanques blindados, com artilharia capaz de abater aeronaves, custaram ao Brasil 40 milhões de dólares. Enquanto isso, a empresa austríaca de armas de fogo Glock chegou a um acordo exclusivo para fornecer à polícia do Rio de Janeiro armas de fogo para as Olimpíadas de 2016. Segundo relatos de jornais,2a própria empresa financiou uma viagem da polícia brasileira a Viena. A FIFA atuou como assessor militar das Forças Armadas brasileiras, determinando quais equipamentos e armas deveriam ser adquiridos; foi a FIFA quem recomendou a compra de viaturas armadas.

A International Security and Defense Systems (ISDS) também forneceu equipamentos para vigilância e defesa durante as Olimpíadas. A ISDS é uma empresa israelense estabelecida em 1982; tem uma vasta experiência em massacrar e reprimir palestinos. Vários relatórios e documentos também apontam para o envolvimento do ISDS nos golpes e ditaduras na Guatemala, Honduras e El Salvador. Sua atuação no Brasil nas Olimpíadas de 2016 serviu como vitrine para seus produtos e serviços, além de um campo de testes de novas tecnologias e procedimentos de segurança em torno de megaeventos. Nas palavras do vice-presidente da ISDS, as Olimpíadas no Brasil seriam “uma incubadora de tecnologias israelenses nessas áreas”.

A utilização da Lei de Segurança Nacional (criada pela ditadura passada), a possível introdução de leis antiterrorismo, o Decreto de Lei e Ordem e a intensificação de outras leis mostram como os megaeventos servem para fortalecer as técnicas de controle do Estado. Ao impor essas regras, as corporações podem lucrar cada vez mais livremente. Tudo isso pode ser entendido como mais uma ofensiva do projeto neoliberal, centrado em uma grande cidade, mas com implicações globais. Serve como um meio de administrar a produção, o consumo e a circulação de bens e trabalho necessários para sua realização.

Ao herdar o projeto de Lula, o governo de Dilma Rousseff preparou o terreno para um policiamento militarizado e integrado que garantiria o sucesso da Copa. Os Centros Integrados de Comando e Controle (CICC), por exemplo, supervisionam 1.700 policiais: federais, militares, civis e rodoviários, além de equipes de trânsito e resgate, atuando em quatorze núcleos espalhados pelas doze cidades-sede dos jogos. O Ministério da Justiça de Dilma investiu cerca de US$ 100 milhões em tecnologia para operar esses centros; eles monitoram aeroportos, estágios, estações de metrô e outros pontos estratégicos em tempo real, e enviam reforços e apoios necessários a cada oito minutos. O plano de ação define uma resposta específica para cada tipo de ação; a polícia militar responde ao black bloc, a polícia federal responde a ocorrências no aeroporto, e assim por diante. O treinamento de habilidades para as forças armadas foi fornecido pelo FBI.

A tecnologia policial e militar criada para este evento permanecerá como legado permanente desses megaeventos. O Brasil, já militarizado e permeado por conflitos intermináveis, tornou-se agora ainda mais sofisticado em sua capacidade de conduzir a guerra interna. O intercâmbio de segurança entre os países tem sido fundamental para solidificar o papel do Brasil na economia global, trazendo treinamento, equipamentos e estratégias das forças policiais e militares mais violentas do mundo. Além da polícia e dos militares israelenses, eles incluíam a polícia francesa, o FBI e também empresas privadas como a Blackwater. A parceria Brasil-Israel continua trabalhando em conjunto contra o “terrorismo” e o narcotráfico. Acima de tudo, porém, eles se concentram no principal inimigo das economias e governos globalizados: seu próprio povo.

E a Copa Segue

Sim, porque é vergonhoso que os manifestantes contra a farra da FIFA sejam condenados, quando hoje grande parte dos próprios organizadores da Copa estão presos! Quando o ex-governador que nos reprimiu com selvageria está preso! Quando o país é levado à beira da fome e da devastação social pelos mesmos vampiros que tremeram de ódio quando a juventude tomou as ruas! Quando a Rede Globo, que nos perseguiu, ainda não explicou as suas negociatas em torno dos megaeventos!

Nota dos 23 ativistas condenados por conta das manifestações de 2013/2014

Esperávamos atingir um pico de atividade e mobilização durante a Copa do Mundo de 2014 comparável ao que havíamos alcançado em 2013. Mas descobrimos que as expectativas não contam muito no decorrer da história. Embora muitos gritassem “Não vai ter Copa!” e se organizassem para tomar  as ruas com as pessoas por ela impactadas, a Copa ocorreu sem grandes transtornos para os beneficiados.

Sabemos que as leis, os direitos legais e a constituição só atendem às nossas necessidades quando isso produz ganhos ainda maiores para o governo e os patrões. Entendemos que a soberania nacional como gestão das leis e da segurança de um país concentra nas mãos dos poderosos o monopólio da tomada de decisões que afeta a todos nós. Além disso, ficamos sabendo que até esse teatro democrático que promete direitos humanos e direitos trabalhistas aos precários é uma fraude: quase tudo que dizem ser inalienável está sujeito a suspensão arbitrária a qualquer momento. E com essa suspensão entramos nos estados de emergência e guerra preventiva, muitas vezes regidos por instituições transnacionais nada democráticas – como a FIFA, cujos dirigentes não foram eleitos.

Não são apenas os presos por participar de um protesto ou supostamente organizar manifestações; toda a população sofre as consequências de um estado de exceção cada vez mais permanente. As populações negras e periféricas, assim como pobres, rurais e sem-teto, sentirão o peso dessas mudanças.

A FIFA saiu do Brasil com o maior lucro de sua história. Em 2018, seguiu para a Rússia, um dos países mais repressores da atualidade em termos de liberdade de expressão e direitos civis. Em 2022, a Copa foi para o Catar, conhecido por utilizar a mão de obra escrava de imigrantes;  Desde a última década, quando a Copa do Mundo de 2002 aconteceu no Japão e na Coreia do Sul, vimos a FIFA voltar sua atenção para os países emergentes, democracias recentes (se é que são democracias) caracterizadas por profunda corrupção em seus governos e dispostas a se curvar a pressões externas para aprovar leis de emergência.

Se os meios legais e constitucionais de que dispomos para nos defendermos de nossos próprios políticos já são tão ineficientes, nosso poder de defesa contra instituições que sequer estão em nosso território é ainda mais tênue. Nesta situação, assim como as ocupações de florestas, parques e territórios para impedir a construção de aeroportos, barragens, complexos portuários, mineração, apenas a organização de base e radical pode oferecer alguma esperança na luta contra megaeventos e a constante reestruturação capitalista.

CONTRA A COPA E SEU MUNDO!

Protesto no Rio de Janeiro em 13 de julho de 2014.

Para saber mais:

LUTANDO NO BRASIL – Sobre grandes mobilizações e o que fazer quando a fumaça se dissipa: Em português | Em inglês

LUTANDO NO BRASIL – Parte II: RECIFE, SÃO ROQUE E RIO DE JANEIRO: Em português

Com Vandalismo – Documentário, Coletivo Nigéria, Fortaleza, 2013

NÃO EXISTE OPOSIÇÃO INSTITUCIONAL AO FASCISMO: Análises sobre a escalada da violência da extrema-direita no Brasil

Na noite de 12 de dezembro, a violência da base bolsonarista de rua avançou mais um passo em sua radicalização. Uma Delegacia e a sede da Polícia Federal foram atacadas, cinco ônibus e três carros foram incendiados em Brasília como resposta à prisão de um indígena pastor evangélico e bolsonarista acusado de organizar os atos golpistas, praticar ameaças e promover ataques ao Estado Democrático de Direito. O homem que se intitula “líder indígena” mesmo sem o reconhecimento dos povos da sua etnia, teve a prisão decretada pelo ministro do Supremo Tribunal Federal, Alexandre de Moraes.
Quando esses grupos neofascistas começam a adotar táticas de luta radicalizada sem qualquer oposição das polícias, é preciso refletir sobre o futuro dos conflitos políticos por vir. E repensar – mais uma vez – o papel da esquerda radical diante dos avanços do fascismo de rua.

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No início, a maioria dos atos dos autoproclamados “cidadãos de bem” contestando o resultado das eleições para presidente foram diurnos e compostos por homens, mulheres, idosos e, muitas vezes, crianças para dar um ar de “família” e justificar a falta de ação violenta da polícia que ataca protestos e bloqueios de movimentos de esquerda com ou sem crianças. Já nessa época, alertamos sobre o risco de atribuir falsa legitimidade a certas ações ao tratar como “insurreição popular” os atos bolsonaristas por intervenção militar e anulação das eleições patrocinados por empresários do agronegócio e das indústrias.

Agora, quando ações violentas como linchamentos e até sequestros e torturas se tornam parte do seu repertório de ação, um novo perfil majoritariamente masculino, radicalizado, noturno e disposto ao confronto aberto está se consolidando, segue sem oposição dos movimentos de esquerda e com o apoio quase integral das forças de segurança. É preciso compreender que o fascismo sem oposição nas ruas crescerá como um motim cada vez mais violento.

A esquerda petista, a mídia e alguns juristas acreditam que basta chamar o que está acontecendo de terrorismo e tratar com prisões e penas duras seus participantes. Tal iniciativa é parte do processo pacificador que professa a fé nas leis e nas instituições que nada fizeram até agora para barrar de fato tais ações e deixaram as ruas livres para o fascismo. Como resultado, a imagem de ônibus em chamas, antes o símbolo da luta contra a repressão do estado e a exploração capitalista, vista nos atos contra aumento da tarifa, contra a Copa da FIFA ou contra ações da polícia nas periferias, agora está prestes a se tornar o retrato do “terrorismo de direita”. E o papel de “defensor da lei e da ordem” passa a ser adotado pela esquerda legalista e institucional que em breve estará sob a tutela de um novo governo petista.

De fato, os confrontos do dia 12 mostram que essa direita está disposta a “não deixar ninguém” pra trás e lutar pela libertação de um dos seus integrantes. A Secretaria de Segurança do DF (governo alinhado ao Bolsonaro) alegou não ter efetuado nenhuma prisão para assim “reduzir danos e evitar uma escalada ainda maior nos ânimos”, atestando a eficiência da organização do protesto radicalizado. Dá a impressão até de que seu sucesso confirmaria a tese insurrecional de que “a força de uma insurreição é social, não militar“. Mas é bom lembrar que a motivação e os interesses dessa base radicalizada do bolsonarismo não são populares, isto é, originada dos debaixo: são os mesmos do presidente derrotado, sua família e sua rede de políticos eleitos para cargos no legislativo; além, é claro, do “partido militar” informal responsável pela eleição do representante do seu projeto de poder em 2018.

Uma imagem do futuro?

Assim sendo, não causa surpresa o fato das polícias militares e federais não efetuarem nenhuma prisão na noite de ataques pela libertação do pastor indígena bolsonarista. O que permite ao filho do milionário praticar feminicídio, dirigir bêbado e matar, ou ao aliado de político encomendar a morte de inimigos e seguir a vida sem importurnação é a mesma lógica que permite grupos fascistas cometerem atos de violência contra pessoas ou de destruição da propriedade sem a menor consequência: a justiça é burguesa e a polícia é sua empregada. Ambos têm lado, partido e ideologia. O fascismo está inscrito na forma-Estado, por isso nenhum governo suprime totalmente o fascismo, pois, quando necessário, recorre a ele para garantir seus privilégios e de sua classe dirigente.

Qualquer um de nós de grupos pobres, pretos, periféricos ou mulheres que praticarem tais atos colocarão suas vidas em risco. Pois serão imediatamente alvo de violência letal e prisões arbitrárias, provas plantadas e inquéritos forjados, como Rafael Braga ou os 23 do Rio de Janeiro, presos nos protestos de 2013/14. Naquela época, após uma década de gestão petista, os protestos de 2013 apresentaram os black blocs e táticas populares combativas contra a repressão policial e intelectuais de esquerda não pouparam críticas desonestas. Marilena Chauí, por exemplo, em fala para cadetes da PM do Rio, disse que anarquistas e adeptos da tácita black bloc “agiam com inspiração fascista”.

Dessa vez, o futuro governo de Lula e Alckmin, herdeiro das leis antiterrorismo de Dilma para criminalizar movimentos sociais, já se inicia com promessa de tolerância zero para protestos de rua – o que sempre vai bater mais forte nos movimentos populares e anistiar os fascistas aliados da polícia e do empresariado. O novo pacto de classes será ainda mais à direita do que aquele firmado há exatos 20 anos. Quando Flávio Dino, futuro ministro da Justiça de Lula, afirma que protestos com vandalismo serão tratados com rigor e como sinônimo de terrorismo, e um ex-ministro petista, Gilberto Carvalho, aponta que os ataques bolsonaristas são “o retorno dos black blocs”, podemos ter certeza de que qualquer ruptura nesse novo consenso petista será esmagado pela polícia e pela lei. Mas, por agora é conveniente deixar os fascistas na rua e retroalimentar a posição santificada da esquerda institucional, da fé nas estruturas de poder e gestão.

Mesmo que o STF detone uma diligencia policial para prender uma centena de apoiadores de protestos golpistas, isso não passa do que parece: um espetáculo na ordem. Passada a turbulência da transição, a pacificação já estará consolidada. Ele junta o aparato jurídico e policial à chantagem do “antes era pior” e o fascismo pode voltar para produzir sua fórmula mágica da paz com algumas migalhas de políticas públicas para os miseráveis.

O avanço eleitoral e como força social mobilizada da extrema-direita no Brasil, que sob o nome bolsonarismo e sob a liderança de militares congrega desde profissionais da violência (policiais e similares legais e ilegais) até amplos setores das classes médias e altas, coloca de maneira inequívoca quais os termos da atual falência funcional das democracias atuais: ou uma insurreição abole as regras do jogo para a construção de algo novo ou morreremos de inanição sob o julgo do aparato securitário do Estado e com medo perene de que a violência fascista irá nos atingir.


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VÍDEO: “Chama a Polícia!” – Sobre a criminalização da ação direta e a legitimação das instituições.

 

“Chama a Polícia!” – Sobre a criminalização da ação direta e a legitimação das instituições.

A ocorrência de atos golpistas desde as eleições, com barricadas, bloqueios, muitas vezes descambando para a violência, levou muita gente e organizações de esquerda a pedir pela ação da polícia e da Justiça. Para muitas pessoas, Alexandre de Moraes virou um símbolo da resistência ao fascismo bolsonarista. Mas será que não ficou claro ainda que a polícia que prontamente dispersa e reprime manifestações de esquerda, vai relutar e procrastinar na hora de combater fascistas? Que um judiciário que agiu rapidamente para prender Lula, mesmo sem provas concretas, de forma a impedir que concorresse nas eleições de 2018 é o mesmo que permite que Jair Bolsonaro continue impune até hoje, apesar de todos crimes que claramente cometeu? Ainda não percebemos que legitimar e fortalecer essas instituições é um erro, pois elas sempre baterão mais forte em nós?

Para abordar essas questões, ajudamos (modestamente) o coletivo Antimidia a produzir um vídeo sobre polícia e a criminalização dos recentes protestos golpistas e passividade da esquerda hegemônica.

Historicamente, movimentos sociais de esquerda radical sempre criticaram as instituições que sustentam o regime que explora e oprime os povos deste território. Surgiram movimentos pedindo desmilitarização e mesmo o fim de polícias, denunciando que tribunais e prisões foram criados e sempre serviram aos interesses da elite política e financeira.

Mas durante o governo Jair Bolsonaro esse debate foi deixado um pouco de lago. Com as sucessivas ameaças fascistas às chamadas “instituições democráticas”, golpismo e autoritarismo, boa parte da esquerda parou de criticar as instituições repressivas do Estado e passou a defendê-las com unhas e dentes.

Se por um lado, a aliança de Lula com seus antigos opositores, levou a esquerda institucional e toda a política partidária ainda mais ao centro e à direita, do outro,  ativistas, movimentos sociais e mídias de esquerda reproduzem e fortalecem um discurso reacionário que reforça a legitimidade do Estado.

Quem até então pedia por repressão e respeito às leis eram as forças reacionárias e elites, que se beneficiam da ordem atual das coisas.
É preciso deixar claro que o aquilo que combatemos é o projeto fascista, que busca a manutenção e avanço de um projeto conservador e autoritário, que extermina e explora os povos deste território para o benefício de uma elite branca, rica e patriarcal.

Alguém nos chamou?

Barricadas, bloqueios, destruição de propriedade privada e confronto com a  polícia não são um problema em si. São táticas valiosas, historicamente usadas por movimentos sociais para resistir aos avanços do capital e do Estado e para lutar por uma vida digna. Não podemos negar que a forma como os fascistas utilizam essas táticas é diferente. Afinal, são fascistas. Não se importam com a vida humana e não hesitam em bloquear ambulâncias e pessoas que buscam atendimento médico ou outros serviços essenciais. E, ao contrário dos movimentos sociais, que buscam atacar estruturas de opressão, os apoiadores de Bolsonaro atacam violentamente qualquer pessoa que não demonstre apoio explícito a seu projeto autoritário e conservador. Chegando ao ponto de torturar, linchar e, em casos extremos, matar pessoas que discordam de sua visão política.

Dar carta branca para a polícia reprimir bloqueios, barricadas e outras formas de ação direta, mesmo que barre os movimentos fascistas é reforçar e legitimar instrumentos que baterão ainda mais forte sobre nós. Por mais duras que sejam as leis, a polícia e os tribunais sempre hesitarão e serão mais comedidas na hora de reprimir e punir fascistas do que ao reprimir as pessoas pobres, pretas, indígenas, periféricas, dissidentes de gênero. Basta olhar para exemplos de como a polícia reluta e têm dificuldade para remover os bloqueios, levando semanas para cumprir ordens judiciais. Em como o judiciário, mesmo quando tenta impor limites a Bolsonaro, ainda não agiu em relação aos diversos crimes cometidos por ele.

É bom lembrar que Alexandre de Moraes, hoje ministro do STF, símbolo das instituições democráticas frente ao fascismo de Bolsonaro, foi secretário de segurança pública durante o governo de Geraldo Alckmin no estado de São Paulo, e sua gestão foi marcada por brutal repressão a movimentos sociais e protestos em 2013 e 2014. Ele nunca esteve do nosso lado.

Quem são esses seus amigos?

Pior que uma ilusão, é uma armadilha entregarmos nossa segurança e nosso futuro a instituições que foram criadas para nos controlar e reprimir, enquanto protegem aqueles que nos massacram. A polícia pode até desfazer momentaneamente os bloqueios, punir alguns dos empresários que financiam a tentativa de golpe de Estado. Mas ela nunca vai acabar com o movimento fascista, pois já deixou bem claro que é parte dele. É óbvio que não devemos ficar imóveis, assistindo o fascismo ocupar as ruas e ameaçar nossa existência. Precisamos criar e fortalecer nossas próprias organizações para garantir nossa segurança. Pois ninguém fará isso por nós.

O bolsonarismo deu vida nova à violência de extrema-direita contra pessoas e serviços essenciais, algo que não víamos de forma organizada desde o período da Ditadura Militar. Nos últimos cinco anos a esquerda tem deixado para as instituições resolverem o problema, mas ele só se tornou mais violento e radical. Entregar nosso poder de ação nas mãos de políticos profissionais e tribunais é recuar. É permitir que a direita avance nas ruas e nas instituições. É urgente reocupar as ruas. Defender nossos territórios. E colocar as forças reacionárias na defensiva.

Nossa única opção.

Violência, democracia e segurança nas eleições de 2022 no Brasil

Dando continuidade às análises sobre os recentes movimentos de rua da extrema-direita brasileira após as eleições presidenciais, sua relação direta com o recuo da esquerda nas ruas e seus possíveis desdobramentos, trazemos um artigo inédito do professor e militante anarquista, Acácio Augusto sobre o uso da violência por movimentos proto-fascistas e pela democracia securitária.

Veja os artigos anteriores aqui e aqui no nosso blog e também traduzido para outros idiomas no portal internacional CrimethInc.

Violência, democracia e segurança nas eleições de 2022 no Brasil

por Acácio Augusto1

No dia 13 de agosto de 2022, no bairro do Munhoz, na divisa de Osasco com Barueri, num ato em memória dos 7 anos da Chacina de Osasco e Barueri, ocorrida em 2015, primeiro ano do quarto mandato Geraldo Alckmin, então à frente do governo do estado, Zilda Maria de Paula, mãe de Fernando, executado pela polícia, relata as dificuldades enfrentadas no parto, sanadas pelos cuidados do Hospital das Clínicas, na região central da cidade. Em seguida, relata emocionada como foi a noite em que recebeu a notícia de que seu filho foi executado, e conclui: “o mesmo Estado que garantiu o nascimento do meu filho, me tirou ele por meio de uma execução, pouco mais de 30 anos depois”. Nunca havia ouvido uma definição tão precisa e sintética de biopolítica: um relato ordinário e brutal de como funciona o faz viver e deixar morrer elaborado por Michel Foucault.

Essa violência ordinária e fatal, que atingiu Fernando há 7 anos, é apenas um episódio, dentre inúmeros que qualquer pessoa pode enumerar, do que quero apresentar neste texto: a violência, na era moderna, é uma categoria eminentemente estatal e está intimamente atrelada à política e à democracia.

Vejamos uma das definições mais conhecidas e aceitas de Estado moderno nas Ciências Sociais, dada por Max Weber: “o Estado moderno é um agrupamento de dominação que apresenta caráter institucional e que procurou (com êxito) monopolizar, nos limites de um território, a violência física legítima como instrumento de domínio e que, tendo esse objetivo, reuniu nas mãos dos dirigentes os meios materiais de gestão. Equivale dizer que o Estado moderno expropriou todos os funcionários que, segundo o princípio dos ‘estados’ disponham outrora, por direito próprio, de meios de gestão, substituindo-se a tais funcionários, inclusive no topo da hierarquia”2. O Estado não apenas se define pelo emprego e gestão da violência, como concentra os meios materiais para exercê-la e cria uma classe de pessoas que tem como função distribuir e regular essa violência. Não discussão sobre violência que não deva passar, primeiro, por essa atribuição específica do Estado, tornando, inclusive, a expressão “violência de Estado” um pleonasmo.

Seguir nesse questionamento sobre a política, o Estado e a violência, implica se colocar, como fez Mbembe, uma questão fundamental de nossa época: “saber se a política pode ser outra coisa que não uma atividade relacionada ao Estado e na qual o Estado é utilizado para garantir os privilégios de uma minoria”3. Um início de reposta é indicado pelo próprio politólogo camaronês, radicado na África do Sul, entre os anarquistas, que forma os únicos a se oporem de forma radical e inegociável ao Estado, à política e à democracia no Ocidente: “o anarquismo, sob suas diferentes roupagens, apresenta-se como uma superação da democracia, em especial de sua vertente parlamentar. (…) Seu projeto era acabar com toda dominação política, sendo a democracia parlamentar uma de suas modalidades. Para Mikhail Bakunin, por exemplo, a superação da democracia burguesa passa pela superação do Estado, instituição cujo a essência é buscar acima de tudo a própria preservação e a das classes que, tendo se assenhorado dele, ora o colonizam. A superação do Estado inaugura o advento da comuna, figura por excelência da auto-organização do social, muito mais do que mera entidade econômica ou política”4.

Após localizar a única oposição radical à democracia estatal em território europeu, Mbembe pondera que “essas críticas à democracia, articuladas do ponto de vista das classes sociais que originalmente sofreram sua brutalidade no próprio ocidente, são relativamente conhecidas”. No entanto, “o triunfo da democracia moderna no Ocidente coincidiu com o período da sua história durante o qual essa região do mundo esteve implicada em um duplo movimento de consolidação interna e de expansão ultramarina. A história da democracia moderna é, no fundo, uma história de duas faces, ou melhor, de dois corpos: o corpo solar, de um lado, e o corpo noturno, de outro. O império colonial e o Estado escravagista – e, mais precisamente, a plantation e a colônia penal – constituem os maiores emblemas desse corpo noturno”5. Assim, não apenas o Estado moderno se funda e se caracteriza pela concentração do exercício da violência, os meios para geri-la e a criação de uma classe especial de funcionários para exercê-la, como sua versão civilizada e democrática se assenta na distribuição da violência para além das suas fronteiras e por um efeito boomerang, como definiu Foucault, que internaliza essa violência colonial por meio do arquipélago carcerário que produz uma colonização interna contra os que não se enquadravam no mundo civilizado racional-legal6.

Se considerarmos que os anos 1990 saudou o triunfo das democracias liberais por toda parte como única via possível, tendo como modelo a “democracia na américa”7, o planeta, hoje, é um só corpo noturno. Vejamos como anda essa democracia no Brasil, saindo neste momento, novembro de 2022, de um processo eleitoral democrático. Como essa violência ordinária e letal se inscreve, hoje, no próprio processo racional de disputa, distribuindo violências de toda sorte? Independente do monopólio que se coloca como legítimo e institucionalizado, há uma incitação entre os governados a serem partícipes dessa violência por meio dos ativismos, disputando, de forma legal e ilegal, o controle dos meios para exercê-la.

Terminada as eleições democráticas, que nada mais é que um método de seleção de líderes que imprime legitimidade a forma racional-legal de dominação burocrática, a crise segue como o modo de governo e, em meio as incertezas, todos clamam por segurança: jurídica, institucional, social, alimentar, ambiental.

Soma-se a isso, a intensidade comunicacional que imprime uma urgência em cada sujeito com o imperativo de que todos devem participar, estarem ativos, para defender o seu modo de ser governado com segurança e paz sobre si e sobre os outros. Apesar das turbulências e insatisfações que seguirão, o processo reafirma a resiliência das instituições democráticas, com suas correções jurídicas sempre a postos, e a vitória da moderação monitorada pelas polícias e suas violências específicas.

Neste momento, pode-se até se dizer que a eleição impediu o avanço institucional do neofascismo, mas recua-se na capacidade de ir além da democracia e do capitalismo, pois todos estão crentes que é preciso defender a legalidade e a Constituição para barrar o que classificam como golpismo (uma palavra bastante desgastada), assim como estar atentos aos ativismos jurídicos e proteções legais. Dizem que o momento é delicado e, por isso, é preciso esperar para que o quadro institucional se (re)componha. Em uma palavra: o imperativo da ordem está posto, independente dos desdobramentos que se possa ter de um processo eleitoral que não finda com o anúncio do resultado das urnas.

Uma das propaladas urgências é desmantelar a dita “politização das polícias”, como se estas já não fossem corporações com claras orientações políticas, o meio privilegiado para o exercício da violência de Estado. Outra é conter a turba alucinada de seguidores de Bolsonaro que clamam por intervenção federal (golpe) em espetáculos públicos de delírio coletivo que mesmo ridicularizados por uma parte das pessoas nas redes sociais digitais, mostra a capacidade de mobilização ativista da extrema-direita no Brasil que perdeu a eleição, mas segue com poder social. A imprensa e as autoridades estatais chamam esses adoradores da ordem (e das ordens do capitão) de baderneiros, insurrectos, revoltosos… não são nada disso, são apenas golpistas mesmo; saudosos de momentos tenebrosos da história do Brasil, especialmente da ditadura civil-militar que vigorou entre 1964 e 1985.

Autoridades e defensores da ordem democrática querem, com essa denominação de vândalos para designar o golpistas, matar dois coelhos numa cajadada só, pois, de um lado, criam aversão a qualquer forma de contestação da ordem reforçando um clamor que se faz em nome da legalidade da ordem constitucional e da defesa da democracia; de outro lado, isolam essas manifestações que, ainda que sejam numerosas, em algumas cidades são multitudinárias, não ganhem tração fora da seita de zumbis hipnotizada pelos grupos de whatsapp e telegram.

Mas não se deve subestimar o que se passa no Brasil.

Primeiro, porque apesar das formas delirantes de leitura da realidade, a maioria das pessoas que estão nas ruas por insatisfação com o resultado das eleições e pedindo intervenção federal são abertamente conservadoras, fanaticamente religiosas e, em muitos casos, declaradamente fascistas e neonazistas. Suas manifestações são apoiadas e financiadas por muitos empresários que vão desde o agronegócio e empresas de segurança privada, passando por donos de grandes lojas de comércio no varejo até pequenos comerciantes locais e donos de postos de gasolina ou concessionarias de carros8.

Segundo, porque mesmo que não logrem seu objetivo maior, essas manifestações conferem lastro social para a atuação no sistema eleitoral de uma espécie de partido informal composto por militares da reserva, policiais e ex-policiais que emplacam pautas conservadoras e reforçam os discursos de ordem e segurança na população em geral. Esse partido informal dos militares ganhou o Palácio dos Bandeirantes, o governo do estado de São Paulo, que possui o maior orçamento público do país, com um ex-chefe da seção técnica da Companhia de Engenharia do Brasil da MINUSTAH, formado na Academia Militar dos Agulhas Negras9. Além desse ex Capacete Azul da ONU, que trabalhou no governo Dilma como engenheiro interessado em questões de logística e transporte, militares e policiais ganharam eleições para Senador, Deputado e Governador em todo país, além dos mais de seis mil militares que compunham o governo derrotado em cargos de confiança, o que significa que eles estarão na transição para o governo eleito e terão força de barganha para negociar vantagens e assegurar pautas que lhes interessam. Os militares da ativa produziram um relatório, a pedido do Ministério da Defesa, sobre as urnas eletrônicas que está sendo usado por essas mobilizações para seguir contestando o resultado das eleições. Muitos desses ativistas dizem se escorar no artigo 142 da Constituição Federal que, segundo as interpretações de juristas simpáticos ao movimento, confere às Forças Armadas um papel de poder moderador da democracia brasileira. Esse relatório consegue alimentar a sanha golpista pelo absurdo de colocar as Forças Armadas como entidade legitimadora das questões técnicas que envolvem as urnas eletrônicas e pela ambiguidade de suas conclusões, já que não reconhece ou localiza objetivamente uma fraude eletrônica, mas não descarta a possibilidade de isso ter acontecido10.

Em termos institucionais, esses militares que viraram políticos e o bolsonarismo eleitoral de ocasião (candidatos que se elegeram na onda de popularidade do presidente derrotado) devem ser fagocitados pelo jogo de alianças no Congresso Nacional. Mas o bolsonarismo ativista, esses que estão nas ruas contestando a eleição e que agora desenvolveram um gosto por ocupar o governo, porque desfrutaram dele por 4 anos, seguem com uma rede mobilizada e podem, no mínimo, pautar questões e emplacar reivindicações independente de quem ocupe a representação no executivo. Seu partido digital, os inúmeros grupos de rede de mensagens, é forte, atuante, tem direção e financiamento. É preciso reduzir imediatamente a importância das redes sociais digitais em pautar o debate social e político, não há outra saída. O maior erro será pensar que ao evitar o que seria um golpe clássico na institucionalidade as coisas estariam resolvidas. Pois o neofascismo ao estilo brasileiro ganhou corpo e se espalhou por toda sociedade, com grande adesão de sujeitos mais ou menos radicalizados e prontos a atender às convocações como a que foi feita após o anúncio do resultado das urnas.

Mais do que nunca, após uma Pandemia e após 4 anos de governo Bolsonaro, é urgente criar, retomar e fortalecer as ações de movimentos sociais nas ruas, nas ocupações, nos parques; se desvencilhar das pretensões ativistas de construir hegemonia opinativa e se concentrar em ações locais, nos bairros, nas zonas rurais e em qualquer ação seja adicta da rede de comunicação e dos aplicativos de mensagens. O meio é a mensagem, já disseram. Isso é decisivo para quem se interessam por uma transformação radical e para não ficar na mão da elite política, pois uma parte dela está com os fascistas e ao outra parte (inclusive a esquerda) aposta todas as fichas na capacidade de moderação das instituições e da Constituição Federal 1988. Se não houver uma radicalização das ações em nível basal, alguém mais palatável, como o militar que governará São Paulo nos próximos 4 anos, pode voltar para cumprir o projeto dos militares que é, resumidamente, a não aceitação do fim da ditadura instalada por um golpe em 1964 e a abertura democrática em 1985. Essa não aceitação não significa exatamente uma volta ao passado, mas a manutenção do Estado e de seus meios de gestão para garantir os privilégios de uma minoria, só que desta vez com uma institucionalidade democrática, com a devida legitimação racional-legal do processo de dominação ordinário.

Em sentido mais amplo, o que se chama de bolsonarismo no Brasil é uma versão de um processo que vem acontecendo em todo planeta liderado pela alt-right: uma profunda transformação na concepção contemporânea de liberdade. Se na sociedade moderna, nascida das revoluções burguesas do final do século 18, liberdade era sinônimo de segurança da propriedade, garantida pela polícia de Estado e, portanto, livre era o burguês, o proprietário, e não cidadão genérico da lei na Constituição. No século 21, há uma associação subjetiva entre liberdade e segurança: as pessoas buscam paz e, para isso, estão dispostas a matar e morrer. Ser livre, nesta concepção, é estar seguro, estar a salvo junto à sua família, estar segurado e securitizado.

Assim se explica porque, apesar de toda violência e conservadorismo nos costumes e apesar das manifestações neonazistas, todas as pessoas que estão nas ruas pedindo intervenção federal no Brasil se dizem democráticas, pois elas entendem que precisam ser livres do governo de Estado (que elas vêm próximo do comunismo) para controlar a si e aos outros em nome da segurança de suas famílias, livre não é mais só o burguês proprietário, livre é o cidadão-polícia11, capaz de assegurar violentamente sua liberdade particular. Em tal conformação político-subjetiva, apesar das investidas autocráticas que sujeitos como Bolsonaro ou Orban encarnam, derivadas de uma concepção majoritarista de democracia (quem leva mais votos pode tudo), não há constituição de regimes autoritários e/ou ditatoriais, mas democracias que vivem em estado permanente de crise, pois não produzem mais a legitimidade da representação do conjunto da sociedade nas instituições pelo procedimento racional-legal das eleições. Isso explica por que as eleições, seja no Brasil, seja nos EUA, não terminam quando o resultado é anunciado.

Essas democracias buscam moderar a competição odiosa entre os jogadores no plano da representação, por isso são altamente judicializadas, dando grande protagonismo político aos juízes, sejam de piso ou de suprema corte. As forças de representação, que há muito tempo já não dependem apenas dos partidos formais, disputam o controle dos governos segundo a capacidade de oferecer maior segurança e seguridade aos cidadãos, que seguem suas vidas em jogo de eliminação mútua. Assim, as chamadas crises políticas ou a temida ameaça às democracias se estende ao infinito, provocando o acionamento constante de forças securitárias que, ao fim e ao cabo, são as instituições efetivamente garantem a ordem, na maior parte das vezes de maneira violenta e mortífera.

No Brasil, esse esgotamento da capacidade do sistema de representação democrática produzir consenso foi exposto pelas revoltas de 2013, época que o país era governado por um governo de esquerda. Naquele momento, muitos que hoje dizem combater o fascismo ignoraram ou mesmo reprimiram e detrataram as manifestações populares, apostando, como agora, na força mordedora das instituições democráticas. Essa insatisfação, portanto, seria drenada para algum lugar e foi fagocitada pelas redes do ativismo digital de extrema direita. Junho de 2013 sofreu uma dupla repressão: o acionamento das forças de segurança e do aparato judiciário do governo de esquerda da época e o assédio midiático-empresarial de que o esgotamento da capacidade de representação da democracia era uma ausência de ordem e um estado de corrupção generalizado. O problema que era político-subjetivo, teve encaminhamento jurídico e securitário. Deu no que deu. Hoje, alguns intelectuais da extrema-direita no Brasil já apontam para atuais manifestações como uma possível repetição de 2013 que abalaria a reposição da dita normalidade democrática, mas se esquecem que junho de 2013 estourou contra a repressão policial e não ao lado da polícia, como ocorre hoje.

É pouco provável que ocorra um golpe no Brasil, o que estamos vivendo é consolidação e legitimação pelo sistema de representação democrática de forças de extrema-direita com capacidade de mobilização social e traços neonazistas. Essa força cumprirá o papel de manter para o próximo governo eleito a crise como modo de governo, oferecendo, sempre que necessário, o motivo para o acionamento das forças de segurança e das exceções jurídicas. A tão esperada pacificação pelas urnas, conclamada pelas forças progressistas, não virá, assim como não veio com Biden nos EUA.

Por isso, seria mais correto dizer que o empreendedorismo de si e o ativismo político da extrema-direita, crescente no planeta após a crise de 2008, não é exatamente a volta do fascismo, nem o aprofundamento do neoliberalismo de Margareth Thatcher e Ronald Regan, mas suas recentes e recorrentes vitórias eleitorais e capacidade de mobilização social em todo planeta conformam o que podemos chamar de democracias securitárias12. Uma noção que não designa uma classificação de regime político, mas que nomeia a forma mesmo das democracias hoje, que move a representação política, à direita e à esquerda, pela busca por segurança e seguridade, e se realiza como a trindade do sujeito democrático hoje: a um só tempo ativista político, empreendedor de si e cidadão-polícia.

Não há a menor dúvida que apenas a mobilização social realmente anti-sistêmica (antiestatal, anticapitalista e antipolítica) e fora das redes sociais digitais, é capaz de retirar não só o Brasil, mas todos o planeta, desse impasse que tem feito da extrema-direita uma força eleitoral crescente e um movimento capaz de encher as ruas em nome da ordem.


Notas:

1 Professor no Departamento de Relações Internacionais da UNIFESP, onde coordena do LASInTec (Laboratório de Análise em Segurança Interacional de Tecnologias de Monitoramento), pesquisador no Nu-Sol (Núcleo de Sociabilidade Libertária da PUC-SP) e professor no Programa de Pós-Graduação em Psicologia Institucional da UFES. Contato acacio.augusto@unifesp.br

2 Max Weber. “A política como vocação” In Ciência e política, duas vocações. Tradução de Leonidas Hegenberg e Octany Silveira da Mota. São Paulo: Cultrix, 1968, p. 62.

3 Achille Mbembe. Políticas da inimizade. Tradução de Sebastião Nascimento. São Paulo: n-1, 2020, p. 44.

4 Idem, p. 44.

5 Idem, ibidem, pp. 45-46.

6 Michel Foucault. Em defesa da sociedade. Tradução Maria Ermantina Galvão. São Paulo: Martins Fontes, 2002.

7 Sobre o “imperialismo do universal estadunidense” e evidente referência ao clássico de Tocqueville, “A democracia na América”, ver Pierre Bourdieu. “Dois imperialismos do universal” In Daniel Lins e Loïc Wacquant. Repensar os Estados Unidos: por uma sociologia do superpoder. Campinas: Papirus, 2003, pp. 13-19.

8 Sobre esse financiamento, ver Arthur Stabile. “Deputado, políticos e empresários: quem são os identificados por envolvimento com bloqueios golpistas”, in G1 Notícias, 17/11/2022. Disponível em https://g1.globo.com/politica/noticia/2022/11/17/deputado-politicos-e-empresarios-quem-sao-os-identificados-por-envolvimento-com-bloqueios-golpistas.ghtml

9 Sobre a trajetória de Tarcísio de Freitas, de militar e burocrata de carreira à principal sucesso eleitoral do bolsonarismo no Brasil, ver Ana Clara Costa. “DE ALIADO PETISTA A BOLSONARISTA RAIZ”, in Revista Piauí, 30/09/2022. Disponível em https://piaui.folha.uol.com.br/eleicoes-2022/de-aliado-petista-a-bolsonarista-raiz/

10 Sobre o relatório e sua ambiguidade não conclusiva, ver Murilo Fagundes. “Defesa não vê fraude em eleição, mas sugere melhorias ao TSE” In Poder 360, 09/11/2022. Disponível em: https://www.poder360.com.br/governo/defesa-nao-ve-fraude-em-eleicao-mas-sugere-melhorias-ao-tse/

11 Sobre essa figura do cidadão-polícia como forma subjetiva das sociedades de controle, ver Acácio Augusto. Política e polícia: cuidados, controles e penalizações de jovens. Rio de Janeiro: Lamparina, 2013.

12 Sobre isso, ver as pesquisas do LASInTec, em https://lasintec.milharal.org/ especialmente o Boletim (Anti)Segurança, nº 26.