Lançamento: Revista Tormenta #3 – 2023: “Quem Tem Medo de Junho de 2013?”

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Nossa revista Tormenta retorna para uma terceira edição especial em 2023, com destaque para os 10 anos dos levantes de 2013 pelo Brasil, incluindo os artigos “Por que 2013 agora?” e o “Junho (rastejante) em Belo Horizonte” e uma reedição do nosso artigo sobre os também 10 anos da revolta pelo Parque Gezi e Praça Taksin na Turquia. Além disso, análises sobre o fascismo e as eleições brasileiras de 2022, relatos e entrevistas dos levantes no Peru, na França e dos bloqueios de estradas em São Paulo na luta indígena contra o PL 490.

Baixe o PDF, difunda, imprima, debata na sua comunidade, seus coletivos, movimentos e cumplicidades.

Conteúdo:
  • Por que 2013 agora?
  • Esquerda eleitoral, ações diretas fascistas e resistência antifascista as eleições brasileiras de 2022
  • Isto não é uma insurreição popular
  • A revolta popular no Peru: anarquistas discutem o levante contra a violência policial e o estado de emergência
  • “O governo quer roubar anos de nossas vidas”: as lutas contra a reforma da previdência na França
  • Gezi Park: 10 anos dos levantes na Turquia
  • O junho (rastejante) em Belo Horizonte
  • Das barricadas: relato dos bloqueios contra a PL 490

APRESENTAÇÃO

Neste mês, completam-se 10 anos dos levantes de junho de 2013 no Brasil. Uma onda que começou em Porto Alegre no início do ano com protestos contra o aumento do preço das passagens de ônibus e metrô, se espalhou pelo país em uma revolta popular em escala nacional após os atos em São Paulo contra o aumento da passagem. Uma década depois, as lutas radicais contra os custos e miséria da vida no capitalismo é apresentada pelos partidos de esquerda, a mídia e supostos intelectuais como “a origem da nova extrema-direita” que chegou ao poder em 2018 com Jair Bolsonaro. É lamentável que etejamos aqui hoje tentando contar a história como ela foi, disputando o discurso com negacionismo puro, em vez de estarmos celebrando os protestos com mais atos radicalizados, como fazem no Chile as multidões indo para as ruas todo Primeiro de Maio, todo Día del Joven Combatiente ou todo aniversário do golpe de 1973, mantendo a memória de luta com mais luta.

O Partido dos Trabalhadores nos presenteia com mais uma inovação: pela primeira vez, a esquerda institucional não tenta cooptar e reivindicar uma revolta popular, mas sim associar o protesto de rua e a mobilização autônoma ao fascismo, numa tentativa desonesta de culpar o oprimido pela reação dos opressores. A finalidade dessa tese é simplesmente favorecer uma cultura política que condena a auto-organização e a rebelião, justificando a repressão e a criminalização dos que não se submetem aos ritos democráticos e jurídicos, especialmente movimentos autônomos e anticapitalistas de base.

Uma década depois de lançarmos os primeiros textos desse coletivo editorial, aqui estamos mais uma vez para refletir sobre junho de 2013. Naqueles dias ainda enfumaçados, começamos a escrever e difundir uma análise anárquica e insurrecional diretamente das barricadas, compartilhando e trocando experiências e reflexões com outros indivíduos e grupos organizados em movimentos de luta contra a tarifa, ocupações, coletivos editoriais, tentando entender o solo instável em que pisávamos e nos preparar para os anos turbulentos que viriam. Sabíamos muito bem que era preciso lutar com a mesma – ou maior – força contra o capitalismo quando ele é gerido por um partido de esquerda. Pois as políticas e leis repressivas que eles nos fazem aceitar enquanto estão no poder como algo normal do exercício de gestão, servem apenas para serem aplicadas com ainda maior peso e violência quando a direita volta ao poder.

Estivemos nas ruas lutando e registrando nossas experiências, seja nas lutas contra o aumento da tarifa em 2013, contra os megaeventos como a Copa e as Olimpíadas em 2014, saímos em apoio às ocupações de escolas em 2015, que começaram em reação às reformas neoliberais do então governador tucano Geraldo Alckimin e reprimidas pelo jurista linha-dura Alexandre de Moraes. O primeiro, recém-filiado ao Partido Socialista Brasileiro é transformado em vice-presidente na atual gestão petista e o outro, é nomeado ministro do Supremo Tribunal Federal. proclamado “herói da democracia” e seu maior defensor. Estivemos também nas lutas contra a austeridade aprofundada pela gestão Temer, nas lutas por moradia e pela terra, por demarcações, contra a eleição de Bolsonaro e, novamente contra a esquerda acovardada, quebrando o pacto do “fique em casa” junto às torcidas e coletivos antifas enquanto fascistas organizavam carreatas e motociatas na pandemia mais letal do século.

Não imaginamos o quão turbulento seria aquele período logo depois percebermos que não saberíamos o que fazer com nossa primeira grande vitória em escala nacional naquele junho de 2013. Dez anos se passaram, e aquele mês vitorioso foi ofuscado por uma década de derrotas. Agora, os que venceram querem enterrar e caluniar nossas lutas, nossas histórias – e nossos mortos.

A ideia de que as jornadas de junho foram a “antessala do golpe” ou o que abriu as portas para a vitória de Bolsonaro não se sustenta nos dados da realidade. O ano de 2013 foi o ano com o maior número de greves desde os anos 1980. Mais de 2 mil greves mobilizaram cerca de 2 milhões de trabalhadoras e trabalhadores, segundo o DIEESE. Logo após junho, mais de 30 Câmaras Municipais foram ocupadas, como em Belo Horizonte [veja o aritgo Junho (rastejante) em Belo Horizonte], ainda no desdobramento das lutas contra o aumento da tarifa dos transportes públicos. A esquerda e os movimentos permanceram ativos e presentes nas ruas. O antipetismo, que não começou em 2013, não se traduziu nas urnas e não foi capaz de nem mesmo barrar uma nova vitória de Dilma nas urnas. Reeleita em 2014, a petista enfrentou os primeiros grandes atos contestando o resultado das urnas eletrônicas organizados pelo opositor Aécio Neves, do PSDB. Ainda assim, foi por vontade própria que Dilma escolheu abandonar a irreal promessa de dar uma “guinada à esquerda” e aplicar políticas de austeridade e cortes sociais mais alinhadas com a do candidato derrotado da direita.

Quem trouxe as serpentes para dentro de casa foram os próprios governos petistas. Além da vice-presidência ser sempre de um membro do PMDB (José de Alencar e Michel Temer), o PT nomeou quadros do PMDB, do PP e políticos fisiológicos centrão para sua base governista e para altos cargos em estatais como a Petrobras. Quando os protestos massivos abalam o sistema e a opinião pública, a direita vem sequestrar pautas e emplacar o chavão de que a “revolta é contra a corrupção”, Dilma topa comprar essa pauta como estratégia de marketing para se blindar perante a opinião pública. Porém, esquece que governantes que não blindam enquanto classe, corporativista e corrupta por definição, são traidores para aqueles que sabem jogar o jogo. Dilma acreditou que poderia se beneficiar dos resultados da operação Lava Jato como se fosse possível alegar que todos são corruptos, menos o seu governo. Quando o lavajatismo avança e empresários e políticos são presos, diretores são demitidos das Estatais, sem a proteção costumeira, essa mesma classe política decide inverter a chave, e se aliam pra dizer que “todos são limpos, menos o PT” e quebrar o pacto até então bem-sucedido.Mas como PT e autocrítica são palavras rivais, é muito mais fácil criticar quem luta para mudar a realidade de fora do sistema político, do que fazer a crítica de suas próprias práticas, ou as dos grupos reacionários – as verdadeiras serpentes – com os quais se aliaram e pelos quais foram mordidos. O movimentos sociais que se recusam a ser governados, esses sim devem ser esmagados, presos, expurgados e apagados dos livros.

Se direita se reorganizou após os levantes de 2013, cooptando e emulando formas autônomas de organização, estéticas e linguagens, não vemos aí nenhuma novidade, do ponto de vista histórico, uma vez que tanto a Primavera dos Povos de 1848, a Comuna de Paris em 1871, a tentativa de Revolução Alemã em 1919, ou mesmo as lutas campesinas nos anos 1960 no Brasil foram seguidas de reações e golpes da classe dominante e conservadora. O fascismo se alimenta da energia de revoluções fracassadas, mas nem por isso o antídoto seria não lutar – pelo contrário, seria lutar mais e melhor! Cabe a nós, radicais, nos reagruparmos para contra-atacar.

Mesmo acumulando tração e conquistando vitórias na última década, a extrema direita brasileira se mostra tão incompetente quanto a estadunidense em governar, e sua “anti-gestão” ainda parece incapaz de entregar a estabilidade que o Capital tanto precisa. Lula retorna prometendo reverter o estrago feito pelo bolsonarismo e entregar a pacificação tão necessária para os negócios. Em menos de seis meses, a nova gestão teve que se aliar e ceder espaços aos mesmos parlamentares de aluguel do centrão e da base bolsonarista. As derrotas no Parlamento para aplicar o Marco Temporal, e que tiram poder do recém-criado Ministério dos Povos Indígenas já indicam que a classe política não vai ajudar Lula a cumprir suas promessas de inclusão feitas às minorias representadas pelos indivíduos que subiram com ele a rampa do palácio no ritual de posse. Ou seja, a nova frente ampla petista já demonstra mais uma vez a antiga tese de que qualquer aliança da esquerda com a direita tente sempre para o conservadorismo.

O primeiro dia de governo é celebrado com um pretensioso “Festival do Futuro”, ironicamente organizado para celebrar uma esquerda que só é capaz de prometer um passado, como um filme de ação em que o protagonista tenta reinterpretar, já na terceira idade, seu sucesso da juventude – sem dublês! O fracasso em amenizar os efeitos da vida no capitalismo agonizante é inveitavel para qualquer governo e apenas uma questão de tempo para Lula – e fascistas estarão mais preparados e armados que da última vez.

Portanto, não há como celebrar como vitória o retorno do partido que nos enfiou goela abaixo aumento vertiginoso do encarceramento, os megaeventos e seus desalojos, Belo Monte e a destruição do meio ambiente e dos povos originários, que enviou as tropas da Força de Segurança Nacional atirar e nos prender, que sancionou uma Lei Antiterrorismo contra os movimentos sociais, e agora nos faz engolir uma aliança com Alckmin, Lira e os demais. Uma vitória por menos de 2% nas urnas é muito mais uma sorte, uma frágil condição favorável, do que uma tranquilidade. O bolsonarismo colocou em movimento paixões fascistas capazes de mobilizar o ódio e a reação nas ruas, nas escolas, nas estradas, no campo, nas instituições e em todo espaço de convívio. E somente o enfrentamento feito por fora da via institucional poderá fazer frente e barrar esse avanço.

Será preciso lutar como em 2013 de novo e de novo, quantas vezes for necessário. Não ajustaremos o nosso tom. Agora, quando o pacto de classes petista se refaz de maneira ainda mais reacionário do que da primeira vez, como uma pausa para respirar enquanto a burguesia, os militares, as milícias e as tradicionais castas políticas não retomam o controle total da máquina, e o maior partido de esquerda do país quer usar o fantasma fascismo para chantagear movimentos sociais e o protesto de rua, reafirmamos nossa postura sem acordo e sem recuo na guerra contra gestores da vida e da morte, sejam da esquerda ou da direita.

Elejam quem quiser. Somos ingovernáveis!

Facção Fictícia,
Outono de 2023.


Leia também:

TORMENTA #2, – 2021

TORMENTA #1, – 2020

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QUEM TEM MEDO DE JUNHO 2013? – ciclo de eventos e debates

A maior revolta popular do país vista a partir de sua radicalidade e potência de transformação hoje Junho de 2013 no Brasil foi um acontecimento intempestivo.

Nos dias de revolta que varreram o Brasil naquele junho, governos e suas polícias, jornalistas e seus ventríloquos universitários, partidos de esquerda e de direita com seus respectivos representantes, assim como as organizações de direitos humanos e seus ativistas, se apressaram em isolar os vândalos dos manifestantes pacíficos. O objetivo político era associá-los à anarquia entendida como desordem para entregar militantes e manifestantes para a violência brutal das Tropas de Choque e enfiá-los em bancos de delegacias e/ou tribunais. Hoje, alguns destes agentes políticos lamentam que a extrema-direita tomou as ruas e repetem, como autômatos, que a democracia está em crise e ameaçada pelo fascismo. Muitos colocam a culpa dessa situação ou o início dela, nas revoltas de junho de 2013. Querem criminalizar as revoltas e silenciar a potência de transformação que ela traz. Como é comum na história política moderna, apontam para a anarquia como um monstro político a ser dominado ou eliminado.

Esse ciclo de eventos, com palestras, conversas e debates, visam falar de um outro junho de 2013. Trata-se de uma série não unificada, mas articulada, que ocorrerá durante o mês de junho de 2023 sobre a atualidade das insurreições de junho de 2013 nas cidades de Porto Alegre, Rio de Janeiro, Osasco, São Paulo e Belo Horizonte. Cada coletivo local fará as conversas e exibição de vídeos à sua maneira, mas que evitando o tom de efeméride para focar na singularidade e atualidade do acontecimento junho de 2013, destacando a revolta e suas conexões com outras mobilizações que estavam a acontecendo no planeta, os movimentos envolvidos e sua afirmação de autonomia e diferença com os movimentos sociais até aquele momento. Estamos interessados nos efeitos das insurreições de junho de 2013 ainda presentes hoje, tanto em termos de luta e características dos movimentos, quanto em termos de reação da ordem, com mudanças nas formas de repressão e controle e articulações da elite política para capturar insatisfações em processos institucionais, eleitorais e partidários.

Trata-se não de uma leitura final e totalizante do acontecimento, mas uma leitura libertária que busca mover a revolta no presente, soprando a brasa ainda acesa da labareda que varreu o Brasil há 10 anos.

DATAS: 
  • Porto Alegre: 19 de maio, no ESPAÇO.
  • Rio de Janeiro: dias 1, 6, 12 e 20 de junho, na Aldeia Maracanã, UERJ, ADEP & Cinelândia
  • Osasco: 14 a 16 de junho  na UNIFESP – Campus Osasco
  • São Paulo:  17 de junho na Praça do Ciclista (na concentração da Marcha da Maconha).
  • Belo Horizonte: 24 de junho na Kasa Invisível.

ORGANIZE TAMBÉM EM SUA CIDADE:

Muitos materiais foram produzidos por quem esteve nas ruas do lado dos debaixo e podem servir de introdução para debates e estudos. Abaixo, reunimos alguns desses materiais para exibição de vídeos e circulação de textos:
“Por que 2013 agora?”, vídeo por  Sonho, com colaboração dos coletivos Antimídia e Facção Fictícia.


Mais sobre o tema:

Camarada Serge: notícias da revolta popular na França

As ruas da França estão em chamas desde que protestos e greves que começaram em janeiro se transformaram em um verdadeiro levante contra reforma da previdência social que visa aumentar a idade mínima de aposentadoria. A polícia comandada pelo governo de Emmanuel Macron tenta reprimir o movimento que já se tornou uma das maiores onda de protestos da atualidade e novos focos surgem em centenas de cidades.

No sábado, dia 25 de março, no oeste da França, um protesto de 30 mil manifestantes contra a construção de um reservatório de água em Sainte-Soline e seus dramáticos impactos sociais e ambientais culminou em mais repressão e violência policial. Um camarada conhecido com Serge foi atingido na cabeça por explosivos da polícia e teve atendimento negado pelos capangas de Emmanuel Macron. Abaixo, disponibilizamos a tradução de alguns comunicados e chamados de seus amigos e parentes.

Camarada internado e com risco de morte após a manifestação em Sainte-Soline

Nosso camarada S. foi atingido na cabeça por uma granada explosiva durante a manifestação contra reservatórios de água neste sábado, 26 de março, em Sainte Soline.

Apesar de seu estado grave, a prefeitura impediu conscientemente, em um primeiro momento, que os serviços de emergência interviessem e apenas depois de algum tempo o transportaram para uma unidade de atendimento apropriada. Ele está atualmente em terapia intensiva neurocirúrgica. Seu prognóstico vital ainda está comprometido.

A onda de violência sofrida pelos manifestantes deixou centenas de feridos, com vários atentados graves à integridade física, conforme anunciado pelos diversos relatórios de informação disponíveis. Os 30.000 manifestantes tinham o objetivo de bloquear o local da megabacia [grandes reservatórios de água destinados à agroindústria] de Sainte-Soline, um projeto de apropriação privada de água por uma minoria em benefício de um modelo capitalista que não tem mais nada a oferecer além de morte. A violência do braço armado do estado democrático é a expressão mais clara disso.

Logo em seguida do movimento contra a reforma da previdência, a polícia mutila e tenta assassinar para impedir a sublevação, para defender a burguesia e seu mundo. Nada impedirá nossa determinação em acabar com o reinado deles.

Na terça-feira, 28 de março, e nos dias seguintes, vamos fortalecer as greves e bloqueios, sair às ruas, por S. e todos os feridos e presos de nossos movimentos.

Vida longa à revolução.

Camaradas de S.

PS: Se você tiver alguma informação sobre as circunstâncias dos ferimentos infligidos a S., entre em contato conosco: s.informations@proton.me

Gostaríamos que este comunicado fosse distribuído o mais amplamente possível.

Traduzido do Francês

Polícia sob ataque dos manifestantes em Sainte-Soline, 25 de março de 2023.

Comunicado dos Pais de Serge (S.) em 29 de março de 2023

Esta é a tradução de uma declaração dos pais de um ativista que permanece em coma cinco dias após a violência policial em Sainte-Soline.

Após o ferimento causado por uma granada GM2L, durante a manifestação de 25 de março de 2023 organizada em Sainte-Soline contra os projetos de bacias de irrigação, nosso filho Serge está atualmente em um hospital lutando por sua vida.

Apresentamos queixa por tentativa de homicídio e obstrução voluntária à chegada dos serviços de emergência e por violação de segredo profissional no âmbito de inquérito policial e apropriação indébita de informação constante do arquivo para tal.

Na sequência dos vários artigos publicados na imprensa, muitos dos quais imprecisos ou enganosos, gostaríamos de dar a conhecer que:

  • Sim, Serge está na lista “S” (lista de observação da “Segurança do Estado”) – como milhares de ativistas na França de hoje.

  • Sim, Serge teve problemas legais – como a maioria das pessoas que lutam contra a ordem estabelecida.

  • Sim, Serge participou de muitas manifestações anticapitalistas – como milhões de jovens em todo o mundo que acham que uma boa revolução não seria demais e como milhões de trabalhadores que lutam atualmente contra a reforma previdenciária na França.

Acreditamos que esses não são atos criminosos que manchariam nosso filho, mas, ao contrário, esses atos são creditados a ele.

Os pais de Serge
29 de março de 2023

Vídeo sobre a Batalha das Mega Bacias em Sainte Soline: legendas em português disponíveis.

 


Uma atualização sobre Serge

Apresentamos uma segunda declaração escrita pelos companheiros e próximos de Serge, divulgada na quarta-feira, 29 de março.

Enquanto nosso camarada Serge continua lutando pela vida que o Estado tentou tirar dele, estamos testemunhando uma nova onda de violência contra ele. A mídia está tentando retratá-lo como um homem que deveria ser fuzilado. Hoje, ele ainda está em coma, em estado crítico. Enviamos nossa solidariedade a Mickaël e a todos que sentiram a força bruta da violência policial cair sobre eles.

A mídia burguesa continua repetindo incessantemente palavras cuidadosamente escolhidas pelo Estado para construir, do nada, o inimigo que quer combater. Sua fachada falsa vai desmoronar diante das muitas narrativas que corrigiram e reescreveram o curso dos acontecimentos. A polícia usou granadas com o objetivo específico de causar danos físicos e mentais aos manifestantes; eles são responsáveis ​​por impedir que os socorristas evacuem os feridos, mesmo que isso signifique deixar nossos camaradas morrerem.

Os serviços de inteligência têm distribuído livremente as informações que coletaram sobre Serge para redações em todo o país. O objetivo deles é nos obrigar a nos definirmos nas palavras usadas pela polícia. Aqui, não vamos nos envolver com as versões deliberadamente abreviadas da identidade de Serge que a polícia tem circulado. Não acreditamos que qualquer verdade sobre ele possa ser encontrada nos arcanos da propaganda estatal e da mídia. Como revolucionário, Serge tem participado com todas as suas forças e por muitos anos em muitas lutas de classes contra a nossa exploração, sempre com vistas à ampliação e fortalecimento da vida e vitória do proletariado.

E, de fato, não podemos nos deixar esmagar.

Apelamos a todos aqueles que o conhecem para dizer aos outros ao seu redor quem ele é. Lembre-se: Serge, em luta, recusa a estratégia do estado de separar bons e maus manifestantes. Com ele e para ele, defendemos esta linha.

Na terça-feira, 28 de março, pessoas de todos os lugares se comprometeram a mostrar sua solidariedade ao movimento contra a reforma previdenciária na França. Também recebemos muitas mensagens de camaradas internacionais. Nós os agradecemos calorosamente e os encorajamos a continuar e apoiar o movimento. Mais ações já estão planejadas e encorajamos as pessoas a se juntarem e multiplicarem sem restrições, na França e no resto do mundo.

Queremos que este comunicado seja compartilhado o mais amplamente possível.

PS: Há muitos rumores sobre a condição médica de Serge. Não os compartilhe. Nós manteremos você atualizado.

Para entrar em contato conosco:

s.informations@proton.me

Camaradas de S.

A REVOLTA POPULAR NO PERU – Anarquistas Discutem a Revolta Contra a Violência Policial e o Estado de Emergência

Em dezembro de 2022, uma onda de protestos populares liderados por camponeses e os movimentos indígenas varreram o Peru depois que o ex-presidente Pedro Castillo sofreu impeachment após uma tentativa fracassada de dissolver o legislativo e sua vice-presidente, a conservadora Dina Boluarte, assumiu o governo. Em 14 de dezembro, o ministro da Defesa, Alberto Otárola, decretou estado de emergência, suspendendo a liberdade de reunião, a liberdade de ir e vir, a inviolabilidade do lar e outros direitos. No entanto, os protestos só aumentaram de intensidade. Em 18 de janeiro, movimentos populares do sul do Peru marcharam até a capital em uma mobilização conhecida como “Tomada de Lima”. Estudantes e sindicatos os receberam, juntando-se aos protestos para exigir novas eleições para a presidência e o legislativo. Em resposta, a polícia matou mais de 60 pessoas e feriu milhares. Para uma visão direta desses acontecimentos, conversamos com anarquistas peruanos, na esperança de obter uma perspectiva sobre os aspectos desse movimento que ultrapassam a política de estado.


O Peru tem uma longa história de golpes de estado no poder e violência estatal e paramilitar no campo. Após uma crise envolvendo a falta da última página de um contrato entre o governo peruano e a Companhia Internacional de Petróleo, o general Juan Velasco Alvarado derrubou o presidente eleito Fernando Belaúnde Terry em 1968. A partir da década de 1980, o grupo armado maoísta Sendero Luminoso conduziu uma guerra de guerrilha no campo que ceifou dezenas de milhares de vidas. O presidente Alberto Fujimori dissolveu o Congresso em 1992 para obter o poder absoluto, que manteve por meio de uma vasta rede de atividades secretas coordenadas pelo chefe do serviço de inteligência do Peru, Vladimiro Montesinos – até ser derrubado em 2000 após uma eleição fraudulenta. Em novembro de 2020, protestos generalizados forçaram o presidente interino Manuel Merino a renunciar após apenas cinco dias no cargo.

Mais recentemente, o vizinho Equador viu revoltas em 2019 e 2022, nas quais grupos de base ligados à Confederação de Nacionalidades Indígenas do Equador (CONAIE) desempenharam um papel central na resistência às medidas de austeridade impostas pelo Estado. Algo semelhante ocorre hoje no Peru, onde um movimento composto principalmente por camponeses e indígenas interrompeu o funcionamento do capitalismo extrativista, afirmando seus próprios interesses e estruturas organizacionais fora do quadro do poder estatal.

À medida que uma nova série de tentativas de golpe ocorre nas Américas, do 6 de janeiro de 2021 nos Estados Unidos ao 8 de janeiro de 2023 no Brasil, é importante aprender como os movimentos populares podem manter a resistência diante da repressão policial – especialmente movimentos envolvendo os explorados e excluídos.

Conversamos com participantes do Periodico Libertária, publicação anarquista que surgiu como parte da resistência ao regime peruano. Seu objetivo, como eles dizem, é “a libertação total dos Andes e de todo o território dominado pelo estado assassino chamado ‘Peru’”.

Capa da primeira edição do Periodico Libertária, com o slogan “Espalhamos a anarquia quando podem”. O balão diz “Um misantropo que também é filantropo, é um pouco difícil de entender” e a legenda diz “Oxímoro: Protesto dos trabalhadores do IPC em Lima, 29 de junho de 1956”.

Em outros países, são muito escassas as informações que recebemos sobre a revolta que ocorre neste momento nas ruas peruanas. A mídia noticia de forma superficial que há manifestações e greves, com repressão policial que já matou dezenas de pessoas e feriu milhares. Ainda assim, pouco se discute sobre o contexto e quando se fala, mantém-se o binário: apoio a Pedro Castillo, presidente que tentou dissolver o Congresso e aplicar um golpe, ou a destituição de Dina Boluarte, sua vice que assumiu o cargo depois do Impeachment do presidente, e também a demanda popular pela realização de uma nova eleição. Mas sabemos que as revoltas estão sempre para além dessas simplificações e, por isso, é preciso entender o contexto e as lutas recentes nos territórios onde as insurreições acontecem. Sendo assim, gostaríamos que você escrevesse uma história de uma perspectiva anarquista sobre o que está acontecendo lá no momento e quais são as possíveis conexões com outras insurreições que ocorreram na chamada América Latina?

Normalmente, os meios de comunicação de massa cobrem os protestos no exterior como algo isolado e localizado, mesmo que o que está acontecendo esteja a apenas alguns quilômetros de distância. Nos meios de “comunicação” existe o receio de expor problemas estruturais e analisá-los em profundidade. Sabe-se que no Peru vivemos um processo antiautoritário que poderia ocorrer em qualquer país latino-americano, especialmente considerando a coincidência e a origem dos problemas – racismo estrutural, pobreza extrema, corrupção institucionalizada e uma violenta democracia neoliberal.

Nesse caso, a repressão do atual governo tem sido caracterizada pelo racismo desenfreado. Houve massacres em cidades dos Andes e do Altiplano [as montanhas e planaltos do Peru]. Obviamente, a desprezível imprensa amarela não tem apresentado uma representação fiel da realidade. Enquanto a militarização continua em várias cidades – como Ica, no litoral, e Puno, no altiplano – o último assassinado em Lima (28/01/23) foi descrito pela mídia como mero delinquente quando sua morte foi transmitida no um canal a cabo no país. Há um constante confronto assimétrico entre as armas do Estado e as lutas dos povos em busca da liberdade.

No que diz respeito às conexões com outros eventos, sem esquecer os problemas específicos deste território e o caráter camponês da revolta peruana, as referências mais próximas são as experiências antiautoritárias de outubro de 2019 da Confederação de Nacionalidades Indígenas do Equador (CONAIE). A diferença está na ausência de grandes organizações indígenas, já que a Confederación Campesina del Perú (a Confederação Campesina do Peru fundada em 1947) sofreu o violento assédio do Sendero Luminoso (grupo marxista) e também a perseguição do ditador Alberto Fujimori, resultando em sua atual desintegração. Para compensar esta ausência existem as organizações camponesas de base , tanto provinciais como distritais.

Isso também explica o fracasso da esquerda política em direcionar os protestos para seus interesses. Vimos confrontos abertos com parlamentares nas ruas e até ações diretas contra suas propriedades.

Confrontos em Lima.

Você pode falar sobre a participação dos camponeses e indígenas nas manifestações?

Deve-se afirmar abertamente que os grupos camponeses estão à frente dos levantes neste território. Existem diferentes grupos étnicos no Peru que resistiram à maquinaria colonial (em todas as suas formas) e mantêm uma longa tradição antiautoritária. Nessas circunstâncias, diferentes etnias ou nações se uniram para enfrentar diretamente a açougueiro Dina Boluarte.

Embora alguns dos partidos políticos tenham contribuído para organizar os protestos por meio de suas bases, eles estão tentando se posicionar como vanguarda; isso não é mais sustentável, pois as pessoas não aceitam mais os apelos à não violência vindos desses partidos. É por isso que as pessoas queimaram prédios estatais, incluindo delegacias de polícia.

Por outro lado, essas ações também nascem de uma justa sede de vingança contra a capital Lima, porque dirige toda a maquinaria legal colonialista que, através do extrativismo e outras atividades econômicas, esmaga as populações das províncias, usando a violência do estado e força privada para expulsá-los, prendê-los e até matá-los sempre que se opõem a um projeto – ou simplesmente quando exigem o cumprimento dos termos com os quais concordaram como condições para aceitar um projeto estatal ou privado.

A isto se somam as lembranças do comportamento de muitas pessoas de Lima que alugavam quartos, apartamentos ou casas a gente do interior e que não queriam abater o aluguel (ou baixar o valor ou adiá-lo) durante a primeira fase da pandemia, e ainda começou a expulsá-los de suas casas, causando um êxodo de pessoas dos Andes e da selva de volta aos seus lugares de origem por causa da quarentena. Da mesma forma, algumas pessoas foram expulsas de suas casas “por medo de contágio”, porque a imprensa (irresponsavelmente como sempre) espalhou o medo sobre o COVID-19. Além disso, como eles viajavam em grandes grupos a pé porque o transporte era proibido por medo de contágio – e eles nem podiam usar o próprio transporte – a polícia começou a reprimi-los em todos os postos de controle da estrada. E também, os habitantes de algumas localidades, temendo a exposição ao vírus, também participaram dessa repressão e do fechamento das estradas de seus territórios.

É perigoso generalizar esse ódio a todos que moram em Lima, algo que pouco se tem falado nas redes sociais, talvez porque muitas pessoas já tenham família, amigos ou moradia nas províncias para onde possam ir se essa situação tornar-se mais aguda e as províncias tomam a decisão de bloquear o envio de alimentos para Lima. Lima quase não produz alimentos in natura, apenas alimentos processados ​​– mas sem matéria-prima importada de fora, nem isso seria possível.

É por isso que, há alguns dias, circulou um vídeo da caminhada de Ancón ao centro de Lima (que dizem ser 20 quilômetros) em que uma senhora do Sul agradeceu aos lxs desactivadorxs [os “desativadores”, os grupos que se organizam para neutralizar as armas químicas da polícia] pelo esforço e disseram (embora eu acredite que de brincadeira) que terão um espaço na Grande República do Sul. Parece que essa ideia de dividir o Peru em duas repúblicas, que surgiu durante as eleições presidenciais (primeiro entre a direita, quando viram que grande parte do Sul votaria em Pedro Castillo, e depois nos meios de esquerda, que acredita isso é do interesse de seu governo), ganhou força como resultado dos assassinatos de cidadãos. Isso pode ser aproveitado pelos esquerdistas que – com Evo Morales à frente e o apoio da China por meio de sua Cúpula da CELAC [Comunidade de Estados Latino-Americanos e Caribenhos] – aspiram a governar os novos pactos comerciais extrativistas com a China, especialmente do lítio presente na cidade de Puno, no sul do Peru e na fronteira com a Bolívia. Até os Estados Unidos pretendem obter o controle dessa área, por isso apoia o modelo de exportação mineral para aquela região – não só com a presença de seu embaixador, mas também apoiando o governo do Peru e suas forças armadas e policiais, militarmente e taticamente. É por isso que eles enviaram forças militarizadas para Puno.

Diante de várias propostas de “independência” ou de saída para esta crise, é preciso analisar cada uma delas, pois atrás de cada uma há aspirantes a opressores querendo puxar os cordelinhos em benefício próprio. Os irmãos e irmãs no Chile já estão nos alertando sobre os perigos ou a ilusão de uma Assembléia Constituinte, até mesmo do próprio processo. [Para mais contexto, veja nossa cobertura de como o movimento no Chile se perdeu na tentativa de introduzir uma nova constituição por meios institucionais.] A esquerda, com seus partidos políticos e parlamentares, está tentando se fazer passar por aliada desses protestos em um esforço que só pode ser descrito como oportunismo político; em alguns lugares, os manifestantes os expulsaram ou vaiaram. A esquerda tenta fingir que se importa com seus irmãos e irmãs nas províncias, mas eles apenas os veem e os tratam como possíveis votos a seu favor.

Para concluir, foram os camponeses que colocaram seus corpos em risco nesses protestos – que, com suas huaracas feitas à mão, trocaram projéteis com a tombería [tropa de choque], repelindo as covardes forças repressivas do sangrento regime de Dina Boluarte. Eles sabem que é uma questão de vitória ou morte; a democracia nunca resolveu nada para eles, ao contrário daqueles que se venderam a um partido. Essas marchas trouxeram à tona o racismo velado no Peru.

Também nos preocupamos com os recursos para o autocuidado e as possibilidades de voltarem para casa quando tudo passar. Já existe um precedente infeliz desde 2000, quando o povo indígena Shipibo-Konibo foi abandonado e marginalizado após os protestos maciços da “Marcha de los 4 Suyos” contra o ditador Fujimori. [A “Marcha dos Quatro Quartos” em julho de 2000 foi uma mobilização de massas organizada por esquerdistas, partidos social-democratas e movimentos sociais contra as eleições fraudulentas e a posse de Fujimori]. Com a queda do ditador e o parlamento cheio de políticos contrários ao antigo regime, toda a esquerda, centro e liberais se esqueceram dessas pessoas, que ainda sofrem com a pobreza extrema.

A mídia corporativa sempre vê os eventos da perspectiva da polícia.

Vimos imagens de terrorismo de Estado no Peru, incluindo assassinatos, tortura e prisão em massa, bem como outras formas de agressão da polícia peruana. Sabemos que estes não são eventos isolados – a repressão é algo comum em todos os estados, especialmente quando uma mobilização ataca a ordem e a paz dos ricos. Como está estruturada a polícia peruana? Qual é a história da repressão policial contra os protestos no Peru?

A moderna polícia peruana foi fundada em 1988, a partir da unificação de três agências estatais anteriores. Sabemos que a formação de policiais é um fenômeno transnacional, ou seja, no desenvolvimento da instituição do policiamento, houve vários modelos que serviram de ideal para outros países (em um momento, foi o modelo francês, em outro, o modelo espanhol e, atualmente é uma mistura de várias instituições repressivas em todo o planeta).

No início, a polícia peruana só dispunha de bastões, apitos e coisas do gênero para estabelecer a ordem municipal; então seu armamento aumentou: pistolas, rifles, pinochios (conhecidos no Chile como guanacos, são carros blindados usados ​​para atacar manifestações), caminhões, motocicletas, gás lacrimogêneo, spray de pimenta, drones e computadores.

Eles sempre estiveram do lado do poder. Eles fizeram greve apenas uma vez, durante a ditadura de Velasco Alvarado, que os reprimiu com força militar, deixando um número desconhecido de mortos.

Nos anos 1980 e 1990, as autoridades deram à polícia imunidade legal e moral para assassinar a fim de eliminar o Sendero Luminoso (partido maoísta). Foi então que cometeram as piores injustiças: assassinar, torturar, estuprar, desaparecer, extorquir em todas as cidades e vilas do Peru.

Em 2000 [quando o presidente Alberto Fujimori fugiu para o Japão, substituído por Alejandro Toledo], eles tiveram que se adaptar à ideologia do novo presidente; porém, carregavam no DNA o autoritarismo e o racismo, junto com o montesinism. [Vladimiro Lenin Ilich Montesinos Torres, ex-oficial de inteligência do exército e espião dos EUA, foi conselheiro do ditador Fujimori e serviu como chefe do serviço de inteligência do Peru sob seu comando.]

A história recente da polícia é um exemplo claro da impunidade do setor político Fujimontesinista, que nunca foi expulso do aparato institucional do Estado, apenas acomodado nele. Hoje, as práticas repressivas vêm dos ex-quadros de Vladimiro Montesinos e também de seus aprendizes.

Polícia se mobiliza para atacar manifestantes no Peru.

Como o chamado Brasil, Argentina, Chile e muitos outros lugares, a região peruana viveu uma ditadura civil-militar. É um território com uma longa história de golpes, como o do presidente peruano Alberto Fujimori em 1992. Fale da resistência e da memória combativa contra os legados da ditadura e a continuidade da repressão e do extermínio na democracia.

É verdade que nesta região houve seguidas interrupções da democracia representativa (o que, obviamente, como anarquistas, não queremos de qualquer maneira) e, consequentemente, houve vários períodos de resistência ao autoritarismo e às ditaduras. No entanto, e um tanto contraditoriamente, também houve ditadores apreciados pelos setores populares – por exemplo, o militar nacionalista Juan Velasco Alvarado, que é celebrado por um setor da esquerda conservadora ou kitsch.

Outro ponto a destacar é que o antifascismo dos anos 1930 e 1940 e suas experiências de resistência foram esquecidos no Peru – goste ou não, quem participou do confronto foram anarquistas, comunistas, apristas [membros a APRA, Aliança Popular Revolucionária Americana, um partido socialista fundado em 1924] e progressistas.

A memória antiautoritária das esquerdas dos anos 1970 e 1980 se perdeu com as perseguições sofridas pelo ditador Fujimori e pelos genocidas do Sendero Luminoso – comunistas dogmáticos que assassinaram camponeses, líderes esquerdistas e qualquer outro que se opusesse a eles. Tudo isso contribuiu para uma despolitização nos anos 1990 e para a aceitação da narrativa neoliberal delirante sobre o “empreendedorismo” em 2000, que grande parte da população dessa região ainda hoje aceita.

Apesar de tudo isso, no dia 5 de abril, aniversário do golpe do genocida Fujimori, marcham contra tudo o que representa a atual ditadura: o neofujimorismo, o neoliberalismo, a corrupção em massa, o narcotráfico e o genocídio. É preciso reconhecer que os partidos de esquerda procuram monopolizar o “anti-fujimorismo” para ganhos políticos e que, seguindo as vicissitudes da política peruana, alguns “anti-fujimoristas” revelaram sua verdadeira face a ponto de ingressar nas fileiras do pos-fascistas (por exemplo, o autor conservador Mario Vargas Llosa, [ex-ministro do Interior] Fernando Rospigliosi e [presidente em exercício] Dina Boluarte, entre outros).

Em todo caso, é o antifujimorismo que entregou o trono da presidência ao atual governo. E embora alguns se orgulhem disso (por ter impedido que Keiko Fujimori, filha mais velha do ex-presidente peruano Alberto Fujimori, chegasse ao poder), é preciso dizer claramente que isso só contribuiu para consertar um abominável sistema político que foi brutalmente nos explorando – sob o qual há massacres contínuos nos Andes, graças a políticos, bandidos e empresários.

Agora, vemos ressurgir essa memória combativa; muitas pessoas pararam de se censurar e estão falando sobre o que sofreram por resistir à ditadura de Fujimori. Ao mesmo tempo, o ataque da extrema-direita tem indignado as pessoas pela forma como usam a acusação de “terrorismo” contra quem se opõe a eles e aos seus ídolos. O famoso “terruqueo” é um conceito que nasceu na década de 1980: é o adjetivo usado para definir quem pode ser morto impunemente. Se você é um terruco(suposto terrorista), pode queimar na fogueira ou ser executado – como fizeram sistematicamente os militares em Ayacucho nas décadas de 1980 e 1990.

Por isso, hoje, o mais próximo da memória combativa é o esforço para desarmar os partidários do ditador genocida Fujimori de sua arma semântica: o “terruqueo”. E é assim que as pessoas estão procedendo nas regiões do sul (lugar onde tanto os militares quanto o Sendero Luminoso massacraram os camponeses). Sem falar em confrontá-los implacavelmente nas ruas até que o fascismo seja destruído!

Os restos de um edifício histórico que pegou fogo perto da Plaza San Martin em Lima durante as manifestações de janeiro de 2023. Segundo o filho do proprietário, o incêndio foi causado por bombas de gás lacrimogêneo lançadas pela polícia para dispersar manifestantes.

Há debates sobre legítima defesa nas ruas? Existe alguma discussão por parte dos movimentos e coletivos sobre a abolição da polícia?

Nesta região, ouvimos vários discursos diferentes sobre a polícia. O primeiro é o desrespeito da polícia pelos assassinatos de manifestantes, o que é compatível com o repugnante “princípio da proporcionalidade” (teoria imbecil que tem origem no pacifismo do século passado e justifica guerras, massacres, etc., com base em igualar o uso de armas). A maioria das pessoas que promovem essa ideia são cidadãos e esquerdistas moderados (obviamente não vão atacar a instituição pela qual querem disciplinar quando estiverem no poder). O segundo é o discurso da extrema-direita que dá desculpas ao gatilho (apoiando tomberìa e militares em matar sem repercussão legal ou moral) e até mesmo paramilitarismo fascista.

Dentro da esquerda radical, não há quase nada sobre abolir a polícia, embora as pessoas odeiem a instituição por sua corrupção, sua inutilidade em responder a feminicídios, crimes antissociais e outras questões e, finalmente, pelo papel que a polícia desempenha na proteção do empresariado extrativista.

Como anarquistas, acreditamos que é urgente pedir a destruição dessa instituição assassina. Há alguns dias, no blog, um camarada compartilhou alguns artigos não anarquistas discutindo a origem da polícia, a fim de imprimi-los e compartilhá-los na linha de frente.

Ele nos convidou a compartilhar o seguinte fragmento:

“Desde a formação das primeiras cidades, quem as governou teve necessariamente de criar forças repressivas para resguardar os seus domínios dos ataques externos daqueles que procuravam reclamar o que estes governantes lhes arrebataram nas zonas rurais onde viviam, e contra os ataques internos dos aqueles que estavam insatisfeitos com esses governos, reinos ou impérios. Toda a história da civilização e de suas cidades e outros domínios sempre foi dividida entre governantes e governados. A questão é que a direita ama a polícia porque, para ela, os policiais se comportam como servidores que garantem a segurança de seus domínios e privilégios. Por outro lado, o problema é que seu suposto adversário, a esquerda, não busca a abolição da polícia porque isso enfraqueceria seu controle quando chegar ao poder. A abolição da polícia é um passo necessário para uma vida em plena liberdade, encontrar outras formas de convivência equilibrada e respeito é mais um passo necessário para não depender para sempre da existência da polícia. De fato, as comunidades indígenas viveram outrora sem a instituição da polícia ou sua lógica. Hoje, em várias dessas comunidades, essas lógicas e práticas estão sendo impostas como parte do processo civilizatório do sistema e dificultam nosso caminho.

Contracapa da primeira edição do Periodico Libertária. “Mais de 300 assassinados sob a democracia (2003-2020), graças a políticos e policiais. Fogo eterno para os assassinos tomberìa [polícia] e seus símbolos!”

Por fim, estamos interessados ​​nas diferentes expressões do anarquismo na região conhecida como América do Sul. Por favor, fale sobre os envolvidos nas lutas anárquicas na região peruana.

O anarquismo é muito humilde nesta região. Existem diferentes organizações e indivíduos com diferentes abordagens: anarco-sindicalismo, insurgentes, plataformistas e anarquistas sem adjetivos. Não há “black bloc” como observado em outras regiões, ou talvez haja, mas apenas muito pequeno. Tampouco existem “grandes organizações” – admitamos isso como uma forma de autocrítica – mas existem indivíduos que resistem nas diversas províncias do Peru.

A repressão em Lima que o açougueiro Manuel Merino supervisionou em 2020, que representou para muitos jovens anarquistas seu primeiro encontro com a verdadeira face do estado assassino, destacou a urgência de autocuidado e autodefesa agudos, bem como um retorno à realidade (o resultado da situação foi um governo de transição, o enfraquecimento dos protestos e injustiça permanente para os caídos).

Atualmente, com um levante em curso, os anarquistas que não vivem na capital (especialmente no sul do Peru) experimentaram suas consideráveis ​​limitações para enfrentar as forças repressivas e as armas letais da ditadura cívico-militar de Dina Boluarte.

Apesar disso, não desanimamos. A tarefa dos anarquistas hoje, desde nossa humilde posição, é acompanhar os camponeses em todas as ações diretas. Como nossas famílias camponesas , vamos junto com elas em qualquer posição possível, seja resistindo na linha de frente, desativando gás lacrimogêneo, dando assistência médica, coletando doações para nossas irmãs, divulgando medidas de autocuidado, debatendo todas as questões políticas e sociais de nossa região e, finalmente, conhecer sua experiência de resistência. Sem intermediários, políticos de esquerda e influenciadores legalistas, marchamos juntos para a destruição da ditadura cívico-militar e não descansaremos enquanto não vermos a justiça que nos foi roubada séculos atrás.

Manifestação em Puno.