A Luta é Pela Vida – parte II

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Esta é a segunda parte da coleção de textos anarquistas sobre pandemia, capitalismo e a luta pela vida. Assim como no primeiro tomo, os textos aqui reunidos foram escritos por grupos, associações e pessoas presentes em diferentes territórios. Contudo, como a pandemia teve maior expansão inicial nas terras conhecidas como China, Europa e América do Norte, o tomo UM focou nos estudos produzidos nessas localidades. Com o avanço do novo coronavírus para o sul, anarquistas dessas regiões escreveram análises, narraram acontecimentos e experimentaram propor ações coletivas a serem levadas a cabo por diferentes grupos libertários, “não como um programa, mas como uma conspiração”.

Os textos aqui compilados tratam dos efeitos da pandemia a partir de diferentes pontos. Entre eles estão o modo pelo qual os Estados e as sociedades nacionais lançam mão mais uma vez da ideia de inimigo comum para se fortalecer e validar suas ações, independentemente de quanto sangue escorre pelas mãos de seus policiais, militares e políticos. A metáfora militar de guerra ao vírus induz a noção de que as principais forças que devem ser mobilizadas são as de segurança, polícias e exércitos, para combater tal inimigo. Inimigo este que é invisível, disseminado por corpos de pessoas. Logo, com a mobilização estatal de combater o vírus, todas as pessoas se tornam um potencial inimigo, passíveis de serem presas, espancadas e assassinadas em nome da salvação da espécie, da vida biológica. Mas sabemos: nem todo sabão e água do planeta conseguirão limpar o sangue que escorre das fardas.

Com o argumento de combater a pandemia, os Estados buscam defender a vida biológica, a humanidade, que ao universalizar nossas existências, cria uma abstração sobre nossos corpos e, com isso, expandem o controle em meios abertos e fechados. Aplicam leis e decretos, empregam a polícia e as forças armadas para restringir a circulação das pessoas. Junto ao capitalismo, que é indissociável do Estado, tentam manter a sensação de uma exceção temporária, de que este mundo não está caindo sobre suas cabeças, que tudo voltará ao normal, que tudo vai passar. Contudo, o que é esse “normal”? Uma vida de miséria, de exploração, de submissão, de extermínio. Os governantes, estatais e privados, mostram com isso o quanto temem a revolta das pessoas exploradas, insubmissas e alvos de seu extermínio.

Por isso, anarquistas em diferentes partes do planeta, sobretudo ao sul, explicitam que “não queremos voltar ao normal, pois o problema é a normalidade!”. Nos governam pelo medo e por meio de ameaças. Eles nos temem e sabem que somos uma ameaça a sua normalidade. Medo da morte, medo de que este mundo de produção capitalista, onde vamos da casa para o emprego e do emprego para casa (quando se tem um emprego e uma casa, obviamente). Num fluxo interminável de exploração, de mortificação de nossas vidas. Entendemos que nós não vivemos para servir a ninguém, nem ao Estado, nem às empresas, nem a Deus, nem ao patrão, nem ao marido; a ninguém! Não queremos mais uma vida de miséria, onde nossa existência se restrinja ao biológico, não queremos mais sermos governadas pelo medo, porque não queremos mais ser governados! Não aceitamos suas ameaças!

Compas da região uruguaia explicitam como o isolamento obrigatório acaba também por silenciar uma série de violências por sobre o corpo de mulheres e crianças feitas principalmente por pais e maridos, e o efeito do fato de existirem poucas iniciativas de (auto)defesa dessas pessoas expostas a este tipo de situação. O pouco estímulo às práticas de apoio mútuo ou, em muitos casos, o desconhecimento de tais iniciativas, acaba por levar algumas dessas pessoas que foram violentadas a recorrerem a uma segunda violação: a polícia, exames de corpo de delito (que muitas vezes funcionam como um segundo estupro), inquérito, delações etc., alimentando o Estado e o seu braço armado.

Além disso, nesta publicação, são retomados momentos históricos para repensarmos as práticas de resistência frente à atual situação, como as greves de aluguéis, fortalecimento de laços de interação, grupos de afinidade, expropriações, ocupações, entre outros.

Por fim, saudamos as iniciativas individuais e coletivas de autocuidado para enfrentarmos a pandemia, para nos fortalecermos, não porque tememos o fim deste mundo, mas para acelerar sua queda, sua ruína. Quando as iniciativas têm como base a ação direta, o antiautoritarismo, o Estado perde, pouco a pouco. Seu monopólio rui nas mãos de cada pessoa, que junto de companheiras, toma sua vida nas próprias mãos.

Que esse momento nos sirva para começarmos a pensar em questões pouco debatidas entre anarquistas, como práticas de saúde antiautoritária e autocuidado, vinculadas diretamente ao apoio mútuo. Como afirma um texto anônimo publicado em Buenos Aires, “que a quarentena fortaleça nossa ânsia de liberdade e reafirme nossa negação de toda autoridade!”

Saúde e liberdade!


O Brasil Vai Parar – Chamado de Paralisação e Solidariedade

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Em meio a uma crise de saúde global causada pela pandemia do coronavírus, surge a necessidade de voltarmos a atenção para o que realmente importa: autocuidado, laços sociais e comunitários, apoio mútuo, solidariedade e a luta por um mundo onde todas as pessoas são livres e têm acesso aos recursos necessários para uma vida saudável. Isto é, uma casa, assistência médica, alimentação e direito de não trabalhar quando isso coloca em risco a nossa vida e a de todos ao nosso redor.

Ao mesmo tempo, fica nítido que o vírus causador da COVID-19 não é nosso único desafio a ser superado. A pandemia mostra que todo o nosso modelo político e econômico jamais foi projetado para suprir nossas necessidades e garantir nosso bem estar. Políticos e patrões organizam campanhas de seus palácios e saem em carretas protegidos em seus veículos para que voltemos ao trabalho, pois acreditam que o lucro é mais importante que a saúde de nós que, de fato, trabalhamos. Eles sabem que, ao contrariar as recomendações de todos os órgãos de saúde do mundo, seremos nós e nossas famílias que sofrerão as consequências primeiro, ao tomar ônibus lotados, nos aglomerar em locais de trabalho, escolas e, por fim, nas filas dos hospitais e postos de saúde.

Para que não tenhamos que nos sacrificar mais uma vez “pelo bem da economia” que sempre nos tratou como descartáveis, nos obrigando a escolher entre sobreviver em subempregos ou morrer à espera de socorro, dizemos:

o Brasil, definitivamente, vai parar!

A saída para a crise é a solidariedade e o apoio mútuo, jamais a vigilância, a coerção ou a violência policial militar.
Fiquem em casa! Se organize! Não pague aluguel e resista aos despejos!

#OBrasilVaiParar #solidariedade #apoiomutuo #coronavirus #covid19


Coronavírus: A Dimensão Social dum Vírus – uma perspectiva xenofeminista e anarquista solarpunk

“Todo o indivíduo humano é o produto involuntário de um meio natural e social no seio do qual nasceu, desenvolveu-se e do qual continua a sofrer influência. As três causas de toda a imoralidade humana são: a desigualdade tanto política quanto econômica e social; a ignorância que é seu resultado natural e sua consequência necessária: a escravidão.”

– Bakunin, Programa e objetivo da organização secreta revolucionária dos irmãos internacionais

Dizer que uma doença é socialmente construída não significa que as ciências naturais são inválidas, e sim, que a forma que esta assume numa sociedade será moldada por preconcepções ou concepções prontas. Consequentemente, a forma que ela terá socialmente implicará na maneira como lidaremos com ela.

O caso do coronavírus exemplifica bem isso. Sabe-se que o novo coronavírus teve seu surgimento em Wuhan. Surgimento esse cuja possibilidade já havia sido de alguma maneira prevista por cientistas chineses do Instituto de Virologia de Wuhan e da Universidade da Academia Chinesa de Ciências[1], que não sabiam dizer onde nem quando surgiria. O que sabiam dizer é que “é altamente provável que futuros surtos de coronavírus tipo SARS ou MERS se originem de morcegos, e há uma probabilidade maior de que isso ocorra na China. Portanto, a investigação de coronavírus de morcego se torna uma questão urgente para a detecção de sinais de alerta precoce, o que minimiza o impacto de futuros surtos na China”. Ocorreu que o surgimento foi mais rápido do que o esperado. O que se afirmava grosseiramente nas sociedades ocidentalizadas, era que a contaminação do vírus em seres humanos teve sua causa no consumo de sopa de carne de morcego. Se houvesse de fato uma preocupação com o consumo da carne de morcego e de outros animais não-humanos mais, teríamos o advento de um questionamento sobre a nossa narrativa alimentar, o que talvez implicasse uma diminuição no consumo de carne, ou mesmo uma alimentação vegana. Mas o que de fato implicou essa afirmação, foi uma constatação de que “o hábito alimentar chinês é bizarro”, uma constatação, cabe dizer, fundamentada em racismo. Para muitos hindus e alguns indianos, nós provavelmente somos “bizarros” por comermos carne de vaca, assim como para a maioria dos judeus – religiosos ou culturais -, seríamos “bizarros” por consumirmos carne de porco. Aliás, a gripe suína foi considerada pandemia em 2009 pela OMS, mas aparentemente esquecemos dela[2] e seguimos consumindo carne suína despreocupadamente. De igual forma, muitos grupos sociais humanos poderiam ver a nossa recusa à antropofagia , ou mesmo a nossa recusa de comer alimentos crus e em estado de putrefação, como algo absurdo, como é o caso de aghori – aqueles devotos acetas de Shiva, cuja imagem com “o corpo coberto de cinzas de defunto e cabelos de dreadlock” muita gente compartilha pra falar do uso de maconha como sendo algo “místico e sagrado”. Ainda sobre hábitos alimentares, podemos lembrar que o caramujo-gigante-africano, um molusco oriundo de África, causou um frenesi em muita gente há alguns anos, mais de uma década atrás. O que não se comenta, é que ele foi introduzido ilegalmente no território brasileiro, mais especificamente no Paraná, na década de 80, como substituto do escargot, já que o caramujo-gigante-africano possui uma massa maior que a do escargot, além de os custos serem menores. Hoje ele pode ser encontrado em 25 estados e no Distrito Federal (DF). Em 2014 a Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) noticiou que casos de meningite transmitida pelo caramujo se espalhavam pelo país[3].

O caso é que o coronavírus chegou ao Brasil. Como? Alguém que veio de avião da Itália. Bom, sabemos que viagens de avião não custam barato. Já é caro ir daqui do centro do Rio de Janeiro para o município, que dirá viajar de avião! Daí se constata que não foi uma pessoa pertencente à classe pobre brasileira, mas alguém com um certo poder aquisitivo financeiro. Onde que caberia o socialmente construído mencionado no início do texto aqui? Se essa pessoa fosse pobre ou de qualquer grupo minoritário e estivesse na posição de migrante, sem sombra de dúvidas teríamos jornais noticiando enorme na capa “migração é a principal causa da transmissão de doenças”, o que é possível verificar em notícias anteriores do jornalismo brasileiro. Lembro de uma notícia dessas em que o cachorro de um migrante do nordeste para o sudeste estava com uma doença que não interfere em nada a vida do ser humano, e a capa dizia que a “migração causa transmissão de doenças de uma região a outra”. A não ser que você lesse a notícia – e para isso é necessário comprar o jornal, cujo preço pode ser o mesmo de um quilo de feijão, e eu nem preciso dizer que um quilo de feijão garante a força pro dia de trabalho -, a única coisa que você saberia é que “migração causa transmissão de doenças de uma região a outra”. Ponto. É preciso dizer as implicações sociais desse tipo de notícia? Algo semelhante ocorreu com o sarampo que teria sido trazido por migrantes venezuelanos ao Brasil. Bom, temos um programa de vacinação contra o sarampo eficaz. As pessoas que pegaram sarampo no Brasil não se vacinaram. Sabe-se que no Brasil tem crescido o movimento antivacina, um movimento irresponsável e ideologicamente orientado, que põe a população brasileira em risco, mas quem toma a responsabilidade são os migrantes venezuelanos.

O que torna o coronavírus algo que deva ser imediatamente combatido – a repercussão que teve foi muito rápida -, que deva mobilizar ostensivamente a saúde pública, é o fato de que pela primeira vez – de maneira clara, ao menos – o rico se torna um vetor de transmissão de doenças. Os turistas bonitinhos com seus óculos de sol e seus cruzeiros se tornam vetores de doença. Família com poder aquisitivo financeiro viaja, se infecta, traz o coronavírus para o Brasil, e não sendo suficiente, obriga a empregada doméstica a trabalhar para ela, a expondo ao ao contágio. Essa mesma empregada provavelmente pegará uma ou duas conduções lotadas. Provavelmente no seu bairro não há saneamento básico, talvez má e porcamente funcionam os postos médicos. Não há álcool gel que dissolva a divisão de classes. Em 2019 no Brasil foi registrado o segundo maior número de mortes por dengue em 21 anos. Até o início de dezembro havia sido confirmadas 754 mortes, ficando atrás apenas de 2015, considerado o pior ano. Passa de 1,5 milhão o número de casos prováveis da doença[4]. Neste ano de 2020 já são 182 mil casos com 32 mortes[5], um número muito, mas muito maior mesmo, do que o de coronavírus. Aproveito para lembrar aqui de uma matéria na Folha de São Paulo de novembro do ano passado que dizia que os brasileiros nascidos hoje terão dificuldade para respirar durante o seu crescimento, assim como terão que enfrentar mosquitos transmissores de doenças como a dengue, secas, inundações, queimadas, em maiores quantidades[6].

Ontem conversando com uma diarista que trabalha no apartamento ao lado, eu e ela ficamos comentando sobre como essa paranoia toda era incompreensível para nós, pois a gente já tem que lidar com outros tanto problemas mais cotidianamente. Tem um meme que diz que a Polícia Militar do Rio de janeiro mata mais do que coronavírus. De fato, mata. Inclusive a PMERJ bateu seu recorde ano passado, somando 1546 pessoas até o mês de outubro[7]. Racismo no Brasil mata mais do que coronavírus. Sexismo e transfobia no Brasil matam mais do que coronavírus [8]. Homofobia mata mais do que coronavírus no Brasil. Xenofobia mata mais do que coronavírus no Brasil. Especismo mata mais do que coronavírus no Brasil. O vírus da dengue transmitido pelo mosquito Aedes aegypti mata mais do que o coronavírus no Brasil. Quando não mata, deixa graves sequelas e traumas profundos. Em resumo, o regime de organização social brasileiro mata mais do que o coronavírus. O regime de organização social brasileiro é o capitalismo. Capitalismo esse que hoje é globalizado, que atinge micrologicamente nossas relações interpessoais, que devora o planeta inteiro. Capitalismo esse que concebe uma ideia de “natureza” que opera como um depósito de matéria-prima, nos distanciando do planeta, nos apartando de qualquer relação com este planeta.

Dizer isso não é o mesmo que dizer que o vírus não vai nos alcançar. Talvez alcance. Espero sinceramente que não. Os malthusianos contentes com essa situação, que chegam a chamar o vírus de incompetente por não ter matado a humanidade inteira, eu quero realmente que se fodam. Não tenho paciência para liberais com sua narrativa de fim do mundo. Previna-se, mas com uma certa frieza, cuidando para que a paranoia não lhe tome. Evite informações que não provenham de autoridades científicas. O Ministério da Saúde disponibiliza as informações necessárias para a prevenção e casos de suspeita.

Eu tenho medo de andar na rua. Tenho medo de ter novamente o corpo debilitado temporariamente e adquirir novos traumas ou aprofundar outros. Hoje abraço as pessoas com força, mas já houve um tempo em que o simples contato com outras pessoas me causava calafrios e tremor. Assim que passar a pandemia do coronavírus, eu provavelmente continuarei com esse medo, pois ele é anterior ao coronavírus. Perdi um amigo na quinta-feira dia 12 por negligência hospitalar, uma das poucas pessoas que permaneceram minhas amigas depois que iniciei a transição. Se eu pegar o coronavírus provavelmente vou morrer num hospital – é uma realidade que nós, pessoas trans, conhecemos bem -, se eu não pegar, talvez eu possa morrer na rua. Quê é o coronavírus nessa merda de sobrevivência?

por Inaê Diana Ashokasundari Shravya.


[1] MELLIS, Fernando. Cientistas chineses previram há um ano nova epidemia de coronavírus, R7, Rio de Janeiro, 06 de fev. de 2020. Saúde. Disponível em: <https://noticias.r7.com/saude/cientistas-chineses-previram-ha-um-ano-nova-epidemia-de-coronavirus-06022020>. Acesso em: 12 de mar. de 2020.

[2] CHAN, Margaret. World now at the start of 2009 influenza pandemic, World Health Organization, 11 de jun. de 2009. Disponível em: <https://www.who.int/mediacentre/news/statements/2009/h1n1_pandemic_phase6_20090611/en/>. Acesso em: 12 de mar. de 2020.

[3] MENEZES, Maíra. Casos de meningite transmitida por caramujo se espalham pelo país, Fundação Oswaldo Cruz, 17 de jul. de 2014. Disponível em: <https://portal.fiocruz.br/noticia/casos-de-meningite-transmitida-por-caramujo-se-espalham-pelo-pais>. Acesso em: 12 de mar. de 2020.

[4] CANCIAN, Natália. Brasil registra em 2019 segundo maior número de mortes por dengue em 21 anos, Folha de São Paulo, 8 de jan. de 2020. Cotidiano. Disponível em: <https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2020/01/brasil-registra-em-2019-segundo-maior-numero-de-mortes-por-dengue-em-21-anos.shtml>. ACesso em: 12 de mar. de 2020. (reparem que a data da notícia é anterior à da declaração de pandemia do coronavírus pela OMS. O contexto era o da geosmina presente na água que chega aos domicílios do Rio de Janeiro. A geosmina, para quem não sabem, atrai e auxilia na proliferação do mosquito Aedes aegypti, mosquito responsável pela transmissão do vírus da dengue)

[5] CANCIA, Natália. Casos de dengue avançam 72% em um ano, e ministério cria comitê para monitorar crescimento, Folha de São Paulo, 6 de mar. de 2020. Cotidiano. Disponível em: <https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2020/03/casos-de-dengue-avancam-72-em-um-ano-e-ministerio-cria-comite-para-monitorar-avanco.shtml?utm_source=folha&utm_medium=site&utm_campaign=topicos?cmpid=topicos>. Acesso em: 12 de mar. de 2020.

[6] WATANABE, Phillippe. Brasileiros nascidos hoje terão dificuldade para respirar no futuro, diz estudo climático, Folha de São Paulo, 13 de nov. de 2019. Ambiente. Disponível em: <https://www1.folha.uol.com.br/ambiente/2019/11/brasileiros-nascidas-hoje-terao-dificuldade-para-respirar-no-futuro-diz-estudo-climatico.shtml?utm_source=folha&utm_medium=site&utm_campaign=topicos?cmpid=topicos>. Acesso em: 12 de mar. de 2020.

[7] ALBUQUERQUE, Ana Luiza. Mortes pela polícia em 2019 batem recorde no Rio, Folha de São Paulo, Rio de Janeiro, 25 de nov. de 2019. Cotidiano. Disponível em: <https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2019/11/mortes-pela-policia-em-2019-batem-recorde-no-rio.shtml>. Acesso em: 12 de mar. de 2020.

[8] Lembremos que o Brasil permanece sendo o país que mais mata mulheres trans e travestis no mundo. Em 2019, 124 pessoas trans foram assassinadas no Brasil , conforme nos diz Lu Sudré em <https://www.brasildefato.com.br/2020/01/29/em-2019-124-pessoas-trans-foram-assassinadas-no-brasil>. Para mais informações, ler este PDF sobre assassinatos de pessoas trans no Brasil elaborado pela Associação Nacional de Travesstis e Transexuais (ANTRA): <https://antrabrasil.files.wordpress.com/2020/01/dossic3aa-dos-assassinatos-e-da-violc3aancia-contra-pessoas-trans-em-2019.pdf>.

Apontamentos Sobre a Epidemia em Curso

Traduzimos e divulgamos aqui o texto feito no calor do momento pelos companheiros anarquistas de Torino, Itália.

 Publicado originalmente no site Macerie


Apontamentos Sobre a Epidemia em Curso

O texto que segue foi escrito por alguns companheiros, em parte redatores do blog e em parte não, na tentativa de entender como se orientar no meio desta tempestade.

Estes dias, forçadamente fechados em casa, parece-nos uma ótima ocasião para tentar refletir e deixar registradas algumas considerações sobre o que está acontecendo, sobre os possíveis cenários que se abrirão e, enquanto companheiros, em que sentido será o caso de dirigir a nossa atenção.

Os apontamentos que seguem são algumas considerações imediatas sobre as quais tentaremos retornar e continuar a refletir nos próximos tempos, e não têm nenhuma pretensão de exaustividade.

Um esclarecimento inicial sobre as muitas vozes que tendem a minimizar esta epidemia nos parece devido. Não somos médicos nem enfermeiros, mas, na nossa visão, o absurdo de tal posição pode ser contestado no âmbito da teoria revolucionária. Quem se propõe, como objetivo de vida, a mudar radicalmente o presente deveria ser o primeiro a saber que da relação entre Capital e Natureza nascem inevitavelmente tragédias e catástrofes que, ao contrário do que diz a narrativa dominante, não têm nada de “natural”, que não são eventos improváveis, mas que, dependendo do período, eles têm certa frequência, como as crises econômicas. Terremotos em zonas populosas, desertificação, poluição dos lençóis freáticos, alagamentos e epidemias são fenômenos filhos dessa mesma lógica. A epidemia com a qual nos deparamos, com todas as suas especificidades, não nos parece que seja de natureza diferente desta série de catástrofes produzidas pelo regime capitalista. Especificidades que, naturalmente, não são negligenciáveis e sobre as quais valerá a pena debruçar-se no decorrer destas linhas.

AS ORIGENS

A doença se desenvolveu no mercado de Wuhan, capital de Hubei, uma das regiões mais populosas da China. Região que se tornou a fornalha do país: aqui está o coração pulsante feito de reatores químicos e fábricas de cimento que sustentaram o crescimento industrial do gigante asiático. A grande quantidade de material de construção e a formação de engenheiros qualificados de que a região é o berço ampararam todo o período pós-crise de 2008: o Estado chinês, de fato, lançou naqueles anos imponentes projetos infra estruturais e imobiliários.

A assistência médica em toda a China é praticamente inexistente, uma grandíssima quantidade de operários provenientes de outras regiões são ilegais no lugar onde trabalham (pelo diabólico sistema do hukou) e vivem em uma condição de semiclandestinidade e sem nenhuma tutela. É importante sublinhar que esta situação é estrutural e não devida a dureza específica dos governantes em um momento ou outro. Como já evidenciamos em outros escritos, o fim das políticas keynesianas tem, como uma de suas explicações, a diminuição dos ganhos globais, fenômeno acentuado com a recessão que começou em 2008. Um estudo publicado em um interessante artigo do blog Chuang – cuja leitura aconselhamos – evidencia que, na região de Dongguan, caso as empresas tivessem que se responsabilizar pela cobertura médica da própria força de trabalho, perderiam a metade dos lucros e deveriam transferir a produção para outro lugar.

A concentração da população em lugares pouco saudáveis e lotados assim como a impossibilidade de ter acesso a um sistema de saúde decente contribuíram ao famoso salto de espécie do Covid-19. Vários estudos afirmam que as passagens de formas virais de animais para humanos serão, no futuro, sempre mais prováveis e, podemos acrescentar, sempre mais letais.

O CHOQUE

A China, seguida da Itália e agora de vários países, respondeu a esta pandemia colocando em quarentena toda a população. Os efeitos e o impacto sobre as economias nacionais e mundial destas medidas são ainda matéria de debate. Os jornais publicaram imagens impressionantes de satélite com as emissões de CO2, tiradas antes e depois da paralisação da maior parte das atividades na China, das quais é possível obter o dado de que mesmo por “apenas” um mês o gigante asiático ficou quase completamente parado. O que significa o bloqueio da economia que, de fato, tirou o mundo da areia movediça da recessão não está claro.

Com certeza, os bancos centrais chegam a este choque, que muitas pessoas comparam à explosão da bolha dos empréstimos subprime, sem fôlego. Dez anos de liquidez introduzida forçadamente nos mercados nacionais e taxas de juros mantidas constantemente baixas para manter em vida o moribundo sistema financeiro deixam poucas margens de manobras adicionais. Uma confirmação é a reação dos mercados, um tombo histórico para a bolsa de valores de Milão (Piazza Affari) após as palavras que deveriam ter sido asseguradoras e reconfortantes da nova presidente do Banco Central Europeu, Lagarde, em 12 de março.

Certamente é necessário tomar cuidado com à interpretação dos sobressaltos do mundo financeiro que, na maioria dos casos, são resultados de manobras especulativas; mas não nos parece descabido prever que muitas economias nacionais sairão de joelhos destes meses de quarentena: muitas empresas poderão ter que fechar e muitas das quais sobreviverão deverão enfrentar uma profunda reestruturação em vários níveis. Tudo leva a crer que esta crise será a causa, e também a oportunidade, com os tempos devidos, para uma reestruturação da economia no sentido de uma ainda maior automação, e com tudo o que isso implica em termos de emprego, condições de trabalho e concentração de capital.

NA ITÁLIA

Desde o dia 10 de março aqui na Itália vigora uma espécie de toque de recolher. Todas as lojas estão fechadas, funcionando apenas supermercados, tabacarias, lojas de ferramentas, fábricas, serviços essenciais (exemplo: coleta do lixo e transporte público) e pouco mais.

O governo Conte, sustentado pela Europa que está concedendo muito em termos de déficit, vem legislando de modo irrefreado para remendar esta situação de paralisação forçada: o plano é recuperar mais liquidez possível e fazê-la chegar do alto, em cascata, sobre as empresas. Financiamentos especiais, fundo para empréstimos especiais e amortizações parecem ser uma parte da solução. Quase todos concordam que os fundos serão insuficientes. A realidade produtiva italiana é constelada de muitas empresas pequenas e médias cuja baixa rentabilidade desde há, pelo menos, uma década e cujo alto endividamento sugere, como dizíamos, que a consequência à pandemia, em termos de empresas fechadas e vagas de trabalho perdidas, poderia ser violentíssima.

No que diz respeito aos trabalhadores, estão disponibilizando uma série de auxílios sociais: seguro-desemprego por três meses, a suspensão do pagamento de empréstimos e boletos para as pessoas que foram demitidas e suspensão de alguns impostos municipais. Medidas que parecem insuficientes sob múltiplos pontos de vista.

O contexto do trabalho italiano é constituído, em grande parte, por contratos chamados atípicos: para as chamadas “pessoas jurídicas” e os “falsos trabalhadores autônomos”, o governo está trabalhando em um reembolso de apenas quinhentos euros por três meses; qual será o destino de quem tem um contrato de trabalho intermitente ou de quem trabalha completamente sem contrato não é possível saber. Fala-se genericamente de incentivos para aluguéis, mas também neste caso vinculados a quem possa demonstrar ter ficado em casa por conta da crise sanitária. Milhares de trabalhadores estão parados desde o mês de março, sem receber dinheiro, e com despesas que em breve serão insustentáveis.

Um discurso a parte mereceriam aqueles que, por outro lado, são obrigados a trabalhar apesar da emergência sanitária.

Enfermeiros e agentes sanitários são submetidos a grande pressão: uma parte é coagida a cumprir turnos massacrantes enquanto outra, que originariamente trabalhou em alas fechadas de hospitais devido à emergência, agora é posta em licença forçada. Sem contar que, do ponto de vista do controle de gastos, hospitais e cooperativas dispõem de poucas reservas de luvas e máscaras e, muitas vezes, o uso do material é desincentivado ou totalmente proibido.

Os trabalhadores de fábricas ou de setores estratégicos são enviados em campo sem a proteção mínima necessária ou direito a uma indenização contratual. Em um clima particularmente sombrio devido à proibição de aglomeração e, portanto, de greves “ativas”, existem, no entanto, muitos locais de produção onde os trabalhadores decidiram cruzar os braços, de tal modo que os sindicatos foram forçados a pressionar o governo para que haja uma conversa com as partes envolvidas. Após esta reunião, o encerramento das fábricas foi formalizado por alguns dias para permitir a reorganização dos espaços de acordo com o decreto e a compra de proteções individuais para os trabalhadores.

O quadro delineado para o futuro parece particularmente obscuro em um horizonte que vai muito além da contingência do coronavírus. Nos discursos feitos continuamente pelo primeiro ministro Conte, há referências contínuas à unidade nacional, à Itália, que unida, superará este momento. Nada mais falso. É verdade que o vírus está afetando a todos, mas as consequências, tanto de saúde quanto econômicas, serão vividas de maneira diferente: quem acumulou reservas nos últimos anos poderá seguir em frente e quem viveu apenas do seu salário será forçado a fazer enormes sacrifícios. As mortes por Covid-19 poderiam ter uma conotação não só de idade, mas também de classe: a feroz privatização do setor de saúde realizada durante vários anos levou à perda de muitas camas de terapia intensiva e imaginamos que aqueles que podem pagar já estão recorrendo a clínicas privadas e quarentenas mais ou menos douradas, sem falar de todas as outras doenças que, atualmente, não recebem nenhum tratamento, porque a atenção é toda voltada ao coronavírus, a menos que se possa ter acesso a instalações privadas.

Um jogo fundamental o Estado deverá jogar a um nível ideológico. O executivo liderado por Conte, após os erros iniciais, parece ter recuperado a bússola da governabilidade e estas medidas extremas de quarentena, sob modelo chinês, parecem encontrar consenso na população. As medidas econômicas, por mais insuficientes que sejam, serão provavelmente bem-vindas por aqueles que acreditam ter um pouco mais de espaço para respirar. Mas esta ajuda custará caro, difícil, deste ponto de vista, delinear cenários precisos: se a Europa exigirá tudo de volta com juros e uma série de políticas de feroz austeridade e um memorando de lágrimas e sangue, ao estilo grego, por assim dizer, tudo isso recairá sobre a Itália; ou se, por outro lado, esta crise fará com que a Europa vacile definitivamente ao ponto de redesenhar, de modo substancial, seus contornos e equilíbrios.

FACHADAS E ESTEIRAS

Se agora voltamos nossa atenção àqueles companheiros e companheiras que, há tempos, decidiram lutar contra o Estado e o sistema capitalista em que vivemos, não podemos senão que iniciar com uma dura autocrítica: esta crise nos pega despreparados.

Despreparados sob múltiplos pontos de vista, e partiremos, portanto, deles para compreender como tentar remediar a situação ou, quanto menos, recuperar o terreno perdido e entender se teremos capacidade de intervenção quando o descontentamento generalizado se transformar em raiva e depois em ação. Despreparados não apenas por conta dos nossos limites e da nossa incapacidade, mas também devido a um escasso nível de conflito social difundido entre as camadas exploradas da população, que certamente influenciou a possibilidade de intervenção dos companheiros de luta. Dificuldades causadas também pelo trabalho ideológico operado pelo Estado na década seguinte à crise de 2008, da sua capacidade de fazer aceitar condições de exploração sempre mais duras e das medidas repressivas colocadas em ação de tempos em tempos. Tais dificuldades criaram poucas ocasiões de debate e conflito, além de limitarem a osmose entre revolucionários e parte do proletariado disposta a lutar.

Mas, como acontece com frequência, cada crise gera processos de aceleração, tanto nas condições materiais de vida quanto na percepção das pessoas que estão a nosso redor, de modo que somos levados a pensar que nem tudo está perdido… ao contrário. E que devemos arregaçar as mangas antes que seja tarde demais. Primeiro passo e objetivo mínimo a ser perseguido é sair da fase emergencial (se é que podemos falar propriamente de saída) com uma boa compreensão do fenômeno que está se desenrolando e dos desafios que se interpõem.

Também para nós, especificamente em nossa cidade, não foi fácil entender rapidamente o que estava acontecendo. Quão perigoso é este vírus? Como este perigo é ligado às características estruturais do sistema sanitário e do sistema socioeconômico que o sustenta? Como se desenvolverá o fenômeno ao redor? Que medidas tomará o Estado?

Não escondemos que, nas duas primeiras semanas, seguimos os eventos, forçados a rever nossas ideias e a esboçar propostas todos os dias, sem conseguir muito. A reação que depois teve nas prisões perturbou todos os planos, mostrando talvez, em seu ponto mais profundo, nossa inadequação à situação, à capacidade de responder aos eventos e a apoiar o que estava acontecendo.

É indiscutível que os efeitos da epidemia estão estreitamente ligados a uma vida em cidades sempre mais lotadas e a um sistema de saúde voltado cada vez mais a outros objetivos que não ao cuidado das classes exploradas. Que a epidemia exista também é indiscutível. É, no mínimo, ingênuo, ou melhor, irresponsável, realizar um plano de confronto, um discurso ou propostas de luta que não levem em conta o perigo real do contágio. Pensar que podemos dar um panfleto a um senhor de 70 anos que vive ao lado sem as devidas precauções, arriscando contagiá-lo, não é aceitável. Do mesmo modo, pensar em propor uma assembleia no bairro para discutir formas de lidar com os problemas econômicos, sem pensar na especificidade, não apenas jurídica, do momento, seria imprudente.

Obviamente, é também tarefa dos companheiros não ceder à paranoia generalizada e se empenhar em uma análise ponderada e específica dos eventos para transmitir àqueles que estão a nosso redor. Análise que tem suas dificuldades intrínsecas devido à complexidade do fenômeno, que certamente não é assimilável, por exemplo, ao estudo sobre as políticas de habitação popular de uma cidade, ao nível de militarização de uma nação ou aos efeitos danosos de uma grande obra a determinado território. Análise que se torna ainda mais difícil pelo fato de que o detentor de dados e de informações, assim como o proponente das decisões que orientam os critérios (pense, por exemplo, no critério de quantos testes realizar e em quem) é o Estado com seus institutos de pesquisa.

Permitam-nos agora uma breve digressão para tentarmos focalizar o problema. Talvez possamos dizer que no âmbito do debate “de movimento” as leituras e posições são esmagadas em dois polos discursivos. Por um lado, uma tentativa de minimizar, quando não negar, a gravidade da situação, por outro, uma tentativa que opera na lógica da razão do Estado, com sua retórica sobre a emergência a que tudo deve estar subordinado. Uma polarização que vem de longe e, certamente, não é produto da atual epidemia, embora essa só a torne mais óbvia. Uma polarização que diz respeito a uma grande parte da atividade e da produção teórica revolucionária, pelo menos nesta época, e que oscila entre 1) a possibilidade de vislumbrar e tentar enveredar por um caminho autônomo em relação ao sistema capitalista e 2) a exigência de fazer frente a uma série de necessidades pelas quais, enquanto não se realize um processo revolucionário, não é possível prescindir deste sistema. Um contraste, portanto, entre a necessidade de lutar para obter e arrancar, ainda que dentro desta ordem de coisas, aquilo que nos serve para viver da melhor maneira possível e aquilo de tentar compreender, no entanto, quais percursos de autonomia são “construíveis” à medida que as lutas crescem e se difundem. Caminhos de autonomia em que os aspectos materiais e teórico-imaginativos deveriam se entrelaçar e se autoalimentar.

Em geral, ou se tende a ser esmagado pelo polo da necessidade, tornando-se mais realista do rei, e na melhor das hipóteses invocando um “retorno ao passado” em que o welfare state “funcionava melhor”, ou se fala irrefletidamente de autonomia e do desconhecido sem levar minimamente em consideração a esfera da necessidade que, pequeno problema, é aquela graças a qual se pode viver. Assim nos esquecemos que a condição para que possamos chegar a viver em um mundo de livres e iguais é aquela, trivialmente, de poder viver. Uma questão que vem à tona com extrema clareza em uma situação como a atual, em que os problemas tendem a emergir nus e crus, sem o habitual verniz que os revertem, pelo menos neste canto do mundo. A menos que se negue a gravidade sanitária atual ou se hipotetize que, fatalmente, dadas as condições atuais, não há mais nada a fazer senão aceitar morrer de capitalismo – porque é disso que se trataria –, deveríamos nos esforçar para elaborar e sustentar, na prática, um discurso que vise salvaguardar nossa saúde e a de outros, levando em conta as necessidades sanitárias, sem nos deixarmos dominar pela razão do Estado. Compreendemos que esta afirmação parece pouco mais que um slogan, seguramente mais simples de dizer que de fazer, ou mesmo ser refletida em modo adequado. Mas não há nada de simples nesta ordem de problemas, e as dificuldades estruturais que estamos enfrentando devem ser explicitadas e nos acompanhar a cada passo em nossas ações e reflexões. A questão não é, evidentemente, aceitar de alguma forma a razão do Estado com sua lógica emergencial, útil para regular a população, criar obstáculos e se preparar preventivamente ao surgimento de descontentamentos e conflitos, além de ser um importante experimento do qual as autoridades, certamente, tentarão extrair ensinamentos no futuro. Não é necessário prever uma situação distópica, de total normalização das atuais medidas de contenção a partir de depois de amanhã, para entender a gravidade da questão. Por outro lado, é de anteontem, ou melhor, há décadas, que os Estados se esforçam para estudar técnicas de contra insurgência e de gestão militar das crises de vários tipos. Por exemplo, é possível que a contraparte aproveitará esta situação para relançar o 5G (apelando e legitimando-se, ainda que apenas como imaginário, para uma gestão da epidemia ao estilo coreano) ou para aplicar um toque de recolher atenuado em outras situações críticas.

Tal lógica emergencial responde, porém, a uma inegável exigência de conter os contágios e é esta a profunda diferença entre a situação atual e outras situações de emergência social ou de catástrofes ligadas a fenômenos, por assim dizer, naturais. Negligenciar ou minimizar este dado, ou fingir esquecê-lo, certamente não reforçará nossa capacidade de criticar e combater os dispositivos e o processo de autolegitimação realizado pelas autoridades. Seria interessante, por exemplo, ver que crítica podemos fazer a uma estratégia como a do Reino Unido para criar a chamada imunidade de rebanho

A crítica e a oposição ao, assim dito, estado de emergência devem ser, pelo menos, complementares a um discurso e a lutas que consigam colocar no centro do problema as vergonhosas políticas sanitárias, guiadas pela lógica feroz do lucro que, cada vez mais ao longo dos anos e sobretudo agora, tornam a possibilidade de tratamento para aqueles que não dispõem de certos recursos econômicos um luxo extremamente seletivo. Isto certamente não significa reivindicar o papel e a lógica da saúde pública como objetivo final pelo qual se deve lutar, mas a luta para viver livre, repetimos, passa pela possibilidade de viver e as reestruturações no campo da saúde têm sido, e continuam a ser, verdadeiros atos de guerra contra tantas e tantos explorados. Uma carência na possibilidade de tratamento que, em um mundo como o capitalista, estruturalmente hostil a qualquer forma de autonomia, equivale a verdadeiras sentenças de morte, para além do Covid-19. Lutar para expandir estas possibilidades, em paralelo com a construção de um conhecimento e de lógicas diferentes em relação ao sistema de saúde público, representa uma peça fundamental para a perspectiva revolucionária que não quer opor ideologicamente liberdade e necessidade de vida. Como articular propostas concretas é um problema que, seguramente, vai além deste breve texto e, pelo menos no momento, das habilidades e experiências de seus autores. Aprenderemos a fazê-lo, se é que aprenderemos, fazendo-o e pensando criticamente nas lutas que seremos capazes de construir.

Buscar, na medida do possível, analisar corretamente o fenômeno tem repercussões tanto éticas quanto estratégicas: por um lado, não podemos arriscar colocar em perigo outras pessoas e possíveis cúmplices diante do risco de contágio. Nós, companheiros, que já somos poucos e com energia escassa, não podemos adoecer. Não podem adoecer e morrer os nossos possíveis cúmplices… que adoeçam os ricos, os governantes e os patrões, pelo menos. Por outro lado, devemos compreender como a situação irá evoluir e os cenários prováveis.

Seguramente não podemos nos permitir esperar, porque, apesar do mais aproximativo determinismo ou mesmo querendo imaginar uma garantida catástrofe que se posiciona diante de nós, o ponto é como transformar a catástrofe em revolução.

LUTAR… COMO

Retomando o assunto das faltas, não podemos deixar de notar uma lacuna na nossa relação com as e os explorados que vivem ao nosso redor. Algumas coisas que deveriam ser nossa base de intervenção resultam, de antemão, difíceis: criar relações de solidariedade com as pessoas mais afetadas pelos impactos sociais e materiais, evitando algumas imposições idiotas do governo e a dependência em relação ao aparelho de controle estatal; contrastar a narrativa dominante e revelar os efeitos futuros na qualidade de vida; tentar partilhar com os e os proletários imigrantes ferramentas para compreender o fenômeno do vírus e as jogadas do Estado; ajudar a compreender o tipo de repressão executado e como combatê-lo (considerar a extensa aplicação do artigo 650 do código penal italiano). Que as medidas sociais postas em prática serão dirigidas apenas à parte mais remediável da população é certo, mas também a narrativa praticada até o momento denota uma certa seleção diante do próprio contágio: grande parte das e dos imigrantes explorados, que não conhecem bem a língua italiana, têm sérias dificuldades a entender qualquer coisa, nem que seja como usar bem a máscara ou as luvas.

Também aqui, é preciso aproveitar os sinais que uma situação de crise traz consigo e enveredar por este processo de aceleração, tentando encontrar, em breve, com muitas mais pessoas que nossas lutas específicas tenham sido capazes de fazer nos últimos tempos. Deficiências que, talvez, não poderão ser preenchidas inteiramente. Ao mesmo tempo, entender se e como reencontrar aquelas pessoas com as quais dividimos um momento de luta, ou com quem ainda a dividimos. Por exemplo, se as lutas nos centros de detenção para imigrantes não tivessem recuado e se não tivessem tomado os celulares dos “encarcerados”, talvez aquele tivesse sido um outro campo de batalha semelhante às prisões, mas com mais possibilidades de interação.

Se quiséssemos olhar para os desafios que enfrentamos, mesmo com um foco temporal, deveríamos começar a imaginar o que fazer na fase de saída desta emergência sanitária (se e quando haverá), e os impactos sociais que ela trará… ainda mais com a possibilidade de voltar às ruas. Não se moverá uma folha e todos estarão felizes pelo retorno à normalidade ao grito de “RinascItalia” (Renascitália)? Haverá pelo contrário uma catástrofe tal que canalizará uma furiosa raiva coletiva? Iniciarão uma série de conflitos em áreas específicas da sociedade (trabalhadores de restaurantes, da saúde, desempregados, pessoas com doenças agravadas pelo coronavírus, a luta para não pagar os gastos, etc.)? Aqui também recomeçamos pelas falhas.

De forma geral, nas várias zonas da Itália, desenvolvemos, ao longo dos anos, estudos e pesquisas em vários âmbitos que compõem esta sociedade, dedicados à produção e reprodução do sistema capitalista. Muitas vezes com a ideia de extrair qualquer análise que orientasse e iluminasse as propostas de luta e ação. E, no entanto, pelo menos para quem escreve, se a emergência terminasse agora e se criasse, por exemplo, uma concentração de pedidos de exames médicos suspensos, durante a emergência, com o risco de que as pessoas em situações mais urgentes precisem recorrer ao dispendioso sistema de saúde privado, saberíamos frente a qual oficina ir para protestar? Indicar detalhadamente os responsáveis, de décadas e séculos, por esta condição? É necessário preencher estas questões com estudo e observação, mas também com uma troca com os possíveis companheiros que conheceremos. Nós mesmos, de qualquer forma, estamos imersos na sociedade e sofremos a exploração que ela traz consigo. No trabalho, entre os vizinhos do condomínio, amigas e amigos estudantes, familiares fechados nas zonas vermelhas e com lugares na UTI esgotados. Talvez já conheçamos os possíveis companheiros.

Alguns problemas imediatos afetarão in primis a saúde das pessoas e revelarão imediatamente uma questão de classe: o que acontecerá com todas as doenças crônicas que, nesta situação de crise e carência de tratamento, terão se agravado? Que benefícios desfrutará o sistema de saúde privado devido ao desvio de uma parte das visitas atrasadas para suas clínicas a pagamento? Como os trabalhadores da saúde, há tempos obrigados a condições contratuais degradantes e a turnos de trabalho massacrantes, e cuja saída das circunstâncias atuais será muito mais longa, sairão efetivamente dessa crise sanitária?

Acostumados, ao longo dos anos, às pancadas repressivas, às dificuldades do conflito social, ao lado parcial da luta, corremos o risco de perder o impulso imaginativo e utópico. Um impulso que deve ser capaz de desenhar mundos ideais livres do capitalismo, mas lançar o coração além do obstáculo da resignação. E pensar grande.

Um olhar que, para atravessar diretamente o problema, oscila entre a capacidade de ataque e a autogestão das reservas na reprodução da vida em um processo insurrecional, além de suas modalidades organizativas. Porque se consideramos que, na base da crise coronavirus, está o mundo capitalista enquanto tal, se reafirmamos que possibilidades estão surgindo, para muitas pessoas, de conquistar essa consciência através de uma luta dura, então a dimensão é radical.

Nos limitaremos a “incitar” ou apoiar as manifestações de rua e seu nível de conflito, ou vamos, ao mesmo tempo, colocar-nos a questão de como nos virar, de como continuar a cuidar de nós mesmos sem reproduzir o modelo orientado ao lucro, de como usar os terrenos e os espaços agrícolas para produzir alimento? Como poderemos nos defender dos ataques da outra parte contra um território, ainda que parcial, em tumulto? Como dialogar com outros territórios distantes do nosso? Além disso, se cortam a água e a eletricidade de um setor da prisão em rebelião, por que não deveriam fazer o mesmo com todo um bairro?

Aqui a vertigem se insinua com força, melhor refletir mais. Esperamos apenas que estes argumentos parciais possam orientar o debate que está por vir.

Torino, 16 de março de 2020.