O texto a seguir foi lançado em junho pelo Coletivo Chuang 闯 e traz uma importante e inovadora análise dos recentes levantes em Hong Kong contra a lei de extradição e seus paralelos e influência sobre as ondas de protesto no Chile e nos Estados Unidos nas táticas usadas por manifestantes e a relação entre “violência” e “não-violência”. Traduzimos e lançamos o material porque ele oferece uma abordagem que atualiza o debate sobre como manifestantes encontraram formas de cooperar em diferentes táticas, posições e capacidades para que o maior número e variedade de pessoas pudessem participar dos protestos com maior segurança e enfrentar as leis e a violência policial em uma ampla cooperação.
Já mencionamos o trabalho do coletivo Chuang, sempre crítico ao capitalismo de estado da China, especialmente em relação à crise que sanitária em que vivemos com seu artigo Contágio Social – Coronavírus, China, Capitalismo Tardio e o ‘Mundo Natural’. Esperamos que esse novo texto contribua para o debate e inspire os próximos momentos de agitação e protestos de rua no Brasil e no mundo.
Bem-vindas às Linhas de Frente: Além da Violência e da Não-violência
Em maio e junho de 2020 os EUA assistiram a alguns dos maiores protestos e levantes combativos em décadas. O movimento, que tomou o país, começou em Minneapolis após a polícia assassinar George Floyd. A raiva que se seguiu levou a manifestações em massa, confrontos com a polícia, incêndios e saques, luto e rebelião que se espalharam por todos os estados do país em questão de horas. A delegacia do Terceiro Distrito Policial de Minneapolis, onde os policiais assassinos trabalhavam, foi incendiada e carros de polícia foram queimados também de Nova York a Los Angeles nos maiores ataques à edifícios de instituições estatais repressivas dos EUA em mais de um século. Tais atos foram abastecidos por décadas de raiva contra a polícia racista e o incessante assassinato de pessoas negras pelas mãos da polícia. Agora, até a esquerda eleitoral reformista está discutindo seriamente uma versão mais suave da abolição da polícia em nível nacional, re-imaginada como “cortar os orçamentos” da polícia, e o Conselho da Cidade de Minneapolis prometeu “dissolver” o departamento de polícia da cidade. Há pouco tempo, tal demanda teria sido considerada utópica.
À medida que o movimento contra a brutalidade policial e a própria instituição da polícia se desenrolam rapidamente nos EUA, já vimos marcas de outros confrontos e lutas de massas que surgiram em todo o mundo no ano passado, do Chile à França, Líbano, Iraque, Equador e Catalunha, para citar apenas alguns. Aqui, qualquer análise ampla da rebelião nos EUA seria prematura, já que os incêndios dos motins ainda estão literalmente acesos nas cidades do país. Em vez disso, gostaríamos de fazer algumas breves observações sobre as lutas em Hong Kong, sobre as quais fizemos o nosso melhor para acompanhar de perto, concentrando-nos em uma inovação tática específica que acreditamos ser uma contribuição útil para os protestos em andamento nos EUA e além. Já vimos pessoas nas ruas adotando lições isoladas de Hong Kong e outros pontos críticos no ciclo global de rebeliões do ano passado: uma barricada indiscutivelmente ao estilo Hong Kong com carrinhos de supermercado do lado de fora do Terceiro Distrito Policial em Minneapolis, técnicas para extinção de gás lacrimogêneo em Portland, relatos de lasers ofuscando as câmeras policiais e viseiras em várias cidades, guarda-chuvas contra spray de pimenta em protestos em Columbus e Seattle, e grafites em apoio a manifestantes de Hong Konge nas portas de lojas fechadas ou saqueadas em várias cidades. As semelhanças eram tão impressionantes, de fato, que levaram o paranoico editor-chefe do tabloide estatal chinês The Global Times, Hu Xijin, a concluir que “os manifestantes de Hong Kong se infiltraram nos Estados Unidos” e “planejaram” os ataques.
https://twitter.com/Woppa1Woppa/status/1268051170292977665?ref_src=twsrc%5Etfw%7Ctwcamp%5Etweetembed%7Ctwterm%5E1268051170292977665%7Ctwgr%5Eshare_3&ref_url=http%3A%2F%2Fchuangcn.org%2F2020%2F06%2Ffrontlines%2F
“Você vê as pessoas implantando táticas de Hong Kong de maneira muito eficaz aqui, implantando táticas de Hong Kong aqui, para impedir que o gás lacrimogêneo atinja manifestantes e veículos”
Vai Portland! Use esse grande cérebro HK IQ!”
Pouco podemos fazer para orientar a maneira como esse movimento se desenrola (nem gostaríamos de fazê-lo), mas esperamos que algumas das ferramentas e táticas empregadas por nossos amigos e camaradas em Hong Kong possam ser úteis para aqueles que estão nas ruas de outras cidades.[1] Em particular, oferecemos para sua avaliação o desenvolvimento do papel de “linha de frente” no movimento de Hong Kong, com a esperança de que possa ser útil para superar a divisão entre participantes combativos e pacíficos nas ruas em outros lugares.
Como em movimentos do passado, já houve divergências significativas sobre como se envolver com as forças do estado nos EUA. Como com outros movimentos desde Ferguson e de antes, algumas (mas não todas) organizações ativistas formais começaram a se engajar com a ala “branda” da força policial local, entrando em ação para conter as ações de confronto no início dos protestos: “Líderes comunitários” colaboram com a polícia, conduzindo multidões para emboscadas e panelões (envelopagem ou kettling) e, literalmente, apontam manifestantes “violentos” na multidão. Enquanto isso, os governos locais em todo o país afirmam que aqueles que estão iniciando a destruição de propriedade ou lutando contra a polícia são “agitadores externos”, com o prefeito de Seattle tweetando que “grande parte da violência e da destruição, tanto aqui como em todo o país, foi instigada e praticada por homens brancos”. Mas é bem óbvio que a raiva reprimida contra a polícia é extremamente generalizada e emergiu um amplo consenso nas ruas de que ela deve se combatida.
Hong Kong pode oferecer um caminho que escapa à aparente inevitabilidade dos conflitos sobre violência, não violência e como se envolver com as forças do estado. Para aqueles que buscam uma nova maneira de preencher as lacunas entre as formas ação combativas e as de ação pacífica, pensamos que uma das contribuições mais importantes da cidade para a nova era de lutas tem sido o desenvolvimento de papéis e formações particulares a serem implantados nas ruas, bem como as estruturas por trás desses papéis que ajudaram a engajar melhor as pessoas dispostas a lutar contra policiais em coordenação com outras pessoas no movimento. Em particular, queremos destacar o conceito de “frontliners” (“linhas de frente” ou “primera línea”) de Hong Kong, que não apenas desenvolveram muitas técnicas de sucesso para confrontar a polícia, mas também estabeleceram um novo tipo de relação entre os membros combativos e não-violentos das ações de rua através de muitos meses de experimentação .
https://twitter.com/shikonshoto/status/1268031123780562949?ref_src=twsrc%5Etfw%7Ctwcamp%5Etweetembed%7Ctwterm%5E1268031123780562949%7Ctwgr%5Eshare_3&ref_url=http%3A%2F%2Fchuangcn.org%2F2020%2F06%2Ffrontlines%2F
“Mais guarda-chuvas na linha de frente aqui em Seattle. Já passamos cerca de cinco minutos do toque de recolher e até agora ainda está tudo pacífico. Se quiserem assistir ao live dm me pelo link pic.twitter.com/ZyKMoGe0PL
— katie (@shikonshoto) June 3, 2020″
O que significa estar “na linha de frente?” O termo se tornou incrivelmente popular nos últimos meses em vários idiomas e campos sociais, especialmente para se referir a profissionais da saúde e outros que são particularmente vulneráveis à pandemia da Covid-19 em andamento. Isso ofuscou a onda original de popularidade do termo na cobertura da mídia no ano passado, quando se referia a manifestantes em várias partes do mundo. As saudações oficiais a profissionais da saúde enquanto trocava de turno em Wuhan e Nova York nos soam muito estranho, pois são orquestrados pelo estado e fazem um eco ao “¡vivan lxs de la primera línea!” que saudou manifestantes que voltavam de batalhas com a polícia no Chile no outono passado.
O que permitiu essas manifestações versáteis e aparentemente opostas do termo foi justamente sua capacidade de integrar atividades que, em outro contexto, estariam separadas, propondo uma unidade definida não pela homogeneidade, mas pelo apoio à luta geral, simbolizada por aqueles na “linha de frente”. Agora, com o retorno dos protestos nos Estados Unidos, parece possível que o uso do termo possa voltar a se referir às pessoas que enfrentam a polícia: Em Connecticut, uma fila de manifestantes vestidos de preto enfrenta a polícia usando máscaras que antes eram destinadas a prevenir a propagação do vírus e, em uma captura de tela borrada do momento, uma mulher segura uma placa que diz: “os únicos aliados são os que estão na linha de frente”.
A ideia básica que permite ao conceito de linha de frente integrar o movimento além da velha divisão entre “violência” e “não-violência”, ou “diversidade de táticas”, é que quem está na linha de frente assume riscos pessoais para proteger quem está ao redor, preferencialmente com (mas frequentemente sem) equipamentos de proteção especiais, e esses riscos ajudam a impulsionar todo o movimento. É também por isso que o conceito se estendeu tão facilmente à resposta à pandemia, porque a lógica básica do risco pessoal em apoio à luta é mais ou menos a mesma. Mas, nesses casos, o estado tinha um claro interesse em mobilizar o termo para cooptar respostas populares ou disfarçar sua própria incompetência, tudo com o objetivo final ainda sendo a supressão da pandemia. Agora, porém, o estado não tem esse interesse, uma vez que não compartilha do mesmo objetivo dos manifestantes que invocam o conceito de linha de frente. Em vez disso, ele apresentará “líderes comunitários” e talvez até mesmo os retrate como presentes “na linha de frente” do movimento de alguma forma, mas não há necessidade nem mesmo de fingir apoiar aqueles que realmente estão em conflito com a polícia. Isso significa que o termo tem a capacidade de retornar ao significado que ganhou em Hong Kong, definido através dos riscos assumidos em defesa de todas as pessoas ou do ato de colocar a própria vida em risco para manter todos os outros seguros e, ao mesmo tempo, impulsionar a luta.
No decurso da escalada dos confrontos de rua ao longo de 2019, os manifestantes de Hong Kong produziram inovações rápidas, incluindo a invenção de novos equipamentos e formações distintas com posições táticas específicas a serem preenchidas dentro do corpo do protesto. A “frontliner” pessoa na linha de frente surgiu neste contexto como um papel reconhecível para aqueles que, com estratégias para extinguir gás lacrimogêneo e escudos, se posicionaram diretamente contra a polícia, apoiadas por camaradas nas segunda e terceira linhas.
Essa inovação tática se espalhou rapidamente, primeiro para o Chile e depois para outros contextos latino-americanos. O primeiro salto de Hong Kong para o Chile provavelmente foi traduzido por meio de um vídeo dos protestos carregado no YouTube ou simplesmente transmitido pelo ar inebriante do ciclo de revolta de 2019. Um participante de um “clã” chileno da linha de frente deixa claro que as táticas que seu grupo usa foram adotadas em Hong Kong. Logo, outros manifestantes locais estavam preparando táticas notavelmente semelhantes, incluindo escudos, slogans, construção inventiva de barricadas e a adaptação generalizada de canetas laser de alta potência como ferramentas para interromper a visão e as câmeras da polícia (bem como, em um caso memorável , a destruição de um drone policial). Além dessas adaptações específicas, a estrutura do movimento chileno também foi organizada em linhas reconhecíveis: após um período de manifestações contra o aumento dos preços do transporte público, incluindo a evasão generalizada de tarifas e grandes marchas, uma repressão policial desencadeou manifestações massivas e tumultos que são amplamente referidos no Chile como uma “explosão social”. No vídeo de um protesto na Plaza Italia, Santiago, Chile, um homem em um prédio com vista para a praça observa com entusiasmo que a manifestação “só é possível por causa de um grupo de crianças” que se organizou “para deter as forças repressivas”.
No período seguinte, com a declaração do estado de emergência em cidades de todo o país, o espaço para manifestações pacíficas foi defendido por uma linha de frente de manifestantes dispostos a lutar contra a polícia. Como em Hong Kong, esses frontliners eram organizados principalmente por funções: portadoras de escudos, atiradores de pedras, médicos, “mineiros” (arrancando petras para jogar), manifestantes na linha de trás com lasers para interromper a visão policial ou câmeras e barricadas para bloquear avanços. Ao contrário dos desenvolvimentos posteriores na estratégia de “ser água”(“be water”) de Hong Kong, que focava no desgaste da polícia por meio de constante mobilidade, o movimento chileno começou com a linha de frente estabelecendo e defendendo linhas específicas em torno da “zona zero” ou “zona vermelha” para evitar que os policiais entrassem em áreas onde outras manifestantes estavam reunidas. Com o aumento da repressão, no entanto, os confrontos diários tornaram-se essencialmente batalhas de rua entre a linha de frente organizada e a polícia. Ainda assim, no entanto, a importância da linha de frente como uma ferramenta para tornar possível o protesto de rua foi amplamente reconhecida por pessoas dentro e fora do movimento, com “representantes da linha de frente” recebendo aplausos intensos quando convidadas para participar de talk shows. Como em Hong Kong, frontliners que formaram grupos autônomos para defender o movimento tiveram apoio de participantes externos, tanto anonimamente quanto em grupos, como alguns meios de comunicação de direita reclamaram.[2]
Táticas semelhantes também foram adotadas na Colômbia, via Chile e Hong Kong, à medida que grupos se organizando no Facebook reconheceram que havia a necessidade de proteger os manifestantes no movimento estudantil da violência policial. No entanto, os primeiros membros dos grupos da linha de frente mais proeminentes declararam que agiriam de formas puramente “defensivas” em vez de atacar a polícia diretamente. Mas, à medida que o movimento popular mais amplo se extinguiu, as opiniões sobre esses grupos (caracterizados por seus escudos azuis amigos da mídia) começaram a mudar. Os frontliners adotaram conscientemente a estratégia “seja água” de Hong Kong, mas isso foi percebido por muitos nos movimentos estudantis como um abandono físico do movimento estudantil, que não tinha feito as mesmas escolhas táticas. De forma mais ampla, a linha de frente nos protestos estudantis colombianos foi considerada oportunista, tentando fazer um espetáculo amigável à mídia e tentando conduzir marchas para longe das rotas acordadas. No final das contas, esse tipo de “linha de frente” altamente inorgânica se alienou do apoio que primeiro recebeu do resto do movimento.
Em todos esses diferentes contextos, o desenvolvimento do papel linha de frente marcou um avanço significativo nas táticas de confronto de rua com a polícia. Essas táticas devem, é claro, mudar para se adequar a situações particulares, mas podemos aprender com o conhecimento global cada vez maior da luta. Na década seguinte ao declínio do movimento alter-globalização ou antiglobalização, a discussão sobre táticas para combater a polícia em grande parte congelou em debates sobre o “black bloc”. Originado na Alemanha dos anos 1980, o black bloc se refere à tática de usar trajes de protesto totalmente pretos, que impedem a polícia de apanhar um indivíduo no meio da multidão. Em parte devido ao seu sucesso prático, as ações do black bloc nos Estados Unidos e em grande parte da Europa foram sujeitas a debates intermináveis que, em última instância, se resumem ao papel que a ação combativa deve desempenhar nos protestos de rua. Nos Estados Unidos, o resultado final foi uma redução das tensões em que os manifestantes que apoiavam a ação combativa e aqueles que só podiam apoiar a ação não-confrontativa chegaram a se dividir em áreas das cidades para evitar a interação entre os grupos. Afirmações de que o black bloc protege manifestantes não-violentos (seja diretamente ou atraindo a repressão policial e seus recursos para outros lugares) têm sido pontos de discordância comuns, mas nunca chegaram a um consenso. Na melhor das hipóteses, há uma defesa de uma “diversidade de táticas”, talvez a melhor expressão para descrever essa frágil redução de tensões.
Logo no início de tais movimentos, a diversidade de táticas permite uma tênue coexistência de protestos combativos e pacíficos, uma vez que há muitos participantes e múltiplas marchas, permitindo que as pessoas se distribuam nos locais onde prevalece seu tipo preferido. O termo efetivamente imagina esferas inteiramente diferentes nas quais “diversas táticas” podem ocorrer. Mas nem sempre é esse o caso. À medida que a repressão do estado aumenta e o momentum projeção inicial diminui, as duas esferas são forçadas a se fundir. É precisamente neste ponto que táticas mais agressivas são necessárias para defender o movimento como um todo contra a polícia e para continuar empurrando as coisas para frente enquanto a energia dos participantes diminui. Por um lado, é quando a função repressiva do estado é ativada, à medida que a polícia local é reabastecida e recebe apoio de níveis superiores de governo. No entanto, por outro, este é também o momento em que o estado mobiliza seu aparato de controle brando (soft control) na forma de lideranças comunitárias, organizações sem fins lucrativos e políticos “progressistas”, todos os quais desempenham um papel essencial no rompimento da tênue aliança tática que existia nos primeiros dias. Afinal, essas são as pessoas mais bem-sucedidas em difundir o mito do “agitador externo”, criticando o dano à propriedade causado pelo “anarquista branco” e, muitas vezes literalmente, entrando no meio para evitar ataques contra polícia ou mesmo o resgate de manifestantes detidas e, após os protestos, são as que vão encorajar as pessoas a entregar vídeos delatando quem jogou garrafas na polícia e inundar as redes sociais com postagens afirmando que foram policiais ou mesmo nacionalistas brancos que quebraram as primeiras janelas.
Nos protestos de 2019 em Hong Kong e no Chile, porém, de maneiras e velocidades diferentes, a afirmação de que o bloco protege outras pessoas transformou-se em um saber claro e inegável. Isso foi possível em parte por meio do apagamento de quaisquer significados anteriores atribuídos à tática black bloc e sua substituição pelo papel da primera línea: manifestantes que, ao se sujeitarem ao grave perigo e ao gás lacrimogêneo, estavam agindo unicamente em defesa de todas as outras no protesto contra a polícia. Isso representa uma mudança: não há mais uma grande separação geográfica em dois corpos de manifestantes (uma zona de protesto pacífico e outro de confronto), mas em vez disso, um único corpo se uniu, protegido na linha de frente por aqueles que assumiram o papel de estar lá. Em um sentido ainda mais amplo e, talvez ainda mais importante, os protestos de Hong Kong e do Chile reconfiguraram totalmente o papel dos manifestantes vestidos de preto, mascarados e combativos dispostos a lutar contra a polícia. Ao contrário da situação nos Estados Unidos, onde muitas vezes é possível que a mídia e a polícia colaborem no isolamento de combatentes, retratando-os como separados do corpo principal de “bons manifestantes” e ainda mais distantes do corpo político em geral, as primera líneas também chegaram a ser amplamente (senão completamente) entendidas como agindo em defesa de todas as pessoas, manifestantes e não manifestantes, tornando possível resistir a um status quo insustentável.
A construção de uma solidariedade efetiva entre “militantes valentes” (勇武) e adeptos da “não-violência pacífica e racional” (和理非) não foi o resultado automático do movimento ascendente em 2019 em Hong Kong, nem aconteceu da noite para o dia. Como nos Estados Unidos, movimentos anteriores em Hong Kong estavam divididos entre linhas ideológicas de confronto e não violência, bem como entre aqueles nas ruas e a “oposição controlada” dos partidos pan-democratas no Conselho Legislativo (LegCo).[3] Devemos lembrar que os protestos de 2019 vieram depois de anos de experimentação, incluindo o surgimento e o fracasso do Umbrella Moviment (Movimento Guarda-Chuva) de 2014: um protesto igualmente massivo e amplamente “pacífico” que cumpriu todos os modelos defendidos pelos defensores liberais da não-violência.
Quando o movimento foi derrotado de forma tão decisiva, a juventude de Hong Kong começou a agitar de novas maneiras – primeiro em ações de rua em menor escala, como a estranha e ainda polêmica “Rebelião das Almôndegas de Peixe”(“Fishball Riots”)[4] de 2016. Nessas ações, vimos algo como a linha de frente separada de sua base em manifestações massivas. A juventude ainda se recuperando do terrível fracasso do “paz, amor e não-violência” de 2014, em vez disso, entrou em confronto direto, declarando guerra à polícia, empilhando e jogando tijolos e, em seguida, testando a estratégia “seja água”, baseada na recusa de se manter parado em um local específico. Ao mesmo tempo, eles não esperaram pelo apoio de outros manifestantes e não fizeram nenhum esforço para recrutá-los. O resultado foi que as linhas de frente da “Rebelião das Almôndegas de Peixe” , do modo como eram, não tinham a conotação de defender as outras pessoas, como têm agora. Este caso de enfrentamento ainda é controverso entre os cidadãos de Hong Kong dentro do movimento, pois sua natureza isolada o tornou uma espécie de aventura arriscada (isso sem falar no papel desempenhado por pessoas locais de extrema-direita nos levantes). Agora, entretanto, vemos táticas muito semelhantes redistribuídas e aprimoradas, mas em um contexto surpreendentemente diferente. É como se as táticas testadas nas ações (relativamente) pacíficas de 2014 e nos confrontos (relativamente) violentos com a polícia de 2016 fossem finalmente forçadas a se combinar em uma síntese eficaz.
As raízes desta síntese podem ser melhor vistas perto do final do Movimento Guarda-Chuva, que tomou forma por meio de interações, muitas vezes conflituosa, entre organizações formais e dezenas de milhares de participantes autônomas. Durante as ocupações das regiões Central District e, posteriormente, de Mong Kok, alguns elementos do movimento foram organizados de modo central, com ocupações centradas em um “grande palco” (大台) que era essencialmente controlado por grandes organizações políticas, particularmente dois grupos de estudantes: a Federação de Sindicatos de Estudantes de HK e o Scholarism (algo como “Eruditismo”, um grupo fundado por estudantes de ensino médio), além dos principais partidos eleitorais do campo Pan-democratático e um monte de ativistas de ONGs conhecidas. Embora essas ocupações jamais teriam começado – muito menos se sustentado – sem grandes esforços de trabalho e ação autônoma, as organizações formais tentaram manter um nível de controle sobre a forma do movimento e, em alguns casos, tentaram cancelar ações específicas, algumas das quais continuaram de qualquer maneira sem seu apoio. Ainda assim, quem estava em posições de liderança eram os grupos que eventualmente entraram em negociações com o governo. Como em muitos contextos ocidentais, essas organizações eram orientadas, em grande medida, para a chamada “não-violência racional”. No entanto, as tensões entre os radicais e aqueles que controlavam o palco aumentaram durante o movimento, atingindo um pico com o ataque de manifestantes ao prédio da LegCo, após o qual manifestantes não-violentos e organizadores rotularam todos os militantes como agentes secretos de Pequim ou “destruidores”. Por outro lado, algumas manifestantes começaram a circular slogans pedindo a desmontagem do palco principal (e o centro de poder que ele representava) (拆 大 台) e que os bloqueios montados para tentar impedir os ataques a LegCo fossem desfeitos (散 纠察) .
Na esteira do fracasso do Movimento Guarda-chuva e do fim das ocupações, a primeira fase do Movimento Anti-Extradição de 2019 – aproximadamente desde a proposta de lei em março de 2019 até a marcha de dois milhões de pessoas em 16 de junho – a não-violência racional era a tática dominante. No entanto, após a relutância do governo em retirar a lei frente ao movimento de massa não-violento e, após a repressão policial cada vez mais violenta, um consenso bruto emergiu em torno de alguns princípios básicos: aprendendo com as falhas do Movimento Guarda-chuva, os novos protestos não deveriam ser organizado em torno de um corpo central e não tentariam ocupar e manter um espaço. Esta forma organizacional foi especificamente concebida a partir dos principais palcos do Movimento Guarda-chuva, tendo a “descentralização” como um slogan e princípio organizacional traduzido em cantonês como “sem um grande palco” (无大台).[5]
Ao mesmo tempo, as experiências de violência da repressão policial criaram um clima de solidariedade entre os manifestantes. Com base em demandas unificadas – primeiro pela retirada da lei de extradição e, em seguida, para um inquérito sobre a brutalidade policial, o fim das classificações de manifestantes como criminosos, anistia para os detidos e sufrágio universal – os participantes alcançaram um amplo consenso de que o sucesso exigiria um nível de unidade entre militantes e manifestantes pacíficos: “sem divisões, sem dissidência, sem traições” (不分化、不割席、不督灰) ou, mais positivamente, “cada um lutando à sua maneira, escalamos a montanha juntos” (兄弟爬山,各自努力) e “os pacíficos e os valentes são indivisíveis, ascendemos e caímos juntos” (和勇不分、齐上齐落). Pesquisas de participantes do movimento realizadas no local no início de junho mostraram que 38% dos entrevistados acreditavam que “táticas radicais” eram úteis para fazer o Estado ouvir as demandas dos manifestantes, mas em setembro o número subiu para 62%. Quando questionados se as táticas radicais eram compreensíveis diante da intransigência estatal, quase 70% já concordaram em junho e, em julho, esse percentual havia subido para 90%. Em setembro, apenas 2,5% dos entrevistados afirmaram que o uso de táticas radicais pelos manifestantes não era compreensível. Na mesma pesquisa, em setembro, mais de 90% dos participantes concordaram com a afirmação de que “Unir ações pacíficas e combativas é a maneira mais eficaz de obter resultados”. [6] Um ponto de inflexão semelhante pode estar surgindo nos EUA, onde quase 80% dos entrevistados respondeu afirmativamente uma pesquisa nacional que questionou se a raiva que levou à atual onda de protestos é “justificável”. Nela, 54% afirmou que a resposta à morte de George Floyd, incluindo o incêndio de um prédio da delegacia de polícia, é sim justificável.
Em Hong Kong, a natureza descentralizada do movimento, combinado com o crescente sentimento de um propósito unificado comum entre manifestantes pacíficos e combativos permitiu a formação e reprodução de papéis reconhecíveis nos quais as participantes podiam apoiar umas às outras em grupos organizados de forma autônoma, coordenados anonimamente por meio ferramentas online como Telegram e fóruns como LIHK.org. Essas ferramentas e estruturas organizacionais são dignas de uma análise separada ou de um guia de protesto de código aberto: o Telegram permite a criação de estruturas extremamente flexíveis enquanto preserva o anonimato, o que permitiu que manifestantes e apoiadores desenvolvessem todo um ecossistema digital crucial para driblar e enganar a polícia em tempo real. O recurso dos “Canais” do Telegram permitiu a criação de salas de bate-papo em grande escala semelhantes ao recurso de comentários no software de transmissão ao vivo que os manifestantes nos EUA estão usando. No entanto, embora esses “mares públicos” (公海) fossem capazes de fornecer algumas informações úteis, eles foram considerados como estando sob vigilância policial devido à sua natureza pública, e a organização sensível foi feita em canais separados entre grupos de amizade e confiança.
Manifestantes também criaram outros canais especificamente para compartilhar a localização da polícia e rotas de fuga, que eventualmente alcançaram dezenas de milhares de participantes do protesto. Nesses canais, a postagem é restrita a administradores ou bots especialmente designados, que retransmitem informações verificadas sobre a localização e disposição das forças policiais, ajudando a minar o fenômeno do boato descontrolado comum em qualquer protesto. Essas informações são coletadas por meio de crowdsourcing de indivíduos que trabalham como observadores no entorno das manifestações, que enviam atualizações em canais designados de acordo com um formato específico, para que possam ser facilmente padronizadas e repassadas para agregadores de dados que monitoram canais de informações e transmissões ao vivo, publicando atualizações para canais de difusão e mapas em tempo real de localizações policiais.
Além dos relatos, os canais do Telegram criados para ações específicas também permitiram aos participantes transmitir informações sobre as necessidades (“primeiros socorros necessários nessa esquina, “ferramentas pra extinguir de gás lacrimogêneo são necessárias em breve”) e tomar decisões coletivas sobre as respostas em tempo real por meio de funções de votação em tempo real. Este último permitiu escolhas rápidas, como a rota de fuga a tomar para evitar um ataque policial. É importante ressaltar que esses métodos organizacionais atraíram tanto militantes quanto aqueles que estavam relutantes, desinteressados (devido ao status de imigrante, deficiência ou outra vulnerabilidade potencial à violência policial) ou incapazes de participar na linha de frente: enquanto as pessoas na linha de frente enfrentavam a polícia e sua escalada de violência, apoiadoras não-violentos se envolveram nas marchas, como médicos ou fornecendo suporte logístico (transporte de suprimentos de barricadas, ferramentas para lidar com gás lacrimogêneo ou roupas para as pessoas da linha de frente vestidas de preto poderem se trocar), como observadores filmando policiais com câmeras ou como batedores alimentando informações para outros apoiadores que trabalham como agregadores de dados.
As pessoas de “fora” da linha de frente forneciam, de várias maneiras, suporte material direto para quem estava na linha de frente: em algumas ações, manifestantes sem equipamento formaram paredes humanas, às vezes usando guarda-chuvas, para proteger as pessoas da linha de frente enquanto trocavam as roupas e equipamentos que as identificavam, evitando que fossem presas a caminho para casa. Outras, embora não participem diretamente na linha de frente, facilitaram os danos à propriedade usando seus guarda-chuvas para tapar as câmeras enquanto as vidraças eram quebradas. Depois, no movimento, os manifestantes fora das linhas de frente traziam materiais para coquetéis molotov utilizados nas ações e formaram correntes humanas fornecendo materiais para reabastecer rapidamente a linha de frente com garrafas, gasolina, açúcar e panos.
Além dessas ações específicas de apoio, simplesmente permanecer nas ruas durante as proibições de reuniões públicas acabou sendo entendido como um meio de apoiar o movimento: um amigo conta a história de um funcionário de escritório mais velho, anônimo, em uma pausa para fumar que, depois de ler no Telegram que um grupo de pessoas da linha de frente estavam perto de seu prédio e precisavam ganhar tempo para não serem pegos pela polícia, caminhou diretamente até a linha de polícia e tentou começar uma briga com os policiais, pensando que sua identidade como uma pessoa mais velha e bem vestida poderia diminuir sua chance de ser preso e fornecer mais um álibi se o fizesse. No entanto, essa generalização da luta também é vista por alguns como uma das razões pelas quais a polícia finalmente se voltou para a estratégia mais recente de “kettling” (“envelopagem”, “panelão” ou “caldeirão de Hamburgo”) e prisão em massa de todos em uma determinada área: qualquer pessoa nas ruas agora pode ser considerada participante dos protestos, ou pelo menos odiar a polícia.
No início do movimento, no entanto, antes do aumento da repressão policial e das prisões no final do verão e outono de 2019, o papel das pessoas na linha de frente era relativamente claro, com opções para os apoiadores permanecerem separados do confronto direto com a polícia construindo barricadas, fornecendo suprimentos para a linha de frente enquanto as pessoas apagavam as bombas de gás lacrimogêneo ou escondendo a linha de frente da polícia enquanto trocavam de roupa. Contudo, essa divisão ainda era um tanto problemática, pois a aceitação da linha de frente como um segmento central do movimento, de certo modo, deu àquelas que realmente lutavam contra a polícia uma posição de “maior mérito”, o que levou a alguns manifestantes pacíficos serem acusados de não serem combativos o suficiente. Mas, à medida que a aceitação da ação militante cresceu junto com a violência policial cada vez mais extrema, essas divisões começaram a ruir. Por outro lado, ações que antes eram entendidas como pacíficas passaram a ser associadas a um risco cada vez maior de identificação e prisão.
Por exemplo, a criação e proteção dos “Lennon Walls”[7] de arte de protesto e auto-expressão foi originalmente entendida como um modo de participação completamente “pacífico”, mas como o número de ataques violentos aos “Lennon Walls” e prisões das pessoas que trabalhavam neles aumentou, tornou-se difícil continuar participando sem preparação física e mental para a violência. Diante da violência policial e do “terror branco” dos ataques a manifestantes feitos por bandidos pró-Pequim, qualquer divisão entre aqueles que estavam dispostos a colocar seus corpos em risco e aqueles que estavam comprometidos com atos de menor risco ou eticamente não-violentos tornou-se cada vez mais difícil de desenhar. Isso foi particularmente verdadeiro porque um número crescente de manifestantes foi preso. Para alguns amigos, a decisão de entrar na linha de frente foi gradual e resultou da erosão gradual das diferenças entre as atividades da linha de frente e outras formas de apoiar o movimento. Outros amigos relataram conversas difíceis que tiveram com seus pais idosos que, vendo a prisão de tantos jovens, resolveram se juntar à linha de frente para preencher a lacuna.
Embora tenhamos focado propositalmente em táticas materiais ao invés de identidade política, deve-se reconhecer que as cinco demandas que ajudaram a fornecer base para uma admirável unidade entre manifestantes em Hong Kong também acabaram encobrindo divisões políticas significativas. Em particular, o fato de o movimento ter uma base tão amplamente significava que incluía (e em alguns casos foi impulsionado pelos) sentimentos locais de direita. Ao contrário dos Coletes Amarelos na França, que tinham uma base de participação igualmente ampla, a escalada de táticas militantes que incluiu danos à propriedade não serviu para tirar os elementos da direita do movimento. Em vez disso, em Hong Kong a situação foi o contrário, e alguns (mas não todos) esquerdistas limitaram sua participação no movimento, sem vontade de entoar slogans ao lado de nacionalistas que pediam uma revolução para “restaurar” Hong Kong, ou de participar de marchas com alguns agitando bandeiras dos Estados Unidos ou regimes coloniais britânicos.
Enquanto a estrutura racial da política dos EUA torna a participação da direita na rebelião em curso praticamente impossível (apesar dos políticos promoverem mentiras afirmando o contrário), a estrutura do movimento de Hong Kong em torno de um conjunto unificador de cinco demandas também é um tanto estranha para o contexto estadunidense. Embora sua própria impossibilidade tenha dado ao movimento espaço para crescer, o uso de demandas insustentáveis saiu de moda nos Estados Unidos. Após o fracasso dos primeiros protestos anti-guerra em meados dos anos 2000, a ascensão e queda do Occupy alguns anos depois definiu o que se tornaria a norma, em que um excesso de demandas causou uma incapacidade generalizada de “concordar” com qualquer coisa. Na primeira onda de protestos Black Lives Matter após o levante em Ferguson em 2014, um fenômeno semelhante ocorreu: as organizações sem fins lucrativos BLM “oficiais” fizeram demandas concretas por câmeras nos uniformes dos policiais e para que o dinheiro para equipamento militar fosse canalizado para treinamentos de anti-racismo e “mitigação” dos conflitos, mas essas nunca foram as demandas popularmente endossadas pelas ruas. Em vez disso, o movimento se articulou não em torno de uma demanda, mas de uma afirmação: de que as Vidas Negras Importam.
Essa é a afirmação que voltou como uma forte coerência na revolta atual. Ao mesmo tempo, isso pode estar mudando um pouco. Mas ainda não há um conjunto coerente de demandas que possa unir os manifestantes pacíficos e militantes que se levantaram após o assassinato de George Floyd. Se tais demandas surgissem, provavelmente seriam básicas e improváveis de serem alcançadas sem “desmantelar o grande palco” da normalidade nos Estados Unidos, bem como as Cinco Demandas de Hong Kong: anistia geral, abolição da polícia ou reparações por séculos de assassinatos e escravidão sancionados pelo Estado. Os apelos pelo “desmonte da polícia” parecem ter ganhado destaque agora, depois de serem apanhados por grupos ativistas e políticos progressistas locais. Mas tal demanda está muito aquém do apelo mais popular para abolir a polícia e permite que os líderes locais afirmem que estão “desmontando” os departamentos de polícia quando, na verdade, estão apenas realizando cortes fracionários de orçamentos. Nesse sentido, “desmontar a polícia” parece estar assumindo um caráter semelhante à demanda por câmeras corporais em 2014.
Com ou sem tais demandas, vemos a inovação central do papel das pessoas na linha de frente como algo embutido nas novas relações que se tornam possíveis: entre a “linha de frente” e a segunda linha, a terceira e outros manifestantes de apoio. Uma semelhança entre as experiências dos manifestantes de Hong Kong e os das ruas dos Estados Unidos é que, embora muitos tenham experimentado por muito tempo a repressão policial, esta é para muitos a primeira vez (ou pelo menos um dos momentos mais graves) que a repressão policial ao protesto pacífico é visível. Em certo sentido, a evolução do papel da linha de frente foi realmente forçada a acontecer por conta da ação policial. Uma vez que a repressão ao movimento em Hong Kong passou de um certo ponto, dois fatos se tornaram aparentes: primeiro, a polícia é fundamentalmente violenta, segundo, que ela vai usar essa violência independentemente de seus alvos protestarem pacificamente ou não. Em segundo lugar, ficou explícito que, para o movimento continuar, manifestantes teriam de ser capazes de se defender.
Enquanto os reforços da polícia e da Guarda Nacional tentam dispersar os protestos de formas incrivelmente violentas nas ruas de quase todas as grandes cidades dos EUA, parece possível que o país veja um ponto de inflexão semelhante em termos da escala e intensidade da repressão. Para aqueles que buscam caminhos a seguir – maneiras de apoiar nossos amigos, amigas e camaradas, trabalhar em solidariedade, chorar os mortos pela polícia e garantir que tal violência sistêmica acabe algum dia – um método de continuar a luta pode ser encontrado reconhecendo que o papel da linha de frente é proteger todos os outros. Por isso dizemos: bem-vindas à linha de frente, e também à segunda e terceira linhas, e aos médicos e médicas e linhas de suprimentos, todos ocupando espaços, as ilustradoras e os responsáveis pelas impressões e distribuições, as pessoas que fazem streaming ao vivo e todos aqueles que tuitam informações dos rádios policiais. Talvez desta vez possamos estar todos juntos.
Para saber mais:
- Contágio Social – coronavírus, China, capitalismo tardio e o ‘mundo natural’, por Coletivo Chuang.
- O Deus Dividido: Análise dos eventos em Hong Kong, por Coletivo Chuang.
- Documentário: Estallido social en Chile, por Piensa Prensa.
- Documentário: Piñera: A guerra contra o Chile
Notas
1. Esta análise é o resultado de muitas conversas com amigos em Hong Kong, Chile e Estados Unidos, entre os quais gostaríamos de destacar Dashu e KW por sua ajuda paciente na verificação de fatos e esclarecimento de informações para este artigo. Eles esperam que suas experiências de HK possam ser úteis para a luta contra a brutalidade policial e o racismo nos Estados Unidos e em outros lugares.
2. Como observam camaradas no Chile, as táticas específicas de escudos contra balas de borracha, manifestantes mascaradas como defensores de manifestantes pacíficos e barricadas estão presentes no Chile desde os anos 1980, e o uso de máscaras e a defesa contra a polícia foram particularmente importantes durante a ditadura, para prevenir manifestantes de serem capturados, torturados e mortos. Outras táticas semelhantes às utilizadas em Hong Kong, como o uso de materiais amarrados entre postes de luz para evitar o avanço de viaturas policiais, também estiveram presentes no Chile antes de 2019. Essas táticas históricas e funções preexistentes, como médicos, apoiadores e pessoas que observam a ação da polícia, definitivamente influenciaram as formas como o conceito de linha de frente foi adotado no Chile. Da mesma forma, enquanto o movimento de Hong Kong enfatizava a mobilidade por meio da estratégia “seja água”, os movimentos chilenos têm uma forte tendência histórica à proteção de uma zona específica, o que influenciou a forma como as linhas de frente se desenvolveram ali.
3. Embora o campo Pan-democratico apoie a reforma eleitoral em Hong Kong, em grande parte apoia a política governamental existente – além do Partido Trabalhista e da Liga dos Social-democratas, os únicos dois partidos membros a manter qualquer tipo de agenda de esquerda.
4. N.T.: Protestos ocorridos em 2016 contra ação policial para reprimir camelôs em Mong Kok, em hong Kong. O nome “Fishball Riots” faz referência às almôndegas de peixe, produto muito comum nos comércios da região.
5. Ainda que este princípio organizacional tenha desempenhado um papel importante em ajudar o movimento a se tornar mais militante e se sustentar, de acordo com nossos amigos no local, ele também parece ter se tornado um obstáculo para a possibilidade de politização anticapitalista, então não deve ser romantizado : “Embora soe horizontal ou anarquista, na prática não está relacionado a nada como discussões democráticas entre os participantes, mas mais ideologicamente associado aos grupos locais que se opunham ao grupo Pan-democratico que estava no poder e controlava o palco. Por fim, o termo se espalhou entre a massa mais ampla de participantes, que temiam que o conflito entre essas facções políticas minasse o movimento, e surgiu um consenso de que ninguém deveria tomar o poder. … Mas isso não envolve, e até mesmo impede ativamente, o tipo de transmissão de diferentes pontos de vista no local, normalmente associados a termos como ‘horizontal’ ou ‘movimento sem líder’.” (Extraído de “Remolding Hong Kong”.)
6. Estas estatísticas são todas do “Anti-ELAB protest”, relatório de investigação local sobre o tema (反逃犯条例修订示威”现场调查报告).
7. N.T.: termo utilizado para se referir a uma intervenção coletiva permanente criada por milhares de manifestantes na parede exterior do prédio do governo central de Hong Kong. Consistia em cobrir as paredes com milhares de post-it carregando mensagens dos manifestantes; uma obra contra a censura.